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Das barricadas à vida privada

Resumos

Este artigo trata da questão da participação e da ação política na contemporaneidade à luz de conceitos oriundos da tradição republicana. Nossa preocupação central é com o traçado das fronteiras que separam o mundo público do privado nas sociedades atuais. Dois problemas merecem atenção especial: a questão da apatia e da solidão dos cidadãos vivendo em sociedades democráticas periféricas e os excessos cometidos pelos que adotam o modelo de ação derivado do jacobinismo revolucionário.

republicanismo; apatia; jacobinismo; público; privado


This article examines the issue of present-day participation and political action in light of the concepts that originated with the republican tradition. Our main concern is how the boundaries that separate the public world from the private world are drawn in contemporary societies. Two problems deserve special attention: the issue of apathy and loneliness of citizens who live in peripheral democratic societies, and the excesses committed by those who adopt the model of action derived from revolutionary Jacobinism.

republicanism; apathy; Jacobinism; public; private


NOVOS HORIZONTES

Das barricadas à vida privada

Newton Bignotto

Professor do Departamento de Filosofia da UFMG

RESUMO

Este artigo trata da questão da participação e da ação política na contemporaneidade à luz de conceitos oriundos da tradição republicana. Nossa preocupação central é com o traçado das fronteiras que separam o mundo público do privado nas sociedades atuais. Dois problemas merecem atenção especial: a questão da apatia e da solidão dos cidadãos vivendo em sociedades democráticas periféricas e os excessos cometidos pelos que adotam o modelo de ação derivado do jacobinismo revolucionário.

Palavras chave: republicanismo, apatia, jacobinismo, público, privado.

Classificação JEL: Z00, Z10

ABSTRACT

This article examines the issue of present-day participation and political action in light of the concepts that originated with the republican tradition. Our main concern is how the boundaries that separate the public world from the private world are drawn in contemporary societies. Two problems deserve special attention: the issue of apathy and loneliness of citizens who live in peripheral democratic societies, and the excesses committed by those who adopt the model of action derived from revolutionary Jacobinism.

Key words: republicanism, apathy, Jacobinism, public, private.

JEL Classification: Z00, Z10

Na segunda parte de seu romance A invenção da solidão, Auster (1998) se lança na reconstituição de sua vida pela rememoração de uma viagem pelo universo da memória e da linguagem. Obcecado por sua relação com os livros, o autor parte da idéia de que a linguagem é nosso modo próprio de existência e que, por isso, não há razão para considerá-la como um veículo da verdade, que seria exterior ao indivíduo, que vive e que narra sua vida. O mergulho na linguagem e na busca pelo sentido da memória cobra, no entanto, alto preço daqueles que se dispõem a enfrentar as agruras do percurso: o tempo presente parece se converter em uma ilusão, transformando o futuro na única dimensão da vida, que pode ser vivida intensamente. O narrador coloca o leitor em contato com sua intimidade e o sentido de sua procura dizendo:

A atualidade na qual ele se encontrava, ele tinha a impressão de observá-la de um ponto de vista que se situava no futuro, e o presente-passado parecia tão ultrapassado que mesmo as atrocidades do dia, que normalmente o teriam indignado, lhe pareciam distantes, como se essa voz sobre as ondas tivesse lido a crônica de uma civilização perdida. Mais tarde, em um momento de maior lucidez, ele chamaria essa sensação de nostalgia do presente (Auster, 1988, p. 96).

O sentimento de perda do presente e de distanciamento do mundo cotidiano é cada vez constante na literatura contemporânea e indica mudança na posição do indivíduo em relação à sociedade, que não pode ser desprezada.1 1 A esse respeito, são muito interessantes as observações de Renato Janine quanto ao uso cada vez mais freqüente na linguagem corrente brasileira do gerúndio para significar uma extensão contínua do presente (Ribeiro, 2000, p. 92-95). No começo do século XX, os personagens de Proust se interessaram pelas minúcias do cotidiano e pela construção de personalidades marcadas pelo convívio com objetos, que tornavam a vida privada o foco de um interesse renovado. Tudo se passa como se o longo século de embates públicos, que marcara a vida francesa, e a queda definitiva da monarquia tivessem esgotado as energias do mundo público e obrigado membros da sociedade a buscar refúgio nas reentrâncias da intimidade. Resta observar, no entanto, que em Proust o mundo dos salões e das pequenas intrigas continua a alimentar uma relação do indivíduo com a sociedade na qual o olhar do outro sobre as peripécias de cada um dos atores é essencial. A política perde o lugar de destaque que obtivera na obra de Victor Hugo ou de Zola, mas nem por isso o mundo público deixa de ser uma referência constante. Muitas vezes seus ecos chegam mediante títulos nobiliárquicos, que vão perdendo valor, ou por meio de personagens, que conservam o poder de atração, mesmo destituídos de qualquer presença efetiva nos centros de decisão política ou econômica, como é o caso de seu personagem principal. Seja como for, ainda não está presente a solidão radical, que vai marcar o narrador de Paul Auster e de tantos outros escritores.

1

A maneira como se dá a relação do indivíduo com a sociedade é um problema fundamental para os que se preocupam com a questão da ação política e da participação no mundo contemporâneo. Essa preocupação leva em conta o fato óbvio, mas nem sempre lembrado por alguns teóricos da política, de que os atores concernidos pelos processos públicos terão como ponto de ancoragem costumes e instituições que definem, de forma muito clara, as possibilidades de interação com outros atores e com a sociedade de seu tempo, e não apenas dados oriundos da natureza humana tomada abstratamente.

Por isso acreditamos que o apelo à participação, que integra o núcleo de muitas teorias republicanas do passado e atuais, deve ser analisado à luz das condições que regem as relações entre os indivíduos e as sociedades industriais da atualidade, não se restringindo à capacidade manifesta ao longo da história de indivíduos singulares influenciarem o curso dos acontecimentos. Com isso não estamos dizendo que o debate sobre a natureza das virtudes republicanas associadas à ação deva ser descartado em prol de uma sociologia dos atores políticos. O que queremos dizer é que, ao partirmos de considerações gerais sobre a capacidade de agir dos homens e deixando de lado o diagnóstico das condições nas quais os atores atuam, corremos o risco de apostar em uma teoria que nada nos ensinará sobre o mundo no qual vivemos e sobre o qual queremos pensar. Recordando as lições de Merleau-Ponty (1960, p. 66), não podemos nos esquecer de que:

A filosofia está plenamente na história, ela não é jamais independente do discurso histórico. Mas ela troca o simbolismo tácito da vida por um simbolismo consciente, e substitui o sentido latente pelo sentido manifesto.

Para compreender a identidade dos atores políticos nas sociedades contemporâneas e o papel que a ação política tem em sua maneira de se relacionar com o mundo público, é preciso renunciar à idéia de que estejamos à procura de uma definição da identidade dos indivíduos, que nos permite ligar a esfera de sua vida psicológica profunda com a seqüência de atos que o torna membro de determinada comunidade. Ou seja, estamos assumindo que não vamos tratar das características de personalidades, que constituem as identidades individuais em sentido forte, mas apenas dos fenômenos sociais, que são alterados pela maneira como os indivíduos agem ou deixam de fazê-lo em determinados momentos.

Nosso problema diz respeito à constituição das relações entre a esfera pública e a privada. Para facilitar nossa argumentação, assumimos com Elias (1994, p. 127-189) que se trata de uma balança entre o eu e o nós e que é a existência dessa balança, e a maneira como ela se comporta em determinadas épocas, que oferece nosso objeto de estudo. Não estamos com isso dizendo que o problema da construção da identidade das nações modernas não seja importante para nós, quando abordado do ponto de vista da criação de seus símbolos e do imaginário popular; ou que a vida psicológica não seja em certas situações determinante para as interações entre os indivíduos e o meio social. Estamos apenas escolhendo um caminho que nos parece mais fecundo, pelo simples motivo que o objeto maior de nossa investigação – o lugar do republicanismo no mundo contemporâneo – tem de ser bem delimitado, para não nos perdermos no sonho de uma teoria abrangente capaz de dar conta da totalidade dos fenômenos políticos. Nossa hipótese nesse momento é, portanto, que a utilização da polaridade "público-privado", em suas feições atuais, fornece um campo privilegiado para a investigação do lugar da ação política na construção e na conservação das sociedades democráticas.

O ponto central das considerações de Elias (1994, p. 152) que adotamos aqui é que:

não há identidade-eu sem identidade-nós. Tudo o que varia é a ponderação dos termos na balança eu-nós, o padrão da relação eu-nós.

Portanto, a análise da ação política e de seu papel nas sociedades históricas não pode ser feita com base na natureza humana e em suas possibilidades. Precisamos levar em consideração a ancoragem histórica da balança eu-nós e a posição relativa de seus elementos. Mas evitemos um equívoco. Não estamos dizendo que o estudo da natureza humana, ou mais especificamente de algumas de suas características, não seja importante para a compreensão das sociedades políticas. Como procuraremos mostrar no final de nosso texto, muitas de nossas análises sobre as sociedades atuais são tributárias de teorias a respeito do fundamento das comunidades políticas e de sua relação com a natureza dos homens, que não são claramente explicitados, o que nos leva a desconhecer os conceitos básicos subtendidos em muitas análises, ou, como prefere Taylor (2000, p. 200), a "ontologia" pressuposta na concepção do modelo de sociedade que desejamos.

A principal dificuldade encontrada por aqueles que defendem a participação nos negócios públicos como motor essencial das sociedades políticas livres advém do fato de que a balança eu-nós pendeu, de forma clara, ao longo do século XX, para o pólo do indivíduo. Como afirma Elias (1994, p. 130):

Atualmente a função primordial do termo ‘indivíduo’ consiste em expressar a idéia de que todo ser humano do mundo é ou deve ser uma entidade autônoma e, ao mesmo tempo, de que cada ser humano é, em certos aspectos, diferente de todos os demais, e talvez deva sê-lo.

Esse processo de deslocamento em direção à identidade-eu, que muitos identificam com a própria formação da modernidade, traz conseqüências óbvias para a análise do lugar que a ação direta dos indivíduos e de sua participação nos negócios públicos ocupa na política das nações democráticas. Do ponto de vista histórico, ela fornece um indicador preciso de que a maneira como as antigas repúblicas, em particular a República Romana, concebiam e organizavam a vida de seus cidadãos na cena pública não pode mais ser reproduzida nos dias de hoje (Elias, 1994, p. 130).

Essa constatação pode dar origem a duas maneiras de abordar o problema. A primeira, que encontra sua ancoragem em boa parte da tradição liberal desde o século XVIII, faz coincidir a constatação da contínua retirada dos indivíduos da cena pública com a progressiva realização da natureza humana. Ou seja, o processo histórico de desenvolvimento das sociedades capitalistas nada mais faria do que realizar a tendência natural dos homens a concentrar sua atenção em seus interesses particulares. Como querem alguns utilitaristas radicais, agir segundo outra motivação do que aquela derivada dos interesses individuais é agir irracionalmente.

A segunda abordagem do problema, mais próxima das considerações de Elias, parte do pressuposto de que a balança eu-nós representa o que ele chama de um habitus, a maneira como respondemos à pergunta "quem sou eu?" (Elias, 1994, p. 154). Nesse sentido, os indivíduos se vêem através de uma imagem que foi sendo construída junto com outros processos sociais e históricos e, por isso, não há lugar para uma representação do indivíduo como um ente absolutamente autônomo, ainda que essa seja a forma como muitos de nós se representa no interior das sociedades contemporâneas. Ainda que não nos identifiquemos inteiramente com o pensamento de Elias no tocante ao lugar que ele atribui à idéia de progresso na teoria social contemporânea, sua abordagem da imagem do indivíduo nas sociedades atuais, do ponto de vista dos processos sociais amplos que o constituem, parece-nos muito superior às teorias que insistem em tomar como um dado natural a crescente busca de autonomia e de auto-realização pelos membros das sociedades democráticas.

Nosso interesse principal, no entanto, não é o de realizar um balanço das teorias concernentes ao desenvolvimento do moderno individualismo. Na esteira de Elias, consideramos que se trata de um processo social inescapável e, nesse sentido, não podemos desprezá-lo se quisermos estudar as sociedades livres contemporâneas. Mas, contra boa parte dos autores liberais, não acreditamos que esse processo possa ser diretamente associado ao desenvolvimento de uma característica natural dos homens, que faria a balança eu-nós pender para o pólo eu inelutavelmente nas democracias. Por isso, interessa-nos aprofundar a análise de um processo que no limite terminaria com o pleno desenvolvimento do que chamaremos de uma figura tipo, o indivíduo solitário, dedicado ao desenvolvimento de sua personalidade, como o personagem de Auster e à defesa de seus interesses. No extremo, esse processo marcaria a morte definitiva do espaço público, que corresponderia a um estágio superado da vida política do Ocidente.

Estamos nos servindo do indivíduo isolado por ser esse um operador primordial de muitos pensadores atuais e pelo fato de que não podemos deixar de considerá-lo como um dado objetivo da vida política das sociedades capitalistas desenvolvidas e de outras. Formulando o mesmo problema na linguagem mais tradicional das Ciências Sociais da oposição entre espaço público e vida privada, podemos dizer que a vida política sofreu modificações importantes com a diminuição dos lugares nos quais os cidadãos se expressavam na condição de membros de uma comunidade política, e não como representantes singulares de uma espécie que se define pela hipertrofia do desejo de verem realizados seus interesses.

Como mostra Sennett (2002, p. 381-384), o equilíbrio entre os dois domínios conexos foi sendo alterado de tal forma que a vida privada expulsou os atores – termo que ele usa com gosto em sua obra – da cena pública para um mundo de personalidades competitivas, que buscam o maior contato possível entre os membros próximos de uma comunidade, visando realizar o ideal de uma vida povoada por afetos e destituída de máscaras. O resultado, segundo ele, é a constituição de novas formas de organização do tecido social, que reduzem ao máximo o espaço da prática política, que serviu de base para a criação das sociedades democráticas modernas, e institui um jogo em que o reconhecimento da personalidade do outro é o fator determinante das relações de poder que se estabelecem nas diversas esferas de ordenação da vida em comum. Isso gerou uma transformação que Sennett identifica como uma nova forma de tirania.

Uma instituição – diz ele – pode dominar como uma fonte única de autoridade; uma crença pode servir como padrão único para enfrentar a realidade.

A intimidade é uma tirania, na vida diária, dessa última espécie. Não é a criação forçada, mas o aparecimento de uma crença num padrão de verdade para se medir as complexidades da realidade social. É a maneira de se enfrentar a sociedade em termos psicológicos. E na medida em que essa tirania sedutora for bem-sucedida, a própria sociedade será deformada (Sennett, 2002, p. 412).

Partindo da constatação do encolhimento da esfera púbica e do aumento da importância dos mecanismos jurídicos de controle dos conflitos, parte significativa dos cientistas sociais acreditou fazer do estudo dos diversos cenários produzidos pela somatória dos interesses privados e do impacto das personalidades na luta pelo poder os operadores fundamentais de toda reflexão política. Mais uma vez, não é o caso de fazer o balanço dessas teorias.2 2 No caso brasileiro, merecem especial atenção as obras de Wanderley Guilherme dos Santos e de Fábio Vanderley Reis. O pressuposto da atomização dos atores nas sociedades contemporâneas é verdadeiro, à condição de que não seja tomado, como fazem alguns, como um dado da natureza ou como um resultado inelutável do processo histórico. A conseqüência que nos interessa debater é a de que qualquer forma de participação de atores individuais na arena pública, que não corresponda ao modelo exposto por Sennett, é uma impossibilidade, uma vez que contraria um suposto estado real das coisas. Ora, se não podemos deixar de lado a progressiva destruição do espaço público, pelo menos na forma como foi conhecido ao longo dos últimos séculos, se quisermos discutir o papel da ação política no mundo atual, não há razão válida para excluir a participação, em todas as suas formas, do ideário de uma sociedade livre. Ou seja, a condenação dos ideais republicanos de participação nos negócios públicos e de liberdade vivida como integração efetiva nos mecanismos de poder da sociedade como utópicos ou pouco realistas deriva de uma passagem indevida do nível de generalização que podemos conceder à idéia de atomização dos indivíduos. Se a tomamos com uma manifestação de um processo necessário, estamos fazendo não apenas uma formulação que, por sua generalidade, demanda uma demonstração, que não se pode contentar com a simples constatação do estado de coisas em sociedades particulares em contexto próprio, mas, sobretudo, abdicando de analisar os pressupostos de ordem teórica que devem ser explicitados para que a concepção mais ampla sobre a natureza das comunidades políticas possa ser investigada.

O que gostaríamos de enfatizar é o fato de que o republicanismo, que adotamos como referência de análise, serve-se de fatos, como os até aqui lembrados, não para negar-lhes a realidade, mas para afirmar seu caráter problemático. Ou seja, a atomização dos atores políticos implica tanto que ideais como os de participação e ação terão de encontrar um novo assento nas formações sociais, para poderem se efetivar, quanto que a total atomização é na verdade uma impossibilidade para uma sociedade que pretende continuar a ser livre.

Colocando de outra forma nosso ponto de vista, diríamos que, diante dos processos estudados, cabe lembrar, mais uma vez com Elias (1994, p. 129), que não podemos separar inteiramente indivíduo e sociedade mesmo nas sociedades atuais, e que por isso o quadro dos possíveis é sempre mais amplo do que aquele oferecido pelas organizações políticas do presente. É, portanto, como um possível que falamos de um conjunto de valores republicanos ancorados na ação política a na tradição, assim como não podemos deixar de lado o próprio desaparecimento das sociedades democráticas como um possível do estado atual de ordenação dos atores políticos individuais. Nesse particular, as observações de Hannah Arendt sobre a perda de identidade dos indivíduos nas sociedades de massa permanecem atuais:

A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas apenas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do homem da massa não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais (Arendt, 1998, p. 366-367).

Qualquer analogia entre o indivíduo de massa, que facilitou a ascensão do nazismo e do fascismo, e os cidadãos das nações desenvolvidas pode nos levar a um erro que consistiria a deixar de lado o fator essencial na determinação do sentido da solidão dos indivíduos, que é a maneira como se relacionam com sua comunidade e os direitos que têm garantido nos quadros legais dos países onde vivem. Em outras palavras, a maneira como a balança eu-nós influencia seu comportamento. Ao notar, no entanto, a proximidade das descrições da relação entre os indivíduos e as sociedades em situações históricas diferentes, estamos chamando a atenção para o fato de que a crescente solidão dos habitantes das sociedades contemporâneas abre as portas para um universo de possíveis muito maior, inclusive naquilo que possui de monstruoso, do que os cenários construídos pelos sofisticados cultores da teoria dos jogos. No outro lado desse campo de determinações, encontra-se a concepção republicana da democracia, que coloca o acento na participação ativa dos cidadãos na vida política como um freio para os efeitos nefastos da atomização. Como veremos depois, essa não é, no entanto, uma panacéia universal para os impasses de nosso tempo e possui riscos simétricos aos que acabamos de apontar na figura tipo do homem solitário.

2

Se as considerações anteriores nos ajudam a pensar a questão da ação política no contexto mais amplo das sociedades industriais da atualidade, não podemos deixar de interrogar-nos sobre a validade de nossas conclusões parciais para as sociedades periféricas do capitalismo, que não se desenvolveram da mesma maneira que as nações mais ricas e não forjaram uma cena pública comparável com aquela que vai aos poucos desaparecendo dos países que a viveram intensamente. O pressuposto inicial de que o estudo do papel da ação numa teoria republicana depende do diagnóstico das condições reais de atuação na cena política contemporânea obriga-nos a nos perguntar sobre essas mesmas condições no caso brasileiro. Obviamente está fora de questão tentar uma leitura aprofundada da relação indivíduo-sociedade em nossa sociedade, mas é possível pelo menos procurar demarcar algumas de nossas especificidades, que ajudam a responder à pergunta mais geral sobre a pertinência do resgate de certos elementos da tradição republicana, para se pensar a política nos tempos presentes.3 3 Um bom diagnóstico histórico da participação política no Brasil encontra-se em Carvalho (2002, p. 157-229). Mais uma vez, o recurso à literatura pode ajudar-nos a encurtar o caminho. Um texto luminoso a esse respeito é o clássico de Lispector (1996), A hora da estrela.

Uma das dificuldades com as considerações dos autores aos quais recorremos está no fato de que elas partem da pressuposição da alteração da balança indivíduo-sociedade em situações nas quais os dois pólos foram bem delimitados ao longo da História, o que torna perceptível a mudança nos pesos respectivos. Acreditamos poder nos servir das análises de autores como Elias a condição de não nos esquecermos de que nem o espaço público conheceu um momento áureo entre nós, nem a condição de solidão e apatia das grandes massas urbanas brasileiras reflete um processo de progressivo abandono de acirradas disputas na arena pública. Nessas condições, a personagem Macabéa da obra citada pode servir como um guia para nosso olhar sobre a sociedade urbana contemporânea brasileira.

Em primeiro lugar, é preciso observar que a solidão é a marca de sua pertença ao tecido urbano. Preocupado em ser o mais fiel possível à história da migrante nordestina, o narrador nos fala cruamente de seu isolamento:

A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham (Lispector, 1996, p. 30).

Mais à frente, ele completa esse retrato:

Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando (Lispector, 1996, p. 38).

Sua vida se define como uma ausência, uma presença física que demanda muito pouco para se inserir nas brechas da cidade.

Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço (Lispector, 1996, p. 38).

O curioso da situação de Macabéa é que mesmo a infelicidade é vivida como um luxo. A tristeza é para ela que "nascera inteiramente raquítica, herança do sertão" (Lispector, 1996, p. 43) um luxo de moça romântica ao qual não podia aspirar. Sua vida transcorre em um mundo no qual as esferas do indivíduo e da sociedade estão muito pouco definidas, não pela erosão de suas potencialidades, mas pelo simples fato de que nunca existiram plenamente. A solidão de Macabéa é, portanto, de outra ordem do que aquela do personagem de Auster; ela implica um mergulho na sociedade industrial sem o lastro de sua história. Não se trata assim de uma ausência, de um passo anterior de um processo que se constituiria à medida que a personagem deixasse o sertão para viver no Rio de Janeiro. O fato é que a cidade grande reduz ao nada um indivíduo que não chegou a se individuar:

Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável (Lispector, 1996, p. 44).

Devemos resistir à tentação de fazer de Macabéa o símbolo da massa de migrantes que, tendo perdido a identidade cultural que os unia ao interior do Brasil, veio encontrar nos grandes centros urbanos uma exclusão total dos processos políticos. Ela é muito mais do que isso. Sua força elucidativa está justamente em que não pode ser capturada pelas análises clássicas da formação e destruição do espaço público. Em sua solidão, ela desconhece até mesmo a existência de uma vida vivida na e pela cidade.

Sua ausência de aspiração para a vida pública –"ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos" (Lispector, 1996, p. 49) – não se traduz, no entanto, na ausência de aspiração pela vida na cidade. Da mesma maneira que as grandes massas brasileiras demonstraram apetite voraz pela integração em vários níveis de sociabilidade, sem com isso aspirar necessariamente a uma maior participação política (Carvalho, 2002, p. 220-229) segundo os moldes canônicos das democracias representativas, nossa personagem desconfia do suco ralo de realidade, que lhe é oferecido por um cotidiano estafante e sem brilho, mas não deixa de desejar o olhar do outro, ou o prazer furtivo de contemplar uma paisagem urbana inesperada.4 4 "Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia os sucessivos e redondos vácuos que havia nela" (Lispector, 1996, p. 54). Sua vida resumida não deixa de gestar a vontade de realizar um pouco de seu eu à maneira do narrador de Auster, que se constrói ao longo de seu mergulho pela linguagem. Macabéa aspira ao convívio com os outros, mas, como os indivíduos plenos das sociedades ricas, goza ao máximo o luxo de ter seu pequeno mundo só para si. O momento de sua solidão alcança uma generalidade insuspeita para o leitor que até então a acompanhara no vazio de um cotidiano feito de repetições:

Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias (Lispector, 1996, p. 57-58).

O paradoxo que emerge desse momento de felicidade de Macabéa é que ela atinge o mesmo ápice de fruição do próprio eu do que aquele proporcionado pelo longo desenvolvimento dos indivíduos atomizados das sociedades industriais avançadas. Partindo de um sertão sem lastro de cidadania e mergulhando num tecido urbano que lhe recusa uma identidade, ela pode aspirar ao mesmo prazer do mundo reduzido da intimidade. Na pobreza de um quarto infecto, a solidão mostra toda sua face pré-política.

Tomada como figura tipo, Macabéa nos obriga a repensar toda abordagem da vida política dos países periféricos pela ótica da falta e do atraso. Isso não quer dizer que a observação da história das democracias mais tradicionais do Ocidente não sirva como instrumento para o estudo de muitos de nossos problemas. Ao contrário, temos insistido no papel da recuperação da tradição republicana para o estudo de nossa realidade. Mas a idéia de um desenvolvimento da vida política e da participação por etapas sucessivas se mostra ferramenta inadequada para alcançar a particularidade de nossa vida política. No tecido urbano altamente problemático brasileiro, vivemos processos muito semelhantes aos experimentados em outros países, sem que tenhamos conhecido o mesmo processo de constituição e destruição do espaço público. O que aprendemos, no entanto, mais facilmente com a pobre nordestina de Clarice Lispector do que com o personagem de Auster é que a solidão é fundamentalmente um fenômeno antipolítico, que não depende de arena pública para se manifestar, nem mesmo da rede de proteção de direitos, que caracteriza as democracias representativas. A satisfação plena da individualidade é a destruição definitiva da vida política democrática.

Macabéa, no entanto, não aspira a ser deixada em paz em seu refúgio, como parece ser o ideal de muitos teóricos liberais. A solidão é um luxo que as condições brasileiras proporcionam para poucos e isso constitui nossa particularidade histórica. Não tombemos, no entanto, numa armadilha. Quando nossa personagem se movimenta para sair de seu pequeno mundo tão avaro em felicidade, não é o mundo da política, com toda a riqueza de um espaço público constituído que encontra, mas a complexa rede de relações pessoais e familiares, que há muito comanda a inserção dos brasileiros no tecido social.5 5 A esse respeito, ver o instigante estudo de Carvalho (2001). Em suas andanças pela cidade, a moça se depara com Olímpico de Jesus, um operário metalúrgico nordestino, que como ela se encontra perdido no vasto silêncio que circunda os desgarrados.

Olímpico de Jesus tem tão pouco a dizer sobre o mundo quanto Macabéa, mas, longe de viver essa situação como uma limitação, deseja se tornar deputado e a ver reconhecida sua inteligência, que se resumia em ser capaz de pronunciar discursos cantados e vazios. A pobreza da cena pública brasileira fica evidente no personagem, na medida em que ele é capaz de ambicionar a participação na política exclusivamente como uma manifestação da legítima ambição de sair do silêncio constrangedor que sua vida lhe impõe. Não há em sua demanda de reconhecimento nem sombra de um mérito, que teria algo a ver com seu apego a valores republicanos.6 6 Um bom estudo sobre a dificuldade de criação de um espaço público no Brasil, levado a cabo com base na análise de Guimarães Rosa, encontramos em Starling (1999). O aspecto mais interessante a ser destacado, no entanto, não é tanto a carência de valores da vida pública brasileira, mas o caminho que Olímpico segue para fugir de seu destino de nordestino pobre na cidade grande. Assim como para muitos brasileiros não há uma vida pública com rotas predefinidas que permitiriam aos ambiciosos, como nosso personagem, visar alvos e perseguir objetivos. O caminho para o poder, ou mais simplesmente pelo reconhecimento, passa pela vida privada. Como observa Holanda (2002, p. 147):

No "homem cordial ", a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.

Olímpico procura se livrar da solidão incômoda de Macabéa trocando-a por sua colega de trabalho Glória, que, contrariamente à seca nordestina, não o incomoda com a exposição contínua de suas limitações e ignorância. Ao contrário, a "gorda" Glória o introduz em uma família do Sul do País, abre-lhe as portas de um mundo que lhe era negado a cada momento. A idéia da família que, como mostrou Holanda (2002, p. 141-146), constitui referência obrigatória para muitos brasileiros no momento em que os valores públicos são questionados, aparece também como o porto seguro de uma sociedade que convive mal com a conduta guiada por regras abstratas (Holanda 2002, p. 150). Por caminhos totalmente opostos, o indivíduo solitário das sociedades contemporâneas acaba fazendo o mesmo elogio do "homem cordial" à intimidade. Num caso é a hipertrofia do indivíduo que o leva, como sugere Sennett (2002), a confiar apenas em relações testadas pelas emoções; no outro, é a falta de uma história republicana que o conduz a desprezar regras e procedimento oriundos de um mundo político no qual o afeto não conta. Em ambos os casos, a vida política se vê amputada de suas referências coletivas e abstratas para se converter no campo de encontro de indivíduos ou de personalidades, que se negam a viver uma vida em comum governada por rituais de comportamento e participação na coisa pública (Sennett 2002, p. 147).

Macabéa, por seu lado, é exemplo da realização da figura tipo do indivíduo solitário em uma sociedade que não conheceu o mesmo percurso que as democracias do Ocidente. Sua solidão é fruto do encontro do mundo rural com as cidades gigantes de hoje, mas seu percurso não é mais o do "homem cordial". Entregue a si mesma, ela tem poucas saídas para um vazio que, muitas vezes, confunde com felicidade. A consciência de sua desgraça não vem na forma de palavras procurando sentido, mas de um tatear tímido dos pedaços de realidade que pode saborear. Como todo indivíduo, ela quer um destino, mas não sabe como forjá-lo. A ignorância do mundo a impede de desejar um mundo mais justo, e seria melhor dizer que uma parte dos que vivem a vida miúda de nossas cidades quer antes uma realidade que faça sentido do que participar de sua construção. Da mesma forma, no entanto, que não podemos supor que o personagem de Auster (1988) representa um retrato total dos indivíduos atomizados, também não podemos supor que sua busca por um destino e sua incapacidade de realizá-lo seja a descrição completa dos processos sociais de aquisição da cidadania ao longo da História brasileira recente.7 7 Ver, a esse respeito, Souza (2003). Em sua exemplaridade, os personagens ajudam-nos a pensar os limites das sociedades democráticas, que se tornam incapazes de projetar valores republicanos em grandes parcelas de seus componentes e fecham as vias pelas quais os indivíduos ultrapassam as fronteiras de sua história particular.

Macabéa acaba encontrando a face trágica de seu destino justo no momento em que acreditava poder escapar aos limites de sua condição. A ilusão de que uma porta poderia abrir-se para ela mostra os limites que destroem as pontes entre os indivíduos isolados e o mundo público. Distantes de redes de proteção que os defendam da violência, como a família e a sociedade patriarcal de outras épocas, os retirantes e os exilados das grandes cidades são obrigados a tentar sobreviver num mundo pré-político no qual as esferas do Estado não chegam até eles e, por isso, acabam submetidos a processos que lembram muito mais as sociedades sem leis e corrompidas do que o mundo ordenado das democracias deliberativas ocidentais. Macabéa não aspirava a participar do mundo da política. Isso nem mesmo se colocava para ela. O que ela queria era um destino, um retorno aos cumprimentos que dirigia na rua, uma identidade que a conectasse com algo além do pequeno mundo insignificante do trabalho.

Como ela, muitos brasileiros continuam a reivindicar laços com um mundo que não os acolhe e que torna ineficazes os velhos processos sociais baseados em solidariedades locais e em vínculos familiares. Em seu abandono, ela nos aponta para os riscos que rondam a relação de muitos habitantes das sociedades capitalistas periféricas com o mundo da política. Nesse caso, não podemos falar de participação, uma vez que faltam as condições mínimas para a incorporação de uma parte importante da população à cena pública.

Se certamente esse não é o resumo dos processos sociais das últimas décadas no Brasil, ajuda-nos a pensar seus riscos e a importância das discussões sobre valores republicanos em sociedades que não conheceram o esplendor da esfera pública. Não se trata de colocar a concepção republicana da democracia como um ideal, aos moldes dos gregos, de usar de suas referências para pensar processos sociais, que não parecem ser estudados corretamente com o referencial teórico que preside muitas análises atuais dos defensores das democracias da apatia. O que importa marcar é a tendência de que o cidadão sem cidadania se encontre com o indivíduo atomizado das grandes cidades no terreno antipolítico das relações privadas.

3

A conclusão parcial à qual podemos chegar é a de que a figura do indivíduo apático, distanciado do mundo público e cada vez mais dependente de pequenos rituais de construção do presente que, como sugere Auster (1988), parece escapar por entre os dedos, é uma figura tipo, que nos ajuda a apontar uma tendência consistente da contemporaneidade, mesmo nas sociedades periféricas nas quais o problema da participação se coloca de forma bem diferente daquele das sociedades ricas do Ocidente. Conquanto figura tipo, não podemos nos servir dela para compreender processos políticos particulares, mas certamente ela aponta para a construção de uma cena pública que altera radicalmente os termos nos quais o pensamento republicano se consolidou no curso dos últimos séculos. A apatia não é um destino das sociedades democráticas, mas marca um limite para sua existência. Sua plena realização, em qualquer formação social, mesmo naquelas protegidas por mecanismos legais sofisticados, como é o caso de nações como os Estados Unidos, destrói o equilíbrio sempre mutável, mas essencial, que constitui a balança do eu-nós. Sem ela mergulhamos num território no qual a simples referência à democracia e à república já não faz o menor sentido. No extremo, portanto, a realização de uma "democracia da apatia" corrói o núcleo mesmo daquilo que, ao longo da História, chamamos de liberdade – independentemente da maneira como a concebemos.

O pólo oposto a essa tendência e que esteve no centro das atenções de muitos teóricos da política nos últimos duzentos anos é o jacobinismo. Também aqui acreditamos que seja possível analisá-lo valendo-nos de sua caracterização como uma figura tipo. O romance de France (1989), Les dieux ont soif, fornece-nos o material adequado.

O jacobinismo constitui-se em um fenômeno fundamental para a compreensão da formação do mundo político contemporâneo, na medida em que deixou a cena original na qual se formou para servir de modelo para atores políticos em processos que nada tinham a ver com o contexto original. Como demonstrou Vovelle (2000), o jacobinismo se transformou numa referência ao longo do século XIX em muitos países da Europa e fora dela, estimulando a participação na vida política de estratos bastante diversificados da população. Nesse movimento de expansão do jacobinismo, preservou-se de sua energia original o impulso para a ação direta e a idéia de que uma radicalização nas formas de participação seria capaz de fornecer uma ferramenta eficaz para a transformação profunda das sociedades.

Mais uma vez, não nos interessa a história do fenômeno, mas, sim, o modelo de relação entre o eu e o nós que forneceu. Nesse caso, a balança pende decididamente para o pólo nós, transformando a cena pública pela exacerbação do papel do ator engajado nos negócios públicos. Como observou Abensour (1992), a Revolução Francesa viu surgir um novo tipo de ator político que não se identificava inteiramente com nenhum dos tipos anteriores de participantes da vida pública. Trata-se do que chamou de "herói revolucionário", que foi estudado em sua particularidade, pela primeira vez, por Tocqueville (1988, p. 239-248).8 8 A indicação da importância de Tocqueville para a abordagem de nosso tema foi sugerida por Abensour no texto citado.

Evariste Gamelin, herói do romance de Anatole France fornece um belo exemplo da figura tipo do revolucionário jacobino disposto a fazer a balança eu-nós a se inclinar para o pólo da comunidade e de seu suposto bem. No início da estória, ele se comporta como outros cidadãos encantados com as possibilidades abertas pela Revolução, que derrubara antigas barreiras e destruíra privilégios de classe e permitira a muitos sonhar com uma nova posição na sociedade. Gamelin é um pintor medíocre, discípulo de David, membro da seção do Pont-Neuf, onde exerce militância discreta, mas entusiasta em favor da Revolução. Na primeira parte do romance, seu grande mestre é Marat, que chega a distingui-lo com uma atenção especial:

Ele venerava, amava Marat que, doente, com as veias em fogo, devorado pelas úlceras, gastava o resto de suas forças a serviço da República e, em sua pobre casa, aberta a todos, o acolhia de braços abertos, lhe falava com atenção ao bem público e o interrogava por vezes sobre os planos dos celerados (France, 1989, p. 79).

O patriotismo do personagem não tem nada de especial nesse momento. Ainda que ele não esteja disposto a aceitar críticas à Revolução nem mesmo à contraposição da obra revolucionária ao bom senso pragmático dos homens de negócio, como Jean Blaise, que lhe diz "você vive no sonho, eu na vida" (France, 1989, p. 67), Gamelin se mostra o tempo todo um convertido aos novos princípios, a ponto de fazer seu interlocutor se lembrar do perigo que corre em se mostrar cético quanto ao futuro da Revolução. Mas, como muitos cidadãos franceses dos primeiros anos da Revolução, ele mergulha na chance que lhe parece oferecer a História, disposto a fazer todos os sacrifícios sem exigir nada em troca. Sua adesão aos princípios revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade não depende de uma recompensa imediata, mas de uma promessa, que não pode ser quebrada sob pena de ver a pátria e suas conquistas serem destruídas.

Embora envolvido com os trabalhos de sua seção, Gamelin permanece boa parte do romance como um membro modesto das classes que ascenderam na vida política francesa sem terem recebido benefício direto da nova situação. O artista vive à beira da miséria ao lado de sua mãe. Junto com outros habitantes de seu bairro, ele faz longas filas para obter pão, bem que se tornara escasso em Paris. O que cabe observar nesse momento é que Gamelin não possui características especiais que pudessem distingui-lo entre os que haviam adotado os ideais dos novos tempos. Sua radicalidade não deriva nem de uma adesão pensada a um sistema filosófico complexo, como seu amigo Brotteaux, que fazia de Lucrécio seu mestre em todas as questões, nem de um conhecimento aprofundado das alavancas da política. Ele vive os novos tempos confiando nas novas idéias e nas diretrizes que ouve de seus heróis. Imerso na ação e no desejo de uma nova era, não lhe ocorre pensar nos riscos e nas possibilidades do processo que está vivendo. Embora seja um elo insignificante da cadeia revolucionária, ele vive sua vida entre a privacidade de uma família modesta, o amor por uma jovem, e as ações que cumpre na seção do bairro. Sua devoção é cega porque Gamelin não vê como a França poderia retornar ao estado anterior ou mesmo escolher um novo destino sem ver destruídas todas as suas conquistas.

A posição do jovem pintor é interessante exatamente por mostrar uma inscrição na cena pública que não difere em muito de vários momentos da História nos quais a participação de um número maior de cidadãos nas esferas políticas mudou-lhe a face. O adorador de Marat se inspira no modelo dos heróis, mas não pretende ele mesmo ser herói. Se seu fanatismo já mostra os riscos de sua condição e a eficácia da propagação de uma nova visão de mundo, ele é antes de tudo um homem comum imerso na ação, um indivíduo que se guia por idéias abstratas, mas conectadas intimamente aos processos que se desenvolvem na sociedade na qual luta para sobreviver. Gamelin aponta assim para a condição dos cidadãos comuns em um Estado no qual o engajamento na cena pública é um requisito para sua sobrevivência.

Ora, em que pese à densidade do personagem, seu amor por Elodie, Gamelin não demonstra ser capaz de refletir sobre o que vive. Em suas discussões com Brotteaux, ele opõe à sofistificação de Lucrécio uma fé ingênua nos novos valores. A imersão na ação parece servir-lhe de guia em um mundo do qual não consegue escapar, mas também não compreende inteiramente (France, 1989, p. 93). Desse ponto de vista, ele parece demonstrar a tese de Charles Taylor quanto à importância das instâncias simbólicas e imaginárias na formação dos indivíduos e dos agentes políticos. Para ele, a forma de ação dos membros de uma comunidade será sempre o produto das condições objetivas de acolhimento dos atores nos mecanismos institucionais da arena pública e os caminhos pelos quais essas formas são representadas pelos indivíduos e a representação que eles têm de si mesmos (Taylor, 2003).9 9 Para uma análise de suas posições, ver Souza (2003, p. 23-61). Gamelin é desse ponto de vista exemplar na dialética entre valores aceitos e formas de ação.

Mas os verdadeiros riscos contidos no elogio da ação revolucionária se encontram no momento em que ele deixa o terreno da ação com seus pontos obscuros e sua natural mutabilidade, para encontrar uma teoria que se converte em explicação total de toda vida social. Para Gamelin essa virada dar-se-á no momento em que encontra Robespierre. Conduzido pelos acasos da vida política de seu tempo a ser membro de um tribunal revolucionário, o personagem só encarnará seu novo papel de maneira decidida quando passar a representá-lo como parte de um concerto universal destinado a conduzir a humanidade a um novo patamar. O terror surge no horizonte do pintor, quando seu desejo de preservar a obra da Revolução dá as mãos a uma nova metafísica, que se sobrepõe a todo e qualquer imperativo de prudência ou bom senso, que, no território aberto da ação livre, costuma servir de freio para os excessos dos atores convertidos abstratamente a um novo ideário. Se Gamelin já se mostrava resistente ao pragmatismo do pai de sua amada, o jacobinismo de 1993 será a porta de saída da realidade cotidiana, para o mergulho definitivo no reino universal do terror e do voluntarismo.

A descrição do processo de imersão do personagem no mundo do jacobinismo lembra as palavras dirigidas por Saint-Just a Robespierre em uma carta de 10 de agosto de 1790:

Vós que sustentais a pátria contra a torrente do despotismo e da intriga, vós que conheço com a um deus, pelas maravilhas; endereço-me a vós, senhor, para suplicá-lo de reunir-se a mim para salvar meu triste país (Saint-Just, 1968, p. 370-371).

É como a um deus que Gamelin escuta Robespierre e se sente salvo do mundo complexo da ação política no qual estivera perdido:

Evaristo escutou e compreendeu. Até então ele havia acusado a Gironda de preparar a restauração da monarquia ou o triunfo da facção dos Orléans e de preparar a ruína da cidade heróica, que havia liberado a França e que um dia livraria o universo. Agora, com a voz do sábio, ele descobria verdades mais altas e mais puras; ele concebia uma metafísica revolucionária, que elevava seu espírito para além das grosseiras contingências, ao abrigo dos erros dos sentidos, na região das certezas absolutas. As coisas são em seu natural misturadas e cheias de confusão; a complexidade dos fatos é tal que neles nos perdemos. Robespierre os simplificava, apresentava o bem e o mal em fórmulas simples e claras (France, 1989, p. 165).

O jacobinismo é assim um processo de destruição do mundo da ação. Enquanto esteve "confuso", Gamelin era capaz de escutar os argumentos contrários às suas idéias e compartilhar os espaços comuns da cidade, mesmo com aqueles que discordavam de sua fé na Revolução. A partir do momento em que deixa a esfera da ação, ou se preferirmos, em que deixa de interagir no mundo público com as armas da razão prática, ele se torna incapaz de viver num espaço democrático. No reino das verdades, o diferente é algo a ser eliminado. Num sentido muito claro, o jacobinismo se converte para ele numa salvação da política, numa redenção para as dificuldades de se viver intensamente os impasses de uma sociedade política. Dizendo de outra forma, o jacobinismo é necessariamente um caminho para a destruição da arena pública, e não sua realização. Nos termos de nossos argumentos, ele é uma teoria anti-republicana, e não sua realização plena como pretenderam alguns.

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O estudo das duas figuras tipo empreendido até aqui permite visualizar o impasse no qual se encontram os que gostariam de afirmar um modelo de república baseado no elogio da participação e na precedência da ação na definição da relação dos indivíduos com o mundo político. Como vimos, a simples afirmação de que a participação nos negócios públicos é um bem em si mesmo esbarra no fato de que as sociedades contemporâneas deixam pouco espaço para a interação direta dos indivíduos com os mecanismos de decisão tanto em âmbito nacional quanto internacional. O fenômeno observado desde o século XVIII por pensadores franceses, neles incluído Rousseau, de que a democracia direta dos antigos se tornou um modelo irrealizável nas nações de grandes dimensões se mostrou ainda mais radical nas sociedades de massa. O que importa, no entanto, nesse momento, é notar que os modelos de relação indivíduo-sociedade estudados são o produto de concepções sobre os fundamentos das sociedades políticas, que não podem ser aceitos como parte de uma natureza intrínseca de nosso tempo. Como sugere Charles Taylor, o que está em questão é na verdade uma disputa entre o que chama de "ontologias" concorrentes (Taylor, 2000, p. 198-199).

Uma conclusão de nosso percurso é a de que a plena realização das figuras tipo aqui estudadas conduz à destruição das sociedades livres e impede o desenvolvimento de qualquer uma de suas formas. Tanto a pura apatia quanto a entrega total à ação e à idéia de construção voluntarista dos laços sociais incapacitam os atores a respeitar o valor básico da liberdade, independentemente de que ela seja concebida à maneira dos liberais como ausência de constrangimento ou à maneira dos defensores da república.

Nesse sentido, é preciso afirmar que o herói revolucionário jacobino é fruto de um republicanismo que se destrói ao se realizar. Insistir, portanto, em acusar o anacronismo das concepções republicanas atuais com base nos resultados da ação dos jacobinos – tomados na acepção anteriormente estudada – é lançar mão de um procedimento retórico, que deixa de lado não apenas a crítica que os republicanos franceses do século XIX fizeram aos produtos mais diretos do voluntarismo dos partidários de Robespierre, mas o fato essencial de que não há razão histórica válida para associar jacobinismo e república como se fossem sinônimos. Não há a menor dúvida de que o ator herói está inscrito no campo das possibilidades dos defensores do republicanismo, mas não como sua síntese, e sim como seu limite. O cidadão perdido no pólo da identidade coletiva não é mais um cidadão livre e por isso deixou de poder agir na cidade, tendo como respaldo essencial sua condição de agente livre. Ao pender para o lado nós de seu prato, a balança deixa de representar uma sociedade republicana.

Da mesma forma, um conjunto de cidadãos apáticos e capazes apenas de se mobilizar para a defesa de seus interesses particulares é uma presa fácil para os que visam interesses globais, que vão muito além das fronteiras nacionais. A destruição do pólo nós da balança deixa os indivíduos isolados e sujeitos apenas à vontade dos governantes de respeitar os contratos estabelecidos com a maioria silenciosa. A simples confiança na neutralidade das instituições democráticas representativas não se mostrou um freio adequado para lidar com as imposições de interesses infinitamente mais bem articulados do que os dos indivíduos atomizados. Também nesse caso, ao pender definitivamente para o pólo do eu, a abalança se destrói, levando consigo as democracias liberais.

O que estamos propondo, portanto, é que nenhuma sociedade pode conviver com um desequilíbrio total entre os dois pólos. É claro que os defensores mais radicais dos dois modelos insistiram que os defeitos não são simétricos e que apenas os excessos dos defensores da tese oposta representa um risco para a vida nas sociedades democráticas. Nossa hipótese é que essa aposta representa um risco para a liberdade, que não pode ser enfrentado senão com o abandono dos dois extremos.

Com isso, no entanto, não queremos dizer que seja possível uma espécie de mediania, que representaria um equilíbrio perfeito para a vida política. Talvez o caminho mais saudável e plausível para uma vida política vivida segundo valores caros à tradição republicana continue a exigir o respeito à indeterminação da ação e a atenção à pluralidade e à diferença, que constitui o solo da cidadania nas sociedades industriais contemporâneas. Sem a tolerância ao outro, a aceitação dos riscos inerentes à ação pública e o amor da liberdade, estamos condenados a viver em simulacros do que foi em alguns momentos da História a marca de sociedades republicanas e democráticas.

Artigo recebido em maio de 2006e aprovado em julho de 2006.

E-mail de contato do autor: bignotto@ufmg.br

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  • TOCQUEVILLE. Lancien regime et la révolution Paris: Garnier-Flammarion, 1988.
  • VOVELLE, Michel. Jacobinos e jacobinismo. Bauru: EDUSC, 2000.
  • 1
    A esse respeito, são muito interessantes as observações de Renato Janine quanto ao uso cada vez mais freqüente na linguagem corrente brasileira do gerúndio para significar uma extensão contínua do presente (Ribeiro, 2000, p. 92-95).
  • 2
    No caso brasileiro, merecem especial atenção as obras de Wanderley Guilherme dos Santos e de Fábio Vanderley Reis.
  • 3
    Um bom diagnóstico histórico da participação política no Brasil encontra-se em Carvalho (2002, p. 157-229).
  • 4
    "Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia os sucessivos e redondos vácuos que havia nela" (Lispector, 1996, p. 54).
  • 5
    A esse respeito, ver o instigante estudo de Carvalho (2001).
  • 6
    Um bom estudo sobre a dificuldade de criação de um espaço público no Brasil, levado a cabo com base na análise de Guimarães Rosa, encontramos em Starling (1999).
  • 7
    Ver, a esse respeito, Souza (2003).
  • 8
    A indicação da importância de Tocqueville para a abordagem de nosso tema foi sugerida por Abensour no texto citado.
  • 9
    Para uma análise de suas posições, ver Souza (2003, p. 23-61).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2006
    • Recebido
      Maio 2006
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