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A quem serve a escola pública?

RESENHA

A quem serve a escola pública?

Carine Suder Fernandes; José Gonçalves Medeiros

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Carine Suder Fernandes Rua Barão de Capanema, 1282 Guarapuava - PR, CEP: 85015-420 E-mail: casufe@gmail.com e jose.medeiros@pesquisador.cnpq.br

Postman, Neil (2002). "O fim da Educação: redefinindo o valor da escola". Rio de Janeiro: Editora Graphia.

O que fazer na escola? O que será aprendido? Quais são as conseqüências de não ir à escola? Existe uma saída viável para a educação pública? Essas perguntas dizem respeito a um problema compartilhado por governos e profissionais de todo o planeta: Qual é a função da escola pública? Para o autor de "O fim da educação: redefinindo o valor da escola", Neil Postman, a função da escola é criar um público que servirá a determinados propósitos: alimentar o ciclo econômico e político por meio do trabalho e da participação democrática, perpetuar os valores culturais por meio da linguagem e dos costumes sociais e usufruir e/ou manter os recursos naturais. Esses propósitos sãopossuidores de uma "história" que os justifica e dá a força de uma verdade pela qual vale a pena viver ou lutar. Para atingir esse objetivo a escola oferece a seus clientes aprendizagens específicas que moldam suas percepções de mundo e sociedade. Em última análise a escola molda os comportamentos para que certas crenças sejam perpetuadas, tais como o ideal de "fraternidade, liberdade e igualdade". Por meio da explicitação de velhas e novas narrativas (como o autor denomina essas histórias) é resgatada a função social da escolarização pública, de modo que a leitura desse livro fornece importantes subsídios para aqueles que se preocupam com a crise da educação.

Entre as principais questões que constituem esse debate está a explicitação dos aspectos relevantes para a formação da cidadania e quais são as contribuições da escola pública para isso. Uma alternativa é a construção coletiva e o uso consciente das narrativas humanas na elaboração e execução da prática pedagógica. Narrativas são histórias por meio das quais são atribuídos significados a dados da realidade. Esses significados não são comprováveis, pois estão relacionados a mitos sociais, mas contém a força de uma verdade absoluta. Postman apresenta as principais narrativas utilizadas para responder a essa necessidade: o "sonho americano", que garante o direito a todos os estadunidenses a realizarem seus sonhos; a "democracia liberal", que afirma a participação ativa de todos na construção da sociedade que é desejada; "o trabalho árduo", que mostra a seus adeptos como é possível ser feliz e realizar grandes conquistas adiando os prazeres e se dedicando ao trabalho honesto e honrado. Utilizando dados dos principais sensos americanos, o autor demonstra que há muito tempo essas narrativas não oferecem razões fortes suficientes que garantam a cidadania para nossos futuros adultos. Por meio de uma linguagem clara e simples, o autor expõe suas reflexões a respeito das escolhas educacionais que cada uma dessas narrativas representa e dos problemas que delas decorrem.

Em busca de solução para a crise que evidencia as deficiências da escolarização pública, muitos educadores inovam suas técnicas de ensino e buscam novas tecnologias para incrementar seu método de trabalho. Para o autor, as técnicas de ensino são importantes, mas inúteis se não existe uma (ou mais de uma) razão para que os estudantes saiam de suas casas para ir à escola. Essas razões podem ser expressas nas formas de histórias, mitos ou narrativas, que representam versões da origem da humanidade, explicam o presente e oferecem elementos para pensar e planejar o futuro desejado, cada uma com as suas limitações e contribuições específicas. Algumas dessas narrativas vêm sendo contadas há alguns séculos, mas a sua validade foi contestada por novas versões, contadas a partir das transformações que o mundo ocidental contemporâneo presencia, tais como "A opinião pessoal é sagrada, não pode ser contestada", "A utilidade econômica: você é aquilo que produz", "A tecnologia pode resolver quaisquer problemas", "Para que trabalhar tanto se não pode aproveitar o fruto do trabalho? Você é aquilo que consome". Entretanto os novos mitos não são suficientemente fortes para sustentar a existência da escolarização pública. A criação de novas narrativas ou a recriação de antigas, atualizadas de acordo com as descobertas históricas e científicas, pode ser uma boa forma de criar novos sentidos à escolarização pública. Neil Postman oferece exemplos elucidativos dessas criações e recriações, constituídas por elementos muito atuais (como o cuidado com o meio em que vive o ser humano e a convivência pacífica entre diferentes culturas) descritos de forma que qualquer educador possa refletir sobre as razões para uma redefinição da (s) função (ões) da escolarização pública.

Na primeira parte do livro é apresentada a tese de que a escolarização pública está atravessando uma grave crise, pois cada vez mais os objetivos da instituição chamada educação estão confusos e obscuros para os profissionais que a tem como objeto de estudo e trabalho. Para demonstrar essa afirmação Postman apresenta algumas narrativas que ilustram a história americana, como o "sonho americano", a "democracia liberal", o "trabalho árduo". Esses mitos oferecem em seus subtextos muitas razões para a existência da escola pública, mas foram enfraquecidos com os avanços tecnológicos e mudanças sociais, dando lugar aos novos os ícones como "consumo", "tecnologia" e "multiculturalismo". Ao expor os principais problemas de cada narrativa, Postman também aponta seus aspectos mais relevantes para construir novas narrativas, mais coerentes com os problemas que a sociedade ocidental enfrenta atualmente, tais como a violência urbana e desigualdade social. Dessa forma, quando disserta sobre as metáforas "Espaço-nave Terra", o "Anjo decaído", "o experimento americano" e "fabricantes de mundos", sugere alternativas para refletir sobre um método de educar mais contextualizado com os desafios contemporâneos.

Na segunda parte do livro, Postman relata com mais detalhes as narrativas consideradas por ele como alternativas para a crise educacional americana. Cada capítulo dessa parte do livro é dedicado a cada uma das novas narrativas, construídas a partir dos aspectos positivos das primeiras metáforas americanas - descritas na primeira parte do livro. Ao mesmo tempo em que oferece exemplos do cotidiano da escola pública americana, demonstra como essas narrativas podem oferecer um sentido para a existência da escola pública que ofereça respostas adequadas aos problemas que políticos, administradores escolares e educadores vêm enfrentando há algumas décadas.

É possível perceber ao longo do livro que há uma preocupação do autor em esclarecer muito bem o que ele está denominando mitos ou narrativas da escolarização pública. Entretanto existem os riscos de tornar a leitura repetitiva e cansativa, e nesse ponto do livro ela realmente o é, além de restringir as soluções à realidade estadunidense. Entretanto, ao comparar as diversas características das escolas públicas do Brasil e dos Estados Unidos, é possível perceber que, excetuando as características culturais, as diferenças são apenas aparentes. Com um índice de reprovação que só diminuiu com práticas que escondem as deficiências do sistema de educação, as escolas públicas de ambos os países estão repletas de crianças que vivenciam os problemas da discriminação racial e social, da fome, da miséria, do tráfico de drogas e violência. Além disso, ambos os países abrigam diversas sub-culturas, algumas completamente diferentes uma da outra, quase incompatíveis. Ao observar essas características tão específicas e ao mesmo tempo tão semelhantes fica a pergunta: são dois países assim tão diferentes? Apesar das especificidades, os exemplos apresentados pelo autor têm mais semelhanças com a realidade brasileira do que aparentam a principio. Do exame atento de cada alternativa apresentada podem decorrer sugestões valiosas para o início do debate e reflexão a respeito de projetos regionalizados como soluções possíveis para a escolarização pública brasileira.

A descrição das alternativas que existem para justificar a escolarização pública e a explicitação de novas possibilidades, mais contextualizadas e fundamentadas nas descobertas científicas e reflexões filosóficas são provocações para novas reflexões. O texto inteiro é escrito com muita clareza, simplicidade e um tipo de humor que não descaracteriza a seriedade do assunto abordado. A linguagem utilizada pelo autor instiga o leitor a buscar mais informações sobre o tema, aprofundar seus estudos de modo a construir possibilidades que sejam as mais adequadas possíveis à sua realidade específica.

Ao explicitar antigas e novas narrativas humanas que podem justificar a existência da escola pública, o autor demonstra que o sistema de educação pública precisa passar por transformações significativas, entre estas a redefinição do papel da escola para a sociedade americana. Essa demonstração é realizada por meio de reflexões acerca dos eventos cotidianos e de elementos mais atuais da história humana - tais como as guerras, violência urbana, miséria, globalização, aquecimento global, entre muitos - com o auxílio de um estilo de escrita claro, simples e provocador. Apesar das diferenças entre as duas realidades (norte-americana e brasileira) a leitura do livro pode auxiliar o leitor na análise dos problemas educacionais com a finalidade de elaborar alternativas adequadas às especificidades regionais, de forma que cada integrante da sociedade tenha muita clareza a respeito da função da escola pública e a quem ela deve servir.

Artigo recebido em 12/04/2006 e aceito para publicação em 17/06/2006.

  • Endereço para correspondência:
    Carine Suder Fernandes
    Rua Barão de Capanema, 1282
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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