Acessibilidade / Reportar erro

Existe polarização política no Brasil? Análise das evidências em duas séries de pesquisas de opinião 1 1 Uma versão preliminar deste artigo foi publicada, como preprint , no repositório do Social Science Research Network (SSRN). Disponível em: < https://ssrn.com/abstract=3841102> .

Is there political polarization in Brazil? Evidence from two series of public opinion surveys

¿Hay polarización política en Brasil? Análisis de las evidencias en dos series de encuestas de opinión

Existe-t-il une polarisation politique au Brésil? Analyse des preuves dans deux séries de sondages d'opinion

Embora tenhamos muitas evidências anedóticas sobre a polarização política no Brasil, os estudos empíricos têm se concentrado, em grande parte, no padrão de voto. Partindo de duas séries históricas de pesquisas de opinião (Lapop e World Values Survey), investigamos o fenômeno da polarização política em quatro sentidos consagrados: polarização das opiniões sobre temas políticos, polarização das identidades políticas, alinhamento das opiniões com identidades e polarização afetiva. Verificamos que há polarização de opiniões sobre direitos dos homossexuais e sobre o divórcio, como processo e como estado, respectivamente. As identidades políticas também se polarizaram a partir de 2010, sobretudo entre os mais velhos e menos escolarizados, o que não implicou um aumento de alinhamento. Por fim, constatamos que, entre as pessoas engajadas, há polarização afetiva em torno de algumas identidades.

polarização política; polarização afetiva; guerras culturais


Abstract

While there is abundant anecdotal evidence of political polarization in Brazil, empirical studies have largely focused on voting patterns. Based on two historical series of opinion polls (Latin American Public Opinion Project and World Values Survey), we investigate the occurrence of political polarization in four established ways: polarization of opinions on political issues, polarization of political identities, sorting of opinions and identities and affective polarization. We found that there is polarization of opinion about gay rights and about divorce both as a process and as a state. Political identities have also been polarized since 2010, especially among the elderly and the less educated, without any significant increase in ideological sorting. Finally, we found that, among the politically engaged, there is affective polarization around some identities.

political polarization; affective polarization; culture wars

Resumen

Si bien existe evidencia anecdótica abundante sobre la polarización política en Brasil, los estudios empíricos se han centrado principalmente en los patrones de votación. Con base en dos series históricas de encuestas de opinión (Latin American Public Opinion Project y World Values Survey), investigamos la ocurrencia de la polarización política en cuatro formas establecidas: polarización de opiniones sobre temas políticos, polarización de identidades políticas, alineamiento de opiniones e identidades y polarización afectiva. Descubrimos que existe una polarización de la opinión sobre los derechos de los homosexuales y sobre el divorcio como proceso y como estado. Las identidades políticas también se han polarizado desde 2010, especialmente entre las personas mayores y los menos educados, sin un aumento significativo en el alineamiento ideológico. Finalmente, encontramos que, entre los políticamente comprometidos, existe una polarización afectiva en torno a algunas identidades.

polarización política; polarización afectiva; guerras culturales

Résumé

Malgré les nombreuses évidences anecdotiques sur la polarisation politique au Brésil, les études empiriques se sont concentrées, en grande partie, sur le vote. À partir de deux séries historiques de sondages d'opinion (Lapop et World Values Survey), nous étudions l'occurrence de la polarisation politique de quatre manières bien établies: la polarisation des opinions sur des questions politiques, la polarisation des identités politiques, l'alignement d’opinions politiques avec des identités et la polarisation affective. Nous avons constaté qu'il existe une polarisation des opinions sur les droits des homosexuels et sur le divorce en tant que processus et en tant qu'état. Les identités politiques se sont également polarisées depuis 2010, notamment chez les personnes âgées et les moins scolarisées, sans augmentation significative de l'alignement idéologique. Enfin, nous avons constaté que parmi les personnes politiquement engagées, il existe une polarisation affective autour de certaines identités.

polarisation politique; polarisation affective; guerres culturelles

Introdução

A polarização das identidades e das opiniões políticas tem sido bastante discutida no Brasil, mas muito pouco investigada. A situação é semelhante na Europa e em outros países da América Latina, onde a polarização do público é tomada como um pressuposto no debate político sem que as evidências empíricas tenham sido devidamente estabelecidas. A situação é diferente nos Estados Unidos, onde o rico debate a partir do trabalho pioneiro de Hunter (1991)Hunter, J. D. Culture wars: the struggle to control the family, art, education, law, and politics in America. New York: Basic Books, 1991. incentivou pesquisas empíricas sobre a polarização das opiniões e das identidades em diferentes bases de dados, mas sobretudo nos National Election Studies.

Em meados dos anos 1990, DiMaggio, Evans e Bryson (1996)DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996. estabeleceram os principais métodos de análise para identificar e medir a polarização das opiniões e das atitudes políticas. Com base nesses métodos, um acirrado debate se desenvolveu nos anos 2000 e 2010 sobre ser a polarização das opiniões e das atitudes um fenômeno de massa ou apenas um fenômeno circunscrito à elite das pessoas que tinham identidades marcadas como liberais ou conservadoras ou como democratas ou republicanas.

Abramowitz e Saunders (2008)Abramowitz, A.; Saunders, K. L. “Is polarization a myth?”. The Journal of Politics, Chicago, vol. 70, n° 2, p. 542-555, 2008., de um lado, e Fiorina e colaboradores (Fiorina e Abrams, 2004Fiorina, M. P., Abrams, S. J.; Pope, J. Culture war?: The myth of a polarized America. New York: Pearson, 2004.; Fiorina, Abrams e Pope, 2008Fiorina, M. P.; Abrams, S. J. “Political polarization in the American public”. Annual Review of Political Science, Palo Alto, vol. 11, n° 1, p. 563-588, 2008.), de outro, centralizaram o debate que tentava determinar a relevância e o alcance da polarização e se ela era benéfica ou prejudicial à democracia. Fiorina, Abrams e Pope (2008)Fiorina, M. P.; Abrams, S. J. “Political polarization in the American public”. Annual Review of Political Science, Palo Alto, vol. 11, n° 1, p. 563-588, 2008. argumentaram que se tratava de um processo isolado e circunscrito às elites que se radicalizaram, tanto no Congresso como na sociedade, deixando um público amplo com posições moderadas desprovido de lideranças que compartilhassem suas posições. Abramowitz e Saunders (2008)Abramowitz, A.; Saunders, K. L. “Is polarization a myth?”. The Journal of Politics, Chicago, vol. 70, n° 2, p. 542-555, 2008. insistiram, porém, que essa polarização engajava o público, ampliando a participação democrática, além de tornar suas posições políticas mais claras e ideologicamente coerentes.

Nos anos 2010, uma nova leva de estudos, como os trabalhos pioneiros de Iyengar, Sood e Lelkes (2012)Iyengar, S.; Sood, G.; Lelkes, Y. “Affect, not ideology: a social identity perspective on polarization”. Public Opinion Quarterly, Oxford, vol. 76, n° 3, p. 405-431, 2012. e Mason (2015)Mason, L. “‘I disrespectfully agree’: the differential effects of partisan sorting on social and issue polarization”. American Journal of Political Science, Bloomington, vol. 59, n° 1, p. 128-145, 2015., mostrou que, embora a polarização das elites fosse um fenômeno significativo, este era menos pronunciado do que a hostilidade entre os que adotavam identidades adversárias. Esses estudos se apoiavam no tratamento da identidade partidária e ideológica como uma identidade social e nas dinâmicas de comportamento que seriam promovidas por essas identidades sociais (Tajfel e Turner, 1979Tajfel, H.; Turner, J. An integrative theory of intergroup conflict. In: Austin, W. G.; Worchel, S. (eds.). The social psychology of intergroup relations. Monterey: Brooks, 1979.; Tajfel, 1981Tajfel, H. Human groups and social categories. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.).

No Brasil, embora haja bastante debate na imprensa e na sociedade sobre a polarização política, os estudos se concentraram na polarização do voto (Limongi e Cortez, 2010Limongi, F.; Cortez, R. “As eleições de 2010 e o quadro partidário”. Novos Estudos – Cebrap, São Paulo, n° 88, p. 21-37, 2010.; Nicolau, 2014Nicolau, J. “Vermelhos e azuis: um estudo sobre os determinantes do voto nas eleições presidenciais brasileiras (2002-2010)”. IX Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, Brasília, 2014.; Borges e Vidigal, 2018Borges, A.; Vidigal, R. “Do lulismo ao antipetismo? Polarização, partidarismo e voto nas eleições presidenciais brasileiras”. Opinião Pública, Campinas, vol. 24, n° 1, p. 53-89, 2018.), e há muito poucos estudos sobre a polarização das opiniões e das atitudes políticas (uma exceção é Mignozzetti e Spektor, 2019Mignozzetti, U.; Spektor, M. Brazil: when political oligarchies limit polarization but fuel populism. In: Carothers, T.; Donohue, A. (eds.). Democracies divided: the global challenge of political polarization. Washington: Brookings Institution Press, 2019., que discutimos adiante).

Nossa investigação pretende fazer um tratamento sistemático, recuperando as abordagens metodológicas do debate americano para verificar se há polarização política no Brasil a partir de duas séries de pesquisas de opinião, o Latin American Public Opinion Project (Lapop) 5 5 O Lapop ou AmericasBarometer foi lançado entre 2004 e 2005 com uma pesquisa de opinião em 11 países da América Latina. O projeto é mantido pela Universidade de Vanderbilt em Tenesse nos EUA. Atualmente a pesquisa é repetida em ciclos bianuais cobrindo 29 países. A documentação da base de dados está disponível em: < www.vanderbilt.edu/lapop> . e o World Values Survey (WVS) 6 6 O World Values Survey começou como um projeto restrito à Europa e se expandiu para 120 países sob a coordenação do professor Ronald Inglehart da Universidade de Michigan nos EUA. Com o objetivo de analisar valores, crenças e normas das pessoas em uma perspectiva comparativa e transnacional. Ao longo do tempo, o projeto passou a abranger um amplo escopo de tópicos do campo da Sociologia, Ciência Política, Relações Internacionais, Economia, Saúde Pública, Demografia, Antropologia e Psicologia Social. A documentação da base de dados está disponível em: < https://www.worldvaluessurvey.org/WVSDocumentationWVL.jsp> . . Cada um dos questionários dessas bases inclui questões sobre identidade política (autolocalização no espectro esquerda-direita), engajamento político e temas socioeconômicos e morais. Separamos as questões que se prestavam a esse tipo de análise, agrupamos algumas delas em escalas e testamos cada um dos tipos de polarização que ficou consagrado na literatura americana.

Dada a escassez da bibliografia sobre polarização das opiniões e sobre polarização afetiva no Brasil, este artigo tem um caráter panorâmico e exploratório, buscando aplicar as medidas que ficaram consagradas no debate americano nas duas bases de dados citadas acima que dispõem de séries históricas para o caso brasileiro. O objetivo é verificar se, no Brasil, também existe polarização política nos sentidos apontados pela literatura sobre os Estados Unidos, apresentando as hipóteses a serem desenvolvidas, investigadas e, posteriormente, debatidas, conforme detalhado a seguir.

Primeiramente, na seção “Polarização das opiniões sobre temas políticos”, investigamos se existe polarização de massa nas opiniões sobre questões socioeconômicas e sobre questões morais. Essa foi a primeira abordagem dos estudos sobre polarização nos Estados Unidos nos anos 1990 e 2000. Esses estudos tentaram identificar se as opiniões da população sobre diferentes temas políticos estavam polarizadas, isto é, se as opiniões em uma escala se concentravam bimodalmente nos extremos ou se tendiam no tempo a se concentrar nos extremos. Mostramos que, no Brasil, assim como nos Estados Unidos, há alguma polarização das opiniões, e essa polarização se concentra nas questões sobre temas morais como divórcio e direitos da população LGBT. Investigamos as características demográficas dessa polarização e encontramos um padrão geracional semelhante àquele identificado por Norris e Inglehart (2019)Norris, P.; Inglehart, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. nos Estados Unidos e na Europa, no qual a polarização parece ser resultado da resistência das gerações mais velhas às mudanças de valores.

Na seção “Polarização das identidades políticas”, investigamos se há polarização das identidades políticas no espectro esquerda-direita. Os estudos americanos, cuja abordagem reproduzimos aqui, utilizam geralmente as identidades partidárias (democratas e republicanos) e, secundariamente, as identidades ideológicas (liberais e conservadores). Nosso sistema partidário fragmentado e nossa baixa identidade partidária ofereciam grandes obstáculos para a primeira abordagem. Optamos, assim, por investigar a polarização das identidades ideológicas direita e esquerda. Notamos que a polarização da identidade como esquerda e direita no Brasil aumenta nos anos 2010 depois de uma redução no período 1990-2010. Do ponto de vista da caracterização demográfica, essa polarização está concentrada nas pessoas com menor escolaridade e nas pessoas mais velhas. Os dois resultados são consistentes com tendências observadas em outros países.

Em seguida, na seção “Alinhamento entre identidades e opiniões sobre temas políticos”, investigamos se há alinhamento entre essas identidades como esquerda ou direita e as opiniões, isto é, se as opiniões e as identidades se correlacionam de maneira que as pessoas que se identificam como de direita tenham opiniões consistentes de direita e as que se identificam como de esquerda tenham opiniões consistentes de esquerda. No debate americano, é justamente nesse ponto que a investigação encontra resultados mais significativos, ainda que haja divergência sobre se esse fenômeno deve ser considerado polarização – polarização partidária – ou apenas alinhamento ( sorting ). Nas nossas bases, não encontramos alinhamento entre as identidades esquerda e direita e as opiniões sobre temas socioeconômicos, mas encontramos alinhamento entre identidades e opiniões sobre temas morais. Esse alinhamento, porém, não está aumentando com o tempo. Por isso, ao contrário do que indicam as pesquisas sobre os Estados Unidos, não acreditamos que sejam as identidades – pelo menos as identidades que medimos –, mas, sim, as divergências geracionais o que move a polarização das opiniões no Brasil 7 7 Em nossa investigação sobre alinhamento, concentramo-nos na relação entre identidades político-ideológicas e opiniões. Está fora do nosso escopo o alinhamento entre posições políticas e o voto, que é explorado por Layton et al. (2021) e Rennó (2020), assim como o alinhamento entre voto e identidades sociais – como religião e raça. .

Na seção “Polarização afetiva”, investigamos a animosidade entre quem adota identidades políticas adversárias. Nos Estados Unidos, a concentração recente dos estudos sobre a polarização afetiva se deve ao fato de a animosidade entre identidades crescer num ritmo mais acelerado do que a polarização das opiniões. Nossas bases de dados não dispõem de uma série histórica que nos permita uma análise da evolução da polarização afetiva, mas pudemos identificar em 2017 uma correlação entre quem adota identidades esquerda e direita e é engajado e o gosto/desgosto por petistas, por comunistas e por quem defende o regime militar. A dinâmica afetiva em torno da identidade como petista é consistente com o fato de o PT ser o único partido que gera identidade política forte. Já a dinâmica afetiva em torno das identidades de comunista, por um lado, e de defensor do regime militar, por outro, sugere a força persistente dos antagonismos políticos da Guerra Fria. Como as identidades políticas são mais fortes entre os mais velhos, essa força do passado não chega a surpreender.

Na seção “Conclusão”, encerramos o artigo contrastando os nossos resultados com os resultados de Mignozzetti e Spektor (2019)Mignozzetti, U.; Spektor, M. Brazil: when political oligarchies limit polarization but fuel populism. In: Carothers, T.; Donohue, A. (eds.). Democracies divided: the global challenge of political polarization. Washington: Brookings Institution Press, 2019., que afirmaram não ter encontrado polarização a partir da análise do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb). Apontamos que uma certa inconclusividade no debate sobre existir ou não polarização política no Brasil se deve à ambivalência dos resultados, que podem ser lidos como o copo que está meio cheio ou meio vazio. Apesar disso, acreditamos que a identificação precisa de onde existe polarização política estatisticamente verificável esclarece a natureza do problema – seja ele considerado de maior ou de menor grau. Sugerimos, por fim, que o contraste entre a evidência anedótica (que sugere forte polarização) e os resultados empíricos (que mostram uma polarização real, porém modesta) pode ser explicado pela sobrerrepresentação dos subgrupos polarizados na esfera pública.

Metodologia

Partimos dos trabalhos pioneiros de DiMaggio, Evans e Bryson (1996DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996.) (depois atualizados por Evans, 2003Evans, J. “Have American’s attitudes become more polarized? – An update”. Social Science Quarterly, Nova Jersey, vol. 84, n° 1, p. 71-90, 2003.), que propuseram métricas para a polarização dos americanos a partir de séries históricas de pesquisas de opinião. Os autores estabelecem dois princípios da polarização que podem ser avaliados em relação à distribuição das opiniões em uma escala. O primeiro, princípio da dispersão, determina que a polarização aumenta conforme as opiniões se dispersam. Para medir dispersão das opiniões em uma distribuição (𝛾), é utilizada a variância (σγ2), ou seja, distância média dos valores em relação à média ((𝜇𝛾). O segundo, princípio da bimodalidade, estabelece que a polarização aumenta conforme a distribuição de opiniões se separa em dois modos, ou seja, se concentra em polos. Para medir bimodalidade, é utilizada a curtose (𝑘𝛾), ou seja, a dispersão em relação a dois pontos, informalmente chamados ombros da distribuição, dados por: μγ±σγ (Balanda e MacGillivray, 1988Balanda, K. P.; MacGillivray, H. L. “Kurtosis: a critical review”. The American Statistician, Chicago, vol. 42, n° 2, p. 111-119, 1988.). O grau de polarização de uma distribuição está associado à baixa curtose (maior bimodalidade) e alta variância (maior dispersão).

Como exemplo da adequação da variância e da curtose para aferir a polarização como um processo, considere uma série hipotética de distribuições de opiniões dadas numa escala de 1 a 6 dispostas nos gráficos da Figura 1 . No primeiro gráfico, temos uma distribuição aproximadamente normal com valores concentrados em torno da média. Conforme os valores se dispersam, a variância aumenta, e conforme se concentram em dois polos, a curtose diminui. O último gráfico ilustra uma situação de máxima polarização, com polos simétricos e o mais distantes possível entre si.

Figura 1
: O processo de polarização entendido como a criação de polos (refletido na diminuição da curtose) e o afastamento entre eles (aumento da variância) em uma escala

Quando comparamos diferentes distribuições em escalas de opinião, é possível estabelecer outros dois princípios. O princípio da consolidação ou party sorting estabelece que há polarização entre grupos quando pessoas que adotam uma mesma identidade possuem opiniões semelhantes. Para medir esse alinhamento, avaliamos a média de distribuições de opinião entre grupos com diferentes identidades. E o princípio do condicionamento ( constraint ) estabelece que a polarização aumenta conforme as respostas de um grupo se tornam mais coerentes internamente. O alpha de Chronbach, uma medida tradicionalmente utilizada para aferir consistência interna de escalas, é usado, nesse contexto, para medir o grau de coerência intragrupos (DiMaggio, Evans e Bryson, 1996DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996.).

Além de estabelecer esses princípios, DiMaggio, Evans e Bryson (1996)DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996. afirmam que a polarização pode ser entendida como estado ou como processo. Assim, podemos avaliar distribuições para verificar o grau de polarização e também uma série histórica de distribuições para verificar a tendência de polarização. É importante frisar, para fins da nossa análise, que a curtose é limitada inferiormente pelo valor 𝑘𝑚𝑖𝑛=1 e a variância de uma distribuição de probabilidade limitada tem limite superior dado pela inequação de Popoviciu, σ2(Mm)24 , em que 𝑀 e m são, respectivamente, os valores máximo e mínimo da escala. Estabelecemos arbitrariamente o valor de variância >10 e, simultaneamente, curtose < 3 como o ponto a partir do qual consideramos uma distribuição polarizada.

Bases de dados

Utilizamos dados de duas pesquisas de opinião: o Latin American Public Opinion Project (Lapop) e o World Values Survey (WVS). A série histórica do World Values Survey é mais antiga, mas menos frequente. Desde 1990, foram realizadas cinco rodadas de pesquisa no Brasil (1991, 1997, 2006, 2014 e 2018) 8 8 As amostras do World Values Survey (WVS) no Brasil, nos respectivos anos, foram: 1991, n=1.782; 1997, n=1.143; 2006, n=1.500; 2014, n=1.486; 2018, n=1.762. . O Lapop ocorre a cada dois anos desde 2006 9 9 No Brasil, a primeira onda da pesquisa foi de fato realizada em 2007. As amostras do Latin American Public Opinion Project (Lapop) no Brasil, nos respectivos anos, foram: 2006, n=1.214; 2008, n=1.467; 2010, n=2.482; 2012, n=1.500; 2014, n=1.500; 2016/2017, n=1.532; 2018, n=1.498. . Essas bases foram escolhidas por possuírem séries históricas longas e conterem perguntas recorrentes sobre opiniões políticas, o que permite analisar a polarização não apenas como estado, mas também como processo. Além delas, utilizamos as questões sobre polarização afetiva, que só aparecem no questionário Lapop de 2016/2017. Para todas as análises, utilizamos as questões dispostas na Tabela 1 para o Lapop e na Tabela 2 para o WVS.

Tabela 1
: Questões utilizadas do questionário do Lapop
Tabela 2
: Questões utilizadas do questionário do WVS

Para estabelecer a identidade política, consideramos a autolocalização no espectro esquerda-direita, como variável contínua, que segue uma escala de 1 a 10 como mostrado na Tabela 1 . A intensidade da identidade política é a distância absoluta em relação à posição central na escala. Para estabelecer o engajamento político, utilizamos as perguntas sobre interesse e participação política do Lapop.

As opiniões políticas foram agrupadas nos seguintes temas: 1) direitos da população LGBT; 2) autonomia sexual e reprodutiva; 3) suicídio e eutanásia; 4) desigualdade social; 5) papel do Estado e meritocracia; e 6) corrupção. Os itens 1, 2, 3 e 6 são temas morais geralmente associados às guerras culturais (Hunter, 1991Hunter, J. D. Culture wars: the struggle to control the family, art, education, law, and politics in America. New York: Basic Books, 1991.; Hartman, 2016Hartman, A. A war for the soul of America: a history of the culture wars. Chicago: University of Chicago Press, 2016.), ao passo que os itens 4 e 5 são temas clássicos de política econômica e social que opõem esquerda e direita.

As questões utilizadas na seção “Polarização das identidades políticas” já estavam dispostas no formato de escala. As demais escalas foram calculadas com a soma das respostas ao conjunto das perguntas de cada tema. A Figura 9 utiliza uma escala completa com a soma das perguntas sobre todos os temas selecionados do questionário do WVS ( Tabela 2 ). Para analisar a polarização afetiva, foram utilizadas as respostas às questões sobre identidade política e animosidade política no questionário Lapop de 2017 ( Tabela 1 ).

Figura 9
: Autolocalização ideológica e temas políticos e morais

Polarização das opiniões sobre temas políticos

Investigamos, em primeiro lugar, as distribuições das opiniões sobre temas socioeconômicos e sobre temas morais nos questionários do World Values Survey e do Lapop. A Figura 2 mostra a evolução da curtose e da variância em cinco questões sobre Estado e meritocracia, cinco questões sobre temas morais e três questões sobre corrupção no questionário do WVS (temas das chamadas “guerras culturais”). A Figura 3 mostra, a partir do questionário do Lapop, a evolução das três medidas aplicadas a uma questão sobre direitos da população LGBT e a uma questão sobre desigualdade.

Figura 2
: Média, curtose e variância das questões sobre intervenção do Estado, questões morais e corrupção

Figura 3:
Média, curtose e variância das questões sobre direitos da população LGBT e papel do Estado na diminuição da desigualdade social

Analisando a polarização como estado, vemos no WVS ( Figura 2 ) respostas mais polarizadas, com menor curtose e maior variância, entre as questões que discutem Estado e meritocracia. Esse resultado parece sugerir que as opiniões sobre os temas socioeconômicos estariam consideravelmente mais polarizadas do que aquelas sobre os temas morais das guerras culturais, contrariando tendências observadas em outros países. Além das questões sobre temas socioeconômicos, chama também a atenção a distribuição polarizada das respostas à questão sobre divórcio (“Em sua opinião, o quanto o divórcio é justificável?”) que estão bem mais polarizadas do que as respostas às outras questões sobre temas morais, inclusive aquela sobre o aborto (que, nos Estados Unidos, tem sido o tema mais divisivo – veja, entre outros, DiMaggio, Evans e Bryson, 1996DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996.). Já no questionário do Lapop (Figura 3), as respostas à questão sobre direitos da população LGBT (“O quanto o senhor aprova que homossexuais possam se candidatar a cargos públicos?”) têm estado razoavelmente polarizadas, bem mais polarizadas do que as respostas à questão sobre desigualdade. Discutimos a seguir os motivos dessa polarização.

Quando analisamos o questionário do WVS, vemos que as perguntas sobre temas socioeconômicos têm um formato que induz a uma resposta dicotômica. Enquanto as questões sobre temas morais têm o formato “Em sua opinião, o quanto é justificável?”, as questões sobre temas socioeconômicos têm o formato “O quanto o senhor concorda com as afirmações?”, seguido do significado dos pontos extremos da escala. No caso da questão sobre igualdade salarial, por exemplo, ela informa ao respondente que ele deve marcar 1 se acha que os salários devem ser mais igualitários e 10 se acha que precisamos da diferença salarial como incentivo para o esforço próprio. A formulação da questão deve gerar um viés de resposta em favor das opções extremas. Esta nos parece a explicação mais plausível para que a curtose das questões socioeconômicas seja mais baixa. Ainda olhando para a polarização enquanto estado, destaca-se a pergunta sobre o divórcio (“Em sua opinião, o quanto o divórcio é justificável?”), que apresentou os indicadores de polarização mais altos entre os temas morais.

Quando olhamos para a evolução da polarização dos temas morais (polarização como processo), encontramos um resultado muito destacado. Na questão sobre direitos da população LGBT (“Em sua opinião, a homossexualidade é justificável?”) no questionário do WVS, a curtose passa, entre 1991 e 2018, de 5 para 1,5, ao passo que a variância passa, no mesmo período, de 6,4 a 12, o que indica, respectivamente, a criação de polos e o afastamento desses polos. A evolução da média indica tendência positiva para o lado progressista. O mesmo padrão, aumento de polarização e crescimento da média, pode ser observado na questão sobre prostituição e, com menor intensidade, na questão sobre aborto. Embora na questão sobre o divórcio a média tenha inclinação fortemente ascendente, ela não apresenta tendência de polarização. Isso sugere que está se formando um consenso progressista sobre o tema. Em contraposição aos temas morais, as questões sobre o Estado e a corrupção não apresentam tendência de polarização. As questões sobre suicídio e aceitar suborno (corrupção) foram retiradas do gráfico para facilitar a visualização, já que apresentam curtose muito alta e variância muito baixa.

Na Figura 3, que apresenta os dados do Lapop, não vemos um aumento da polarização em torno das questões sobre a população LGBT, mas a manutenção, nos anos 2000, de um estado polarizado. A curtose das distribuições sobre essa questão permanece próxima a 1, na mesma medida em que a variância assume valores altos, próximos à metade do valor de máxima variância. O crescimento da média sugere que, no período, começou a se estabelecer um consenso progressista sobre o tema, o que corrobora as análises dos dados do WVS, na Figura 2 . A questão sobre a desigualdade, por outro lado, tem marcado decréscimo da curtose, mas sob variâncias baixas, o que indica redução da polarização.

Nos Estados Unidos, Hunter (1991)Hunter, J. D. Culture wars: the struggle to control the family, art, education, law, and politics in America. New York: Basic Books, 1991. mostrou uma crescente centralidade de temas como aborto, posse de armas e legalização das drogas no debate político entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990. Esses temas estariam tomando o lugar dos tradicionais temas socioeconômicos e polarizando o debate público em torno de um conflito de visões morais de mundo. Ao investigar a história desse fenômeno que Hunter chamou de “guerras culturais”, Hartmann (2016)Hartman, A. A war for the soul of America: a history of the culture wars. Chicago: University of Chicago Press, 2016. observou que a disputa teria sido deflagrada pela reação de setores conservadores aos avanços dos novos movimentos sociais do final dos anos 1960 ( black power , feminismo da segunda geração, movimento gay e contracultura), que teriam promovido mudanças nos valores que regem as relações interpessoais. Os dados que apresentamos nesta seção sugerem que o Brasil parece estar vivendo também guerras culturais, com os temas morais polarizando as opiniões.

Analisando, ainda, o conflito de valores nos Estados Unidos e na Europa, Norris e Inglehart (2019)Norris, P.; Inglehart, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. oferecem uma explicação um pouco diferente. Com base nos dados do World Values Survey, eles mostram que valores antiautoritários se espalharam desde a segunda metade do século XX nas sociedades pós-industriais. Esse processo, denominado por eles de “revolução silenciosa”, se deu de maneira mais acelerada entre as gerações mais jovens. Isso porque elas tiveram experiências de vida compartilhadas diferentes das gerações anteriores: mais urbanas, com maior acesso ao ensino formal e maior diversidade étnica. Em anos recentes, essa mudança de valores teria sofrido uma reação conservadora ( backlash ), puxada especialmente pelas gerações mais antigas.

Na Tabela 3 , estão os coeficientes de regressões logísticas aplicadas às duas questões de nossas bases com respostas mais polarizadas (“Ser favorável aos direitos da população LGBT” e ser “Ser favorável ao divórcio”), tendo as variáveis demográficas como controle. Embora tenham pouco poder de explicação – 𝑅 2 = 0,138 para a questão sobre os direitos da população LGBT e 𝑅 2 = 0,04 para a questão sobre o divórcio –, elas indicam que ensino, ano de nascimento, idade, religião e sexo são variáveis relevantes para ambas as questões. A renda, por sua vez, é relevante apenas para a primeira questão. Adicionalmente, o ano de nascimento é a variável com melhor poder explicativo nos modelos. Por esse motivo, analisamos o efeito geracional sobre as duas questões (Figuras 4 e 5).

Tabela 3
: Modelos OLS de regressão logística para previsão das opiniões sobre direitos da população LGBT e divórcio (1991-2018)

Seguindo os trabalhos de Norris e Inglehart (2019)Norris, P.; Inglehart, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019., definimos cinco gerações: 1) Entre-guerras , nascidos em 1945 ou antes; 2) Baby boomers , nascidos entre 1946 e 1964; 3) Geração X , nascidos entre 1965 e 1979; 4) Millennials, nascidos entre 1980 e 1996; e 5) Geração Z , nascidos depois de 1997. Quando olhamos para a evolução da distribuição das respostas, vemos um deslocamento do polo conservador em direção ao polo progressista, puxado pelas gerações mais jovens.

A Figura 4 mostra a média, a curtose e a variância das respostas (1: nunca justificável, 10: sempre justificável) por geração para as questões sobre direitos LGBT e divórcio. Nos dois casos, há um deslocamento de respostas conservadoras para respostas mais progressistas em todas as gerações, mas a velocidade dessa mudança é mais rápida entre as gerações mais novas. Entre elas, a polarização cai, consolidando um consenso progressista. Entre as gerações mais velhas, o avanço das posições progressistas gera polarização, uma vez que parte desse grupo mantém posições conservadoras. A Figura 5 mostra as mesmas métricas para a seguinte questão do Lapop: “O quanto o senhor aprova que homossexuais possam se candidatar a cargos públicos?”. A média das respostas (1: desaprovo muito, 10: aprovo muito) também cresce em todas as gerações, mas, nesse caso, observa-se aumento de polarização apenas entre as respostas das gerações baby boomer e entreguerras. Nos três casos, a análise do processo sugere um movimento comum: no início do período, há um consenso conservador que começa a ser contestado pelas gerações mais novas; aos poucos, essas gerações forjam um novo consenso progressista; esse novo consenso, porém, polariza com posições conservadoras resistentes das gerações mais velhas. A polarização que vemos no Brasil sobre temas das guerras culturais parece ser, assim, em grande medida, um conflito de valores entre gerações.

Figura 4
: Evolução por geração da média, curtose e variância das questões sobre direitos da população LGBT e divórcio (1991-2018)

Figura 5
: Evolução por geração da média, curtose e variância da questão sobre direitos da população LGBT (2006-2018)

Polarização das identidades políticas

Para investigar a polarização das identidades políticas, aplicamos as medidas de polarização à autolocalização dos entrevistados no espectro esquerda-direita. Na literatura americana – que estamos de certa maneira replicando –, os estudos têm enfatizado a identidade partidária (democratas e republicanos) e, secundariamente, a identidade ideológica (liberais e conservadores) como fontes de polarização. A fragmentação e a baixa identidade partidária no Brasil dificultam o emprego da identidade partidária e por isso adotamos a identidade ideológica expressa no espectro esquerda-direita. A autolocalização na escala não é a maneira mais direta, nem a mais precisa de medir uma identidade, mas funciona como um proxy , se tratamos a proximidade dos extremos como intensidade da adoção da identidade. Esse uso encontra respaldo na literatura americana sobre polarização, que tem utilizado o espectro ideológico liberal-conservador dessa maneira.

Existe alguma controvérsia no Brasil e na América Latina sobre a utilidade e a coerência da autolocalização dos entrevistados no espectro esquerda-direita. Há um nível de não resposta elevado (embora recentemente ele tenha diminuído) (Ames e Smith, 2010Ames, B.; Smith, A. E. “Knowing left from right: ideological identification in Brazil, 2002-2006”. Journal of Politics in Latin America, vol. 2, n° 3, p. 3-38, 2010.), uma concentração daqueles que se autolocalizam no espectro entre os mais escolarizados e os mais politicamente sofisticados (Ames e Smith, 2010Ames, B.; Smith, A. E. “Knowing left from right: ideological identification in Brazil, 2002-2006”. Journal of Politics in Latin America, vol. 2, n° 3, p. 3-38, 2010.; Zechmeister e Corral, 2012Zechmeister, E. J.; Corral, M. “Individual and contextual constraints on ideological labels in Latin America”. Comparative Political Studies, vol. 46, n° 6, p. 675-701, 2012.; Pereira, 2020Pereira, F. B. “Non causa pro causa: o voto de direita e esquerda no Brasil”. Opinião Pública, Campinas, vol. 26, n° 2, p. 154-179, 2020.) e pouca coerência entre o rótulo e o voto e entre o rótulo e a opinião a respeito de políticas públicas específicas (Zechmeister e Corral, 2012Zechmeister, E. J.; Corral, M. “Individual and contextual constraints on ideological labels in Latin America”. Comparative Political Studies, vol. 46, n° 6, p. 675-701, 2012.; Pereira, 2020Pereira, F. B. “Non causa pro causa: o voto de direita e esquerda no Brasil”. Opinião Pública, Campinas, vol. 26, n° 2, p. 154-179, 2020.). Acreditamos, no entanto, que essas considerações não comprometem nossa escolha de utilizar a identidade ideológica no lugar da identidade partidária, já que a não localização no espectro esquerda-direita, embora significativa, é menor do que a ausência de identidade partidária, e a identidade partidária também está associada à sofisticação política.

Começamos nossa análise observando, na Figura 6 , que, de 1990 a 2010, a polarização das identidades diminui e volta a subir a partir de 2010-2012. A diminuição da polarização da identidade no primeiro período (1990-2010) indica uma menor concentração de identidades nos polos extremos da escala. A partir de 2010-2012, o que vemos, por outro lado, é o aumento progressivo da concentração de identidades em extremos distantes um do outro. No World Values Survey, o percentual dos respondentes que se localizam nos dois extremos da escala salta de 22% em 2006 para 29% em 2014 e, no Lapop, de 17% em 2010 para 32% em 2017.

Figura 6
: Média, curtose e variância aplicadas à distribuição de respondentes no espectro esquerda-direita (1990-2018)

Em seguida, examinamos na base de dados do Lapop quais subgrupos contribuíram mais para a polarização das identidades no espectro esquerda-direita. Investigamos as variáveis demográficas de idade, sexo e escolaridade. Tanto idade como escolaridade se mostraram variáveis relevantes. Quanto maior a idade e quanto menor a escolaridade, mais polarizada a identidade. Considerando os dados de 2018, identificaram-se com os polos mais extremos de esquerda (1 ou 2) ou de direita (9 ou 10) na escala 45% dos respondentes com mais de 55 anos, 39% dos respondentes entre 45 e 54 anos, 35% entre 35 e 44 anos, 30% entre 25 e 34 anos e apenas 25% dos respondentes com menos de 25 anos de idade. De maneira semelhante, colocaram-se nos polos mais extremos de esquerda ou de direita 28% dos respondentes com ensino superior ou mais, 31% dos respondentes com ensino médio e 40% dos respondentes com ensino fundamental. Na Figura 7 , vemos a evolução no tempo das medidas de polarização para cada intervalo de idade e geração. Na Tabela 4 , têm-se os valores de correlação de Pearson entre intensidade de identidade política (distância do centro no espectro esquerda-direita) e as variáveis idade e escolaridade: a partir de 2014, a intensidade da identidade política cresce com a idade e diminui com a escolaridade. A polarização cresce mais rápido tanto entre pessoas mais velhas quanto nas gerações mais antigas. Assim, parece que tanto as experiências compartilhadas de uma geração quanto as experiências comuns aos ciclos da vida têm efeito no aumento da polarização das identidades.

Figura 7
: Média, curtose e variância aplicadas às distribuições de identificação política no espectro esquerda-direita por faixa etária (2008-2018)

Tabela 4
: Correlação de Pearson das variáveis idade e ensino formal com a intensidade de identidade política

A polarização das identidades de esquerda e de direita entre os mais velhos é um fenômeno consistente com tendências identificadas em outros países, que mostram que as pessoas mais velhas têm identidades partidárias mais sólidas (Shively, 1979Shively, W. P. “The relationship between age and party identification: a cohort analysis”. Political Methodology, Cambridge, vol. 6, n° 4, p. 437-446, 1979.; Dalton, 2000Dalton, R. J. The decline of party identification. In: Dalton, R. J.; Wattenberg, M. Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press, p. 19-36, 2000.), participam mais de eleições (Goerres, 2007Goerres, A. “Why are older people more likely to vote? The impact of ageing on electoral turnout in Europe”. The British Journal of Politics and International Relations, London, vol. 9, n° 1, p. 90-121, 2007.) e são mais polarizadas (Boxel, Gentzkow e Shapiro, 2017). Há um grande debate sobre se esse fenômeno se deveria propriamente à idade ou a um efeito de coorte (Danigelis, Hardy e Cutler, 2007Danigelis, N. L.; Hardy, M.; Cutler, S. J. “Population aging, intracohort aging, and sociopolitical attitudes”. American Sociological Review, Chicago, vol. 72, n° 1, p. 812-830, 2007.; Twenge et al., 2016Twenge, J. M., et al. “More polarized but more independent: political party identification and ideological self-categorization among U.S. adults, college students, and late adolescents, 1970-2015”. Personality and Social Psychology bulletin, Thousand Oaks, vol. 42, n° 10, p. 1.364-1.383, 2016.).

Vale a pena destacar o fato de pessoas menos escolarizadas terem identidades mais fortes de esquerda e de direita. É fato estabelecido que a autolocalização no espectro esquerda-direita é maior entre os mais escolarizados e os mais politicamente sofisticados (Fuchs e Klingemann, 1990Fuchs, D.; Klingemann, H. D. The left-right schema. In: Jennings, M. K., et al. (eds.). Continuities in political action. Berlin: Walter de Gruyter, 1990.). No entanto, nossos resultados mostram que, se é verdade que os mais escolarizados de maneira geral se localizam mais em algum lugar do espectro, os menos escolarizados se localizam mais nos extremos do espectro. Isso está de acordo com outra parte da literatura que tem sugerido que a baixa sofisticação política associada à baixa escolaridade torna os cidadãos mais dependentes de pistas e lealdades a identidades partidárias e políticas para orientar o posicionamento político e o voto (Dalton, 2000Dalton, R. J. The decline of party identification. In: Dalton, R. J.; Wattenberg, M. Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press, p. 19-36, 2000., 2012Dalton, R. J. “Apartisans and the changing German electorate”. Electoral Studies, London, vol. 31, n° 1, p. 35-45, 2012.). Para que essas explicações funcionem para o caso brasileiro, seria necessário explicar, porém, por que esses subgrupos passaram a se comportar dessa maneira apenas a partir de 2014. Deixamos a questão em aberto para futuras investigações.

Alinhamento entre identidades e opiniões sobre temas políticos

Nesta seção, investigamos se está havendo alinhamento entre identidades e opiniões, o que a literatura comumente chama de sorting. Esse fenômeno ocorre quando pessoas com uma mesma identidade possuem opiniões similares e pessoas com identidades distintas possuem opiniões divergentes, ou seja, quando as opiniões sobre temas políticos se alinham com as identidades políticas, tipicamente de forma ideologicamente coerente.

Na seção “Polarização das identidades políticas”, vimos que houve um crescimento da polarização das identidades políticas no espectro esquerda-direita. Para verificar se a polarização das identidades foi acompanhada de um alinhamento de opiniões, isolamos as pessoas com identidades políticas fortes de esquerda e de direita. Então analisamos a média ao longo do tempo das respostas desses grupos a uma série de questões. Começamos analisando as questões sobre direitos da população LGBT e o papel do Estado no combate à desigualdade social, que estão no questionário do Lapop.

A Figura 8 indica que o crescimento das identidades a partir de 2010 não se refletiu imediatamente nas opiniões sobre temas político-morais entre esquerda e direita. Os dados mostram que os dois grupos não se diferenciam progressivamente em suas opiniões sobre direitos da população LGBT e intervenção do Estado sobre a desigualdade social, nem mesmo entre os mais engajados (critérios para engajamento estão na Tabela 1 ). Além disso, não se observa nenhuma tendência de aumento de diferenciação entre os dois grupos no período de 2008 a 2018 em nenhum dos temas. De maneira geral, esquerda e direita têm em média as mesmas opiniões que o resto da população sobre os temas citados.

Figura 8
: Autolocalização ideológica e opiniões sobre os direitos da população LGBT e o papel do Estado no combate à desigualdade (2006-2018)

Investigamos, também, o alinhamento das identidades com as opiniões sobre os cinco temas selecionados no WVS (Estado e meritocracia, direitos dos LGBTs, corrupção, suicídio/eutanásia e autonomia sexual/afetiva/reprodutiva). A análise indica alguma diferença entre os grupos autodeclarados esquerda e direita, especialmente em relação aos temas morais ( Figura 9 ). Essa diferença é a esperada: os respondentes autodeclarados de esquerda tiveram opiniões, em média, mais progressistas que os de direita em quase todos os temas (para a formulação da escala, foram utilizadas as questões apresentadas na Tabela 2 ).

Embora a diferença entre as respostas dos dois subgrupos seja significativa, ela não aumenta no decorrer do tempo. Em todos os casos, a evolução da diferença das médias não apresentou uma tendência significativa – os p-valores de todas as regressões lineares são maiores do que 0,05 –, ou seja, não há evidências de um aumento do alinhamento ( sorting ) entre identidades e opiniões políticas nos últimos 30 anos.

A Tabela 5 indica que os entrevistados respondem de maneira mais consistente às perguntas sobre temas morais e corrupção do que às perguntas sobre Estado e meritocracia. A consistência interna daqueles que se identificam com os extremos do espectro político, porém, não está aumentando com o tempo. Assim, considerando o conjunto de dados aqui analisados, descartamos as hipóteses de que haja tendência tanto de consolidação quanto de condicionamento . Isso sugere que a polarização de identidades é um fenômeno distinto da polarização de opiniões identificada na seção “Polarização das opiniões sobre temas políticos”.

Tabela 5
: Alpha de Cronbach aplicado às questões do WVS

Se a polarização das opiniões sobre temas morais for o retrato tirado no meio de um processo de mudança de consenso, como sugerimos na seção anterior, ele deve estar sendo puxado mais pelas diferenças geracionais do que pelas diferenças de identidade política. Além disso, a diferença de opinião entre os grupos com identidades políticas fortes se dá estritamente sobre temas morais – direitos da população LGBT e autonomia sexual e reprodutiva –, uma vez que os grupos não se distinguem nas questões sobre Estado e meritocracia.

Em seu trabalho pioneiro, DiMaggio, Evans e Bryson (1996)DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996. encontraram poucas evidências de polarização de opiniões intragrupo sobre uma série de temas investigados nos Estados Unidos. Ao investigar polarização intergrupos, os autores encontraram divergência de opiniões sobre diversos temas entre republicanos e democratas e, com menor intensidade, entre liberais e conservadores. A atualização do artigo (Evans, 2003Evans, J. “Have American’s attitudes become more polarized? – An update”. Social Science Quarterly, Nova Jersey, vol. 84, n° 1, p. 71-90, 2003.) confirmou os resultados e identificou mais temas divergentes entre liberais e conservadores. Assim como no Brasil, o que separa os grupos nos Estados Unidos são os temas morais. Lá, os temas divisivos foram aborto, educação sexual e ensino religioso. Esse alinhamento entre identidades políticas e opiniões sobre temas morais sugere que o processo de polarização das opiniões nos Estados Unidos é puxado por ativistas políticos que têm identidades marcadas (Evans, 2003Evans, J. “Have American’s attitudes become more polarized? – An update”. Social Science Quarterly, Nova Jersey, vol. 84, n° 1, p. 71-90, 2003.).

Fiorina e Abrams (2008)Fiorina, M. P.; Abrams, S. J. “Political polarization in the American public”. Annual Review of Political Science, Palo Alto, vol. 11, n° 1, p. 563-588, 2008. argumentam que o aumento da divergência entre grupos com identidades distintas não deve ser confundido com um processo de polarização, pois não implica diminuição na quantidade de pessoas com posições ou identidade de centro, apenas maior alinhamento entre identidades e posições. Assim, embora outros autores denominem esse fenômeno de polarização partidária ( party polarization ), eles defendem o termo alinhamento partidário ( party sorting ). Nos Estados Unidos, o alinhamento partidário é mais forte do que o ideológico, em parte por conta da estrutura de seu sistema político. Ainda assim, os dados mais recentes indicam alinhamento crescente entre posições políticas e identidade ideológica. No caso brasileiro, embora as opiniões sobre temas morais separem direita e esquerda, as séries históricas aqui investigadas indicam que não houve nos últimos 30 anos acirramento de divergência de opiniões entre os dois campos.

Polarização afetiva

Nossa última análise é sobre a animosidade entre identidades políticas adversárias. Nos Estados Unidos, a literatura tem mostrado que, embora a polarização entre as elites políticas seja bem documentada e crescente, ela é um fenômeno menos pronunciado do que a polarização afetiva, já que a polarização das opiniões caminha em ritmo muito mais lento (Mason, 2015Mason, L. “‘I disrespectfully agree’: the differential effects of partisan sorting on social and issue polarization”. American Journal of Political Science, Bloomington, vol. 59, n° 1, p. 128-145, 2015.) e o antagonismo afetivo é muito pouco amparado por coerência ideológica (Iyengar, Sood e Lelkes, 2012Iyengar, S.; Sood, G.; Lelkes, Y. “Affect, not ideology: a social identity perspective on polarization”. Public Opinion Quarterly, Oxford, vol. 76, n° 3, p. 405-431, 2012.). Das duas bases que examinamos, apenas o Lapop incluiu questões sobre gostar ou desgostar de quem abraça certas identidades políticas e apenas em um ano específico (2017) 10 10 No questionário de 2018 do Lapop, há ainda uma questão sobre gostar/desgostar de partidos políticos, mas essa pergunta só foi feita às pessoas que responderam “não” à pergunta: “O(A) senhor(a) simpatiza com algum partido político?”. Dessa forma, a questão sobre animosidade exclui justamente as pessoas em relação às quais se espera que demonstrem ojeriza a identidades e partidos adversários. . Trabalhamos, assim, com os dados disponíveis, sem analisar a tendência no tempo como fizemos nas outras seções.

Na Figura 10 , vemos a correlação entre a intensidade da identificação política como esquerda ou direita e a intensidade de gostar/desgostar de pessoas com certas identidades políticas (pessoas que apoiam o aborto, pessoas que defendem o regime militar, petistas, comunistas e peessedebistas). Os gráficos apresentam os resultados para a população em geral (em laranja) e para a população engajada (em azul), aquela que participa de atividades políticas. Quando olhamos para a população em geral, não encontramos uma variação significativa da animosidade à medida que se intensificam as identidades de esquerda e de direita; isto é, a animosidade política não é necessariamente coerente com a autoidentificação no espectro político. O único grupo cuja hostilidade na população em geral varia entre quem adota identidades esquerda/direita é o de pessedebistas. É preciso observar, porém, que, embora exista uma correlação estatisticamente significativa, a inclinação da reta é baixa, de forma que a variação não diferencia bem quem se identifica como de esquerda ou de direita.

Figura 10
: Relação entre identificação no espectro político e gostar/desgostar de pessoas com as seguintes identidades definidas

Porém, quando olhamos apenas para a população engajada, vemos uma correlação mais forte em alguns casos. Entre os engajados, quanto mais de esquerda, mais se desgosta de quem defende o regime militar e mais se gosta de petistas, por exemplo. Inversamente, quanto mais de direita, entre os engajados, mais se gosta de quem defende o regime militar e mais se desgosta de petistas. Mais uma vez, causa surpresa o fato de não haver variabilidade na animosidade contra quem defende o aborto, já que nos Estados Unidos essa variação é muito relevante. Na Tabela 6 , vemos a correlação entre identificação no espectro político e respostas às perguntas sobre gostar/desgostar de pessoas com determinadas identidades tanto na população em geral como na população engajada. De cima para baixo, estão dispostas as identidades que geram mais hostilidade por quem adota identidade adversária, o que pode ser visto pela inclinação da reta: quanto maior, mais se diferencia quem se considera de esquerda e de direita em relação ao antagonismo. Destacamos em negrito as correlações para as quais a hipótese nula (a de que a reta que aproxima os pontos tem inclinação nula) é descartada (p < 0,05). Pode-se considerar também que há correlação significativa para r ≥ 0,6.

Tabela 6
: Correlação entre identificação no espectro político e gostar/desgostar de grupos com as seguintes identidades definidas

Possivelmente, há no Brasil, como nos Estados Unidos, uma concentração da polarização afetiva entre uma certa elite política. Enquanto naquele país esse fenômeno é mais facilmente perceptível quando olhamos para subgrupos com identidades partidárias fortes (como republicanos ou democratas), no Brasil, devido ao nosso sistema multipartidário fragmentado, as identidades partidárias são fracas e só conseguimos capturar esse fenômeno de elite quando olhamos para as pessoas engajadas em atividades políticas.

Não chega a ser surpresa que, entre os grupos com identidades partidárias, o que provoca maior rechaço é aquele com a identidade de petista. Samuels e Zucco (2018)Samuels, D.; Zucco, C. Partisans, antipartisans, and nonpartisans: voting behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. já haviam mostrado que, entre as identidades partidárias, a de petista, tanto como identidade positiva quanto como identidade negativa, respondia por praticamente metade do eleitorado. Chama a atenção, porém, que a relação entre gostar/desgostar de petistas e a autolocalização no espectro político é menos pronunciada do que aquela orientada a quem defende o regime militar. Se olharmos para a inclinação da reta ou se subtrairmos a pontuação entre os extremos (como costumam fazer os estudos americanos), encontramos uma polarização bem mais marcada com respeito aos apoiadores da ditadura, isto é, quanto mais de direita, mais se gosta de apoiadores da ditadura, na mesma medida em que, quanto mais de esquerda, mais se desgosta. Tanto a hostilidade contra quem apoia a ditadura como a hostilidade contra comunistas sugerem que vivemos ainda os efeitos dos antagonismos que marcaram a ditadura militar.

Na literatura americana, há duas tentativas principais de explicação para a ampliação da polarização afetiva que se vê nos Estados Unidos. Para Mason (2015)Mason, L. “‘I disrespectfully agree’: the differential effects of partisan sorting on social and issue polarization”. American Journal of Political Science, Bloomington, vol. 59, n° 1, p. 128-145, 2015., a animosidade entre portadores de identidades nesse país está aumentando devido a um alinhamento das identidades partidárias (republicano e democrata) com as identidades ideológicas (conservador e liberal), que está produzindo uma espécie de sinergia ou reforço. À medida que os cidadãos se tornam mais coerentes, com identidades ideológicas e partidárias “corretamente” alinhadas, os grupos ficam mais homogêneos e os vieses de afeto desses grupos, mais fortes. Os dados sobre o Brasil aqui analisados, porém, não permitem explorar a hipótese da intensificação do viés de afeto por meio do alinhamento de identidades, tanto porque aqui as identidades partidárias não são fortes como porque nossas pesquisas de opinião não tentaram medir outras identidades políticas que poderiam ser relevantes.

Iyengar, Sood e Lelkes (2012)Iyengar, S.; Sood, G.; Lelkes, Y. “Affect, not ideology: a social identity perspective on polarization”. Public Opinion Quarterly, Oxford, vol. 76, n° 3, p. 405-431, 2012. oferecem duas outras hipóteses para o aumento da polarização afetiva nos Estados Unidos. Eles acreditam que o aquecimento da retórica das campanhas políticas e o viés de seleção no consumo de mídia podem ter ampliado a hostilidade entre quem abraça identidades partidárias. A primeira hipótese é apresentada de maneira especulativa, mas o impacto do viés de seleção no consumo de mídia já foi bastante estudado na literatura americana com resultados inconclusivos. Numa revisão da literatura, Prior (2013)Prior, M. “Media and political polarization”. Annual Review of Political Science, Palo Alto, vol. 16, n° 1, p. 101-127, 2013. conclui que não há evidências que apontem os vínculos entre a partidarização dos meios de comunicação, com o advento da TV a cabo e, depois, dos veículos de mídia na internet, e a polarização da população. Embora, como se poderia esperar, as pessoas com identidades partidárias mais fortes sejam maiores consumidoras dos veículos partidários, a literatura não conseguiu estabelecer conexões causais entre o consumo de mídia e a intensificação do sentimento partidário.

Conclusão

Reconhecendo o descompasso entre a centralidade do conceito de polarização no debate político brasileiro e a existência de poucos estudos empíricos sobre o tema, este artigo buscou investigar, com base em duas séries de pesquisas de opinião, se as diferentes formas de polarização política estabelecidas pela literatura americana podem ser encontradas no Brasil. Para medir a polarização, utilizamos as medidas de curtose e variância em escalas de opinião que foram estabelecidas por DiMaggio, Evans e Bryson (1996)DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996. e utilizadas pela literatura desde então. Nossa resposta à pergunta sobre se há polarização política no Brasil é de que ela existe em todos os sentidos consagrados pela literatura citada.

Em primeiro lugar, encontramos polarização das opiniões políticas de massa, sobretudo em temas morais, como divórcio e direitos da população LGBT. Essa polarização tem um componente geracional relevante e parece ser causada por uma reverberação das mudanças nos costumes que reforçou o conservadorismo das gerações mais velhas, como foi observado na Europa e nos Estados Unidos por Norris e Inglehart (2019)Norris, P.; Inglehart, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.. Encontramos polarização das identidades de esquerda e de direita a partir de 2014 que também é mais acentuada entre as pessoas mais velhas (além das menos escolarizadas). Essa polarização de identidade entre os mais velhos é consistente com a literatura internacional, que, de maneira geral, indica que as pessoas mais velhas são mais politizadas, pelo menos no sentido convencional. Quando olhamos para a relação entre identidades e opiniões, encontramos alinhamento entre as opiniões sobre temas morais e as identidades de esquerda e direita, embora esse alinhamento não seja crescente (polarização enquanto processo). Finalmente, em 2017, encontramos polarização afetiva na correlação da identidade esquerda/direita com a escala gostar/desgostar de identidades adversárias no subgrupo das pessoas engajadas. Essa polarização afetiva existe para as identidades de comunista, petista e apoiador do regime militar. Em resumo, quando olhamos para todas as medidas utilizadas na literatura americana nas bases de dados do WVS e do Lapop, encontramos, para o caso brasileiro, polarização política em algum grau.

Nossos resultados são em certa medida divergentes do único outro estudo empírico de que temos ciência sobre polarização política não eleitoral no Brasil. O artigo de Mignozzetti e Spektor (2019)Mignozzetti, U.; Spektor, M. Brazil: when political oligarchies limit polarization but fuel populism. In: Carothers, T.; Donohue, A. (eds.). Democracies divided: the global challenge of political polarization. Washington: Brookings Institution Press, 2019. argumenta que, de maneira geral, não há polarização política no Brasil olhando para dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb). O artigo encontra um altíssimo grau de polarização afetiva em 2018, com o sentimento anti-PT se destacando em uma comparação internacional, mas mostra baixa polarização partidária de massa e baixa polarização ideológica de massa. Os autores utilizam uma medida de polarização partidária de massa que consiste na proporção de pessoas que votariam em um partido multiplicada pela proporção das pessoas que nunca votariam no mesmo partido; os resultados mostram uma polarização baixa na comparação internacional. Para medir a polarização ideológica de massa, utilizam uma medida de dispersão e outra de concentração nos extremos da distribuição em uma escala ideológica direita-esquerda. Os resultados indicam polarização relativamente alta na medida de dispersão e baixa na medida de concentração nos extremos. Curiosamente, esse resultado misto e ambivalente é interpretado no artigo como ausência de polarização. Os resultados não são diretamente comparáveis com os nossos porque utilizamos bases de dados e perguntas diferentes, assim como metodologias de mensuração distintas. Mas tanto a polarização afetiva como a polarização ideológica medida pela dispersão que Mignozzetti e Spektor encontram são compatíveis com os nossos resultados. Talvez se trate de uma questão de ênfase, como no caso do copo que pode estar tanto meio cheio como meio vazio.

Esse problema, aliás, está presente em toda a literatura sobre polarização política, que é marcada por um notável contraste entre, de um lado, evidências anedóticas e uma percepção experiencial de polarização acentuada e, de outro, mensurações que apontam uma polarização concreta, porém modesta e limitada. Os resultados apresentados aqui não escapam dessa sina. Acreditamos que a explicação desse contraste é que frequentemente a polarização é vivida e experimentada na esfera pública, no sentido tradicional habermasiano, enquanto nossas medidas de polarização tentam capturar a polarização por meio de opiniões, atitudes e afetos, de massa ou em subgrupos demográficos. Na esfera pública, a participação de poucos indivíduos polarizados deve se destacar, porque participam com muito mais frequência e de maneira mais incisiva, obliterando uma maioria mais silenciosa de despolitizados e moderados. O percurso que apontamos na literatura americana – que começa olhando para atitudes e opiniões de massa, passa a observar as posições das elites partidarizadas e, mais recentemente, se atém aos afetos desses partidarizados – mostra um amadurecimento da compreensão que tenta localizar exatamente onde está concentrado o problema da polarização política.

Referências bibliográficas

  • Abramowitz, A.; Saunders, K. L. “Is polarization a myth?”. The Journal of Politics, Chicago, vol. 70, n° 2, p. 542-555, 2008.
  • Ames, B.; Smith, A. E. “Knowing left from right: ideological identification in Brazil, 2002-2006”. Journal of Politics in Latin America, vol. 2, n° 3, p. 3-38, 2010.
  • Badami, M.; Nasraoui, O.; Sun, W.; Shafto, P. “Detecting polarization in ratings: an automated pipeline and a preliminary quantification on several benchmark data sets”. IEEE International Conference on Big Data (Big Data), Boston, p. 2.682-2.690, 2017.
  • Balanda, K. P.; MacGillivray, H. L. “Kurtosis: a critical review”. The American Statistician, Chicago, vol. 42, n° 2, p. 111-119, 1988.
  • Borges, A.; Vidigal, R. “Do lulismo ao antipetismo? Polarização, partidarismo e voto nas eleições presidenciais brasileiras”. Opinião Pública, Campinas, vol. 24, n° 1, p. 53-89, 2018.
  • Boxel, L.; Gentzkow, M.; Shapiro, J. M. “Greater Internet use is not associated with faster growth in political polarization among US demographic groups”. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), Washington, vol. 114, n° 40, p. 10.612-10.617, 2017.
  • Dalton, R. J. The decline of party identification. In: Dalton, R. J.; Wattenberg, M. Parties without partisans: political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press, p. 19-36, 2000.
  • Dalton, R. J. “Apartisans and the changing German electorate”. Electoral Studies, London, vol. 31, n° 1, p. 35-45, 2012.
  • Danigelis, N. L.; Hardy, M.; Cutler, S. J. “Population aging, intracohort aging, and sociopolitical attitudes”. American Sociological Review, Chicago, vol. 72, n° 1, p. 812-830, 2007.
  • DiMaggio, P.; Evans, J.; Bryson, B. “Have American social attitudes become more polarized?”. The American Journal of Sociology, Chicago, vol. 102, n° 3, p. 690-755, 1996.
  • Evans, J. “Have American’s attitudes become more polarized? – An update”. Social Science Quarterly, Nova Jersey, vol. 84, n° 1, p. 71-90, 2003.
  • Fiorina, M. P.; Abrams, S. J. “Political polarization in the American public”. Annual Review of Political Science, Palo Alto, vol. 11, n° 1, p. 563-588, 2008.
  • Fiorina, M. P., Abrams, S. J.; Pope, J. Culture war?: The myth of a polarized America. New York: Pearson, 2004.
  • Fuchs, D.; Klingemann, H. D. The left-right schema. In: Jennings, M. K., et al. (eds.). Continuities in political action. Berlin: Walter de Gruyter, 1990.
  • Goerres, A. “Why are older people more likely to vote? The impact of ageing on electoral turnout in Europe”. The British Journal of Politics and International Relations, London, vol. 9, n° 1, p. 90-121, 2007.
  • Hartman, A. A war for the soul of America: a history of the culture wars. Chicago: University of Chicago Press, 2016.
  • Hunter, J. D. Culture wars: the struggle to control the family, art, education, law, and politics in America. New York: Basic Books, 1991.
  • Iyengar, S.; Sood, G.; Lelkes, Y. “Affect, not ideology: a social identity perspective on polarization”. Public Opinion Quarterly, Oxford, vol. 76, n° 3, p. 405-431, 2012.
  • Layton, M., et al. “Demographic polarization and the rise of the far right: Brazil’s 2018 presidential election”. Research & Politics, vol. 8, n° 1, 2021.
  • Lauka, A.; McCoy, J.; Firat, R. B. “Mass partisan polarization: measuring a relational concept”. American Behavioral Scientist, Thousand Oaks, vol. 62, n° 1, p. 107-126, 2018.
  • Limongi, F.; Cortez, R. “As eleições de 2010 e o quadro partidário”. Novos Estudos – Cebrap, São Paulo, n° 88, p. 21-37, 2010.
  • Mason, L. “‘I disrespectfully agree’: the differential effects of partisan sorting on social and issue polarization”. American Journal of Political Science, Bloomington, vol. 59, n° 1, p. 128-145, 2015.
  • Mason, L. Uncivil agreement: how politics became our identity. Chicago: University of Chicago Press, 2018.
  • Mignozzetti, U.; Spektor, M. Brazil: when political oligarchies limit polarization but fuel populism. In: Carothers, T.; Donohue, A. (eds.). Democracies divided: the global challenge of political polarization. Washington: Brookings Institution Press, 2019.
  • Morales, A. J., et al. “Measuring political polarization: Twitter shows the two sides of Venezuela”. Chaos, College Park, vol. 25, n° 3, p. 033114, 2015.
  • Guedes-Neto, J. V. “Voto e identificação partidária em 2018: ordenação social na política brasileira”. Opinião Pública, Campinas, vol. 26, p. 431-451, 2021.
  • Nicolau, J. “Vermelhos e azuis: um estudo sobre os determinantes do voto nas eleições presidenciais brasileiras (2002-2010)”. IX Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, Brasília, 2014.
  • Norris, P.; Inglehart, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
  • Pereira, F. B. “Non causa pro causa: o voto de direita e esquerda no Brasil”. Opinião Pública, Campinas, vol. 26, n° 2, p. 154-179, 2020.
  • Prior, M. “Media and political polarization”. Annual Review of Political Science, Palo Alto, vol. 16, n° 1, p. 101-127, 2013.
  • Rennó, L. “The Bolsonaro voter: issue positions and vote choice in the 2018 Brazilian presidential elections”. Latin American Politics and Society, vol. 62, n° 4, p. 1-23, 2020.
  • Samuels, D.; Zucco, C. Partisans, antipartisans, and nonpartisans: voting behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
  • Shively, W. P. “The relationship between age and party identification: a cohort analysis”. Political Methodology, Cambridge, vol. 6, n° 4, p. 437-446, 1979.
  • Tajfel, H. Human groups and social categories. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.
  • Tajfel, H.; Turner, J. An integrative theory of intergroup conflict. In: Austin, W. G.; Worchel, S. (eds.). The social psychology of intergroup relations. Monterey: Brooks, 1979.
  • Twenge, J. M., et al. “More polarized but more independent: political party identification and ideological self-categorization among U.S. adults, college students, and late adolescents, 1970-2015”. Personality and Social Psychology bulletin, Thousand Oaks, vol. 42, n° 10, p. 1.364-1.383, 2016.
  • Victor, P., et al. “Trust- and distrust-based recommendations for controversial reviews”. IEEE Intelligent Systems, Washington, vol. 26, n° 1, p. 48-55, 2011.
  • Zechmeister, E. J.; Corral, M. “Individual and contextual constraints on ideological labels in Latin America”. Comparative Political Studies, vol. 46, n° 6, p. 675-701, 2012.
  • 1
    Uma versão preliminar deste artigo foi publicada, como preprint , no repositório do Social Science Research Network (SSRN). Disponível em: < https://ssrn.com/abstract=3841102> .
  • 5
    O Lapop ou AmericasBarometer foi lançado entre 2004 e 2005 com uma pesquisa de opinião em 11 países da América Latina. O projeto é mantido pela Universidade de Vanderbilt em Tenesse nos EUA. Atualmente a pesquisa é repetida em ciclos bianuais cobrindo 29 países. A documentação da base de dados está disponível em: < www.vanderbilt.edu/lapop> .
  • 6
    O World Values Survey começou como um projeto restrito à Europa e se expandiu para 120 países sob a coordenação do professor Ronald Inglehart da Universidade de Michigan nos EUA. Com o objetivo de analisar valores, crenças e normas das pessoas em uma perspectiva comparativa e transnacional. Ao longo do tempo, o projeto passou a abranger um amplo escopo de tópicos do campo da Sociologia, Ciência Política, Relações Internacionais, Economia, Saúde Pública, Demografia, Antropologia e Psicologia Social. A documentação da base de dados está disponível em: < https://www.worldvaluessurvey.org/WVSDocumentationWVL.jsp> .
  • 7
    Em nossa investigação sobre alinhamento, concentramo-nos na relação entre identidades político-ideológicas e opiniões. Está fora do nosso escopo o alinhamento entre posições políticas e o voto, que é explorado por Layton et al. (2021)Layton, M., et al. “Demographic polarization and the rise of the far right: Brazil’s 2018 presidential election”. Research & Politics, vol. 8, n° 1, 2021. e Rennó (2020)Rennó, L. “The Bolsonaro voter: issue positions and vote choice in the 2018 Brazilian presidential elections”. Latin American Politics and Society, vol. 62, n° 4, p. 1-23, 2020., assim como o alinhamento entre voto e identidades sociais – como religião e raça.
  • 8
    As amostras do World Values Survey (WVS) no Brasil, nos respectivos anos, foram: 1991, n=1.782; 1997, n=1.143; 2006, n=1.500; 2014, n=1.486; 2018, n=1.762.
  • 9
    No Brasil, a primeira onda da pesquisa foi de fato realizada em 2007. As amostras do Latin American Public Opinion Project (Lapop) no Brasil, nos respectivos anos, foram: 2006, n=1.214; 2008, n=1.467; 2010, n=2.482; 2012, n=1.500; 2014, n=1.500; 2016/2017, n=1.532; 2018, n=1.498.
  • 10
    No questionário de 2018 do Lapop, há ainda uma questão sobre gostar/desgostar de partidos políticos, mas essa pergunta só foi feita às pessoas que responderam “não” à pergunta: “O(A) senhor(a) simpatiza com algum partido político?”. Dessa forma, a questão sobre animosidade exclui justamente as pessoas em relação às quais se espera que demonstrem ojeriza a identidades e partidos adversários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2021
  • Aceito
    12 Jan 2022
Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária 'Zeferino Vaz", CESOP, Rua Cora Coralina, 100. Prédio dos Centros e Núcleos (IFCH-Unicamp), CEP: 13083-896 Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521-7093 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: rop@unicamp.br