Acessibilidade / Reportar erro

Interações socioestatais: mútua constituição entre a sociedade civil e a esfera estatal

Socio-State Interactions: mutual constitution of civil society and the state sphere

Interacciones socioestatales: mutua constitución entre la sociedad civil y la esfera estatal

Interactions socio-étatiques : constitution mutuelle entre la société civile et la sphère étatique

Desde os anos 1990 é possível verificar diferentes esforços voltados à análise das interfaces entre as organizações societárias e a esfera institucional. No Brasil, recentemente se observou a estruturação do campo das interações socioestatais. Embora não configure uma abordagem unificada, suas contribuições têm colocado em questão abordagens fronteiriças, fazendo avançar reflexões teóricas, metodológicas e análises empíricas sobre o envolvimento dos movimentos sociais nas políticas públicas. Inserindo-se nessa temática e almejando uma abordagem relacional para ressaltar a mútua constituição entre as esferas societária e estatal, revisitei o conceito de sociedade civil na tradição habermasiana para destacar três aspectos críticos, a saber: negação do político (despolitização); otimismo (associação normativa entre sociedade civil e democracia); e relacionismo. As reflexões reforçam as limitações analíticas do conceito e destacam a importância da mútua constituição para a análise das interações socioestatais.

interações socioestatais; mútua constituição; sociedade civil


Abstract

Since the 1990s, various efforts have been made to analyze interfaces between social organizations and the institutional sphere. The establishment of the field of "socio-state interactions" can be seen recently in Brazil. Although there is no unified approach in this field, its contributions have shed light on border approaches, advancing theoretical, methodological, and empirical analyses about the involvement of social movements in public policy. Seeking a relational approach to emphasize the mutual constitution of the societal and state spheres, I reviewed the concept of civil society in the Habermas' tradition, to highlight three critical aspects: the denial of the political (depoliticization); optimism (a normative association between civil society and democracy); and relationism. The reflections reinforce the analytical limitations of the concept and highlight the importance of mutual constitution to the analysis of socio-state interactions.

socio-state interactions; mutual constitution; civil society

Resumen

Desde los años 1990 es posible verificar diferentes esfuerzos orientados para analizar las interrelaciones entre organizaciones sociales y la esfera institucional. En Brasil, recientemente se ha observado la estructuración del campo de las "interacciones socioestatales". Aunque no se configure como un abordaje unificado, sus contribuciones han puesto en cuestión los abordajes fronterizos, haciendo avanzar las reflexiones teóricas, metodológicas y los análisis empíricos sobre la participación de los movimientos sociales en las políticas públicas. Insertándome en esta temática y buscando un abordaje relacional para subrayar la constitución mutua entre las esferas sociales y estatales, revisé el concepto de sociedad civil en la tradición habermasiana para destacar tres aspectos críticos, a saber: negación de lo político (despolitización); optimismo (asociación normativa entre sociedad civil y democracia); relacionismo. Las reflexiones refuerzan las limitaciones analíticas del concepto y destacan la importancia de la mutua constitución para el análisis de las interacciones socio-estatales.

interacciones socioestatales; mutua constitución; sociedad civil

Résumé

Depuis les années 1990, on assiste à différents efforts visant à analyser les interfaces entre des organisations de la société civile et la sphère institutionnelle. Au Brésil, on a observé récemment la structuration du champ des « interactions socio-étatiques ». Bien qu'elle ne constitue pas une approche unifiée, ses contributions ont questionné les frontières des approches, faisant avancer les analyses théoriques, méthodologiques et empiriques sur l'implication des mouvements sociaux dans les politiques publiques. En abordant cette thématique et en cherchant une approche relationnelle pour souligner la constitution mutuelle des sphères sociétale et étatique, j'ai revisité le concept de société civile dans la tradition habermassienne pour mettre en évidence les trois aspects critiques, à savoir : le déni du politique (dépolitisation) ; l'optimisme (association normative entre la société civile et la démocratie) ; la dimension relationnelle. Ces réflexions renforcent les limites analytiques du concept et soulignent l'importance de la constitution mutuelle pour l'analyse des interactions socio-étatiques.

interactions socio-étatiques; constitution mutuelle; société civile

Introdução

O presente artigo se insere na atual temática das interações socioestatais, particularmente quanto ao debate brasileiro. De forma geral, as reflexões teóricas e análises empíricas desse enfoque têm abordado os seguintes pontos: (i) a autonomia das organizações societárias, (re)pensando criticamente a categoria autonomia para além da ideia de não-relação com o Estado; (ii) as diferentes organizações societárias e seus repertórios, visando romper com concepções essencialistas que as compreendem como experiências extrainstitucionais e/ou puramente conflitivas em relação à esfera estatal; (iii) as mudanças institucionais a partir de uma concepção relacional das estruturas institucionais e societárias; (iv) bem como têm indicado novas direções teórico-analíticas respeitante ao conceito de sociedade civil, tendo por objetivo conferir maior precisão à análise empírica sobre as interações entre as organizações societárias e o Estado.

Embora em desenvolvimento pelo menos desde o início dos anos 1980 nos Estados Unidos e na Europa2 2 Entre finais dos anos 1980 e ao longo da década de 1990, destacaram-se os esforços dos teóricos institucionalistas, como Theda Skocpol, Peter Evans e Joel Migdal, a Abordagem Estratégico-Relacional, em Jessop, e a construção das (novas) sociologias relacionais, como em Mustafa Emirbayer e Pierpaolo Donati. , no Brasil, essa agenda de pesquisa pode ser percebida como um esforço em construção ao longo das duas últimas décadas, com crescimento acentuado a partir de 2010. Especificamente no contexto nacional, os estudos sobre as interações socioestatais têm mobilizado diferentes perspectivas e tradições intelectuais, indicando novos caminhos na construção de uma abordagem relacional contra perspectivas essencialistas e dicotômicas3 3 Para informar apenas as coletâneas recentemente publicadas, destaco Gurza Lavalle (2011) , Carlos, Oliveira e Romão (2014) e Gurza Lavalle et al. (2019) . Para uma leitura sobre outros contextos, conferir Goldstone (2003) . . Os argumentos relacionais se encontram, por exemplo, mobilizados a partir da sociologia configuracional de Norbert Elias na discussão sobre a relação entre sociedade civil e a construção democrática no país ( Silva, 2006Silva, M. K. “Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional”. Sociologias, Porto Alegre, nº 16, p. 156-178, 2006. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/S1517-4522200600...
). São identificados, também, nos estudos que têm enfatizado as interações a partir de diálogos críticos com perspectivas teóricas fronteiriças, seja com relação ao conceito de sociedade civil ( Gurza Lavalle, 1999Gurza Lavalle, A. “Crítica ao modelo da nova sociedade civil”. Lua Nova, nº 47, p. 121-135, 1999. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0102-64451999000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445199900...
, 2003Gurza Lavalle, A. “Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990”. Novos Estudos, São Paulo, nº 66, p. 91-110, 2003. , 2011Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
; Gurza Lavalle; Szwako, 2015Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
), seja respeitante às teorias sobre movimentos sociais (Abers; Von Büllow, 2011; Abers; Serafim; Tatagiba, 2014; Carlos, 2015Carlos, E. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do engajamento institucional no contexto pós-transição. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. ; Abers; Silva; Tatagiba, 2018). Outros, por fim, operando a partir de um registro da tradição histórico-institucional, estão a analisar os processos de encaixes institucionais e a construção de domínios de agências, fazendo avançar as reflexões teóricas, metodológicas e análises empíricas sobre a participação dos movimentos sociais no processo de produção de políticas públicas (Houtzager; Gurza Lavalle, Acharya, 2004; Gurza Lavalle; Houtzager; Castello, 2011; Dowbor, 2014Dowbor, M. Ocupando o Estado: análise da atuação do Movimento Sanitário nas décadas de 1970 e 1980. In: Carlos, E.; Oliveria, O. P.; Romão, W. M. (Orgs.). Sociedade civil e políticas públicas: atores e instituições no Brasil contemporâneo. Chapecó: Argos, p. 83-122, 2014. , 2019Dowbor, M. Escapando das incertezas do jogo eleitoral: construção de encaixes e domínio de agência do movimento municipalista de saúde. In: Gurza Lavalle, A. et al. (Eds.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 89-118, 2019. ; Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017; Gurza Lavalle et al., 2019Gurza Lavalle, A., et al. (Orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2019. ).

Partindo desse debate, que considera a relacionalidade do social como parte de suas perspectivas ontológicas, epistemológicas e/ou metodológicas, e considerando o atual contexto político brasileiro, no qual se observam mais claramente as raízes autoritárias de setores societários, revisitei o conceito de sociedade civil, especialmente a partir de um debate crítico com as contribuições de Habermas (1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. ; 2012) e Cohen e Arato (2001)Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , para destacar três aspectos ontoepistemológicos que podem contribuir tanto para uma melhor compreensão do conceito - apresentando seus limites normativos - quanto para a análise das interações socioestatais, a saber, a negação do político (despolitização), o otimismo (associação normativa entre sociedade civil e democracia) e o relacionismo (leitura parcialmente relacional). Especialmente no campo das interações socioestatais, o presente artigo tem por objetivo colaborar com o debate trazendo para o primeiro plano o argumento da mútua constituição entre a sociedade civil e o Estado, considerando (I) a indissociabilidade entre o político , entendido como o plano das lutas sociais presentes em uma dada formação social, e a política , percebida como o plano institucional que, ao condensar as contradições sociais e agir junto ao tecido social, molda e, direta ou indiretamente, é por elas moldada ( Mouffe, 2015Mouffe, C. Sobre o político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. ); (II) a reflexão sobre a multiposicionalidade dos agentes a partir da consideração de uma ação estratégico-reflexiva dos sujeitos derivada das contribuições de Chantal Mouffe (2014)Mouffe, C. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. . Pensar estratégica e reflexivamente a ação dos sujeitos pode ser uma possibilidade de deslocamento da ação comunicativa e, dessa forma, uma melhor compreensão do ativismo a partir do interior da esfera institucional.

Esses esforços são necessários para a operacionalização de um deslocamento teórico-analítico das relações entre as esferas societária e institucional, o que representa uma abordagem relacionista, para uma perspectiva que compreende as esferas societária e institucional como relação, aceitando a relacionalidade do social. Esse deslocamento só é possível considerando uma ontologia relacional e estratificada da realidade, a qual permite compreender que, a despeito de suas realidades estruturais independentes (objetos reais) e de suas ações relativamente autônomas (dotadas de poderes causais tendenciais), as esferas societária e institucional se atualizam/realizam mutuamente ( Sayer, 2000Sayer, A. “Características chave do realismo crítico na prática: um breve resumo”. Estudos de Sociologia, vol. 6, nº 2, p. 7-32, 2000. Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/view/235465>. Acesso em: 25 jul. 2021.
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revs...
; Fairclough; Jessop; Sayer, 2016). Esse registro exige a busca de algo além de uma diferenciação funcional respeitante às esferas societária e institucional, recusando qualquer lógica própria supostamente inerentes ao Estado e à sociedade (lógica fundacionalista), ainda que certos domínios estruturais sejam relativamente autônomos. Nesse sentido, a separação entre esfera societária e estatal passa a cumprir uma função antes metodológica. Parafraseando Donati (2019)Donati, P. Sociología relacional de lo humano. UNSA. Ediciones Universidad de Navarra: Navarra, 2019. , trata-se de uma distinção para relacionar e não para separar e/ou "co[n]-fundir".

Além desta introdução, o artigo está organizado em mais três seções. Na primeira, intitulada "Perspectiva da Sociedade Civil: o ressurgimento do conceito de sociedade civil", abordarei a retomada do conceito pela Perspectiva da Sociedade Civil4 4 Como destacam Houtzager, Gurza Lavalle e Acharya (2004, p. 259; 265-266; 307-308), apesar de haver diferentes preocupações normativas e teóricas em torno do conceito de sociedade civil, há elementos comuns que permitem pensá-los a partir do interior dessa mesma perspectiva, quais sejam: (i) o modelo tripartite, que introduz distinções normativas entre o Estado, o mercado e mundo da vida; (ii) a ênfase na autonomia como princípio fundante das organizações societárias; (iii) a sociedade civil como fonte de impulsos democráticos e dotada de melhor racionalidade e capacidade administrativa; e (iv) a pouca diferenciação analítica entre os atores da sociedade civil. . Nessa retomada, destacarei os aspectos centrais do constructo conceitual com os quais discutirei considerando o argumento da relacionalidade do social. Na seção "Pensar relacionalmente: apontamentos críticos sobre a despolitização, o otimismo normativo e o relacionismo", apresentarei os apontamentos críticos a partir da ideia de negação do político (despolitização), o otimismo (associação normativa entre sociedade civil e democracia) e o relacionismo (leitura parcialmente relacional). Na terceira seção, intitulada "Para além das fronteiras: o ativismo como envolvimento crítico com as instituições", partirei das considerações da mútua constituição entre o político e a política para destacar a ação reflexivo-estratégica dos sujeitos e para discutir a ideia de envolvimento crítico com as instituições ( Mouffe, 2014Mouffe, C. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. ). Com essa reflexão, avançarei sobre a dimensão relacional do ativismo (trânsito ativista entre o Estado e a sociedade civil) para discutir os seguintes pontos: como essa análise pode contribuir com a crítica à ideia de "política de influência" da sociedade civil e para a explicação das interações socioestatais. Por fim, nas "Considerações finais", busco destacar as limitações analítico-normativas da Perspectiva da Sociedade Civil, informando a importância da atenção à relação entre o político e a política para uma adequada compreensão das ligações estruturais e, portanto, mutuamente constitutivas, entre a sociedade civil e o Estado.

Perspectiva da sociedade civil: o ressurgimento do conceito de sociedade civil

O contexto pelo qual passou a retomada contemporânea do conceito de sociedade civil, seja no Oriente, especialmente no Japão, seja no leste e centro europeu ou no continente sul-americano, foi marcado por significativas transformações em meio às lutas, em meados do século XX, contra regimes autoritários que sufocavam a criação e expansão de esferas públicas liberais. Nesse período, com as transições a regimes democráticos, as relações de antagonismo entre Estado e sociedade civil cederam lugar a novos padrões de interações; ambos passaram a ser percebidos como dois momentos necessários para as novas experiências políticas ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. ; Keane, 2001Keane, J. A Sociedade civil: Velhas imagens e novas visões. Lisboa: Temas e Debates, 2001. ).

A despeito dos diferentes contextos político-culturais, bem como de projetos de mudança social, política e econômica e das variações teóricas em torno da ideia de sociedade civil daí decorrentes, indo desde abordagens conservadoras, liberais a neomarxistas5 5 Conferir Cohen e Arato (2001 , p. 53-112). , sobressaiu da retomada conceitual a distinção em relação ao Estado e à "combinação de redes de proteção legal, associações voluntárias e formas de expressão pública independente" ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 95) como elementar à ideia de sociedade civil. De forma geral, o conceito passou a evidenciar os seguintes componentes básicos:

  1. pluralidade: famílias, grupos informais e associações voluntárias cujas pluralidade e autonomia permitem uma variedade de formas de vida;

  2. publicidade: instituições de cultura e comunicação;

  3. vida privada: um domínio do autodesenvolvimento e escolha moral do indivíduo; e

  4. legalidade: estruturas de leis gerais e direitos básicos necessários para demarcar a pluralidade, a vida privada e a publicidade, pelo menos no que diz respeito ao Estado e, tendencialmente, à economia. Juntas, estas estruturas asseguram a existência institucional de uma sociedade civil moderna diferenciada ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 398-399).

Esses elementos destacam que a sociedade civil "não só pressupõe e facilita logicamente (desde o ponto de vista histórico) a emergência da democracia representativa, mas que também possibilita historicamente a democratização da democracia representativa" ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 460). Essa afinidade eletiva entre democracia e sociedade civil sustenta que não é possível a existência de um sistema democrático sólido, participativo e inclusivo sem uma esfera pública democrática, sem uma vida associativa e, por conseguinte, sem uma sociedade civil pulsante ( Keane, 1992Keane, J. Democracia y sociedad civil. Madrid: Alianza Editorial, 1992. , p. 17-50).

Para melhor discutir essa associação entre democracia e sociedade civil, destacarei a localização teórica do conceito no interior do mundo da vida e de sua distinção normativa respeitante aos subsistemas político e econômico. É nessa distinção que se evidenciam os pressupostos fundantes para a compreensão da sociedade civil como um elemento necessário para a emergência de experiências associativas autônomas e potencialmente democratizantes, demarcando o seu estatuto político (lógica fundacionalista). Começarei pela ideia de mundo da vida.

Mundo da vida e sociedade civil

O mundo da vida pode ser compreendido como o "horizonte no qual os que agem comunicativamente se encontram desde sempre" ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 218). Isto é, trata-se do âmbito das formações dos sentidos sociolinguisticamente construídos e compartilhados pelos sujeitos desde sempre . Por desde sempre , vale destacar, não é correto derivar a compreensão de uma leitura determinista por parte de Habermas, mas um caráter ontologicamente fático. Por fático, entende-se aquilo que "é"; é ocasionalmente o ser-aí enquanto "aí", em sua existencialidade fática da qual não é possível escapar ( Heidegger, 2013Heidegger, M. Ontologia (hermenêutica da facticidade). 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. , p. 13; 37). Esse caráter fático, inescapável aos sujeitos jogados em um mundo mediado por estruturas linguístico-comunicativas, não parece se localizar, a partir de presente leitura de Habermas, ao lado de dimensão intersubjetiva autoevidente, que surgiria como um fenômeno estruturante comum a todos os sujeitos e não-problematizável enquanto tal, mas sim ao lado da mediação linguística, a qual estrutura a interação e a integração social, sendo inevitável aos sujeitos da modernidade.

O que é autoevidente, nesses termos, é um saber cultural disponível aos sujeitos, mas que nada tem a ver com algo não-tematizável ou não-problematizável (Cf. Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 239-240; 246-248; 2556 6 A construção habermasiana não é uma leitura culturalista. A noção de mundo da vida apresenta três elementos estruturantes: o cultural, a sociedade e a personalidade. Como destacam Cohen e Arato (2001 , p. 482-483): "Na medida em que os atores se entendem mutuamente e estão de acordo sobre sua situação, compartilham uma tradição cultural. Na medida em que coordenam sua ação por meio de normas reconhecidas intersubjetivamente, atuam como membros de um grupo social solidário. À medida que os indivíduos crescem no interior de uma tradição cultural e participam na vida do grupo, internalizam as orientações de valor, adquirem competências de ação generalizadas e desenvolvem identidades individuais e sociais (...). Isto implica os processos reprodutivos de transmissão cultural, integração social e socialização". ). Nessa leitura, o mundo da vida surge como um contexto expansível em que se estruturam as relações entre os indivíduos, configurando-se mais do que um simples processo de entendimento; trata-se de redes de (inter)ações comunicativas, portanto, radicalmente diferente de um sistema que mantém seus limites. Nesse contexto expansível, as interações significam, antes de tudo, processos de socialização e integração social: "Quando os participantes da interação, voltados 'ao mundo', reproduzem, mediante suas realizações de entendimento, o saber cultural do qual se nutrem, eles reproduzem ao mesmo tempo sua identidade e sua pertença a coletividades" ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 255).

Nesses termos, o munda da vida é compreendido como um construto que implica diretamente na estruturação da teoria do agir comunicativo, posto que este "depende de um processo de interpretação cooperativo em que os participantes se referem simultaneamente a algo no mundo subjetivo, no mundo social e no mundo objetivo" ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 221) - aqui se localiza o argumento acima referido respeitante ao compartilhamento de elementos comuns sustentados em um saber cultural e linguisticamente estruturado e compartilhado pelos indivíduos. Dessa forma, o mundo da vida emerge na construção habermasiana como um fenômeno inescapável, como um terreno a partir do qual se constroem as formações dos sentidos disponíveis aos indivíduos e às instituições por eles criadas através da linguagem. No entanto, só intuitivamente os sujeitos têm ciência disso: "Somente as secções limitadas do mundo da vida, inseridas num horizonte da situação, formam um contexto para o agir [racional] orientado pelo entendimento, tematizável e classificável como saber " ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 227, acréscimo meu). É nesse sentido que, para Habermas:

[...] os participantes da comunicação se defrontam com as ligações que existem entre o mundo objetivo, o mundo social, e o mundo subjetivo, as quais, no entanto, já aparecem pré-interpretadas [o desde sempre ]. E, quando ultrapassam o horizonte de uma situação dada [o recorte de um contexto de referências do mundo da vida, isto é, uma situação ], não pisam no vazio, uma vez que se encontram, no mesmo instante, em outra esfera de autoevidências culturais ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 230, acréscimos meus).

É dessa forma que, a partir dessa leitura de Habermas, compreendo o mundo da vida como uma experiência fática dos sujeitos, como o âmbito das formações dos sentidos sociolinguisticamente construídos e compartilhados pelos indivíduos. É nesse "contexto de referência" que os indivíduos, orientados racionalmente para o entendimento ( Verständigung ) e a partir de diferentes situações dialógicas, isto é, recortes de um contexto de referências do mundo da vida, constroem e buscam validar suas exteriorizações a partir da tematização das experiências fáticas em que se encontram desde sempre , dando origem a diferentes instituições da vida social moderna, tais como a família, a religião, as associações profissionais, as organizações de movimentos sociais etc.

Disjunção entre o mundo da vida e as lógicas de mediação sistêmica: a normatividade do estatuto político da sociedade civil

É a partir dessa compreensão do mundo da vida que surge a ideia de sociedade civil como uma esfera especializada/institucionalizada deste, já marcada, em sua origem, pelo pressuposto da ação orientada para o entendimento e dos componentes básicos anteriormente referidos. No interior desse constructo, a sociedade civil ressurge teoricamente revigorada por um ideário cívico, cujas relações sociais cotidianas estariam orientadas por uma ética do discurso que, uma vez apoiada em direitos procedimentais fundamentais para assentar ou justificar normas de ação, emerge como um princípio de legitimidade democrática e uma ética política voltados ao entendimento mútuo. Como abordarei mais adiante a partir de Gurza Lavalle (2011)Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
, esse é o quadro geral do estatuto político da sociedade civil, um fundamento último , portanto invariável, que sedimenta o conceito e tem implicações analíticas e políticas.

Essa ética discursiva, no entanto, nada tem a ver com um princípio da ação individual. Ao contrário, está diretamente relacionada à "infraestrutura comunicativa intersubjetiva da vida social diária" inerente ao mundo da vida ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 424). Nesses termos, trata-se de um processo de diálogo em que os indivíduos, agindo no interior de relações de reconhecimento mútuo, adquirem e afirmam sua individualidade e a sua liberdade intersubjetivamente. Nesse processo de diálogo:

[...] todo participante articula seus pontos de vista ou interpretações de necessidades e adquire seus papéis ideais em uma discussão pública. Esta proporciona a estrutura em que o entendimento das interpretações de necessidades dos outros se faz possível por meio de um discernimento moral e não somente através da empatia (...). Assim, a ética do discurso pressupõe a autonomia e a integridade dos indivíduos e sua incorporação prévia em um modo de vida intersubjetivo [vinculados no mundo da vida pela integralidade de uma identidade comum compartilhada] ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 424; 426, acréscimo meu).

A ética discursiva, ao promover uma leitura alternativa ao processo de tomada de decisão entre os indivíduos, destacando a dimensão do poder social para além das tomadas de decisões entre elites, tornou-se um elemento chave para o conceito moderno de sociedade civil. Isso porque, como destaca Avritzer (2000Avritzer, L. “Teoria democrática e deliberação pública”. Lua Nova, nº 49, p. 25-46, 2000. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0102-64452000000200003>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445200000...
, p. 26), até os anos 1970, o momento decisório, isto é, "a decisão como o elemento central do processo deliberativo", estava pautado em pressupostos racionalistas egocentrados (Escolha Racional e Teoria Econômica da Democracia). Foi nesse contexto que a ética discursiva surgiu como uma concepção alternativa para se pensar a dimensão da deliberação, enfatizando o elemento argumentativo-reflexivo e o poder social no momento decisório como forma de preencher o déficit normativo entre uma Teoria da Democracia (Democracia Deliberativa) e a ideia de racionalidade (Racionalidade Comunicativa).

Com esse movimento, a ética discursiva representou "uma forma de compatibilização entre democracia, racionalidade e participação, forma ausente da teoria democrática desde as formulações de Weber e Shumpeter" (Avritzer, 1996a, p. 123). Representou, portanto, uma alternativa contra as insuficiências das leituras elitistas do realismo político respeitante a uma Teoria da Democracia compatível com uma teoria da racionalidade dos indivíduos. Até os anos 1970, a racionalidade dos indivíduos, quando aceita, estava limitada à dimensão egoísta da ação social - para Schumpeter, por exemplo, a massa/povo seria incapaz de racionalidade; como solução para esse déficit normativo, Downs, a partir das heranças do ramo da economia, parte da identificação da racionalidade com a ideia de indivíduo capaz de maximizar os benefícios que ele usufrui do sistema político (Cf. Avritzer, 1996a, 1996b).

As críticas também se direcionaram à Teoria dos Sistemas, uma vez que essa perspectiva, desprovida, segundo Habermas, de um teor normativo, tende a analisar o processo político por meio de uma leitura de autorregulação do poder administrativo independente, fechado em si mesmo (Cf. Habermas, 1997, p. 59-65; 73; 84). Além disso, a compatibilização almejada por Habermas entre o poder social (soberania popular), o elemento argumentativo-reflexivo e os mecanismos autolimitantes entre esfera pública e sistema político "contribuiria para a racionalização do sistema político. Tal processo restauraria, de uma forma diferente da suposta pelos clássicos, a relação entre política e racionalidade" (Avritzer, 1996a, p. 123).

O arcabouço desse constructo é o princípio do discurso da ação comunicativa. Este é concebido por meio de uma perspectiva geral e pragmática do jogo linguístico intersubjetivo aceito racionalmente em uma determinada sociedade, pressupondo que todo ato de decisão (nesse caso, um processo de construção de consensos públicos) deva ser racional para ser legítimo, isto é, deve surgir do processo argumentativo da deliberação em que todos tenham uma igualdade efetiva de oportunidade para o diálogo, devendo, portanto, haver um reconhecimento mútuo e recíproco entre os envolvidos. É nesse sentido que Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 397-399) argumentam que, segundo Habermas:

[...] uma norma de ação tem validade somente se todos aqueles que possivelmente se vejam afetados por ela (e por efeitos secundários de sua aplicação) chegam, como participantes de um discurso prático, a um acordo (motivado racionalmente) de que essa norma pode ser posta em vigência e permanecer em sua vigência (...). Mas, para que o diálogo seja capaz de produzir resultados válidos, deve ser um processo comunicativo completamente público, não limitado por força política ou econômica (...). Ademais, os participantes devem ser capazes de modificar o nível do discurso para estar em posição de desafiar as normas tradicionais que possam pressupor-se tacitamente. Em outras palavras, nada pode ou deve ser tabu para o discurso racional - nem os domínios do poder, nem da riqueza, nem da tradição ou da autoridade. Em resumo, os princípios processuais que subjazem na possibilidade de chegar a um consenso racional sobre a validade de uma norma implicam simetria, reciprocidade e reflexividade.

Gozando de uma situação ideal de fala, os agentes da comunicação, percebidos por esse constructo teórico como sujeitos racionais, razoáveis e orientados pelo entendimento mútuo, atribuem sentidos aos espaços e às normas sociais comuns, distinguindo-se, dessa forma, tanto da lógica estratégica competitivo-mercadológica do subsistema econômico, quanto da lógica estratégica do poder e dominação que medeia o subsistema político ( Habermas, 1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. ; Avritzer, 2000Avritzer, L. “Teoria democrática e deliberação pública”. Lua Nova, nº 49, p. 25-46, 2000. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0102-64452000000200003>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445200000...
; Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. ). É nesse ponto que se encontra outro elemento fundante da Perspectiva da Sociedade Civil: a disjunção normativa entre o mundo da vida e as lógicas de mediação sistêmica ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 272-355).

Para os objetivos deste artigo, cumpre apenas destacar que o intuito de Habermas, seguido por Cohen e Arato, é distinguir o mundo da vida da "sociedade como um todo", argumentando que as estruturas de sustentação das interações sociais no mundo da vida não são as mesmas das trocas e relações motivadas estrategicamente por valores econômicos (subsistema econômico) ou de poder (subsistema político). Ou seja, os subsistemas não operam orientados pelo agir comunicativo (ação orientada pelo entendimento). Estes, ao contrário, são orientados pelo sucesso (ação estratégica).

Nessa diferenciação, que está diretamente relacionada ao processo de distinção dos elementos estruturais do mundo da vida na modernidade7 7 O processo de racionalização do mundo da vida, base do agir orientado pelo entendimento, leva ao distanciamento do consenso ancorado em tradições culturais (um consenso normativo pré-moderno, convencional ), como a religião ou estruturas restritas de ordens de parentescos, e volta-se para a formação do consenso por meio da linguagem (um consenso racional e moderno, pós-convencional ) (Cf. Habermas, 2012 , p. 323-333; p. 334-351; Cohen; Arato, 2001 , p. 487-495). , a noção de mundo da vida, como informei anteriormente, é compreendida como um terreno estruturado por reciprocidades racionalmente orientadas para a integração social, distinguindo-se dos mecanismos sistêmicos estratégicos . Dessa forma, à medida que avança a complexificação socioestatal, ocorre um progressivo movimento de disjunção entre as estruturas normativas do mundo da vida (integração social pautada em uma ética discursiva) e a integração sistêmica (organização de trocas e organização política, cujos mecanismos de coordenação da ação, mecanismos autopoiéticos, não apresentam controles normativos pautados em uma ética discursiva, em uma prática comunicativa cotidiana, como ocorre no mundo da vida).

Nessa perspectiva, a transposição do agir comunicativo para meios de controle sistêmicos representaria uma distorção da estrutura comunicativa, um processo de tecnização e, no limite, "colonização" e "patologias do mundo da vida" induzidas pelas lógicas sistêmicas ( Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 355). Desse processo, resultaria um movimento de apropriação da intersubjetividade do entendimento possível, uma violência estrutural provocada pela "invasão" do mundo da vida pelas lógicas sistemáticas, as quais representariam restrições sistemáticas à comunicação. Essa disjunção evidencia a normatividade e o estatuto político (lógica fundacionalista) da sociedade civil, isto é, uma lógica que entrevê normativamente a presença de fundamentos capazes de orientar, equilibrar e organizar a estrutura dos fenômenos (Graeff; Nascimento; Marques, 20198 8 O pensamento fundacionalista representa uma tradição filosófica e epistêmica extensa, abrangendo diferentes orientações. Em linhas gerais, o fundacionalismo indica a presença de um fundamento auto justificado. Para essa perspectiva, o fundamento último está instituído em si mesmo e por essa razão não necessita de nenhum tipo de justificativa, servindo de argumento ou legitimação para a existência dos conhecimentos dele derivados (Cf. Marchart, 2009 ; Graeff; Nascimento; Marques, 2019). ):

  • Um conjunto de instituições especializadas ( e.g . instituições religiosas, movimentos sociais, ONG's etc.), não estatais e não econômicas, erigidas a partir de três direitos fundamentais, quais sejam: (i) reprodução cultural (liberdade de pensamento, liberdade de expressão e comunicação); (ii) integração social (liberdade de associação); e (iii) socialização (inviolabilidade da pessoa, proteção da vida, direitos humanos etc.9 9 Esses direitos representam o princípio organizador de uma sociedade civil moderna (Cf. Cohen; Arato, 2001 , p. 494-495). );

  • Nessa construção, as instituições da sociedade civil, valendo-se das estruturas comunicacionais, tematizam os problemas sociais que ecoam no mundo da vida e os transmitem à esfera pública ( Habermas, 1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. );

  • À esfera pública, concebida como uma "rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões" em que "nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos" ( Ibid ., p. 92), cabe direcionar os problemas sociais ao sistema político;

  • Não sendo uma área especializada ou uma organização, "pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc." ( ibid ., p. 92), tampouco um sistema, "pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis", esse direcionamento de problemas sociais alivia "o público da tarefa de tomar decisões: as decisões proteladas continuam reservadas às instituições que tomam resoluções" ( ibid ., p. 92-93);

  • A opinião pública , o resultado desse processo comunicativo-reflexivo canalizado e direcionado ao sistema político, ainda que goze de legitimidade para influenciá-lo, não representa um poder político no sentido de levar a decisões impositivas, e sim potenciais de influência política . Nessa construção teórica, a opinião pública só se transforma em poder político "quando se deposita nas convicções de membros autorizados do sistema político, passando a determinar o comportamento de eleitores, parlamentares, funcionários, etc." ( ibid ., p. 95, itálico do autor)10 10 Cumpre destacar que, para Habermas (1997 , p. 105), esse processo não corre, ou não deve ocorrer, apenas através do poder dos discursos públicos informais, a opinião pública: necessita ser legitimada. Para isso, "tem que passar antes pelo filtro dos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transformar-se em poder comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de interesses e capaz de legitimar decisões política". Para gerar um poder político, portanto, a influência da opinião pública tem que "abranger também as deliberações de instituições democráticas da formação da opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada". .

Para a Perspectiva da Sociedade civil, não caberia a ela ascender ao poder, e sim lutar pela manutenção das estruturas das esferas públicas contra os entraves à comunicação e atuar canalizando e direcionando a opinião pública ao sistema político. Essa compreensão resulta da noção de autolimitação da sociedade civil, a qual concebe as organizações sociais como "movimentos democratizantes autolimitados" (Cf. Habermas, 1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. , p. 104-106; Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 35-37; 55-56; 94-95) - esse conceito, como discutirei mais adiante, denota os limites relacionais da sociedade civil.

O argumento central da autolimitação sustenta que, na qualidade de elemento democratizante autolimitante, a sociedade civil moderna, permeada por uma expressiva pluralidade de lutas sociais, conferiu novos contornos às relações conflitivas com o Estado ao se distanciar do objetivo de supressão da estrutura estatal (revolução estrutural). É nesse sentido de abdicação do caráter revolucionário que os autores destacam a ideia de revolução autolimitada, ou pós-revolucionária, como um dos elementos centrais de um modelo conceitual autorreflexivo tripartite:

[...] é preciso lembrar que, na esfera pública, ao menos na esfera pública liberal, os atores não podem exercer poder político, apenas influência. E a influência de uma opinião pública, mais ou menos discursiva, produzida através de controvérsias públicas, constitui certamente uma grandeza empírica, capaz de mover algo [...]. Diretamente, a sociedade só pode transformar-se a si mesma; porém ela pode influir indiretamente na autotransformação do sistema político constituído como um Estado de direito. Quanto ao mais, ela também pode influenciar a programação desse sistema. Porém ela não assume o lugar de um macrossujeito superdimensionado, dotado de características filosófico-históricas, destinado a controlar a sociedade em seu todo, agindo legitimamente em seu lugar. Além disso, o poder comunicativo, introduzido para fins de planejamento da sociedade, não gera formas de vida emancipadas. Estas podem formar-se na sequência de processos de democratização, mas não podem ser produzidas através de intervenções exteriores ( Habermas, 1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. , p. 105-106).

O deslocamento da lógica antagônica (sociedade contra o Estado = revolução), para uma lógica autolimitada entre esfera societária e institucional, buscou escapar, simultaneamente, de uma leitura estatista, redundando numa defesa comunitarista da sociedade civil contra a dominação estatal, e de uma análise economicista, que tende a reduzir a sociedade civil a um simples reflexo do nível econômico da sociedade. No entanto, a Perspectiva da Sociedade Civil, uma perspectiva centrada na sociedade11 11 Como destacam Cohen e Arato (2001 , p. 456), "nosso conceito não está nem centrado no Estado, como o estava em Hegel - sem importar o quão ambiguamente -, nem na economia, como o estava em Marx. O nosso é um modelo centrado na sociedade". , acabou delineando uma rígida separação ontoepistemológica entre Estado, sociedade civil e mercado.

Quando essa perspectiva permite um "olhar relacional", limita-se a uma perspectiva relacionista, como a política de influência, a lógica autolimitada etc. Em suma, o resultado desses esforços foi um modelo conceitual (i) autorreflexivo despolitizado, no sentido de não perceber a mútua constituição entre a política e o político ; (ii) otimista, considerando a associação normativa entre sociedade civil e democracia; e (iii) relacionista, uma vez que só permite perceber relações entre fenômenos (sociedade civil e subsistemas) e não os fenômenos como relação (sociedade civil e subsistemas em processos de mútua constituição). Esses são os pontos a partir dos quais buscarei uma leitura crítica da Perspectiva da Sociedade Civil nas próximas seções12 12 Cumpre destacar que esses elementos não contemplam o amplo leque de debate "com e contra" a sociedade civil, iniciado nos anos 1990. Também poderia destacar a ideia de emergência perfeitamente datada da sociedade civil como realidade concreta. Essa leitura foi transposta para a análise do caso brasileiro, destacando que a sociedade civil nacional emergiu (tardiamente) a partir dos anos 1970. Para essa crítica, conferir Gurza Lavalle e Szwako (2015) e Burgos (2015) . .

Pensar relacionalmente: apontamentos críticos sobre a despolitização, o otimismo normativo e o relacionismo

Essas três questões foram estruturadas a partir de contribuições de diferentes tradições teóricas críticas à abordagem da sociedade civil que permitem perceber a mútua constituição entre as esferas societária e estatal, quais sejam: (I) o pluralismo combativo em Chantal Mouffe (1996a, 1996b, 2012); (II) a Perspectiva da Polis em Houtzager (2004)Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. , Houtzager, Gurza Lavalle e Acharya (2004) e Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2011); (III) as recentes reflexões sobre as interações entre movimentos sociais e o Estado na produção de políticas públicas a partir de Gurza Lavalle (2011)Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
e Gurza Lavalle e Szwako (2015)Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
; (IV) e (re)leituras do conceito de sociedade civil no contexto brasileiro operadas por Gurza Lavalle (2003Gurza Lavalle, A. “Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990”. Novos Estudos, São Paulo, nº 66, p. 91-110, 2003. , 2011Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
) e Burgos (2015)Burgos, R. Sem glória, mas com certa pena: mais uma vez sobre o conceito de sociedade civil no Brasil. In: Sheherer-Warren, I.; Lüchmann, L. H. H. (Orgs.) Movimentos sociais e engajamento político: trajetórias e tendências analíticas. Florianópolis: Editora da UFSC, p. 161-233, 2015. .

1. Com relação ao primeiro eixo, a crítica da negação do político (despolitização) direcionada à Perspectiva da Sociedade Civil se refere, centralmente, à negação ou esvaziamento do político como consequência da diferenciação normativa entre mundo da vida e ordens sistêmicas.

Como abordei na seção "Perspectiva da Sociedade Civil: o ressurgimento do conceito de sociedade civil", a construção e diferenciação normativa do mundo da vida "como uma esfera de liberdade oposta a uma esfera de dominação confinada ao mundo sistêmico", quando, na verdade, tanto "o mundo sistêmico como o mundo da vida, em suas respectivas pluralidades, mas muitas vezes sobrepostas, são locais de luta" ( Jessop, 2008Jessop, B. State power. A Strategic-Relational Approach. Cambridge: Polity Press, 2008. , p. 160-161), não confere a devida atenção às relações conflitivas inerentes ao político . Ao não se atentar adequadamente às relações de poder na vida pública e privada, limitando a interpretação da ação política dos grupos e organizações societárias à ideia de influência , a compreensão da política , percebida como o plano institucional que, ao condensar as contradições sociais e agir junto ao tecido social, molda e, direta ou indiretamente, é por elas moldada, é ao mesmo tempo esvaziada da dimensão conflitiva e da mútua constituição com relação ao político . O resultado é a despolitização da política:

Em consequência, o reino da política transforma-se numa simples arena em que os indivíduos, despidos de paixões e crenças "perturbadoras" e entendidos como agentes racionais em busca do benefício próprio - dentro dos limites da moral evidentemente -, se submetem a procedimentos para escolherem, entre as suas reivindicações, as que consideram "justas" (Mouffe, 1996b, p. 186),

Isso ocorre porque, como destaca Mouffe (1996b), esse enfoque é uma tentativa de "encontrar um princípio de unidade social sob a forma de uma neutralidade baseada na racionalidade" (p. 185), percebendo a política "como um processo racional de negociação entre indivíduos" (p. 186), negando, dessa forma, "toda a dimensão do poder e antagonismo - aquilo a que chamo 'o político' ( )" (p. 186). Esse movimento, sustentado pela possibilidade de construção de consensos sem desigualdades originárias no momento discursivo, não pode, no entanto, ser bem-sucedido senão colocando em risco a própria democracia:

A alegação liberal de que um consenso racional universal poderia ser obtido mediante um diálogo sem distorções e que uma discussão pública livre poderia garantir a imparcialidade do Estado só é possível negando o irredutível elemento antagônico presente nas relações sociais, o que pode ter consequências desastrosas para a defesa das instituições democráticas. Negar o político não o faz desaparecer; apenas conduz ao espanto perante as suas manifestações e à impotência no seu tratamento (Mouffe, 1996b, p. 186-187).

O que esses argumentos buscam trazer à tona, contra a disjunção entre mundo da vida e subsistemas, bem como contra a ética discursiva da Perspectiva da Sociedade Civil, é que a negação do político , em defesa dos pressupostos normativos fundantes do consenso racional, antes de ser um consenso livre, pautado no reconhecimento intersubjetivo com pretensões de validade cognitiva e normativa, é, em sua radicalidade, um ato seletivo de exclusão, ainda que não necessariamente de autoritarismo em seu sentido político mais profundo13 13 Sobre a crítica de autoritarismo na ética do discurso, conferir Cohen e Arato (2001 , p. 409-422). . Disso decorre a compreensão de que tanto a opinião pública como a justificativa da decisão ( ratio decidendi ) política no sistema político não representam reflexos do livre exercício da razão prática entre indivíduos racionais e razoáveis que, recobertos pelo "véu da ignorância" e em uma "posição ideal de fala", entrariam num processo comunicativo cujos procedimentos são puramente neutros e orientados pelo entendimento mútuo, cujos resultados, filtrados pelos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade nas esferas públicas, alcançam a esfera política. Ao contrário disso, os filtros da esfera pública e, com isso, a legitimação enquanto opinião pública, bem como as decisões sobre os procedimentos e as decisões políticas propriamente ditas, resultam de atos de poder inerentes ao social. Ou seja, evidenciam que certas decisões foram tomadas em detrimento de outras, inclusive sobre os sentidos do que seria "justo" e "razoável" em um determinado contexto, tal como são estrategicamente operacionalizados por diferentes ordens funcionais do Estado e da sociedade, evidenciando que o político e a política não podem ser tomados isoladamente (Cf. Jessop, 2008Jessop, B. State power. A Strategic-Relational Approach. Cambridge: Polity Press, 2008. , p. 160-163; 168-177; Mouffe, 2012Mouffe, C. La paradoja democrática. El peligro del consenso em la política contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2012. , p. 48-50; 61-64; 83-88; 107-112;).

Ainda nessa perspectiva por mais que seja possível e desejável para as democracias liberais contemporâneas a aceitação consensual sobre a defesa de seus princípios ético-políticos fundantes (liberdade e igualdade), sem os quais não seria possível a realização concreta nem das democracias, nem das sociedades civis (Cf. Mouffe, 2012Mouffe, C. La paradoja democrática. El peligro del consenso em la política contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2012. , p. 112-118; Marques, 2017Marques, M. S. Cidadania: algumas considerações a partir da Democracia Radical e Plural. In: Silva, L. G. T. et al. (Orgs.). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: a obra de Ernesto Laclau a partir de abordagens empíricas e teóricas. Curitiba: CRV, 2017, p. 209-223. , p. 209-223), como determinar os sentidos que discursivamente preenchem esses princípios? Como determinar os acordos políticos e morais mínimos entre os indivíduos na busca pela sedimentação14 14 Como destaca Laclau (2000 , p. 51), a ideia de sedimentação indica um efeito de ocultamento da contingencialidade. Quando "algo" é sedimentado, "o sistema de possibilidades alternativas tende a desvanecer-se e os traços da contingência originária a apagar-se. Desse modo, o instituído tende a assumir a forma de uma mera presença objetiva. Este é o momento da sedimentação. É importante ver que esse apagar-se implica um ocultamento". A luta contra a sedimentação consiste em um esforço por reativação desse processo. A reativação , como destaca Laclau (2000 , p. 51, destaques do autor; acréscimo meu), consiste na evidenciação "através da emergência de novos antagonismos, [d]o caráter contingente da pretendida 'objetividade'". Para uma leitura desses conceitos desde as suas bases, em Husserl, e (re)interpretação de Laclau, conferir Marques (2020) . de sentidos abrangentes sobre tais princípios, uma vez que estão em constantes disputas entre diferentes campos discursivos presentes na sociedade? A grande questão é a forma como se coloca o problema dos consensos mínimos.

Para a Perspectiva da Sociedade Civil, o consenso não representa uma "verdade absoluta", tampouco elimina a pluralidade e a possibilidade dos dissensos (Cf. Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 409-412; 415; 421-422). Todavia, compreende que as sociedades modernas, caracterizadas pelo pluralismo de valores e pela pluralidade de grupos com diferentes identidades coletivas, "não seriam sociedades se não existissem nenhuma identidade comum (política) compartilhada por seus membros, não importando quão diferentes sejam entre si" ( Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 421). A normatividade do argumento acaba indicando que as sociedades civis modernas representam essa "identidade comum" e, como tal, seriam capazes de expressar a totalidade da comunidade.

As críticas do pluralismo combativo de Mouffe, que parte de uma lógica pós-fundacionalista, isto é, da recusa de fundamentos últimos em proveito das possibilidades da construção de fundamentos contingenciais15 15 O pós-fundacionalismo opera um duplo deslocamento epistemológico: ao mesmo tempo em que desconstrói a existência de fundamentos estáveis/imutáveis à estrutura (lógica fundacionalista), também desconstrói o exato movimento oposto, o anti-fundacionalimo, isto é, o argumento que invalida toda possibilidade de estabelecimento de fundamentos ao jogo estrutural, uma espécie de radicalidade líquida do social que aceita a impossibilidade de totalização diante da complexidade e da abundância de fundamentos possíveis/alternativos. A crítica pós-fundacionalista, portanto, não nega a possibilidade da presença de fundamentos, e sim a impossibilidade de uma presença definitiva, estável e estabilizadora da complexidade e contingencialidade do social. Essa crítica mantém a noção de fundamento, mas na qualidade de fundamentos contingentes ou fundamentos ausentes - a noção de ausência deve ser compreendida como a não-presença definitiva (Cf. Marchart, 2009 ; Graeff; Nascimento; Marques, 2019). , indicam não a necessidade, ou mesmo o desejo, de construção de uma "identidade comum" por meio de uma leitura sócio-integradora, mas o compromisso com os princípios ético-políticos inerentes ao projeto político democrático moderno, o que não tem a ver com os sentidos que conformam política e legalmente tais princípios. Ou seja, os argumentos de Mouffe remetem à construção de um ethos democrático, um consenso mínimo sobre os princípios, sem estabelecer um fundamento/estatuto político que normativamente fundamentaria o político e/ou a política . A experiência concreta da sociedade civil é contingencial. É nesse sentido que adverte que uma vez que "estes princípios ético-políticos só podem existir mediante um grande número de interpretações diferentes e conflitivas, tal consenso será forçosamente um 'consenso conflitivo'" ( Mouffe, 2012Mouffe, C. La paradoja democrática. El peligro del consenso em la política contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2012. , p. 116).

Afinal, o que é considerado racional, justo ou razoável em uma determinada formação social, destaca Mouffe (1996b, p. 190), corresponde "aos jogos de linguagem dominantes e ao 'senso comum' que eles constroem. É o resultado de um processo de 'sedimentação' de um conjunto de discursos e práticas cujo caráter político foi elidido", e não algo conferido a partir de valores e direitos básicos normativos como se fossem autoevidentes e autojustificados como substâncias pré-constituídas (fundamento último). Sua justificação, antes de um ato autorreflexivo relacionado ao saber cultural, ou (sub)produto de compromissos mútuos na construção de um bem comum, é uma construção radicalmente política, resultante das interações espaço-temporalmente inscritas e das complexas ligações estruturais entre as esferas societária e institucional.

É nesse sentido que compreendo a crítica de Gurza Lavalle (2011)Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
e de Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2011) sobre o estatuto político da sociedade civil. Como destacam os autores, seu estatuto político deve ser analisado a partir da posição da sociedade civil em relação aos interesses e às instituições estatais e do mercado, e não como elemento predeterminado passível de dedução teórica, como se a sociedade civil sempre já estivesse distante e/ou isolada do Estado. A sociedade civil, portanto, não é um fenômeno preexistente e isolado em relação ao Estado. Ao contrário, como destaca Silva (2006Silva, M. K. “Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional”. Sociologias, Porto Alegre, nº 16, p. 156-178, 2006. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/S1517-4522200600...
, p. 160), "a sociedade civil se constitui na e pela relação com outras dimensões da realidade social". Ou seja, é um fenômeno emergente da mútua constituição entre as esferas societária e estatal. Como tal, não pode ser reduzido a supostas propriedades intrínsecas.

Por essa leitura relacional e antiessencialista, a possibilidade e a legitimidade dos dissensos sobre os sentidos dos fundamentos democráticos (liberdade e igualdade) são, portanto, a própria condição de existência democrática, e nada pode garantir que da sociedade civil, percebida como fenômeno relacional, surjam apenas valores democráticos. Como adverte Mouffe (1996a, p. 17), o risco para as democracias não emerge apenas "quando o consenso e a fidelidade aos valores que ela encarna são insuficientes", mas também quando o caráter dinâmico e combativo, inerente à democracia, é bloqueado "por um aparente excesso de consenso que, normalmente, mascara uma apatia inquietante16 16 Antes de Mouffe, Hannah Arendt já argumentara que a diferenciação de um campo social distinto do Estado foi o início de uma despolitização da sociedade (Cf. Cohen; Arato, 2001 , p. 215-236). ", uma despolitização em prol de uma suposta "sociedade pós-ideológica" (Cf. Marques, 2021Marques, M. S. "Em torno da ideologia - Notas sobre o falseamento da realidade". Contemporânea, Revista de Sociologia da UFSCar, vol. 11, nº 2, p. 717-734, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/2316-1329.2021014>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.4322/2316-1329.202101...
).

Além da apatia e de seus riscos para a vitalidade democrática, as consequências políticas cotidianas desse modelo teórico normativo podem ser percebidas tanto em processos de deslegitimação política de certas experiências organizacionais, cujas formas de ação e objetivos não se enquadram no que o modelo normativo-autorreflexivo concebe como inerentes e salutares à sociedade civil, como nas tentativas de criminalização de determinados agentes societários por meios jurídico-legais, como a elaboração de leis que tipificam práticas comuns a movimentos sociais e sindicatos, por exemplo, como atividades terroristas ou de atentado contra a ordem pública (Cf. Gurza Lavalle, 1999Gurza Lavalle, A. “Crítica ao modelo da nova sociedade civil”. Lua Nova, nº 47, p. 121-135, 1999. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0102-64451999000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445199900...
, 2003Gurza Lavalle, A. “Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990”. Novos Estudos, São Paulo, nº 66, p. 91-110, 2003. ; Ballestrin, 2015Ballestrin, L. M. A. “Sociedade civil, democracia e violência”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, nº 87, p. 143-163, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.17666/3087143-162/2015>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.17666/3087143-162/201...
; Burgos, 2015Burgos, R. Sem glória, mas com certa pena: mais uma vez sobre o conceito de sociedade civil no Brasil. In: Sheherer-Warren, I.; Lüchmann, L. H. H. (Orgs.) Movimentos sociais e engajamento político: trajetórias e tendências analíticas. Florianópolis: Editora da UFSC, p. 161-233, 2015. ). Um dos resultados mais perceptíveis disso, como destaca Burgos (2015Burgos, R. Sem glória, mas com certa pena: mais uma vez sobre o conceito de sociedade civil no Brasil. In: Sheherer-Warren, I.; Lüchmann, L. H. H. (Orgs.) Movimentos sociais e engajamento político: trajetórias e tendências analíticas. Florianópolis: Editora da UFSC, p. 161-233, 2015. , p. 185), é o "banimento" teórico, e mesmo físico, de partidos políticos da sociedade civil, como observamos durante algumas manifestações públicas no Brasil, entre os anos de 2013 e 2016, momento em que grupos societários com raízes autoritárias tentaram impor o ocultamento de símbolos e discursos de partidos políticos do espectro mais à esquerda durante as manifestações, acarretando um discurso apartidário que tende a constranger os atores individuais e coletivos e, consequentemente, a "ocultar suas identidades partidárias como se fossem um 'antivalor', uma doença social: um habitus de ordem do patológico17 17 Para essa crítica, conferir também Gurza Lavalle (2003) e Silva (2006) . ".

2. A despolitização da sociedade civil implica em outro elemento igualmente controverso: o otimismo na correlação direta entre valores democráticos, cultura cívica associativo-participativa e o conceito de sociedade civil18 18 Poderia, também, elencar a questão da participação institucional para discutir o otimismo da Perspectiva da Sociedade Civil. Para essa abordagem, é relativamente fácil alcançar os arranjos institucionais de participação. Essa leitura, no entanto, oculta uma série de variáveis que, inclusive, envolvem as relações de atores individuais ou coletivos com organizações políticas e religiosas clássicas. Para essa crítica, conferir Houtzager, Gurza Lavalle e Acharya (2004). . Como abordei anteriormente, há na Perspectiva da Sociedade Civil uma tendência de associação entre sociedade civil e princípios democráticos, percebendo-a como o terreno da liberdade e de virtudes liberal-republicanas.

Isso ocorre porque, como destacam Houtzager, Gurza Lavalle e Acharya (2004), essa literatura partilha três aspectos que percebem a sociedade civil como uma força autêntica, democratizante e elemento de racionalização do mundo da vida:

[...] sua lógica deliberativa (versus a baseada em interesses), sua natureza descentralizada e seu enraizamento na vida social das comunidades e sua autonomia em relação ao Estado, aos partidos políticos e aos grupos de interesse. Essas características dão às organizações civis uma lógica democratizadora particular que contrasta favoravelmente com a lógica tecnoburocrática das agências estatais e a lógica excludente do mercado (Houtzager; Gurza Lavalle; Acharya, 2004, P. 265-266).

Dessa forma, sem muitas problematizações, com certo otimismo e operando por meio de uma seletividade epistemológica colonial, a Perspectiva da Sociedade Civil cria uma afinidade eletiva que vincula a sociedade civil a uma forma específica de cultura política, inerente às experiências democráticas em suas versões europeias e estadunidenses (Cf. Ballestrin, 2015Ballestrin, L. M. A. “Sociedade civil, democracia e violência”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, nº 87, p. 143-163, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.17666/3087143-162/2015>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.17666/3087143-162/201...
, p. 148-154), como se a presença de uma diversidade de formas associativas assegurasse, por si só, a qualidade democrática19 19 Para uma leitura que rebate esse otimismo, cuja análise da ação de atores da sociedade civil destacou que estes assumiram uma posição de obstáculo às iniciativas de democratização da gestão pública, conferir Silva (2006) . .

Ainda que se problematize e se reconheça, como o fazem Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 463), que nem sempre as estruturas de participação e associações voluntárias, estruturas assumidas como fundantes de uma "sociedade civil atuante", sejam realmente democráticas e/ou impliquem em práticas de participação genuínas, há, nesse registro analítico, uma correlação quase instantânea entre a experiência de níveis de participação democrática, considerando as experiências político-institucionais e cultura cívica do "norte-global", com a existência de uma ampla gama de associações, públicos e grupos informais. Assim, o argumento indica uma defesa normativa de que a existência de uma pluralidade de microespaços de participação, como associações diversas, clubes etc., possa se converter não apenas em uma substância real de governos democráticos, mas, igualmente, em uma base para experiências de autoeducação e de densos laços de confiança intrapessoal e reciprocidade (capital social) que proporcionariam o desenvolvimento de uma cultura política democrática, tornando mais democráticas e igualitárias as relações entre as organizações no interior da sociedade civil.

Como adverte Houtzager (2004Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. , p. 26) contra esse otimismo normativo, a sociedade civil não é necessariamente um terreno sobre o qual só se produzem democratas, na qual as "organizações cívicas são vistas como escolas de democracia que ampliam os interesses dos cidadãos e ensinam as habilidades indispensáveis para a negociação democrática". A sociedade civil também pode ser fonte de impulsos antidemocráticos, terreno de formação de diferentes facções egoístas, algo muito distante do argumento que tende a sustentar que a sociedade civil seja a responsável pela promoção e (re)generação dos vínculos sociais a partir de relações de reciprocidade e solidariedade social - esta pode ser uma chave analítica para a compreensão da emergência de organizações societárias com raízes autoritárias no Brasil, indicando a presença de setores civis antidemocráticos sem a preocupação de desvinculá-los do conceito de sociedade civil, o que levaria a assumi-los como "sociedade incivil" ou "contra movimentos sociais" para preservar a "pureza" da sociedade civil de tradição habermasiana (Cf. Ballestrin, 2015Ballestrin, L. M. A. “Sociedade civil, democracia e violência”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, nº 87, p. 143-163, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.17666/3087143-162/2015>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.17666/3087143-162/201...
).

Essa crítica busca evidenciar que nada pode predeterminar uma causalidade direta e uma relação positiva entre sociedade civil e democracia, nem que as relações de cooperação entre as esferas política e societária sempre levaram a uma melhora da governança e do exercício da soberania popular direcionada a um (suposto) bem comum, visto que há conflitos também entre as diferentes organizações civis. Inclusive, a estruturação de relações não democráticas pode ocorrer sem representar uma destruição das estruturas formais das democracias liberais (eleições regulares, pluripartidarismo, divisão entre poderes etc.), bem como pode ser levada a cabo mesmo em contextos em que se observa a existência da vida associativa. Esse também foi o caso da Alemanha nazista:

Assim como varejistas, banqueiros e empregados comerciais haviam se organizado em grupos de interesse econômico, observa Fritzsche sobre a Alemanha entreguerras, também ginastas, folcloristas, cantores e fiéis reuniam-se em clubes, reagrupavam novos membros, marcavam reuniões, e planejavam uma completa variedade de conferências e torneios. Realmente, a vida associativa tanto na Alemanha de Wilhelmine quanto na de Weimar, em particular a das classes médias, era tão vigorosa que os contemporâneos falavam do Verinsmeieri (grosso modo, fetichismo ou mania de associação) que rondava a sociedade alemã e brincavam com isso: sempre que três ou mais alemães se reuniam, muito provavelmente redigiriam estatutos e fundariam uma associação ( Houtzager, 2004Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. , p. 22).

A existência de uma vida associativa, portanto, não implica, necessariamente, em valores democratizantes. Além disso, o papel da vida associativa pode não ser positivamente constitutivo do ponto de vista do aprofundamento democrático. Como apresenta Houtzager (2004Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. , p. 23), a vigorosa vida associativa alemã, por exemplo, "na verdade fragmentou, mais adiante, uma sociedade já profundamente dividida, visto que o povo se organizava dentro de grupos e associações, e não através deles".

Outro problema se encontra no argumento da autolimitação da sociedade civil. Analisando a realidade das relações dos agentes e organizações civis junto ao Estado, pode ser um tanto otimista, ou míope, supor que as associações e grupos civis diversos sejam qualquer coisa similar a "movimentos democratizantes autolimitados", cujas ações, sempre voltadas à democratização e ao fortalecimento das estruturas sociais solidárias, visam apenas influenciar indiretamente a programação do mundo sistêmico, sem o objetivo, portanto, de alcançar de fato os espaços e de poder (Cf. Habermas, 1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. ; Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. ). Essa leitura, como destaca Houtzager (2004Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. , p. 27), "é cega para o fato de que a sociedade política é o lugar em que atores coletivos e indivíduos contestam o direito legítimo de exercer controle sobre o poder público e o aparelho estatal".

Como abordarei na sequência, se o objetivo for uma abordagem relacional pensada a partir da mútua constituição entre o político e a política e, com isso, atenta à complexidade dos padrões de interações socioestatais e às diversas experiências de organizações civis, seria um equívoco limitar a análise da ação dos agentes societários à lógica da "política de influência", ou às lógicas da "política de identidade", da "política de inclusão" e da "política de reforma20 20 Ao discutirem a ação dos movimentos sociais contemporâneos a partir das teses habermasianas, Cohen e Arato (2001 , p. 556-622) apresentam quatro tipos de lógicas de ação dos movimentos sociais. A primeira lógica seria uma "política de identidade", que pode ser compreendida como a ação orientada para a redefinição de normas culturais, identidades individuais e coletivas, mudanças dos conteúdos dos discursos etc., evidenciando uma ação pela transformação cultural. A segunda seria a "política de inclusão", uma ação dirigida às instituições políticas visando o reconhecimento de novos atores no interior da sociedade política e para garantir benefícios para os representados. A terceira lógica é a "política de influência". Esta, como discutido até aqui, orienta a ação para a pressão indireta sobre o subsistema político. Essas três lógicas estariam ligadas à luta contra a colonização administrativa e econômica da sociedade civil. A quarta lógica, a "política de reforma", relaciona-se à luta pela democratização, envolvendo também as instituições políticas. Como destacam os autores, "enquanto a democratização da sociedade civil e a defesa de sua autonomia frente à 'colonização' econômica ou administrativa pode ser considerada como o objetivo dos novos movimentos, a criação de 'sensores' dentro das instituições políticas e econômicas (reforma institucional) e a democratização da sociedade política (a política de influência e de inclusão), que abririam essas instituições às novas identidades e às normas igualitárias articuladas no terreno da sociedade civil, são os meios para assegurar esta meta" (p. 588). ". A análise deve considerar, igualmente, a política estratégico-relacional orientada para a transformação da estrutura política e para a mudança do equilíbrio desigual de antagonismos, sem incorrer em leituras normativas autodemocratizantes - como discutirei a seguira, esse argumento exige (re)pensar o tipo de orientação da ação do sujeito sociológico das interações socioestatais, deslocando da ação comunicativa para outra forma de compreender o sujeito: uma ação estratégico-reflexiva .

3. Por fim, o terceiro elemento elencado nessa crítica se refere aos limites da leitura relacionista na análise das interações entre a sociedade civil e o Estado. Os dois primeiros apontamentos já entreveem as críticas a esses limites. Para concluir, limitar-me-ei aos argumentos que apontam para um sentido contrário à referida leitura: sociedade civil e Estado como instâncias altamente correlacionadas e mutuamente constitutivas.

Pensar a sociedade civil e o Estado a partir desses termos significa (I) recusar a possibilidade de estabelecimento de um fundamento último como estatuto político da sociedade civil, especialmente a ideia de autonomia , entendida como não-relação ou relação apenas indireta das organizações da sociedade civil com a esfera estatal, e (II) a suspeição do pressuposto voluntarista referente à espontaneidade da formação da vontade pública e das organizações societárias do mundo da vida.

O estatuto político da sociedade civil, como destaca Gurza Lavalle (2011)Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
, não pode ser compreendido como um conjunto de elementos passíveis de dedução teórica que são mobilizados para análise sobre o que é e como se constitui a sociedade civil, ou seja, seu fundamento . Como destaca o autor ( Ibid ., p. 11), a formulação da Perspectiva da Sociedade Civil sustenta que essa sociedade é uma instância privilegiada "de produção de consensos morais e, a um só tempo, fonte de fluxos comunicacionais de assédio direcionados a sintonizar o funcionamento das instituições do mercado e da política com tais consensos". Como discutido até aqui, o estatuto político atribuído por essa perspectiva teórica tende a demarcar quais organizações podem ou não ser aceitas como sociedade civil, quais funções, ações próprias dessa sociedade e quais os padrões de relação entre organizações sociais e estatais delimitam as fronteiras entre uma suposta política própria da sociedade civil e uma política própria das organizações políticas e do mercado (Cf. Gurza Lavalle, 2011Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
; Gurza Lavalle; Houtzager; Castello, 2011).

No entanto, nada pode determinar um estatuto político da sociedade civil. Essa impossibilidade está diretamente relacionada ao fato de que a constituição concreta depende diretamente do contexto estratégico-relacional, das relações espaço-temporalmente estruturadas entre a sociedade civil com os seus diferentes atores individuais e coletivos, e as esferas política e econômica. Isso significa que:

[...] o estatuto político da sociedade civil em determinado contexto não é passível de dedução teórica, antes, constitui um problema de natureza empírica que exige, a um só tempo, pesquisa sistemática e distinções capazes de capturar interesses, práticas e atores envolvidos na construção e na reprodução da sociedade civil (...). Por conseguinte, não existe um estatuto político da sociedade civil, passível de dedução teórica, mas diversos estatutos, ou, de modo mais incisivo, diversas sociedades civis cujo estatuto não é dado, mas requer explicação ( Gurza Lavalle, 2011Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
, p. 08).

A recusa de um fundamento último da sociedade civil, além de ocorrer em benefício do argumento de mútua constituição, também se dá em favor de uma leitura que percebe o ambiente associativo-organizacional a partir de uma perspectiva heterogênea e dinâmica. Nessa última, em particular, embora se reconheça semelhanças organizacionais que permitem distinguir os atores e organizações sociais de atores e organizações estatais e/ou econômicos, afinal, um partido político é diferente de uma associação de bairro e uma cooperativa não é o mesmo que uma entidade patronal, as diferentes organizações e atores societários não apresentam um mesmo estatuto político, bem como se enfrentam e se constituem por meio de diferentes constrangimentos de ordens vocacional e institucional ( Gurza Lavalle, 2011Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
, p. 14-15; Gurza Lavalle; Houtzager; Castello, 2011, p. 197-206): uma organização de movimento social ou um coletivo difere de uma ONG, por exemplo, em termos de repertórios organizacionais, de ação e de interação com as esferas estatal e econômica, bem como no que se refere à vocação e, em certos casos, aos níveis de institucionalização.

A recusa de um fundamento último , em suma, está diretamente relacionada ao contra-argumento de um modelo universal (teórico-normativo e/ou analítico) de sociedade civil. Ao contrário de um conjunto de elementos passíveis de dedução teórica, os quais podem ser mobilizados para análise sobre o que é e como se constitui essa sociedade, o que empiricamente se verifica são diferentes configurações de sociedade civil estruturadas a partir de determinados tipos e padrões contingenciais de relações entre agentes societários, estatais e econômicos ao longo do tempo. Nesses termos, as sociedades civis são compreendidas como construções politicamente contingenciais e radicalmente relacionais:

[...] não devido a seus atores serem criaturas dos atores políticos tradicionais e sequer por estarem subordinados aos seus ditames, mas porque o Estado e as instituições políticas, de um lado, e os atores da sociedade civil e os cidadãos, de outro, são mutuamente constitutivos (...). A recíproca constituição entre "Estado" e "sociedade", ou entre instituições políticas e atores societários, ocorre mediante processos que, ao longo do tempo - e no mesmo movimento -, vão moldando e vão sendo moldados pelas diferentes instituições políticas existentes (Gurza Lavalle; Houtzager; Castello, 2011, p. 187).

Por essa perspectiva, a ideia de autonomia não pode ser compreendida como relação indireta ou não relação com o Estado, nem mesmo em contextos não democráticos; ainda que a ideia de autonomia tenha sido assumida como uma categoria política durante os anos 1970 e 1980, quer seja pelos agentes societários, quer seja pelos analistas, para se pensar a ação e a própria existência em um contexto de luta contra regimes autoritários (Cf. Gurza Lavalle; Szwako, 2015Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
). Ou seja, as interações socioestatais não são inerentes aos contextos democráticos.

Este é o caso, por exemplo, do movimento sanitarista brasileiro. Como destaca Dowbor (2014Dowbor, M. Ocupando o Estado: análise da atuação do Movimento Sanitário nas décadas de 1970 e 1980. In: Carlos, E.; Oliveria, O. P.; Romão, W. M. (Orgs.). Sociedade civil e políticas públicas: atores e instituições no Brasil contemporâneo. Chapecó: Argos, p. 83-122, 2014. , p. 84-85; 110-118), ao longo dos anos 1970 o movimento não só buscou interações estratégicas com partidos políticos e com o Estado por meio de ações conjuntas (seminários, encontros etc.), como também optou por táticas de ocupação de cargos em governos não democráticos para levar a cabo uma política nacional de saúde. Nessa relação, conseguiu não apenas implementar um projeto de acesso universal e um sistema federativo de saúde, como conseguiu torná-lo um dever do Estado. Não é possível, portanto, deduzir que essas relações impactaram negativamente a autonomia do movimento, tampouco que afetaram negativamente seus resultados políticos.

Outro problema caro à ideia de autonomia é como mensurá-la empiricamente. Como bem observam Gurza Lavalle e Szwako (2015Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
, p. 175), por diferentes motivos, teorias podem imprimir centralidade à ideia de autonomia, como a perspectiva habermasiana, em que essa categoria não é uma reivindicação dos atores, mas uma propriedade distintiva e constitutiva do mundo da vida (normatividade), ou na tradição anarquista e autonomista, em que, sim, é uma reivindicação dos atores. Da mesma forma, é compreensível a importância a ela atribuída pelos agentes societários em sua organização e ação política. No entanto,

[...] supor que os motivos da teoria e dos atores coincidem é uma escolha sociológica e teoricamente improdutiva, que inibe a indagação empírica porque as respostas jazem prontas no plano da teoria, e poupa o esforço conceitual de especificar as mediações que conectam as práticas dos atores significadas pelos usos nativos da noção de "autonomia" com as definições substantivas e abstratas da teoria ( Gurza Lavalle; Szwako, 2015Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
, p. 175).

Ao contrário de um argumento teórico-normativo ou de uma rápida aceitação dos analistas como categoria nativa dos sujeitos sem maiores reflexões, a análise da autonomia deve ser relacional e contextual, visto que "demanda o exame das situações em que ela é invocada por diferentes atores, de modo a desvendar os sentidos atualizados por tal invocação perante diferentes interlocutores" ( Gurza Lavalle; Szwako, 2015Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
, p. 170).

Assim como a atribuição de um fundamento último do estatuto político da sociedade civil é um entrave ontoepistemológico com implicações diretas sobre a análise empírica, o pressuposto voluntarista , referente à espontaneidade da formação da vontade pública e das organizações civis no mundo da vida, é um entrave à interpretação das interações socioestatais na análise da própria constituição da sociedade civil, visto que oculta os efeitos e as ligações ( Houtzager, 2004Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. ; Jessop, 1982Jessop, B. The capitalist state: marxist theories and methods. Oxford: Martin Robertson & Company, 1982. ) que, de forma coconstitutiva, estruturam, ainda que de maneira não intencional, as esferas societária e institucional. Da mesma forma que o argumento estadocêntrico falha ao conferir uma mistificação da autonomia do Estado, percebendo-o acima e fora da sociedade, o argumento relacionista da Perspectiva da Sociedade Civil falha ao neutralizá-la e imprimir uma perspectiva voluntarista para explicação do surgimento das organizações civis.

O argumento da mútua constituição, ao colocar em questão as fronteiras (teóricas) entre Estado e sociedade, conduz à suspeição de qualquer pressuposto voluntarista. Isso não significa, como também observam Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2011), que as organizações civis sejam simples produtos da ação da esfera político-institucional, um artefato que pode ser facilmente criado ou modelado pela ação estatal. Ainda que assim fossem, como bem observa Hirst (1995Hirst, P. Q. Can secondary associations enhance democratic governance? In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 101-113, 1995. , p. 103) em sua crítica à concepção de artefactualidade das associações na perspectiva da Democracia Associativa em Cohen e Rogers (1995)Cohen J.; Rogers, J. Secondary associations and democratic governance. In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 7-98, 1995. , "as associações e organizações 'artefactualmente' criadas por políticas públicas podem ser notavelmente resistentes às mudanças deliberadas e à ativa reestruturação política". Ou seja, ainda que fossem criadas, nada poderia determinar as mudanças subsequentes.

Além disso, uma vez aceito o caráter de artefactualidade, haveria uma perda da dimensão de agência e inventividade dos agentes e das organizações sociais e, assim, o não questionamento da legitimidade do Estado na produção ou indução de modificação das organizações sociais no sentido de obter um suposto bem comum. Isso torna pertinente a indagação de Hirst (1995Hirst, P. Q. Can secondary associations enhance democratic governance? In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 101-113, 1995. , p. 106): "Como as agências estatais podem adquirir competência, neutralidade e legitimidade para desempenhar essa função?"

Para exercerem essa função criadora de forma intencional, a agência institucional deveria gozar de uma autonomia absoluta , uma condição não realizável haja vista que o Estado - como um agente dotado de poderes causais tendenciais e, simultaneamente, um campo resultante da condensação institucional e discursivamente mediada das relações e das mudanças de equilíbrio político entre agentes societários em uma dada sociedade - não está imune às contradições sociais e lutas políticas ( Poulantzas, 2015Poulantzas, N. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz & Terra, 2015 [1978]. [1978]; Jessop, 2001Jessop, B. "Bringing the state back in (yet again): reviews, revisions, rejections, and redirections'", International Review of Sociology, Roma, vol. 11, nº 2, p. 149-173, 2001. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/03906700020056029>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1080/0390670002005602...
, 2008Jessop, B. State power. A Strategic-Relational Approach. Cambridge: Polity Press, 2008. ). Assim como Hirst (1995)Hirst, P. Q. Can secondary associations enhance democratic governance? In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 101-113, 1995. , não discordo dos efeitos da ação estatal (efeitos institucionais) sobre a formação e articulação das organizações. Contudo, como Hirst, não estou a argumentar que o Estado crie organizações a partir de um ato político formador. O argumento é sensivelmente diferente: "A criação de associações pela agência estatal só poderá funcionar se houver a existência de focos de solidariedade de grupo quase construído [ quasi-constructed ] e quase político [ quasi-political ]" ( Hirst, 1995Hirst, P. Q. Can secondary associations enhance democratic governance? In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 101-113, 1995. , p. 107, acréscimos meus).

Isso significa que a ação estatal pode estruturar parcerias diretas com as organizações ou estabelecer relações de cooperação de forma indireta, fornecendo recursos materiais e simbólicos suficientes para que as organizações societárias aprimorem suas capacidades de ação, organização e mobilização, atuando, dessa forma, como "incubadores institucionais" ( Houtzager, 2004Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004. ). Por esse ângulo, não há discordâncias com relação ao fato de que a ação do Estado certamente também esteja relacionada à formação de organizações. Todavia, não sustento que esse processo ocorra por meio de um argumento de ato político formador. Como destaca Hirst (1995Hirst, P. Q. Can secondary associations enhance democratic governance? In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 101-113, 1995. , p. 112, acréscimo meu), se, por um lado, "não precisamos aceitar essa tradição [tese da artefactualidade] de maneira não-crítica", por outro, não devemos "acreditar que as associações sejam simplesmente consequências espontâneas da vida social". Por isso a importância de uma abordagem relacional atenta à mútua constituição entre as esferas societária e estatal.

Revisitar o conceito de sociedade, almejando uma abordagem radicalmente relacional e, portanto, não essencialista acerca das relações entre sociedade civil e Estado, é pertinente para a percepção do quão importante são as relações para uma melhor compreensão da ação coletiva e/ou da consideração das possibilidades de geração de ativismo a partir das interações com ou a partir do interior do próprio Estado. Estes são pontos que abordarei próxima seção.

Para além das fronteiras: o ativismo como envolvimento crítico com as instituições

Pensar para além das fronteiras ontoepistemológicas da sociedade civil também exige uma crítica à inadequada compreensão de uma ação "política institucionalizada", que seria própria de organizações e grupos políticos, e uma ação "política não-institucionalizada", antevista como inerente aos agentes societários (Cf. Goldstone, 2003Goldstone, J. A. Bridging institucionalized and noninstitucionalized politics. In: Goldstone, J. A. (Org.). States, parties and social movements. Cambridg: Cambridg Univerity Press, p. 1-24, 2003. ; Banaszak, 2005Banaszak, L. A. Inside and outside the state: movement insider status, tactics, and public policy achievements. In: Meyer, D. S. (Ed.). Routing the opposition: social movements, public policy, and democracy. Minneapolis, MN, USA: University of Minnesota Press, p. 149-176, 2005. ; Abers, Von Bülow, 2011; Pettinicchio, 2012Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
; Cayres, 2017Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
). Contra essa leitura relacionista e fronteiriça, e indicando o argumento da mútua constituição, análises recentes têm refletido teoricamente e demonstrado, a partir de estudos empíricos, que a ação política dos agentes societários não é extrainstitucional e tampouco que a ação junto às instituições necessariamente represente um processo de cooptação ou o consequente abandono de práticas políticas contenciosas de protestos21 21 Entre os trabalhos nessa temática, destaco os seguintes: Silva (2006) , Abers e Von Bülow (2011) , Abers, Serafim e Tatagiba (2014), Gurza Lavalle e Szwako (2015) , Carlos (2015) , Carlos, Dowbor e Albuquerque (2017), Tatagiba, Abers e Silva (2018) e Gurza Lavalle et al. (2019) . . De uma forma geral, a literatura sobre as interações socioestatais tem demonstrado que, longe de uma negação das instituições ou de uma ação autolimitante no sentido atribuído pela Perspectiva da Sociedade Civil, a ação dos agentes societários junto à esfera institucional ocorre por meios estruturais visando modificar os mecanismos estratégico-seletivos estatais em prol de suas agendas e demandas políticas.

Em um nível micro de análise, a literatura tem mobilizado esforços para compreender (I) a ação dos sujeitos no interior das instituições, sejam eles servidores efetivos ou políticos eleitos, sejam ativistas que ingressaram no Estado; (II) os limites e as possibilidades da agência desses sujeitos na promoção de mudanças institucionais; (III) as relações entre os sujeitos que atuam a partir de dentro do Estado com os sujeitos e as organizações de fora do Estado; (IV) e os efeitos múltiplos dessa interseção Estado-movimento nas políticas públicas e nas próprias organizações societárias. Nesse debate das interações socioestatais, o conceito de ativismo institucional , ou termos correlatos que também indicam a ação de ativistas a partir das estruturas estatais, passou a ganhar considerável destaque.

Além de sua relevância teórica e analítica, cujo lastro conceitual se encontra nos anos 199022 22 No Brasil, por exemplo, Ann Mische (1997) utiliza o termo militância múltipla na análise sobre ações dos militantes do Movimento Estudantil brasileiro, indicando a ação política simultânea de sujeitos no movimento, nos partidos políticos, nos grupos de igreja e em outros movimentos e organizações. Para uma revisão da literatura internacional sobre estudos da década de 1990 que indicam esse tipo ação movimento-Estado, conferir Pettinicchio (2012) e Cayres (2017) . , o destaque do conceito também pode ser refletido considerando a flexibilidade que tem ganhado em pesquisas recentes. Essa flexibilidade, segundo Pettinicchio (2012Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
, p. 501), promove diferentes variações para discutir a presença e a ação de indivíduos "que afetam a mudança (desde a mudança das normas organizacionais até a reforma das políticas) de dentro das organizações e instituições". O próprio autor ( Ibid ., p. 503) insere diferentes formas de ação junto às instituições no conceito de ativismo institucional , inclusive "de presidentes a juízes da Suprema Corte", quando estes agem de forma específica em relação a alguma política social.

Outros estudos de referência sobre o conceito, como Banaszak (2005)Banaszak, L. A. Inside and outside the state: movement insider status, tactics, and public policy achievements. In: Meyer, D. S. (Ed.). Routing the opposition: social movements, public policy, and democracy. Minneapolis, MN, USA: University of Minnesota Press, p. 149-176, 2005. e Abers e Tatagiba (2015)Abers, R. N.; Tatagiba, L. Institutional activism: mobilizing for women's health from inside the bureaucracy. In: Rossi, F. M.; Von Büllow, M. (Eds.). Social movement dynamics: new perspective on theory and research from Latin America. Farnham: Ashgate, 2015, p. 73-101. , ambos voltados ao ativismo feminista no interior das instituições, parecem indicar maior esforço na precisão analítica do conceito. Respectivamente, as autoras analisam o ativismo de sujeitos que se autoidentificam como pertencentes a movimentos sociais, ainda que na qualidade de "colaboradores ocasionais", e sujeitos com trajetórias militantes em organizações de movimentos sociais que passam a atuar a partir do interior da estrutura estatal. Ou seja, consideram como ativista institucional aqueles sujeitos oriundos de organizações societárias que também passaram a atuar institucionalmente, ainda que essa origem não signifique um pertencimento formal - essa é a leitura que estou a fazer do conceito de ativista institucional pensando o envolvimento dos sujeitos com as instituições: aqueles sujeitos formal ou informalmente vinculados às organizações societárias que passam a atuar simultaneamente nas instituições.

Ao refletir sobre esse envolvimento com as instituições, não busco uma revisão do conceito e sim um diálogo que parte da observação de sua demasiada flexibilidade e dos possíveis problemas decorrentes, como a possibilidade de que toda ação em prol das demandas societárias a partir do Estado seja considerada como ativismo institucional , o que pode esvaziar o conceito de sua potência, bem como a necessidade da inserção de algumas considerações sobre o tipo de sujeito sociológico dessa multiposicionalidade (interseção movimento-Estado). Almejo, assim, uma distinção analítica entre os ativistas institucionais e os atores estratégicos , estes compreendidos como atores institucionais que, por diferentes motivos, atuam em sincronia com as agendas e demandas políticas das organizações societárias. Ambos os tipos de ação evidenciam a ação estratégico-reflexiva multiposicionada dos sujeitos. Com esse movimento, também busco um olhar para além de um possível dualismo que limitaria a leitura da multiposicionalidade como uma simples mudança de posição estrutural operada pelos sujeitos, bem como para além da ideia de uma ação estratégico-pragmática pensada como resultado de uma análise do custo-benefício para a ação, ou de uma interação necessariamente mediada pelo pertencimento formal a organizações civis ou pelo pertencimento partidário, ainda que muitos ativistas institucionais dependam da mediação político-partidária para ingressar na burocracia (Cf. Cayres, 2017Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
).

Ação estratégico-reflexiva multiposicionada: algumas contribuições para a compreensão do ativismo multiposicionado

Na busca pela implementação de agendas, visando à promoção de mudanças institucionais ou, ainda, na tentativa de criação de espaços na estrutura institucional, compreendo, a partir de Mouffe (2014)Mouffe, C. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. , que os agentes societários, individuais ou coletivos, orientam a sua ação por meio do envolvimento crítico com as instituições - indo muito além das limitadas concepções relacionistas entre as esferas institucional e societária e de argumentos que percebem a ação coletiva como uma ação necessariamente extrainstitucional. Esse tipo de envolvimento discutido por Mouffe, ao contrário de uma ação indireta (influência), contra ou negando as instituições, evidencia uma estratégia de combinação de "luta parlamentar e extraparlamentar em uma batalha comum para transformar a configuração de poder dentro do marco institucional ( Ibid ., p, 87)23 23 Na versão em inglês da obra de Mouffe (2014) , o termo que se refere ao envolvimento dos sujeitos com as instituições surge como "strategy of 'engagement with'". A tradução para o Português, sem uma devida problematização, poderia indicar o sentido do uso comum do termo engajamento . Por exemplo, quando se fala que alguém é engajado, pode-se entender que há um compromisso orgânico e militante com algo, ou envolvimento com defesa. Já na obra em espanhol, o que se entende como engagement with surge como involucramiento crítico . Considerando o sentido comum do termo engajamento , compreendo que há diferenças semânticas entre engajamento e envolvimento crítico. Considerando o pensamento político mais amplo de Mouffe, e essa obra em específico, não parece haver dúvidas de que a autora não está a defender um simples "engajamento nas ou com as instituições", algo que se possa ler como uma "defesa das instituições". Influenciada pela leitura gramsciana, a discussão indica, ao contrário, uma luta pela transformação das instituições, encarando a política institucional como espaço de e em disputa. ".

Influenciada pela noção de guerra de posições em Gramsci, a grande questão na sustentação do argumento de envolvimento crítico com as instituições é a percepção de Mouffe sobre as instituições como espaços fraturados e marcados pela disputa pelo poder político. Além disso, e mais importante do ponto de vista ontoepistemológico, Mouffe partilha a compreensão da impossibilidade de dissociação entre o político e a política . Contra o que a autora denomina de ação política do "êxodo institucional", a qual "pressupõe uma retirada do Estado e das instituições políticas tradicionais e uma rejeição à democracia representativa" ( Mouffe, 2014Mouffe, C. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. , p. 19) como única forma possível de luta por mudanças estruturais, o envolvimento crítico ressalta a importância de uma política democrática "consistente com uma diversidade de ações em uma multiplicidade de âmbitos institucionais", o que "inclui uma multiplicidade de ações contra-hegemônicas com o objetivo de alcançar uma transformação profunda das instituições existentes, e não a deserção" ( Ibid ., 2014, p. 19).

Esse tipo de envolvimento, que, de alguma forma, também está presente nas discussões sobre o ativismo institucional , pode ser mais bem compreendido se o sujeito sociológico dessa ação estiver claramente apresentado. Parto da compreensão de que esse sujeito, um sujeito imerso nas interações com as estruturas, não pode nem ser reduzido a mero intermediário das estruturas, nem elevado à qualidade de "Super-Sujeitos" em relação a essas organizações. Corroborando Donati (2019)Donati, P. Sociología relacional de lo humano. UNSA. Ediciones Universidad de Navarra: Navarra, 2019. , percebo o sujeito e as estruturas pela ótica da relacionalidade do social (sujeitos e estruturas como relação). Por essa perspectiva, o sujeito passa a ser compreendido como um agente estratégico e relacionalmente reflexivo, "que volta a si mesmo ao colocar-se em relação com o contexto social" ( Donati, 2019Donati, P. Sociología relacional de lo humano. UNSA. Ediciones Universidad de Navarra: Navarra, 2019. , p. 140), sendo capaz de "refletir sobre as estruturas sociais e modificá-las com certa intencionalidade" ( Ibid ., p. 21), ainda que não seja o "Sujeito" dos fatores que fundamentam por si só a dinâmica social.

Assim, envolvendo relacionalmente o sujeito e o social, compreendo que esse último, e suas formas/instituições, não é imediatamente humano no sentido de ser uma correspondência direta da agência do sujeito a partir de suas orientações puramente subjetivo-reflexivas - não se pode operar uma redução do real ao atual. O social é algo de emergências de relações sujeitos-estruturas. Embora necessariamente envolva elementos que constituem o humano (biológicos, afetivos, cognitivos e simbólicos), também envolve as estruturas, considerando a "atuação estrutural" sobre os sujeitos a partir de diferentes formas de interações e interpelações sujeitos-estruturais ( e.g . relações em torno do Estado, da família, da moral, da ideologia, da religião etc.). O conhecimento dos sujeitos não exaure, portanto, a realidade, o que seria uma falácia antropocêntrica (redução em termos puramente humanos24 24 Cf. Curry (2000) . ) considerando que os "objetos do mundo" existem independentemente das concepções que os observadores fazem deles. Já a estrutura, embora dotada de poderes causais, isto é, "capacidade de se comportarem de formas particulares e tendências causais [capacidade gerativa/ativa]", o que indica uma especificidade própria em relação à agência dos sujeitos, também é susceptível "a certas formas de mudança" ( Sayer, 2000Sayer, A. “Características chave do realismo crítico na prática: um breve resumo”. Estudos de Sociologia, vol. 6, nº 2, p. 7-32, 2000. Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/view/235465>. Acesso em: 25 jul. 2021.
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revs...
, p. 09, acréscimo meu). O que se percebe, desse modo, é uma relação de mútua constituição entre agência e estrutura.

O envolvimento com as instituições, nesses termos, reflete um agir estratégico e relacionalmente reflexivo dos sujeitos sobre a sua ação, sobre as relações com os demais agentes (societários e institucionais), sobre o conhecimento acerca da configuração estatal e do que pode significar, em termos políticos mais amplos, a estruturação de relações com a esfera institucional. O envolvimento crítico, dessa forma, não deve ser lido apenas como uma ação pragmática, estratégica do ponto de vista do cálculo de custo-benefício para a ação. Não se trata simplesmente de uma estratégia ou tática entre "agir institucionalmente" ou "agir de forma extrainstitucional". Trata-se de uma ação estratégico-reflexiva multiposicionada dos sujeitos.

Essa ação, seja de um ativista institucional ou de um ator estratégico, só ocorre porque os sujeitos estão mais ou menos cientes tanto da realidade institucional do Estado com a qual se deparam, uma estrutura policêntrica e seletivamente orientada, quanto da relevância da ocupação de posições nessa estrutura para a promoção de determinadas demandas políticas. A multiposicionalidade , portanto, indica uma reflexividade tipicamente moderna sobre as ações dos sujeitos e sobre o seu conhecimento acerca do funcionamento da esfera institucional. Isso indica que, embora produzido a partir de diferentes referências observacionais (científicas, religiosas, senso comum etc.), os sujeitos têm certo conhecimento da realidade institucional com a qual se deparam e se relacionam cotidianamente, ainda que em níveis e intensidades diferentes. Ou seja, em alguma medida, estão cientes das (inter)ações envolvendo a esfera institucional e os diferentes sujeitos, grupos de interesses, classes etc. Isso auxilia a compreensão, por exemplo, das diversas formas e discursos que evidenciam o envolvimento de grupos sociais, culturais e religiosos discrepantes entre si com a vida social e política nacional. Com Giddens (2012Giddens, A. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: Giddens, A.; Lash, S.; Beck, U. (Orgs.). Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora Unesp, p. 89-166, 2012. , p. 144) compartilho a compreensão de que vivemos em uma época em que "a população em geral tornou-se mais intimamente ligada aos sistemas de integração que perpassam o âmbito da comunidade local", tornando-se mais ou menos conscientes sobre a relação entre o político e a política e suas possíveis implicações, ainda que tenham uma falsa representação sobre elas.

São nesses termos que compreendo o ativismo nas e a partir das instituições como uma ação estratégico-reflexiva marcada pelo trânsito dos sujeitos entre as organizações civis (movimentos sociais, ONG's, coletivos, associações religiosas etc.) e a esfera estatal, evidenciando a multiposicionalidade . Sendo um movimento duplo, significa que não se trata apenas de uma mudança estratégica de posição dos sujeitos, um deslocamento da esfera societária para o interior da estrutura, ou um mero recurso para as organizações societárias, que passariam a contar com um ativista no interior das instituições para o sucesso de suas ações. O sujeito é um ativista institucional quando passa a agir também a partir do interior da esfera institucional com o objetivo de inserir, na estrutura, os projetos e as demandas societárias com as quais compartilha significados, sejam eles progressistas ou conservadores.

Para se evitar uma ampliação demasiada dos seus significados, o que pode levar à perda da capacidade analítica, compreendo que esse tipo de ativismo pode ser analiticamente diferenciado dos atores estratégicos, os quais também agem a partir do interior das instituições compartilhando significados com as organizações societárias. Em termos analíticos, esses podem ser compreendidos como aqueles sujeitos que são parte do quadro institucional (seja servidor efetivo ou não), que possuem recursos institucionais e acesso aos espaços e aos momentos de decisão política, tais como os burocratas de carreira, consultores políticos ou mesmo políticos eleitos25 25 Não estou a considerar, portanto, a inclusão de burocratas individuais, como juízes de uma Suprema Corte, que, por diferentes motivos, passam a agir em conformidade com as demandas de organizações societárias, como um ativista institucional, como procede Pettinicchio (2012) e como parece fazer Abers (2015) - conferir a crítica de Cayres (2017 , p. 92-93). .

O fato de ser cargo comissionado ou de ser um servidor efetivo não seria suficiente para determinar a diferenciação entre ativista institucional e ator estratégico. A questão dos cargos comissionados passa pela indicação política. No entanto, não necessariamente envolve o pertencimento formal a organizações partidárias. A indicação pode abarcar, por exemplo, aderências ideológicas ou sincronia com o projeto político-administrativo do gestor/político que fez a indicação, reconhecendo a trajetória profissional do indicado no setor para o qual foi designado. Pode acontecer, também, que um sujeito com considerável expertise em um campo de políticas públicas passe a ser recorrentemente convidado a integrar diferentes governos ideologicamente próximos ou de uma mesma coalizão governamental - esse sujeito pode não necessariamente pertencer ao mesmo partido político ou a uma organização societária específica26 26 O que poderia ser questionado seria a dimensão temporal para se pensar a ação do sujeito que ocupa um cargo comissionado quando comparado a um servidor de carreira. Como destaca Cayres (2017) , o fato de o servidor dispor de tempo de carreira pode impactar, por exemplo, suas formas de ação e de relação com as pressões sociais. O comissionado teria um tempo menor para planejar e agir e sentiria mais as pressões das organizações societárias e do partido que mediou sua inserção institucional. Além disso, estaria mais suscetível às mudanças político-eleitorais de curto prazo. . Considero esse sujeito como um ator estratégico, do ponto de vista das organizações societárias, quando, de forma multiposicionada, passa a agir a partir de articulações discursivas com as organizações e redes societárias, não necessariamente integrando-as.

Esses sujeitos são estratégicos, portanto, porque a sua ação pode criar novas estruturas de oportunidades políticas para os atores societários. Como destaca Pettinicchio (2012Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
27 27 Vale destacar que Pettinicchio não opera uma adequada distinção entre ativistas institucionais e atores estratégicos nos termos aqui apresentados. ), devido às trajetórias individuais, às aderências ideológicas, às alianças circunstanciais com atores societários ou mesmo devido à projeção profissional e/ou política, sendo parte do quadro institucional e tendo um contexto estratégico-relacional favorável, esses sujeitos podem agir em consonância com as demandas dos agentes societários que não possuem os mesmos recursos, buscando influenciar o processo de formulação e implementação de políticas públicas, por exemplo. Assim como os ativistas institucionais, os atores estratégicos podem, inclusive, encorajar os ativistas a protestos como forma de tentar inserir uma agenda no debate político junto ao governo, no debate público, ou, ainda, contornar obstáculos institucionais que estejam dificultando a sua ação (Cf. Banaszak, 2005Banaszak, L. A. Inside and outside the state: movement insider status, tactics, and public policy achievements. In: Meyer, D. S. (Ed.). Routing the opposition: social movements, public policy, and democracy. Minneapolis, MN, USA: University of Minnesota Press, p. 149-176, 2005. ; Pettinicchio, 2012Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
).

Sendo uma ação estratégico-reflexiva, a qual envolve a dimensão relacional, a compreensão desse tipo de ação não pode se limitar ao individualismo do sujeito, por isso o destaque para o contexto estratégico-relacional na análise do envolvimento com as instituições. Isto é, faz-se necessário considerar tanto as relações que se estruturam em um determinado contexto (condições estruturais e temporais) como a ação dos sujeitos em sua dimensão reflexiva e criativa (intencionalidade e reflexividade) na relação com os demais.

Isso porque, embora os sujeitos sejam, antes de tudo, sujeitos-humanos, com propósitos e dotados de intencionalidade ( Garro-Gil, 2017Garro-Gil, N. “Relación, razón relacional y reflexividad: tres conceptos fundamentales de la sociologia relacional”. Revista Mexicana de Sociología, vol. 79, nº 3, p. 633-660, 2017. Disponível em: < https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/0188-2503-rms-79-03-00633.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/...
), são constituídos por e a partir de diferentes relações espaço-temporalmente situadas. Nesses termos, a autorrealização do sujeito ocorre por meio das relações com os demais e com o próprio contexto político, econômico e cultural (sujeito-estrutura). Ainda que se aceitasse que o sucesso da ação institucional, isto é, a promoção de mudanças "(desde a mudança das normas organizacionais até a reforma das políticas) de dentro das organizações e instituições" ( Pettinicchio, 2012Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
, p. 501) integre o conceito de ação multiposicionada, compreendo que atores estratégicos e ativistas institucionais só podem ser compreendidos como agentes em potencial , o que indica que nem sempre encontrarão as condições de possibilidades para a sua realização enquanto tal.

De um ponto de vista relacional, isso significa que eles podem estar posicionados no âmbito institucional, mas dependentes da construção de relações e de um contexto estratégico-relacional que facilite a sua agência. Por isso, essa noção não deve ser reduzida a uma ideia de posição estrutural, mas considerada em termos estratégico-relacionais. É nesse exato sentido que compreendo o argumento de Banaszak (2005Banaszak, L. A. Inside and outside the state: movement insider status, tactics, and public policy achievements. In: Meyer, D. S. (Ed.). Routing the opposition: social movements, public policy, and democracy. Minneapolis, MN, USA: University of Minnesota Press, p. 149-176, 2005. , p. 155-156) sobre o fato de que os movimentos podem ser outsiders mesmo estando no interior da esfera institucional, pois "mesmo ocupando cargos no Estado, eles podem ter pouca ou nenhuma capacidade de influenciar as ações políticas". Nesse mesmo sentido e corroborando Abers e Tatagiba (2015Abers, R. N.; Tatagiba, L. Institutional activism: mobilizing for women's health from inside the bureaucracy. In: Rossi, F. M.; Von Büllow, M. (Eds.). Social movement dynamics: new perspective on theory and research from Latin America. Farnham: Ashgate, 2015, p. 73-101. , p. 73-74; 94), a ação dos ativistas no interior das instituições (I) pode "não ser heroica e nem radicalmente transformadora", indicando, ao contrário, "um esforço diário de experimentação e resolução de problemas, cujos resultados nem sempre são imediatamente perceptíveis", e que (II) os "ativistas institucionais tendem a ter mais flexibilidade quando seus projetos coincidem com os de seus superiores, situação que pode oscilar com o tempo, dependendo da dinâmica política e partidária mais ampla", destacando que é essa sincronia de projetos que cria, "para a ativista institucional, uma oportunidade de avançar seus objetivos".

Não se trata de uma recusa radical da ação individual. Não estou a desconsiderar a existência de uma "esfera mental interior" dos sujeitos (Archer apud Garro-Gil, 2017Garro-Gil, N. “Relación, razón relacional y reflexividad: tres conceptos fundamentales de la sociologia relacional”. Revista Mexicana de Sociología, vol. 79, nº 3, p. 633-660, 2017. Disponível em: < https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/0188-2503-rms-79-03-00633.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/...
). No entanto, a ação social é culturalmente mediada, o que significa que a reflexividade do sujeito "tem uma manifestação pública", sendo, em sua radicalidade, relacional ( Garro-Gil, 2017Garro-Gil, N. “Relación, razón relacional y reflexividad: tres conceptos fundamentales de la sociologia relacional”. Revista Mexicana de Sociología, vol. 79, nº 3, p. 633-660, 2017. Disponível em: < https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/0188-2503-rms-79-03-00633.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/...
, p. 649). Entendo, dessa forma, que atores estratégicos e/ou ativistas institucionais não surgem espontaneamente ou por uma "intencionalidade pura" do sujeito, mas das situações estratégico-relacionais envolvendo os demais sujeitos e a estrutura. Por isso são agentes em potencial . Como tal, não devem ser analisados exclusivamente a partir de atributos próprios, como o carisma ou trajetórias de vida, nem por meio de uma abordagem estratégico-pragmática ou simplesmente reduzidos a uma posição estrutural. A análise deve considerar, antes, as relações nas quais os sujeitos estão inseridos, o que poderá indicar suas reais capacidades/facilitações de ação, sem dissociar a dimensão reflexiva.

Assim concebidas, as ideias de ativismo institucional e atores estratégicos podem contribuir nos esforços sobre a compreensão da ação dos diferentes sujeitos também no interior das estruturas. Além disso, destaca a necessidade da análise da configuração desse tipo de ativismo, o que exige um olhar para o contexto estratégico-relacional no qual estão inseridos os agentes e não apenas para a ação individual(ista). Certamente há outros desafios nessa análise. Embora a discussão sobre o ativismo a partir das instituições já tenha uma trajetória de pesquisa de cerca de duas décadas, ainda há questões a serem aprofundadas. Como destaca Cayres (2017Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
, p. 97-98), é necessário avançar sobre o perfil dos ativistas que fazem o trânsito institucional, a forma de recrutamento e de legitimação desses sujeitos nas organizações societárias, os possíveis impactos desse tipo de ativismo na trajetória e percepção dos próprios ativistas e os efeitos desse ativismo para as organizações societárias. Esses pontos, no entanto, escapam às possibilidades deste artigo.

Considerações finais

Ao discutir o conceito de sociedade civil de tradição habermasiana a partir de uma abordagem relacional, enfoquei uma perspectiva epistemológica diferente da Perspectiva da Sociedade Civil para analisar os processos de interações socioestatais. Nesse percurso, foi possível perceber que a referida tradição se mostra um modelo conceitual limitado, considerando que não concebe a mútua constituição entre a política e o político , o que a faz conferir à sociedade civil uma estrutura autorreflexiva e despolitizada, bem como tende a evidenciar certo otimismo na admissão de uma associação normativa entre sociedade civil e democracia.

Contra a despolitização é necessário (re)pensar o conceito de sociedade civil a partir da relacionalidade do social e da compreensão como um fenômeno emergente politicamente construído. Isso exige a reinserção do político em seu seio a partir da consideração da mútua constituição com a política . Esse movimento necessariamente coloca em suspeição a possibilidade de um fundamento último e a associação normativa entre sociedade civil e democracia.

Já no que se refere ao relacionismo discutido a partir da ideia de "política de influência", contra essa leitura, é preciso considerar que a ações dos agentes societários orientadas à esfera estatal, ainda que não tenham por objetivo uma "revolução estrutural", são mais estruturantes e proativas do que supõe a ideia de "influência", "autolimitação" e "ação defensiva" da sociedade civil contra as lógicas sistêmicas e suas tendências à "colonização do mundo da vida". Embora Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 589-593; 608-615) apropriadamente critiquem o suposto caráter "defensivo" e/ou puramente reativo da sociedade civil, a dimensão proativa que conferem a essa sociedade segue restrita à "política de influência" e à ação na sociedade civil voltada para a sua própria institucionalização e democratização por meio da criação de novas identidades, novos espaços públicos e novas formas associativas igualitárias e autônomas - por isso um modelo autorreflexivo. No entanto, é preciso destacar, como argumentam Dagnino (2002Dagnino, E. Sociedad civil, espacios públicos y construcción democrática en Brasil: límites y posibilidades. In: Dagnino, E. (Coord.). Sociedad civil, esfera pública y democratización en América Latina: Brasil. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, p. 369-395, 2002. , p. 372-378) e Gurza Lavalle (2011)Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
, que os agentes societários também buscam a "partilha efetiva do poder", levando-os a assumirem funções institucionais nos processos de desenhos, implementação e avaliação de políticas públicas e de programas do Estado segundo seus interesses políticos e ideológicos.

Ao tecermos essas críticas, busquei realçar as ligações estruturais entre a sociedade civil e a esfera estatal. Nesse processo, vislumbrei uma "(re)politização" tanto da política como da sociedade civil, sem perder de vistas, como destaca Gurza Lavalle (2011Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
, p. 8), que o estatuto político da sociedade civil é contextual e se constitui não como um problema teórico, e sim como um problema de natureza empírica.

Essas críticas, ao desconstruírem as densas fronteiras teórico-normativas entre esfera societária e institucional, também exigiram uma reflexão sobre o envolvimento dos sujeitos, individuais e coletivos, com as instituições. Sem o objetivo de contemplar toda a literatura que tem desenvolvido reflexões teóricas e estudos empíricos sobre o ativismo junto à esfera institucional, busquei trazer contribuições que possam ajudar a refletir sobre o sujeito e o tipo de ação e sobre a distinção analítica entre o ativista institucional e os atores estratégicos.

Referências bibliográficas

  • Abers, R. N. Ativismo na burocracia? O médio escalão do Programa Bolsa Verde. In: Cavalcante, P. L. C.; Lotta, G. S. (Orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: ENAP, p. 143-175, 2015. Disponível em: < https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/2063/2/Burocratas%20de%20m%C3%A9dio%20escal%C3%A3o.pdf >. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/2063/2/Burocratas%20de%20m%C3%A9dio%20escal%C3%A3o.pdf
  • Abers, R. N.; Serafim, L.; Tatagiba, L. “Repertórios de Interação Estado-Sociedade em um Estado Heterogêneo: A Experiência na Era Lula”. Dados, vol. 57, nº 2, p. 325-57, 2014. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/0011-5258201411>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/0011-5258201411
  • Abers, R. N.; Silva, M. K.; Tatagiba, L. “Movimentos sociais e políticas públicas: repensando atores e oportunidades políticas”. Lua Nova, nº 105, p. 15-46, 2018. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/0102-015046/105 >. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/0102-015046/105
  • Abers, R. N.; Tatagiba, L. Institutional activism: mobilizing for women's health from inside the bureaucracy. In: Rossi, F. M.; Von Büllow, M. (Eds.). Social movement dynamics: new perspective on theory and research from Latin America. Farnham: Ashgate, 2015, p. 73-101.
  • Abers, R. N.; Von Bülow, M. “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?”. Sociologias, nº 13, p. 52-84, 2011. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300004>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300004
  • Avritzer, L. Teoria democrática, racionalidade e participação: uma crítica habermasiana ao elitismo democrático. In: Avritzer, L. A moralidade da democracia: ensaios em Teoria Habermasiana e Teoria Democrática. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, p. 99-123, 1996a.
  • Avritzer, L. Racionalidade, mercado e normatividade: uma crítica dos pressupostos da Teoria da Escolha Racional. In: Avritzer, L. A moralidade da democracia: ensaios em Teoria Habermasiana e Teoria Democrática. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, p. 77-98, 1996b.
  • Avritzer, L. “Teoria democrática e deliberação pública”. Lua Nova, nº 49, p. 25-46, 2000. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0102-64452000000200003>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64452000000200003
  • Ballestrin, L. M. A. “Sociedade civil, democracia e violência”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, nº 87, p. 143-163, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.17666/3087143-162/2015>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.17666/3087143-162/2015
  • Banaszak, L. A. Inside and outside the state: movement insider status, tactics, and public policy achievements. In: Meyer, D. S. (Ed.). Routing the opposition: social movements, public policy, and democracy. Minneapolis, MN, USA: University of Minnesota Press, p. 149-176, 2005.
  • Burgos, R. Sem glória, mas com certa pena: mais uma vez sobre o conceito de sociedade civil no Brasil. In: Sheherer-Warren, I.; Lüchmann, L. H. H. (Orgs.) Movimentos sociais e engajamento político: trajetórias e tendências analíticas. Florianópolis: Editora da UFSC, p. 161-233, 2015.
  • Carlos, E. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do engajamento institucional no contexto pós-transição. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
  • Carlos, E.; Oliveria, O. P.; Romão, W. M. (Orgs.). Sociedade civil e políticas públicas: atores e instituições no Brasil contemporâneo. Chapecó: Argos, 2014.
  • Carlos, E.; Dowbor, M.; Albuquerque, M. do C. “Movimentos sociais e seus efeitos nas políticas públicas: Balanço do debate e proposições analíticas”. Civitas, vol. 17, nº 2, p. 360-378, 2017. Disponível em: < https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.2.25925>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.2.25925
  • Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422
  • Cohen J.; Rogers, J. Secondary associations and democratic governance. In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 7-98, 1995.
  • Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001.
  • Curry, N. “Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico: reflexões acerca do debate Bhaskar/Laclau”. Estudos de Sociologia, vol. 2, nº 6, p. 97-116, 2000. Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/download/235469/28457>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/download/235469/28457
  • Dagnino, E. Sociedad civil, espacios públicos y construcción democrática en Brasil: límites y posibilidades. In: Dagnino, E. (Coord.). Sociedad civil, esfera pública y democratización en América Latina: Brasil. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, p. 369-395, 2002.
  • Donati, P. Sociología relacional de lo humano. UNSA. Ediciones Universidad de Navarra: Navarra, 2019.
  • Dowbor, M. Ocupando o Estado: análise da atuação do Movimento Sanitário nas décadas de 1970 e 1980. In: Carlos, E.; Oliveria, O. P.; Romão, W. M. (Orgs.). Sociedade civil e políticas públicas: atores e instituições no Brasil contemporâneo. Chapecó: Argos, p. 83-122, 2014.
  • Dowbor, M. Escapando das incertezas do jogo eleitoral: construção de encaixes e domínio de agência do movimento municipalista de saúde. In: Gurza Lavalle, A. et al. (Eds.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 89-118, 2019.
  • Fairclough, N.; Jessop, B.; Sayer, A. “Realismo crítico e semiose”. Revista Letra Capital, vol. 1, nº 1, p. 43-69, 2016. Disponível em: < https://periodicos.unb.br/index.php/lcapital/article/view/8600/7159>. Acesso em: 13 abr. 2021.
    » https://periodicos.unb.br/index.php/lcapital/article/view/8600/7159
  • Garro-Gil, N. “Relación, razón relacional y reflexividad: tres conceptos fundamentales de la sociologia relacional”. Revista Mexicana de Sociología, vol. 79, nº 3, p. 633-660, 2017. Disponível em: < https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/0188-2503-rms-79-03-00633.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://www.scielo.org.mx/pdf/rms/v79n3/0188-2503-rms-79-03-00633.pdf
  • Giddens, A. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: Giddens, A.; Lash, S.; Beck, U. (Orgs.). Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora Unesp, p. 89-166, 2012.
  • Goldstone, J. A. Bridging institucionalized and noninstitucionalized politics. In: Goldstone, J. A. (Org.). States, parties and social movements. Cambridg: Cambridg Univerity Press, p. 1-24, 2003.
  • Graeff, C. B.; Nascimento, K.; Marques, M. S. "A crítica pós-fundacionalista: um debate em construção". Norus - Novos Rumos Sociológicos, vol. 7, nº 11, p. 580-599, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.15210/norus.v7i11.17061>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.15210/norus.v7i11.17061
  • Gurza Lavalle, A. “Crítica ao modelo da nova sociedade civil”. Lua Nova, nº 47, p. 121-135, 1999. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0102-64451999000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64451999000200007
  • Gurza Lavalle, A. “Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990”. Novos Estudos, São Paulo, nº 66, p. 91-110, 2003.
  • Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo
  • Gurza Lavalle, A., et al. (Orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2019.
  • Gurza Lavalle, A.; Houtzager, P. P.; Castello, G. A construção política das sociedades civis. In: Gurza Lavalle, A. (Org.). O horizonte da política: questões emergentes e agendas de pesquisa. São Paulo: Editora Unesp, p. 185-236, 2011.
  • Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/1807-0191211157
  • Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
  • Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
  • Heidegger, M. Ontologia (hermenêutica da facticidade). 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • Hirst, P. Q. Can secondary associations enhance democratic governance? In: Wright, E. O. (Ed.). Associations and democracy. The Real Utopias Project, vol. I. London: Verso, p. 101-113, 1995.
  • Houtzager, P. P. Os últimos cidadãos. Conflito e modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo: Globo, 2004.
  • Houtzager, P. P.; Gurza Lavalle, A.; Acharya, A. Atores da sociedade civil e atores políticos: participação nas novas políticas democráticas em São Paulo. In: Avritzer, L. (Org.). Participação em São Paulo. São Paulo: UNESP, p. 257-322, 2004.
  • Jessop, B. The capitalist state: marxist theories and methods. Oxford: Martin Robertson & Company, 1982.
  • Jessop, B. "Bringing the state back in (yet again): reviews, revisions, rejections, and redirections'", International Review of Sociology, Roma, vol. 11, nº 2, p. 149-173, 2001. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/03906700020056029>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1080/03906700020056029
  • Jessop, B. State power. A Strategic-Relational Approach. Cambridge: Polity Press, 2008.
  • Keane, J. Democracia y sociedad civil. Madrid: Alianza Editorial, 1992.
  • Keane, J. A Sociedade civil: Velhas imagens e novas visões. Lisboa: Temas e Debates, 2001.
  • Lash, S. A reflexividade e seus duplos: estrutura, estética, comunidade. In: Giddens, A.; Lash, S.; Beck, U. (Orgs.). Modernização reflexiva . Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora Unesp, p. 167-258, 2012.
  • Laclau, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 2ª ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000.
  • Marchart, O. El pensamiento político posfundacional. La diferencia política en Nancy, Lefort, Badiou y Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009.
  • Marques, M. S. Cidadania: algumas considerações a partir da Democracia Radical e Plural. In: Silva, L. G. T. et al. (Orgs.). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: a obra de Ernesto Laclau a partir de abordagens empíricas e teóricas. Curitiba: CRV, 2017, p. 209-223.
  • Marques, M. S. “Status ontológico da Teoria do Discurso (TD) em Laclau e Mouffe: diálogos, perspectivas teóricas e conceitos básicos”. Dados, vol. 63, nº 2, p. 1-33, 2020. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/dados/v63n2/0011-5258-dados-63-2-e20180242.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2020.
    » https://www.scielo.br/pdf/dados/v63n2/0011-5258-dados-63-2-e20180242.pdf
  • Marques, M. S. "Em torno da ideologia - Notas sobre o falseamento da realidade". Contemporânea, Revista de Sociologia da UFSCar, vol. 11, nº 2, p. 717-734, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.4322/2316-1329.2021014>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.4322/2316-1329.2021014
  • Mische, A. “De estudantes a cidadãos: redes de jovens e participação política”. Revista Brasileira de Educação , nº 5, p. 134-150, 1997. Disponível em: < http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n05-06/n05-06a12.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n05-06/n05-06a12.pdf
  • Mouffe, C. Introdução: para um pluralismo combativo. In: Mouffe, C. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, p. 11-19, 1996a.
  • Mouffe, C. A política e os limites do liberalismo. In: Mouffe, C. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, p. 179-203, 1996b.
  • Mouffe, C. La paradoja democrática. El peligro del consenso em la política contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2012.
  • Mouffe, C. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.
  • Mouffe, C. Sobre o político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
  • Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x
  • Poulantzas, N. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz & Terra, 2015 [1978].
  • Sayer, A. “Características chave do realismo crítico na prática: um breve resumo”. Estudos de Sociologia, vol. 6, nº 2, p. 7-32, 2000. Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/view/235465>. Acesso em: 25 jul. 2021.
    » https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/view/235465
  • Silva, M. K. “Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional”. Sociologias, Porto Alegre, nº 16, p. 156-178, 2006. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007
  • 2
    Entre finais dos anos 1980 e ao longo da década de 1990, destacaram-se os esforços dos teóricos institucionalistas, como Theda Skocpol, Peter Evans e Joel Migdal, a Abordagem Estratégico-Relacional, em Jessop, e a construção das (novas) sociologias relacionais, como em Mustafa Emirbayer e Pierpaolo Donati.
  • 3
    Para informar apenas as coletâneas recentemente publicadas, destaco Gurza Lavalle (2011)Gurza Lavalle, A. O estatuto político da sociedade civil: evidências da cidade do México e de São Paulo. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 28), 2011. Disponível em: < https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/28162-o-estatuto-politico-sociedade-civil-evidencias-cidade-mexico-sao-paulo >. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://www.cepal.org/pt-br/publicacione...
    , Carlos, Oliveira e Romão (2014) e Gurza Lavalle et al. (2019)Gurza Lavalle, A., et al. (Orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2019. . Para uma leitura sobre outros contextos, conferir Goldstone (2003)Goldstone, J. A. Bridging institucionalized and noninstitucionalized politics. In: Goldstone, J. A. (Org.). States, parties and social movements. Cambridg: Cambridg Univerity Press, p. 1-24, 2003. .
  • 4
    Como destacam Houtzager, Gurza Lavalle e Acharya (2004, p. 259; 265-266; 307-308), apesar de haver diferentes preocupações normativas e teóricas em torno do conceito de sociedade civil, há elementos comuns que permitem pensá-los a partir do interior dessa mesma perspectiva, quais sejam: (i) o modelo tripartite, que introduz distinções normativas entre o Estado, o mercado e mundo da vida; (ii) a ênfase na autonomia como princípio fundante das organizações societárias; (iii) a sociedade civil como fonte de impulsos democráticos e dotada de melhor racionalidade e capacidade administrativa; e (iv) a pouca diferenciação analítica entre os atores da sociedade civil.
  • 5
    Conferir Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 53-112).
  • 6
    A construção habermasiana não é uma leitura culturalista. A noção de mundo da vida apresenta três elementos estruturantes: o cultural, a sociedade e a personalidade. Como destacam Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 482-483): "Na medida em que os atores se entendem mutuamente e estão de acordo sobre sua situação, compartilham uma tradição cultural. Na medida em que coordenam sua ação por meio de normas reconhecidas intersubjetivamente, atuam como membros de um grupo social solidário. À medida que os indivíduos crescem no interior de uma tradição cultural e participam na vida do grupo, internalizam as orientações de valor, adquirem competências de ação generalizadas e desenvolvem identidades individuais e sociais (...). Isto implica os processos reprodutivos de transmissão cultural, integração social e socialização".
  • 7
    O processo de racionalização do mundo da vida, base do agir orientado pelo entendimento, leva ao distanciamento do consenso ancorado em tradições culturais (um consenso normativo pré-moderno, convencional ), como a religião ou estruturas restritas de ordens de parentescos, e volta-se para a formação do consenso por meio da linguagem (um consenso racional e moderno, pós-convencional ) (Cf. Habermas, 2012Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. V. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012. , p. 323-333; p. 334-351; Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 487-495).
  • 8
    O pensamento fundacionalista representa uma tradição filosófica e epistêmica extensa, abrangendo diferentes orientações. Em linhas gerais, o fundacionalismo indica a presença de um fundamento auto justificado. Para essa perspectiva, o fundamento último está instituído em si mesmo e por essa razão não necessita de nenhum tipo de justificativa, servindo de argumento ou legitimação para a existência dos conhecimentos dele derivados (Cf. Marchart, 2009Marchart, O. El pensamiento político posfundacional. La diferencia política en Nancy, Lefort, Badiou y Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. ; Graeff; Nascimento; Marques, 2019).
  • 9
    Esses direitos representam o princípio organizador de uma sociedade civil moderna (Cf. Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 494-495).
  • 10
    Cumpre destacar que, para Habermas (1997Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, 2ª ed. vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. , p. 105), esse processo não corre, ou não deve ocorrer, apenas através do poder dos discursos públicos informais, a opinião pública: necessita ser legitimada. Para isso, "tem que passar antes pelo filtro dos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transformar-se em poder comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de interesses e capaz de legitimar decisões política". Para gerar um poder político, portanto, a influência da opinião pública tem que "abranger também as deliberações de instituições democráticas da formação da opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada".
  • 11
    Como destacam Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 456), "nosso conceito não está nem centrado no Estado, como o estava em Hegel - sem importar o quão ambiguamente -, nem na economia, como o estava em Marx. O nosso é um modelo centrado na sociedade".
  • 12
    Cumpre destacar que esses elementos não contemplam o amplo leque de debate "com e contra" a sociedade civil, iniciado nos anos 1990. Também poderia destacar a ideia de emergência perfeitamente datada da sociedade civil como realidade concreta. Essa leitura foi transposta para a análise do caso brasileiro, destacando que a sociedade civil nacional emergiu (tardiamente) a partir dos anos 1970. Para essa crítica, conferir Gurza Lavalle e Szwako (2015)Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
    e Burgos (2015)Burgos, R. Sem glória, mas com certa pena: mais uma vez sobre o conceito de sociedade civil no Brasil. In: Sheherer-Warren, I.; Lüchmann, L. H. H. (Orgs.) Movimentos sociais e engajamento político: trajetórias e tendências analíticas. Florianópolis: Editora da UFSC, p. 161-233, 2015. .
  • 13
    Sobre a crítica de autoritarismo na ética do discurso, conferir Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 409-422).
  • 14
    Como destaca Laclau (2000Laclau, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 2ª ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 51), a ideia de sedimentação indica um efeito de ocultamento da contingencialidade. Quando "algo" é sedimentado, "o sistema de possibilidades alternativas tende a desvanecer-se e os traços da contingência originária a apagar-se. Desse modo, o instituído tende a assumir a forma de uma mera presença objetiva. Este é o momento da sedimentação. É importante ver que esse apagar-se implica um ocultamento". A luta contra a sedimentação consiste em um esforço por reativação desse processo. A reativação , como destaca Laclau (2000Laclau, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 2ª ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 51, destaques do autor; acréscimo meu), consiste na evidenciação "através da emergência de novos antagonismos, [d]o caráter contingente da pretendida 'objetividade'". Para uma leitura desses conceitos desde as suas bases, em Husserl, e (re)interpretação de Laclau, conferir Marques (2020)Marques, M. S. “Status ontológico da Teoria do Discurso (TD) em Laclau e Mouffe: diálogos, perspectivas teóricas e conceitos básicos”. Dados, vol. 63, nº 2, p. 1-33, 2020. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/dados/v63n2/0011-5258-dados-63-2-e20180242.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2020.
    https://www.scielo.br/pdf/dados/v63n2/00...
    .
  • 15
    O pós-fundacionalismo opera um duplo deslocamento epistemológico: ao mesmo tempo em que desconstrói a existência de fundamentos estáveis/imutáveis à estrutura (lógica fundacionalista), também desconstrói o exato movimento oposto, o anti-fundacionalimo, isto é, o argumento que invalida toda possibilidade de estabelecimento de fundamentos ao jogo estrutural, uma espécie de radicalidade líquida do social que aceita a impossibilidade de totalização diante da complexidade e da abundância de fundamentos possíveis/alternativos. A crítica pós-fundacionalista, portanto, não nega a possibilidade da presença de fundamentos, e sim a impossibilidade de uma presença definitiva, estável e estabilizadora da complexidade e contingencialidade do social. Essa crítica mantém a noção de fundamento, mas na qualidade de fundamentos contingentes ou fundamentos ausentes - a noção de ausência deve ser compreendida como a não-presença definitiva (Cf. Marchart, 2009Marchart, O. El pensamiento político posfundacional. La diferencia política en Nancy, Lefort, Badiou y Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. ; Graeff; Nascimento; Marques, 2019).
  • 16
    Antes de Mouffe, Hannah Arendt já argumentara que a diferenciação de um campo social distinto do Estado foi o início de uma despolitização da sociedade (Cf. Cohen; Arato, 2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 215-236).
  • 17
    Para essa crítica, conferir também Gurza Lavalle (2003)Gurza Lavalle, A. “Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990”. Novos Estudos, São Paulo, nº 66, p. 91-110, 2003. e Silva (2006)Silva, M. K. “Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional”. Sociologias, Porto Alegre, nº 16, p. 156-178, 2006. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1590/S1517-4522200600...
    .
  • 18
    Poderia, também, elencar a questão da participação institucional para discutir o otimismo da Perspectiva da Sociedade Civil. Para essa abordagem, é relativamente fácil alcançar os arranjos institucionais de participação. Essa leitura, no entanto, oculta uma série de variáveis que, inclusive, envolvem as relações de atores individuais ou coletivos com organizações políticas e religiosas clássicas. Para essa crítica, conferir Houtzager, Gurza Lavalle e Acharya (2004).
  • 19
    Para uma leitura que rebate esse otimismo, cuja análise da ação de atores da sociedade civil destacou que estes assumiram uma posição de obstáculo às iniciativas de democratização da gestão pública, conferir Silva (2006)Silva, M. K. “Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional”. Sociologias, Porto Alegre, nº 16, p. 156-178, 2006. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1590/S1517-4522200600...
    .
  • 20
    Ao discutirem a ação dos movimentos sociais contemporâneos a partir das teses habermasianas, Cohen e Arato (2001Cohen, J. L.; Arato, A. Sociedad civil y Teoría Política . México: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 556-622) apresentam quatro tipos de lógicas de ação dos movimentos sociais. A primeira lógica seria uma "política de identidade", que pode ser compreendida como a ação orientada para a redefinição de normas culturais, identidades individuais e coletivas, mudanças dos conteúdos dos discursos etc., evidenciando uma ação pela transformação cultural. A segunda seria a "política de inclusão", uma ação dirigida às instituições políticas visando o reconhecimento de novos atores no interior da sociedade política e para garantir benefícios para os representados. A terceira lógica é a "política de influência". Esta, como discutido até aqui, orienta a ação para a pressão indireta sobre o subsistema político. Essas três lógicas estariam ligadas à luta contra a colonização administrativa e econômica da sociedade civil. A quarta lógica, a "política de reforma", relaciona-se à luta pela democratização, envolvendo também as instituições políticas. Como destacam os autores, "enquanto a democratização da sociedade civil e a defesa de sua autonomia frente à 'colonização' econômica ou administrativa pode ser considerada como o objetivo dos novos movimentos, a criação de 'sensores' dentro das instituições políticas e econômicas (reforma institucional) e a democratização da sociedade política (a política de influência e de inclusão), que abririam essas instituições às novas identidades e às normas igualitárias articuladas no terreno da sociedade civil, são os meios para assegurar esta meta" (p. 588).
  • 21
    Entre os trabalhos nessa temática, destaco os seguintes: Silva (2006)Silva, M. K. “Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional”. Sociologias, Porto Alegre, nº 16, p. 156-178, 2006. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222006000200007>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1590/S1517-4522200600...
    , Abers e Von Bülow (2011)Abers, R. N.; Von Bülow, M. “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?”. Sociologias, nº 13, p. 52-84, 2011. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300004>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1590/S1517-4522201100...
    , Abers, Serafim e Tatagiba (2014), Gurza Lavalle e Szwako (2015)Gurza Lavalle, A. Szwako, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, p. 157-187, 2015. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/1807-0191211157>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1590/1807-0191211157...
    , Carlos (2015)Carlos, E. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do engajamento institucional no contexto pós-transição. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. , Carlos, Dowbor e Albuquerque (2017), Tatagiba, Abers e Silva (2018) e Gurza Lavalle et al. (2019)Gurza Lavalle, A., et al. (Orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2019. .
  • 22
    No Brasil, por exemplo, Ann Mische (1997)Mische, A. “De estudantes a cidadãos: redes de jovens e participação política”. Revista Brasileira de Educação , nº 5, p. 134-150, 1997. Disponível em: < http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n05-06/n05-06a12.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n05-06...
    utiliza o termo militância múltipla na análise sobre ações dos militantes do Movimento Estudantil brasileiro, indicando a ação política simultânea de sujeitos no movimento, nos partidos políticos, nos grupos de igreja e em outros movimentos e organizações. Para uma revisão da literatura internacional sobre estudos da década de 1990 que indicam esse tipo ação movimento-Estado, conferir Pettinicchio (2012)Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
    e Cayres (2017)Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
    .
  • 23
    Na versão em inglês da obra de Mouffe (2014)Mouffe, C. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. , o termo que se refere ao envolvimento dos sujeitos com as instituições surge como "strategy of 'engagement with'". A tradução para o Português, sem uma devida problematização, poderia indicar o sentido do uso comum do termo engajamento . Por exemplo, quando se fala que alguém é engajado, pode-se entender que há um compromisso orgânico e militante com algo, ou envolvimento com defesa. Já na obra em espanhol, o que se entende como engagement with surge como involucramiento crítico . Considerando o sentido comum do termo engajamento , compreendo que há diferenças semânticas entre engajamento e envolvimento crítico. Considerando o pensamento político mais amplo de Mouffe, e essa obra em específico, não parece haver dúvidas de que a autora não está a defender um simples "engajamento nas ou com as instituições", algo que se possa ler como uma "defesa das instituições". Influenciada pela leitura gramsciana, a discussão indica, ao contrário, uma luta pela transformação das instituições, encarando a política institucional como espaço de e em disputa.
  • 24
    Cf. Curry (2000)Curry, N. “Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico: reflexões acerca do debate Bhaskar/Laclau”. Estudos de Sociologia, vol. 2, nº 6, p. 97-116, 2000. Disponível em: < https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/download/235469/28457>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://periodicos.ufpe.br/revistas/revs...
    .
  • 25
    Não estou a considerar, portanto, a inclusão de burocratas individuais, como juízes de uma Suprema Corte, que, por diferentes motivos, passam a agir em conformidade com as demandas de organizações societárias, como um ativista institucional, como procede Pettinicchio (2012)Pettinicchio, D. "Institutional Activism: Reconsidering the Insider⁄Outsider Dichotomy". Sociology Compass, vol. 6, nº 6, p. 499-510, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012.00465.x>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2012...
    e como parece fazer Abers (2015)Abers, R. N. Ativismo na burocracia? O médio escalão do Programa Bolsa Verde. In: Cavalcante, P. L. C.; Lotta, G. S. (Orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: ENAP, p. 143-175, 2015. Disponível em: < https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/2063/2/Burocratas%20de%20m%C3%A9dio%20escal%C3%A3o.pdf >. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://repositorio.enap.gov.br/bitstrea...
    - conferir a crítica de Cayres (2017Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
    , p. 92-93).
  • 26
    O que poderia ser questionado seria a dimensão temporal para se pensar a ação do sujeito que ocupa um cargo comissionado quando comparado a um servidor de carreira. Como destaca Cayres (2017)Cayres, D. C. "Ativismo institucional e interações Estado-movimentos sociais". BIB, nº 82, p. 81-104, 2017. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/422>. Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
    , o fato de o servidor dispor de tempo de carreira pode impactar, por exemplo, suas formas de ação e de relação com as pressões sociais. O comissionado teria um tempo menor para planejar e agir e sentiria mais as pressões das organizações societárias e do partido que mediou sua inserção institucional. Além disso, estaria mais suscetível às mudanças político-eleitorais de curto prazo.
  • 27
    Vale destacar que Pettinicchio não opera uma adequada distinção entre ativistas institucionais e atores estratégicos nos termos aqui apresentados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2022
  • Aceito
    16 Mar 2023
Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária 'Zeferino Vaz", CESOP, Rua Cora Coralina, 100. Prédio dos Centros e Núcleos (IFCH-Unicamp), CEP: 13083-896 Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521-7093 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: rop@unicamp.br