Open-access Obstáculos Epistemológicos em Estudos Organizacionais: Considerações a partir de Gaston Bachelard

Resumo

Partindo da compreensão de Epistemologia como produção do conhecimento, isto é, como ato epistemológico, o objetivo deste ensaio é elaborar, criticamente, considerações sobre os obstáculos epistemológicos em estudos organizacionais a partir das argumentações de Gaston Bachelard. Para tanto, os obstáculos foram organizados em três categorias de análise: (a) obstáculo empirista descritivo, no qual se encontram as experiências primeiras; (b) obstáculo idealista místico, no qual se encontram o conhecimento geral, verbalismo e conhecimento unitário e pragmático; e (c) obstáculo tecnicista metodológico, no qual se encontram o substancialismo e o quantitativismo. A questão que se pretende responder é como os obstáculos epistemológicos se apresentam nos estudos organizacionais em vista das tendências, cada vez mais predominantes, de estudos empírico-descritivos, de estudos e modelos baseados em concepções idealistas e da valorização do tecnicismo metodológico que assume posição mais relevante do que a realidade investigada. As reflexões apontam para a abundância de estudos que: (a) se esgotam na aparência imediata dos fenômenos, com ausência de profundidade e de crítica; (b) focam em uma generalidade ampliada dos conceitos, com explicações vagas e imprecisas; (c) utilizam referencial teórico como pressuposto limitador do desenvolvimento do conhecimento científico; e (d) promovem o metodologismo, com valorização da aplicação correta de técnicas específicas em detrimento do conteúdo que se pretende revelar.

Palavras-chave
epistemologia; metodologia; teoria; obstáculos epistemológicos; Bachelard

Abstract

Based on the understanding of epistemology as the production of knowledge – that is, as an epistemological act – this essay aims to critically elaborate considerations on epistemological obstacles in organizational studies, drawing on the arguments of Gaston Bachelard. To this end, the obstacles have been organized into three categories of analysis: (a) the descriptive empiricist obstacle, which includes first experiences; (b) the mystical idealist obstacle, which includes general knowledge, verbalism, and unitary and pragmatic knowledge; and (c) the methodological technicist obstacle, which includes substantialism and quantitativism. We will address the question of how epistemological obstacles manifest in organizational studies in view of the growing prevalence of empirical-descriptive studies, studies and models based on idealistic conceptions, and the valuation of methodological technicality, which takes precedence over the reality being investigated. The reflections point to the abundance of studies that: (a) focus on the immediate appearance of phenomena with little depth or criticism; (b) focus on broad, vague, and imprecise concepts; (c) use theoretical references as limiting assumptions for developing scientific knowledge; and (d) promote methodologism, emphasizing the correct application of specific techniques at the expense of the intended content.

Keywords
epistemology; methodology; theory; epistemological obstacles; Bachelard

Obstáculos epistemológicos e ruptura epistemológica: considerações iniciais

Gaston Bachelard, filósofo e epistemólogo francês, dedicou-se – significativamente – à análise do conhecimento científico. Para o autor, o progresso da ciência não se dá de forma linear e cumulativa, mas por meio de rupturas com ideias preconcebidas e da construção de novas referências na superação de obstáculos epistemológicos. As experiências dos autores em processos de avaliação de trabalhos acadêmicos, corroboradas por Macedo (2009), Voirol (2012) e Bispo (2015; 2020; 2023) sugerem que há uma tendência cada vez mais predominante no campo dos estudos organizacionais, de pesquisas empírico-descritivos, de estudos e modelos baseados em concepções idealistas e da valorização do tecnicismo metodológico, que assume posição mais relevante do que a realidade investigada. Portanto, a questão aqui colocada é: como os obstáculos epistemológicos, descritos por Bachelard, se apresentam nos estudos organizacionais?

Este ensaio se sustenta na compreensão de epistemologia como produção do conhecimento, isto é, como ato epistemológico, como a práxis na produção do conhecimento que não se esgota nas formalidades (estudar, investigar, analisar, escrever), na medida que envolve todo o processo de reflexão tendo “como suporte a condição ontológica do sujeito e do objeto” (Faria, 2022, p. 83). O objetivo deste ensaio é elaborar, criticamente, considerações sobre obstáculos epistemológicos em estudos organizacionais a partir das argumentações de Bachelard. É preciso pontuar, contudo, que essas considerações partem da concepção de obstáculos epistemológicos, mas vão mais além do materialismo racional de Bachelard (1990), tomando por orientação a ontologia e epistemologia crítica do concreto (Faria, 2022). É oportuno observar que nos textos de Faria (2022) não há uma análise sistemática sobre os obstáculos epistemológicos, quais são, do que tratam e como são observados nos estudos organizacionais. É justamente esta contribuição que o presente ensaio se propõe a fazer.

Em "A Formação do Espírito Científico", Bachelard (1996) apresenta análise aprofundada dos obstáculos epistemológicos. Para o autor, esses obstáculos são ideias e práticas que dificultam e mesmo impedem a aceitação de novos conhecimentos e a revisão de conceitos já estabelecidos, impossibilitando o avanço do conhecimento científico. Os obstáculos são comuns no processo de construção do conhecimento científico, pois muitas vezes os pesquisadores1 estão presos a concepções antiquadas e dogmáticas, a concepções formadas por experiências não refletidas criticamente e a hábitos e práticas de pesquisa que dificultam a evolução do pensamento. Aqui se encontram, por exemplo, os modelos, os paradigmas, as teorias, os conceitos, como igualmente as concepções de senso comum, arraigadas na sociedade e que podem conter prejulgamentos e preconceitos, condicionando os processos de produção do conhecimento.

Tendo em vista que os obstáculos epistemológicos são desafios fundamentais no processo de construção do conhecimento científico, por representarem barreiras que impedem a superação de ideias preconcebidas e errôneas, a abordagem de Bachelard é essencial para compreender as dificuldades enfrentadas no desenvolvimento da ciência. Ao identificar e superar esses obstáculos, os cientistas podem avançar na construção de teorias mais sólidas e na busca pelo conhecimento científico objetivo. Em outras palavras, para Bachelard (1996), os obstáculos epistemológicos são elementos inerentes ao processo de construção do conhecimento científico, assumindo um papel central na compreensão do processo epistemológico, porém, mais do que meros empecilhos, eles também são elementos cuja superação contribui para o desenvolvimento da ciência.

Para Bachelard (1996, p. 17), a inovação científica deve ser pensada a partir da compreensão dos obstáculos epistemológicos, pois é nestes termos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado. Contudo, não se tratam de “obstáculos externos, como complexidade e fugacidade dos fenômenos”, nem da “fragilidade dos sentidos e do espírito humano”. É “no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem os obstáculos”. O conhecimento do real é “uma luz que sempre projeta algumas sombras”, logo “nunca é imediato e pleno”. As revelações do real são recorrentes, insistindo em retornar ao estado de origem. O real nunca é o que se poderia achar em uma primeira experiência, mas é sempre o que deve ser elaborado. O pensamento empírico torna-se nítido apenas depois, quando o conjunto dos argumentos fica estabelecido. O ato de conhecer se dá contra um conhecimento anterior, assolando conhecimentos mal estabelecidos, superando o que no próprio ato científico é um obstáculo à sua representação.

Na perspectiva de Bachelard (1996, p. 20-21), o conhecimento que se encontra perfeito e cheio de certezas não é científico, mas formal. O pensamento chamado “bem feito” é apenas um “produto da escola” e não da ciência. O desenvolvimento do pensamento implica uma “reorganização total do sistema de saber”. A pesquisa científica sempre será possível no sentido de sair da contemplação do mesmo para buscar o outro, “para dialetizar a experiência”. Todas as ciências rigorosas precisam admitir que o “pensamento é inquieto”, que desconfia das “identidades mais ou menos aparentes e exige sem cessar maior precisão e, por conseguinte, mais ocasiões de distinguir”. A ciência que busca o saber o faz para melhor questionar.

Os obstáculos epistemológicos podem ser encontrados no desenvolvimento histórico do pensamento científico, já que muito do que se encontra está longe de servir à evolução desse pensamento. Para Bachelard (1996, p. 21), certos conhecimentos, embora corretos de determinadas perspectivas, cedo demais “interrompem pesquisas úteis”. Por isso, o pesquisador deve ficar atento ao conhecimento existente, questionando-o em relação à realidade e às novas descobertas científicas, porque é apenas um conhecimento atual que pode julgar se o conhecimento científico existente continua sendo referência para representar a realidade presente. Somente a razão objetiva dinamiza a pesquisa, porque é a razão objetiva que sugere, para além da experiência comum imediata e sedutora, a experiência fecunda. Teorias bem estruturadas e de longo alcance permanecem com capacidades explicativas para além de seu tempo de elaboração, mas esse fato não deve desautorizar seu tensionamento. Segundo Bachelard (1996, p. 22), a preocupação com a objetividade, que leva determinados pesquisadores a “arrolar todos os textos” sobre um tema, não chega até ao ponto de “medir as variações na interpretação do determinado texto”. Numa mesma época, sobre uma mesma palavra, “coexistem conceitos muito diferentes. O que engana é que a mesma palavra tanto designa quanto explica”. Como a designação é a mesma, mas a explicação é diferente, o pesquisador “deve captar os conceitos científicos em sínteses” efetivas, mostrando como um conceito pode estar relacionado a outro.

De acordo com Bachelard (1996), os obstáculos epistemológicos se manifestam de diversas formas, permeando diferentes níveis do pensamento e da prática científica e podem se revelar como: (a) experiência primeira: tendência de se apegar à beleza superficial do experimento em detrimento de sua explicação científica; (b) conhecimento geral: crença de que já se sabe tudo sobre um determinado assunto, o que impede a busca por novos conhecimentos; (c) obstáculo verbal: utilização de palavras e frases que mascaram a realidade e impedem a compreensão nítida dos fenômenos; (d) conhecimento unitário e pragmático: busca por explicações simples e imediatas, ignorando a complexidade da realidade; (e) substancialismo: crença na existência de substâncias imutáveis e indivisíveis, o que impede a compreensão da mudança e da transformação; (f) realismo: crença de que o mundo é exatamente tal como é percebido pelos sentidos, ignorando o papel do pensamento elaborado na construção da realidade; (g) quantitativismo: a grandeza não é automaticamente objetiva e suas determinações primeiras são indesejáveis2.

Segundo Bachelard (1996), superar os obstáculos epistemológicos exige uma ruptura epistemológica, ou seja, uma revolução no modo de pensar e questionar o mundo, que permita rompimento com dogmas e crenças, que abra espaço para novas ideias, que estimule a criatividade e permita a construção de um conhecimento científico mais objetivo e confiável. Essa ruptura se manifesta por meio de quatro procedimentos: (a) dúvida metódica: questionar tudo, inclusive as crenças mais arraigadas, para abrir espaço para novas ideias e interpretações; (b) espírito crítico: analisar com rigor as informações e teorias, buscando evidências e refutações, para construir um conhecimento sólido e confiável; (c) racionalismo: utilizar a razão como ferramenta fundamental para compreender o mundo, buscando explicações lógicas e coerentes para os fenômenos; (d) criatividade: imaginar novas possibilidades e soluções, rompendo com os limites do senso comum e buscando novas perspectivas para os problemas.

Assim, ainda que os obstáculos epistemológicos sejam desafios inerentes à atividade científica, ao reconhecê-los e superá-los por meio da ruptura epistemológica, o pesquisador abre caminho para a construção de um conhecimento mais sólido, preciso e transformador das relações sociais. Bachelard (1996) ressalta a importância da superação dos obstáculos epistemológicos por meio da ruptura com o senso comum e da adoção de uma postura crítica e reflexiva em relação ao conhecimento estabelecido. Portanto, é necessário questionar constantemente as concepções prévias e estar aberto a novas perspectivas e interpretações, a fim de promover o avanço e a renovação do conhecimento científico.

Para tratar dos estudos organizacionais, os obstáculos foram organizados em três categorias de análise, as quais resultam dos próprios obstáculos epistemológicos descritos por Bachelard e serão expostas a seguir: (a) obstáculo empirista descritivo, onde se encontram as experiências primeiras (aproximações precárias); (b) obstáculo idealista místico, onde se encontram o conhecimento geral, verbalismo e conhecimento unitário e pragmático; e (c) obstáculo tecnicista metodológico, onde se encontram o quantitativismo e o substancialismo. As categorias de análise têm como propósito a representação abstrata organizada da estrutura de relações e nexos causais que formam conjuntos concretos de elementos, com a finalidade de construir um quadro conceitual orientador das análises. Essas categorias não se tratam de pressupostos, mas resultados organizados desses elementos, mais propriamente, dos obstáculos epistemológicos descritos por Bachelard.

Obstáculo empirista descritivo

A descrição do fenômeno é parte constitutiva do ato epistemológico (Faria, 2022). A título de ilustração, é possível citar Marx (2013), que em “O Capital” faz uso acentuado da descrição dos fenômenos e dos exemplos para, em seguida, apresentar uma teoria robusta e estruturada. Contudo, sem elaboração teórica a descrição não tem nada a dizer além dela mesma. A produção do conhecimento se encontra sempre diante da tarefa da representação, que exige investigar as múltiplas determinações do objeto e que, portanto, não se esgota na descrição. A descrição, segundo Bachelard (2004, p. 14), pode fornecer os elementos de um esquema explicativo primário, mas não permite estabelecer no real “a raiz das noções abstratas”. A descrição inicial é parte da ciência, mas quando a forma empirista descritiva se torna a forma mesma do conhecimento científico, ela não é senão “um método de segunda classe”, que confunde o conhecimento transmitido com o conhecimento produzido, dando à forma de exposição descritiva “mais importância do que a coisa significada”. “A tarefa de descrever mostra-se, portanto, sempre imperfeita e, mais cedo ou mais tarde, será preciso voltar ao concreto, já que a primeira abstração se afastou dos fenômenos”. Para Bachelard (2004), a descrição empirista esgota-se na experiência primeira.

A experiência primeira

Experiência primeira é concebida, aqui, como a relação imediata entre o sujeito pesquisador e o objeto ou fenômeno a ser pesquisado, isto é, como a aproximação precária do sujeito com o objeto ou fenômeno (Faria, 2022). Para Bachelard (1996), a experiência primeira é aquela que resulta de percepções imediatas, sem qualquer tipo de análise ou reflexão mais aprofundada, sendo marcada pela subjetividade e pelas influências do senso comum, o que pode levar a interpretações enviesadas e equivocadas dos fenômenos observados. O autor questiona a ideia de que a experiência imediata e intuitiva é suficiente para a construção do saber, argumentando que essa abordagem pode levar a interpretações distorcidas da realidade e dificultar o avanço do pensamento científico. Assim, é necessário superar a experiência primeira e buscar uma abordagem crítica e reflexiva para a investigação científica.

Nos estudos organizacionais, pesquisas que tomam a aparência imediata como sendo a própria realidade apresentam problemas recorrentes, como: (a) falta de fundamentação teórica sólida e consistente, que resulta em abordagem superficial do problema estudado, com pouca reflexão crítica sobre as teorias existentes e as suposições subjacentes, o que pode levar os pesquisadores a confiar excessivamente em sua experiência pessoal ou intuição ao invés de adotar uma abordagem mais analítica e objetiva; (b) viés de confirmação, quando pesquisadores selecionam, interpretam ou reportam os dados de maneira a confirmar suas hipóteses prévias ou seus pressupostos teóricos, o que resulta em uma análise tendenciosa que não leva em consideração evidências contrárias ou interpretações alternativas; (c) resistência à crítica e à revisão, que indica uma postura defensiva em relação a questionamentos e sugestões, especialmente quanto aos procedimentos metodológicos e à análise de resultados; e (d) subjetividade na interpretação dos dados, quando pesquisadores permitem que suas próprias vivências, opiniões e (pré)conceitos influenciem a forma como interpretam os resultados de suas pesquisas, levando a conclusões enviesadas e pouco confiáveis.

O empirismo descritivo, que é cada vez mais frequente nos estudos organizacionais, é a valorização da experiência primeira e da ausência da crítica. A experiência primeira, que é a relação imediata do pesquisador com seu objeto de pesquisa, é sempre um obstáculo inicial ao fazer científico (Bachelard, 1996). Isto porque se apresenta repleta de facilidades e, ao descrevê-la, pode parecer ao pesquisador que ele já a compreende. Após descrever o objeto e suas generalidades, o pesquisador não observa nada mais e não percebe que o fazer científico já se encontra comprometido. Por isso, é preciso começar a investigação caracterizando esse obstáculo e mostrando que a ruptura se dá pela superação da aparência fenomênica do objeto. A primeira observação pode se apresentar tanto em sua forma confusa, quanto natural e fácil, de maneira que o pesquisador, ao descrevê-la, acredita ter dela se apropriado. Mas o que o pesquisador alcança é uma explicação monótona dos elementos como se esses fossem já as propriedades da substância do fenômeno.

No momento da “aproximação precária” (Faria, 2022) com o objeto de investigação, o pesquisador deve considerar que o conhecimento empírico primário se forma como numa oscilação cheia de tropeços e de conflitos, que acaba em uma desarticulação com o pensamento prévio construído a partir do estudo das teorias existentes e com as hipóteses de pesquisa. Mas é essa desarticulação inicial, diz Bachelard (1996), que torna possível os movimentos úteis, de maneira que o pensamento precisa abandonar o empirismo imediato sem desconsiderá-lo como um fato importante. Abandonar o empirismo imediato não significa abandonar o objeto, mas o conhecimento primário sobre ele, o que Bachelard (1996) chama de pensamento empírico. O pensamento empírico assume um sistema, um modelo, uma forma já dada de conhecer o objeto. Mas, em relação ao objeto, esse sistema primeiro é falso, ainda que tenha a utilidade de desprender o pensamento, afastando-o do conhecimento sensível. O primeiro sistema, a primeira forma, o primeiro modo de alcançar o objeto pode imobilizar o pensamento se não for superado.

Como na atividade científica é necessário considerar o fenômeno para além do ponto de vista primeiro, pouco a pouco o pesquisador é levado a converter as objeções em objetos, a transformar as críticas em representações reais. Para Bachelard (1978, 1996, 2004), o realismo vulgar é uma metafísica infecunda, já que susta a investigação em vez de provocá-la. É preciso insistir nos fundamentos da razão tanto quanto na primazia do objeto, mas não se trata de colocar o pensamento e objeto em oposição ou como coisas separadas na produção do conhecimento. A produção científica do conhecimento não deve corresponder à separação entre objeto e sua representação como se essas fossem instâncias fenomenológicas: o objeto somente se torna representado em sua substância, em sua essência, como objeto pensado, como concreto pensado.

Bachelard (2004) defende a concepção de que o conhecimento do objeto científico exige o uso sucessivo de procedimentos, de técnicas de pesquisa. À medida que o conhecimento ultrapassa o momento aproximado, o momento da aproximação precária (Faria, 2022), cada um dos procedimentos técnicos se torna em si mesmo obsoleto, ultrapassado, sendo que a insistência em seu emprego único o torna nocivo para o ato epistemológico (Faria, 2022). As primeiras aproximações, as primeiras experiências, são para Bachelard (1996), apenas preâmbulos do que se pode saber sobre os fenômenos.

Bachelard (1996, p. 29) afirma que “na formação do espírito científico, o primeiro obstáculo é a experiência primeira, experiência colocada antes e acima da crítica – crítica essa que é, necessariamente, elemento integrante do espírito científico”. Como a crítica não intervém na experiência e/ou na observação primeira de modo explícito, estas não podem ser uma base segura na produção do conhecimento. O pesquisador que afirma receber iluminações diretamente dos dados (tratados como sendo nítidos e objetivos), ignora a fragilidade desses conhecimentos primeiros, aproximados, que se encontram sempre disponíveis e ao alcance sensível e imediato. A ciência se forma contra as aparências. Portanto, é necessário abandonar o sensível imediato das coisas e elaborar suas determinações.

Não basta o pesquisador descrever, ou mesmo ordenar esquematicamente os fenômenos, para conhecê-los e representá-los. É preciso apropriar-se dos fenômenos como concretos pensados, alcançando suas determinações. Como argumenta Bachelard:

(...) [a] apreensão imediata do real só funciona como um dado confuso, provisório, convencional, e essa apreensão fenomenológica precisa ser arrolada e classificada. A reflexão é que vai dar sentido ao fenômeno inicial sugerindo uma sequência orgânica de pesquisas, uma perspectiva racional de experiências. (...) [Não se pode] confiar a priori na informação que o dado imediato pode fornecer. (...) O conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão. (...) [Por isso, só se pode] ver na descrição, mesmo minuciosa de um mundo imediato, uma fenomenologia de trabalho no sentido [de uma] hipótese de trabalho. (...) O fenômeno primitivamente considerado só pode ser tomado como um instante particular de um método. (Bachelard, 2008, p. 13-14)

As aparências e as primeiras observações, contudo, são promovidas no círculo acadêmico pelo metodologismo, pelo tecnicalismo, que enfatizam a linearidade procedimental do projeto de pesquisa como sendo o próprio percurso epistemológico. A bibliografia básica, chamada de referência teórica de partida, pressuposto pré-definido da investigação, deixa de ser a porta de entrada para o conhecimento do estado da arte do tema pesquisado para se tornar a já dada realidade teoricamente elaborada. O conhecimento científico “apresenta a ciência como ligada a uma teoria geral”. A teoria, ao formular perguntas a objetos ainda não investigados, indica problemas de pesquisa e comanda as investigações. Todo pesquisador que segue esse roteiro ensinado em disciplinas de metodologia científica, tem, portanto, a probabilidade de encontrar na bibliografia pré-definida, “elementos para o diagnóstico de seu próprio caso” (Bachelard, 1996, p. 31). Elementos que são impostos ao caso, independentemente dele mesmo.

A bibliografia que serve de pressuposto à realidade oferece uma resposta imediata em uma situação na qual nem mesmo o verdadeiro problema se encontra em condições de ser formulado. Trata-se de uma facilidade que “retira do pensamento científico o sentido do problema”, pois a teoria pressuposta apresenta-se como uma doutrina que é aplicada ao objeto. Para a “preguiça intelectual” é cômodo limitar-se ao empirismo, “chamar um fato de fato” e aplicar sobre ele “uma teoria bem organizada”: não é necessário compreender a realidade, basta enquadrá-la. Esse é o procedimento do “pensamento pré-científico”, que não busca as variações dos fenômenos e suas determinações, mas a variedade deles. “E essa é uma característica bem específica: a busca da variedade leva [o pesquisador] de um objeto para outro, sem método, [visando] apenas ampliar conceitos” (Bachelard, 1996, p. 36-38). Nesta “construção científica feita de justaposições, cada qual pode trazer sua pedra”, cada pesquisador pode trazer seu caso e encaixar seu tijolo na construção de um edifício teórico que já se encontra pré-moldado.

A ausência da investigação original é um obstáculo à apreensão de um fenômeno novo. O descritivismo empirista e os casos baseados em teorias prévias colocam a experiência primeira em evidência na relação do pesquisador com o objeto, “sem o equacionamento racional da experiência determinado pela formulação de um problema, sem o constante recurso a uma construção racional bem explícita”, o que pode acabar resultando em “uma espécie de inconsciente do espírito científico” que vai exigir uma difícil análise “para ser exorcizado” (Bachelard, 1996, p. 51).

É preciso, então, reavivar a crítica e pôr o conhecimento em contato com as condições que lhe deram origem, voltar continuamente a este ‘estado nascente’, que é (...) o momento em que a resposta saiu do problema. Para que, de fato, se possa falar de racionalização da experiência, não basta que se encontre uma razão para um fato (...). Para ser racionalizada, a experiência precisa ser inserida num jogo de razões múltiplas. (Bachelard, 1996, p. 51)

A razão primeira tem contra si “a necessidade da certeza imediata, a necessidade de partir do certo e a doce crença na recíproca, que pretende que o conhecimento do qual se partiu era certo” (Bachelard, 1996, p. 51). O paradoxo de tal processo é que o conhecimento científico está sempre em movimento. Ao desvendar a estrutura do objeto, o conhecimento científico faz aparecer outras questões, outros enigmas que sempre renascem, na medida em que cada resposta contém um novo problema. As razões prematuras, expressas no descritivismo do objeto e nas análises que partem de pressupostos teóricos e conceituais, são “a expressão da vontade de ter razão, fora de qualquer prova explícita, de escapar da discussão” referindo-se a um fato ao qual o pesquisador atribui um “valor declarativo primordial”. Ao dar razão à experiência primeira, o pesquisador se afasta de toda crítica que poderia dissolver as afirmações primitivas e as teorias pressupostas, agindo “como se a observação primeira pudesse fornecer algo além de uma oportunidade de pesquisa” (Bachelard, 1996, p. 52).

É preciso recusar os – a priori – subjetivos tomados como se fossem valores pretensamente objetivos, pois nessas pesquisas em que “a resposta é muito mais nítida do que a pergunta”, o que ocorre é que “a resposta é dada antes que se esclareça a pergunta”. O empirismo e o racionalismo simplista “implicam a imobilização do conhecimento produzido por uma adesão imediata a observações particulares” (Bachelard, 1996, p. 55). Os fatos implicados em razões, em que a percepção imediata basta, é um procedimento próprio do conhecimento vulgar. Sem análise e interpretação nada resta do fato que não ele em si. O conhecimento empírico não ultrapassa o nível meramente assertivo, ficando circunscrito ao que é imediatamente visível. “A força para estabelecer relações não tem origem na superfície, no próprio terreno da observação; ela brota de relações mais íntimas”. O que “existe de mais imediato na experiência primeira”, são os próprios sujeitos e suas subjetividades. Nos estudos baseados em teorias pressupostas “não são as coisas e as substâncias que são colocadas à prova”, mas as próprias concepções que se pretendem corresponder às coisas (Bachelard, 1996, p. 59-60). Epistemologicamente, encontrar o objeto implica em encontrar o sujeito que o representa como objeto pensado.

Artigos acadêmicos, dissertações e teses em estudos organizacionais que se esgotam na descrição de observações, entrevistas, narrativas, documentos, etnografias; que partem de teorias e acessam o campo empírico sem tratar em profundidade a própria realidade, operando uma bricolagem entre os dados e excertos das teorias; que descrevem resultados estatísticos insistindo na importância valorativa dos indicadores, preenchidos de correlações formais e sem profundidade analítica; são indicativos preocupantes da prevalência dos obstáculos epistemológicos e das dificuldades da ruptura epistemológica.

Obstáculo idealista místico

Saindo do obstáculo empirista descritivo, chega-se ao seu oposto, que é também seu correlato, o obstáculo idealista místico, composto pelo conhecimento geral, verbalismo, conhecimento unitário e pragmático. Como questiona Bachelard (1996, p. 69), “a ciência do geral sempre é uma suspensão da experiência, um fracasso do empirismo inventivo. Conhecer o fenômeno geral, valer-se dele para tudo compreender, não será semelhante a outra decadência?”. O idealismo é um convite para as generalizações apressadas e fáceis, pois elas subordinam a realidade às ideias e fazem das ideias um palco de disputas. Isso significa dizer que o conhecimento científico pode ser prejudicado tanto pela ênfase no particular, na tendência a valorizar o empirismo descritivo, quanto pela ênfase no universal, na tendência à valorização do conhecimento geral. Em ambos os casos, o que desaparece é o fazer científico.

A divisão clássica, que separa a teoria de sua aplicação, ignora a necessidade de incorporar as condições de aplicação na própria essência da teoria. Como a aplicação está submetida a aproximações sucessivas, o conceito científico que corresponde a um fenômeno particular é o “agrupamento das aproximações sucessivas bem ordenadas” (Bachelard, 2006, p. 140). Para Bachelard (2006, p. 153), “com o pensamento científico, surge no objeto uma perspectiva de profundidade” em que o empenho objetivo fortalece a escala de precisão em uma sucessão de abordagens, cada vez mais dedicadas, ligadas a um mesmo objeto e que seguem umas às outras com diferentes níveis de conhecimento objetivo. Quando o sujeito pesquisador se coloca diante do real acreditando que julga saber nitidamente o que investiga (visto que já estudou toda a teoria sobre o assunto), esta certeza ofusca o que deveria de fato saber. A teoria existente pode se apresentar ao sujeito pesquisador como um pré-conceito, impedindo-o de contradizer o conhecimento existente. Conhecimentos que foram úteis (e que ainda são) podem criar um estorvo à pesquisa devido à tendência de acomodação dos conceitos aos problemas que mais frequentemente servem. Com o tempo, os conceitos se valorizam indevidamente, se opondo à circulação de outros, constituindo-se em um fator de inércia para o pesquisador. Assim, o pesquisador pode preferir confirmar seu saber a enfrentar o que o contradiz, prefere as respostas ao invés das perguntas.

O conhecimento geral

Para Bachelard (1996), o modo como o pensamento, baseado em alguns fatos particulares, chega a uma lei geral, pode levar à formulação de uma banalidade, a uma concepção sem expressão, mas que parece indispensável para assegurar seu “caráter científico”. Afirmar, por exemplo, que todas as organizações formais possuem uma estrutura hierárquica ou um processo decisório, não diz absolutamente nada sobre estrutura hierárquica ou decisão. Afirmar que as organizações contemporâneas adotam processos decisórios estratégicos, nada mais é do que a retificação de uma generalidade, ou seja, uma “generalidade ampliada”, que não se constitui propriamente em um pensamento científico. “Se o valor epistemológico dessas grandes verdades for medido por comparação com os conhecimentos falhos que elas substituíram”, pode-se constatar que elas podem ter tido alguma eficácia pontual, que a rigor somente deram uma resposta sem que houvesse uma pergunta de pesquisa bem formulada. Isto é, essas verdades podem não ser senão uma constatação empírica óbvia, sem profundidade analítica, pois essas “leis gerais definem palavras e não coisas” alimentando a “inércia do pensamento que se satisfaz com o acordo verbal das definições” (Bachelard, 1996, p. 70).

O resultado da generalidade ampliada é a produção de um enunciado que pode ser útil, mas que se constitui em um obstáculo epistemológico, visto que trata-se de uma forma geral bem construída, mas que pode “entravar o pensamento”. O conceito reificado parece tão nítido e complexo que o pesquisador “não sente necessidade de estudar mais de perto o fenômeno (...). Com a satisfação do pensamento generalizante a experiência perdeu o sentido” (Bachelard, 1996, p. 71-72).

Para Bachelard (1996, p. 72), o conhecimento geral e os conceitos generalizantes e universais – que a tudo explicam em um plano abstrato metafísico – informam que “faltam elemento de análise”, pois, “com o conhecimento muito geral, a zona de desconhecimento não se resolve em problemas precisos”. A “genialidade imobiliza o pensamento”, na medida em que os elementos gerais ofuscam os elementos essenciais. Noções genéricas como input-output, processamento, entropia negativa, homeostase dinâmica, caos, adaptação, sinergia, entre outros, escondem todos os movimentos e contradições que provocaram os fenômenos que essas noções pretendem representar. Escondem as relações que constituíram os fenômenos e os objetivos e interesses que os fenômenos podem revelar. Essas generalidades, que parecem dar sentido às observações provenientes da realidade percebida, são a base de “um conhecimento estático que mais cedo mais tarde emperra a pesquisa científica”.

Bachelard (1996) alega que é preciso complicar o conceito, apesar de sua resistência, para que ele possa representar o que a realidade não consegue por ela mesma. A ciência, à medida que se desenvolve, produz com mais profundidade seus objetos, que nunca estão prontos como objetos pensados na aparência imediata, em sua forma primeira ou pseudo-elaborada. O conhecimento científico não é nem mera descrição da realidade e nem mero confronto entre uma teoria pressuposta e um caso empírico, mas uma produção ativa entre a realidade e o pensamento, mediada por uma metodologia, por instrumentos e técnicas de pesquisa. Em outras palavras, o conceito se torna científico à medida em que se realiza como conceito, que se objetiva enquanto representação do fenômeno. Entretanto, nenhum conceito pode ser imune à crítica, pois ele pode “representar um obstáculo ao oferecer ao pensamento uma forma geral prematura” ou inacabada (Bachelard, 1996, p. 82). Mesmo um fenômeno bem definido pode esconder variações, relações e elementos constitutivos frente ao fenômeno representado teórica e conceitualmente.

Induzido pelo conhecimento geral que pretende reproduzir e reafirmar, o conhecimento pré-científico, que guia a pesquisa colocando os fenômenos observados como equivalentes a fenômenos universais, permanece, no entanto, limitado ao seu objeto imediato. O percurso do pensamento pré-científico, que generaliza seus casos a todos os domínios a partir de definições prévias e de pressupostos teóricos, termina em conclusões arbitrárias, formando um círculo com o pensamento pregresso, de maneira que “o aspecto geral, considerado inicialmente, continuou o único atributo do conceito imóvel” (Bachelard, 1996, p. 84). Com isso,

todo o esquema de explicação dos fenômenos [permanece] sempre no plano dos dados imediatos da intuição. O que é a qualidade em destaque (...) torna-se a generalidade que basta para explicar tudo. É ela que se aplica e é por ela que se explica, seguindo o círculo sem fim do empirismo primitivo. E essa explicação ingênua se contenta com pouco. (Bachelard, 1996, p. 85)

Não é raro observar trabalhos acadêmicos em estudos organizacionais em que várias observações, levantamentos de dados, estudos documentais, informações exatas e precisas que permitiriam resolver tanto problemas reais quanto falsos problemas, “só conseguem deslocar ideias falsas”. A não distinção entre conceitos e palavras pode agrupar “experiências num âmbito verdadeiramente etimológico, apenas reunindo palavras de mesma família” (Bachelard, 1996, p. 86), muitas vezes com auxílio de softwares de análise de dados. É desta forma que se “satisfaz o pensamento pré-científico, que julga que classificar os fenômenos é já os conhecer”. E essa condição é reforçada por “um traço curioso do espírito pré-científico, o de não poder fazer críticas a si mesmo” (Bachelard, 1996, p. 87). O conhecimento ao qual falta precisão, o “conhecimento que não é apresentado junto com as condições de sua determinação prévia precisa não é conhecimento científico. O conhecimento geral é quase fatalmente conhecimento vago” (Bachelard, 1996, p. 90). A validade do conhecimento geral ou do conhecimento universal é limitada: quanto mais geral o conhecimento e quanto mais universal o conceito, mais distante ele se encontra dos objetos reais, já ensinava Hegel (2014).

O verbalismo

O pesquisador não apenas pode se deixar levar por generalizações indevidas, mas igualmente pelo fato de uma única imagem ou uma única palavra constituírem toda a explicação. Esse é o obstáculo verbal, o verbalismo. De acordo com Bachelard (1996, p. 91-93), trata-se de “uma explicação verbal com referência a um substantivo carregado de adjetivos, substituto de uma substância com ricos poderes”, em que uma simples palavra “permite expressar os fenômenos mais variados”. Nesse caso, os fenômenos expressados parecem já ter sido explicados, os fenômenos reconhecidos parecem já ter sido conhecidos. A palavra parece conter nela mesma todo o fenômeno, pois a palavra exerce uma “função esclarecedora”, um “denkmittel do empirismo ingênuo”, um meio pelo qual o pesquisador lida com os fatos apenas pensando neles, uma suposição para interpretar como a realidade é.

Considere-se o exemplo da palavra “liderança” nos estudos organizacionais, que parece conter nela mesma o fenômeno estudado e à qual são acrescidos adjetivos que dariam qualidades específicas ao substantivo, tais como autocrática, democrática, transformacional, situacional, carismática, motivacional, transformadora, técnica, positiva, negativa, entre outras. A palavra-raiz é dada como já explicada e conhecida, cabendo aos adjetivos a marcação tipológica que atua como um verdadeiro “aparato metafórico”. O que sustenta teoricamente esse tipo de hábito verbal é tanto (a) a concepção de que o pensamento humano constrói uma espécie de mapa mental a partir do qual interpreta a realidade (Buzan, 2009), elaborando diagramas que se desdobram em várias ramificações; como (b) a concepção de que há um modo de pensar que indica como o sujeito vê o mundo, seu conjunto de crenças, valores, experiências, relações etc. Esse acúmulo de palavras e imagens “prejudicam evidentemente a razão, no qual o lado concreto, apresentado sem prudência, impede a visão abstrata e nítida dos problemas reais” (Bachelard, 1996, p. 93). E mesmo quando o pesquisador pretende se livrar da palavra-raiz ou da imagem de referência, suas funções persistem nas análises.

A palavra-raiz, que se apresenta logo como palavra-conceito, parece ter uma condição mágica, mística, no processo de expressão da realidade que seduz a razão, sendo alçada da condição de representação de fenômenos particulares para a de esquemas gerais. Este procedimento de fazer de uma palavra-raiz uma palavra-conceito pode, eventualmente, ser suficiente em explicações particulares, nas quais se generaliza a partir do que é nítido e simples. Mas há, aqui, um processo cartesiano de explicar fenômenos complicados decompondo-os em ideias simples. Isso revela a “impossibilidade de situar a dúvida no nível dos detalhes do conhecimento objetivo, de desenvolver uma dúvida discursiva que desarticula todas as ligações do real (...): a dúvida geral é mais fácil que a dúvida particular” (Bachelard, 1996, p. 98). Se a palavra-conceito pode explicar tudo, então não há dúvidas a serem investigadas. Em não havendo dúvidas, não há verdadeiramente problema de pesquisa. O verbalismo na pesquisa favorece a elevação da palavra a uma posição de “autonomia” em relação aos seus significados e ao que pretende representar. Assim, tornam-se “palavras-obstáculo” (Bachelard, 1996, p. 102).

O conhecimento unitário e pragmático

Bachelard (1996, p. 107), argumenta que a unidade é um princípio desejado e realizado sem esforço pelo pensamento pré-científico, de forma que os diferentes fenômenos se apresentam como diferentes manifestações de uma mesma e única natureza: o verdadeiro para um caso é verdadeiro para outros casos aparentemente semelhantes. A necessidade do conhecimento unitário pragmático contém um conjunto de erros. “A unidade é (...) realizada muito depressa, a dualidade suprimida num instante”, de maneira que o que materialmente é inconcebível torna-se teoricamente concebível.

Conhecimentos baseados em analogias parecem “tão convincentes que há quem neles confie”. As analogias, ao contrário de ajudar as pesquisas, “provocam fuga de ideias; impedem a curiosidade homogênea que faz com que a paciência siga uma sequência de fatos bem definida” (Bachelard, 1996, p. 109). Exemplo disso são as analogias feitas nos estudos organizacionais a partir (a) da teoria dos sistemas, que se baseia no funcionamento biológico dos organismos vivos para explicar o funcionamento e as relações da organização com o ambiente, enquanto sistema aberto; (b) de teorias que comparam as organizações a máquinas com componentes interligados, como para a organização científica do trabalho; (c) de teorias que tratam a gestão como um jogo estratégico com regras, competidores e objetivos a serem alcançados; e (d) teorias que tratam as organizações como fenômenos culturais, como um mosaico de mitos e rituais. As analogias não apenas podem reduzir a amplitude e a profundidade da pesquisa como desviar o foco do que é essencial. Isso não significa que as analogias sejam inúteis ou inadequadas. O que se constitui obstáculo epistemológico não é o uso da analogia como ilustração ou recurso didático de exposição, mas como ponto de partida da pesquisa, como fundamento, como concepção orientadora a partir do que se inferem explicações e se sobredetermina o fenômeno.

Como afirma Bachelard (1996, p. 110-112), “podem ser apresentados milhares de exemplos em que intervêm, como pensamento orientador, uma incrível sobredeterminação. Essa tendência é tão nítida que se pode afirmar que todo o pensamento não científico é um pensamento sobredeterminado”. Quando tudo acaba sendo simplesmente causa e efeito de tudo, como propaga a concepção holística nos Estudos Organizacionais (Capra, 2006), quase nada resta para ser investigado e, como observa Bachelard (1996, p. 112), “o que é vago impõe-se ao que é nítido”.

A utilidade do conhecimento sobre o objeto ou fenômeno impõe uma “indução utilitária”, de acordo com Bachelard (1996, pp. 114-115), levando a pesquisa a exageradas generalizações. O “impulso utilitário”, como “todo pragmatismo, pelo simples fato de ser um pensamento mutilado, acaba exagerando” nas generalizações. Não havendo como limitar objetivamente o que é útil, o conhecimento utilitário se valoriza e se capitaliza sem medida. Buscar, “em todos os fenômenos” a “utilidade humana”, seja pelas vantagens que se pode obter, seja como princípio de explicação, é tentar “encontrar uma razão” que seja convincente. Porém, quem definiria, por exemplo, a utilidade do conhecimento do trabalhador na execução do seu trabalho? Quem definiria a utilidade dos mecanismos de controle? Desde Taylor (1911) já se sabe a resposta. O útil é o que interessa ao capital. A administração científica de Taylor, que a rigor é pré-científica, como se sabe por Braverman (1977) e Tragtenberg (1977), procura atribuir às minúcias do fenômeno da organização do trabalho, em termos tempos e movimentos do trabalhador, utilidades características do trabalho sob o capital. “Se uma utilidade não caracteriza um traço particular, parece que esse aspecto não fica explicado. Para o racionalismo pragmático, um aspecto sem utilidade é irracional” (Bachelard, 1996, p. 115).

Para Bachelard (1996, p.115-119), “sistemas inteiros foram fundados sobre considerações utilitárias. Apenas a utilidade é clara. Apenas a utilidade explica”. “Logo, o verdadeiro deve ser acompanhado do útil. O verdadeiro sem função [utilitária] é um verdadeiro mutilado. E quando se descobre a utilidade, encontra-se a função real do verdadeiro”. Os perigos dessas explicações finalistas são tão evidentes que “não merece insistir no peso desse obstáculo para chegar a uma cultura objetiva do fato”. Para o pensamento pré-científico, encontrar a unidade de explicação a partir de uma única característica, é como encontrar a pedra filosofal que explica o mundo. O conhecimento unitário e pragmático prometeu um sistema de pensamento, mas “só ofereceu um amontoado de fatos mal relacionados; logo, mal observados”, que atravancam o fazer científico.

Obstáculo tecnicista metodológico

O obstáculo tecnicista metodológico se constitui em duas bases: a ênfase (o culto) no objeto enquanto substância que contém todas as explicações – o substancialismo; e a convicção de que a formulação quantitativa expressa com neutralidade e com exatidão objetiva o objeto pesquisado – o quantitativismo.

O substancialismo

O obstáculo substancialista, para Bachelard (1996, p. 121), se sustenta em uma “tendência natural” do espírito pré-científico em condensar “num objeto todos os conhecimentos em que esse objeto desempenha um papel, sem se preocupar com a hierarquia dos papéis empíricos”. Assim, “atribui à substância qualidades diversas” que são vagas. Toda a designação do fenômeno conhecido por um determinado nome, torna “satisfeita a mente preguiçosa”. Quando as sutilezas se referem à experiência, ao exame do caso concreto, quando tocam detalhes empíricos, a designação e sua ligação a uma substância, a um substantivo, não podem determinar o pensamento científico. Esse é o caso do objeto “organização” em sua forma geral abstrata, que se apresenta com estruturas, desempenhos, relações, qualidades. O substancialismo é dissimulado sob os artifícios da linguagem, de forma que basta uma palavra para que a virtude apareça.

Quando o pesquisador segue o pensamento que busca o objeto, ele aciona a fantasia do alcance da intimidade atribuída a esse objeto. Assim, o realista ingênuo deixa-se levar pela sedução de que basta a referência ao objeto para alcançar a sua essência. Assim, a referência à “organização” já basta para alcançar seu conteúdo. Todo invólucro é menos precioso, menos substancial, do que a matéria que ele envolve. Embora a forma tenha uma função indispensável para objeto, ele funciona apenas como se fosse uma proteção. Esses invólucros são necessários, mas eles não contêm todo conteúdo do objeto. A ideia substancialista quase sempre é ilustrada por uma continência, ou seja, é preciso que algo contenha a qualidade profunda que deve estar contida no objeto. Para o espírito pré-científico, a substância não apenas tem um interior: a substância é já um interior. O espírito pré-científico acredita que pode chegar ao conteúdo do objeto analisando-o pelo avesso, como se o avesso do objeto não contivesse, igualmente, as mesmas múltiplas determinações que o seu invólucro: “é preciso que algo contenha, que a qualidade profunda esteja contida” (Bachelard, 1996, p. 123).

Bachelard (1996, p. 127) insiste em que “a substancialização de uma qualidade imediata percebida numa intuição direta pode travar os futuros progressos do pensamento científico tanto quanto a afirmação de uma qualidade oculta ou íntima”. Mas “falta-lhe o percurso teórico, que obriga o espírito científico a criticar a sensação”. Portanto, “o espírito científico não pode satisfazer-se apenas com ligar os elementos descritivos de um fenômeno à respectiva substância, sem nenhum esforço de hierarquia, sem determinação precisa e detalhada das relações com outros objetos”. O espírito pré-científico faz de um meio imediato um meio absoluto da explicação do fenômeno. O imediato é tomado apenas com o sinal de uma propriedade substancial, de maneira que toda busca científica é logo interrompida. A resposta imediata abafa todas as perguntas quando aquilo que parece ser a coisa é interiorizado como a realidade representada, que, a rigor, não seria possível de ser afirmada, porque ela não passa de um meio de traduzir e dispersar o fenômeno. O pesquisador pré-científico pensa a partir daquilo que vê e pensa aquilo que vê como sendo aquilo que é.

Diante do fracasso na verificação, o pesquisador é levado a acreditar que aquilo que ficou disfarçado, que ficou oculto, que não se apresentou para ele, mas que é uma qualidade do objeto, não existe no objeto ou não deve aparecer a partir dele. Se o pesquisador continua a pesquisa dessa forma, pouco a pouco sua formulação torna-se impermeável aos dados do objeto. Assim, continua Bachelard (1996), a convicção substantiva do pesquisador passa a ser tão forte que ele se satisfaz com pouco, admitindo que esta é também uma prova de que a convicção substancialista é definitiva, inviabilizando as variações concretas do fenômeno estudado.

Os problemas causados na produção do conhecimento pela atribuição direta à substância de um conteúdo elaborado fornecido pelos dados imediatos, são reais e irreversíveis, servindo apenas para afirmar a pretensa qualidade do objeto. Dominar a raiz substancial do fenômeno observado não significa trabalhar as circunstâncias escondidas para além daquilo que é superficial. A resposta à concepção substancialista deve estancar as perguntas científicas formuladas quando o pesquisador aceita o caráter substancial de um fenômeno particular, porque nessa aceitação ele perde a condição de investigar aquilo que está além do visível. Embora o estudo sobre um caso particular possa até mesmo ser exato, a concepção substancialista não alcança as diversas condições constitutivas dos mais diferentes fenômenos.

A sedução substancialista, para Bachelard (1996, p. 140), é “o acúmulo de adjetivos para os mesmos substantivos”. Esse tipo de pesquisa, em que se amplia apenas aumentando o número de elementos que podem constituir a prova concreta, está longe de provocar novos conhecimentos, visto que as formulações primeiras constituem todo o conjunto das formulações posteriores, de maneira que elementos essenciais que se encontram nos fenômenos permanecem escondidos, sendo “um obstáculo ao pensamento empírico fiel”.

A ideia de substância habita o imaginário do pesquisador, onde se formam suas preferências indestrutíveis, independentemente da concretude do objeto. Preferências que também o levam a definir o objeto a ser pesquisado, a recortá-lo conforme seja compatível com suas escolhas prévias. A ideia da substância parece tão nítida, tão simples e tão pouco discutida que o pesquisador não tem dúvida em apoiar-se nela, mesmo contra evidências que a questionam. As convicções substancialistas são tão óbvias para o pesquisador que ele se apoia nela como se possuísse uma vantagem evidente diante do objeto.

O quantitativismo

A utilização de técnicas de pesquisa é fundamental para produção de conhecimento científico. A questão que se deve observar, do ponto de vista do obstáculo epistemológico, não é o uso das técnicas, mas o rigor do metodologismo, que valoriza mais aplicação correta da técnica do que o conteúdo que ela pode revelar. Assim, as avaliações da produção científica tendem a se concentrar mais na propriedade da aplicação de técnicas de pesquisa do que na contribuição para a representação do objeto pesquisado. A metodologia é um elemento fundamental para toda produção científica. A observância do procedimento metodológico implica a utilização de técnicas de pesquisa, que são objetivamente determinadas pela condição própria do objeto pesquisado. Quando as técnicas de pesquisa são definidas independentemente da condição do objeto e se tornam mais relevantes do que a própria pesquisa, o objeto ou o fenômeno assume uma posição secundária, ilustrativa, das técnicas. Esse procedimento é pseudocientífico. Não se trata de abstrair a utilização de técnicas corretas, mas de considerar as técnicas apropriadas às exigências do objeto, sejam elas quantitativas, qualitativas ou ambas (Faria, 2023).

Para Bachelard (1996), a concepção de que técnicas quantitativas de pesquisa são objetivas e neutras é falsa. A assunção de uma teoria de partida já é um indicativo de subjetividade no processo de pesquisa. Desde esse princípio, o pesquisador passa a definir, arbitrariamente, quais são os elementos constitutivos que pretende estudar. E define, subjetivamente, as variáveis, as relações e correlações supostas, bem como os procedimentos de medida. Ao definir, de forma subjetiva, o que deseja investigar, o pesquisador submete sua subjetividade para a objetivação, em uma tentativa de tornar objetivo aquilo que é, por princípio, subjetivo, sob o argumento da objetividade quantitativa. Assim, define variáveis, relações e correlações estatísticas possíveis, e as expõem em questionários, que se apresentarão, aos participantes, como alternativas. Independentemente do tipo de questão e de alternativas de respostas, os participantes deverão escolher a partir da percepção subjetiva, isto é, os participantes respondem subjetivamente às questões propostas. O resultado, ao final, é que o pesquisador terá encontrado, estatisticamente, a medida da subjetividade, à qual atribuirá fórmulas estatísticas que aparentemente se constituem em objetividades. O resultado, fatalmente, será uma meta-subjetividade, uma subjetivação das subjetividades, do pesquisador e dos participantes. Esse procedimento é aceito como próprio do fazer científico, mas se constitui em um verdadeiro obstáculo ao conhecimento científico.

O conhecimento imediato marca o objeto com impressões subjetivas. O conhecimento imediato só pode oferecer certezas prematuras sobre o objeto que, em vez ajudar, entravam o conhecimento. Essa limitação, por vezes atribuída à análise qualitativa do objeto, está presente no uso de técnicas quantitativas, visto que a grandeza não é automaticamente objetiva, especialmente nas ciências humanas e sociais. Mesmo quando se considera, por exemplo, a idade dos trabalhadores em uma determinada indústria, que é um dado objetivo, classificar esse dado por faixas de idade já contém uma arbitrariedade. Explicar índices de qualidade do trabalho a partir dessas faixas para além de uma constatação simples, apenas potencializa a arbitrariedade. Como o objeto científico sempre é, sob certos aspectos, um objeto novo, como afirma Bachelard (1996), ou original, como se espera da ciência, as determinações primeiras não são adequadas. É preciso uma investigação em profundidade para que um fenômeno possa ser objetivamente conhecido. Instrumentos quantitativos de coleta e tratamento de dados só entram no processo de investigação científica depois que o objeto tenha sido submetido a um determinado escrutínio.

Duas questões opostas marcam o quantitativismo como obstáculo epistemológico. A primeira se refere ao fato de as técnicas quantitativas de pesquisa abusarem do que chamam de dados desprezíveis ou insignificantes. Daí emerge o questionamento se o desprezível e o insignificante não são exatamente o arbitrariamente desprezado e o sem significado anterior. A segunda questão é que além de considerar que as medidas são relativas às técnicas e formas de obtê-las e de tratá-las, é necessário observar que a pretensão pela precisão, em estudos organizacionais, é praticamente inalcançável. A precisão quantitativa, mesmo no terreno das minúcias, não corresponde à objetividade científica nos estudos organizacionais. Como afirma Bachelard (1996, p. 161), “uma das exigências primordiais da ciência é que a precisão de uma medida se refira constantemente à sensibilidade do método de mensuração e que leve em conta as condições de permanência do objeto medido”. Medir com exatidão um objeto fugaz ou indeterminado, como a percepção, as preferências e as avaliações dos entrevistados, é uma impossibilidade real e uma operação inútil, pois muito pouco acrescenta ao conhecimento. Toda medida requer uma análise do que medir, como medir e com qual finalidade medir. O pesquisador pré-científico toma um objeto particular, descreve-o, mede-o e procura esgotar a medida até os mínimos detalhes. Ao contrário, o

cientista aproxima-se do objeto primitivamente mal definido. E antes de tudo prepara-se para medir. Pondera as condições de seu estudo; determina a sensibilidade e alcance de seus instrumentos (...) O objeto medido nada mais é que um grau particular da aproximação do método de mensuração (...) Pretender esgotar de uma só vez a determinação quantitativa é deixar escapar as relações do objeto (...) A precisão de um resultado, quando vai além da precisão exigida, significa exatamente a determinação do nada. (Bachelard, 1996, p. 161-162)

Quando se fala, por exemplo, do número de habitantes em determinada localidade, tal número se apresenta como fixo para um conceito flutuante, cuja validade, para ser exata, pode não chegar a um dia. Entretanto, é um número que, juntamente com outros, vai servir durante anos para a definição de determinadas políticas públicas. O quantitativismo é um obstáculo epistemológico, em estudos organizacionais, não apenas quando se pretende preciso e exato, mas quando se pretende neutro, objetivo e isento de subjetividade em sua formulação e aplicação, produzindo conhecimento que pretende ser mais do que um conhecimento aproximado.

Conclusão

O objetivo deste ensaio foi elaborar, criticamente, considerações sobre os obstáculos epistemológicos em estudos organizacionais a partir das argumentações de Gaston Bachelard. Essas reflexões justificam-se tendo em vista os estudos empírico-descritivos, estudos e modelos baseados em concepções idealistas e valorização do tecnicismo metodológico que assume posição mais relevante do que a realidade investigada. A inspiração dessas considerações apoia-se na concepção de Bachelard quanto aos obstáculos epistemológicos e se sustentam na ontologia e epistemologia crítica do concreto (Faria, 2022). Isso porque é necessário resgatar o objeto como elemento fundamental da elaboração teórica. Não o objeto em sua aparência imediata e em sua descrição, mas o objeto em sua condição fenomenológica, multideterminado, com suas contradições. Não o objeto como determinado por uma teoria pressuposta, que se impõe sobre ele como algo externo e superior que o subordina, mas o objeto de onde a teoria é produzida. A teoria entra na representação do objeto não como um pressuposto, mas como elemento constitutivo dessa representação.

Na história da ciência há inúmeros exemplos da supremacia da aparência em relação à essência que se pretende explicar (Thompson, 1981; Reale & Antisere, 1991). Não apenas pelo fato de o conhecimento científico objetivo não ser absoluto e definitivo, mas porque o imperativo, tanto do empirismo quanto do idealismo, foi se tornando regra da ciência. A esta regra soma-se o tecnicismo metodológico, em que a técnica de pesquisa passa a ser mais importante do que o fenômeno pesquisado (Adorno, 2001). Essas são as três categorias de obstáculos epistemológicos que se pode extrair das proposições de Bachelard, aqui examinadas: obstáculo empirista descritivo, obstáculo idealista místico, e obstáculo tecnicista metodológico.

O que o pesquisador científico deve perseguir é a produção de um conhecimento objetivo, contra o objeto que se esgota no conhecimento sensível e contra as ideias prévias que enquadram o objeto em uma concepção antes mesmo dele se manifestar. O conhecimento sensível somente avança para o conhecimento científico quando é questionado pelo objeto que pretende representar, quando o objeto, ao não se deixar apanhar ontologicamente como objeto em si, imediato, exige do sujeito um ato epistemológico elaborado em profundidade.

Sobre as proposições de Bachelard, aqui expostas, convém enfatizar que nem as ideias em si são fatos (além da condição de serem ideias), e nem os fatos em si são ideias (além de serem ideias sobre fatos). A ideia somente é um fato quando objetivada, quando enunciada. Os fatos podem ser interpretados de diferentes maneiras, dependendo dos sistemas de referência. Para complexificar, as ideias se manifestam em palavras e essas podem ser enganadoras, podem ser armadilhas para o conhecimento. Exatamente por isso, não se pode confiar em uma única interpretação e em um único enunciado. A ciência se expressa em teorias e conceitos em uma determinada linguagem. Nesse sentido, um conceito pode estar na origem de outro, mas não necessariamente dar origem a outro. O conceito que recorre a outro só pode ser conceito novo ou renovado se tiver a realidade como referência, a realidade que o conceito pretende representar. Conceito que dá origem a outro conceito ou conceito que se modifica a partir de outro conceito é um movimento especulativo. Tais considerações não superam, contudo, um obstáculo que se refere à ausência, na representação dos objetos e dos fenômenos, de suas múltiplas determinações histórico-sociais, que Bachelard não discute.

De fato, Bachelard não trata dos processos histórico-sociais em suas reflexões epistemológicas sobre a produção do conhecimento, o que se pode compreender porquanto seus primeiros objetos de referência terem origem na química e na física, matérias que lecionou em cursos secundários antes de ser convidado, em 1930, a lecionar na Faculdade de Dijon e, mais tarde, em 1940, na Universidade de Sorbonne. Os obstáculos e rupturas a que se refere Bachelard sobre a produção científica considera o objeto em sua condição dada e o caráter histórico não se refere ao objeto, mas aos conhecimentos sobre ele, à história dos conceitos e das teorias, em uma perspectiva mais propriamente temporal. Tais conhecimentos constituem modelos ou paradigmas, que finalmente são obstáculos a serem superados ou rompidos. Essa limitação não impede, contudo, que se possa refletir sobre sua concepção de obstáculos e de rupturas epistemológicas na produção do conhecimento científico, especialmente no campo dos estudos organizacionais.

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Notas

  • 1
    . Por uma questão de organização do texto utiliza-se as expressões “pesquisador” e “pesquisadores”. Sempre que tais expressões são utilizadas elas incluem, necessariamente, as expressões “pesquisadora” e “pesquisadoras”.
  • 2
    . Para efeitos destas considerações não serão tratados os obstáculos do mito da digestão, do animismo e da libido, nos quais Bachelard dialoga especificamente com a psicanálise. Esses três obstáculos não possuem referência direta com os Estudos Organizacionais, embora possam ser considerados em determinadas abordagens.
  • Linguagem inclusiva:
    Os autores usam linguagem inclusiva que reconhece a diversidade, demonstra respeito por todas as pessoas, é sensível a diferenças e promove oportunidades iguais.
  • Verificação de plágio:
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  • Financiamento:
    Os autores agradecem o apoio financeiro do CNPq viabilizado pela Bolsa Produtividade em Pesquisa do primeiro autor.
  • Editora Associada:
    Josiane Silva de Oliveira

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2025
  • Data do Fascículo
    Ago 2025

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2024
  • Aceito
    24 Abr 2025
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