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A propósito das consciências: diálogo com Arno Engelmann

About consciousness: dialogue with to Arno Engelmann

Resumos

Este texto é resultado de um exercício de reflexão, desde a ótica semiótico-construtivista, a respeito de alguns aspectos centrais das formulações teóricas de Arno Engelmannn sobre consciência. Inicialmente é feita uma síntese das proposições de Engelmann sobre o tema, consideradas centrais para esta reflexão. A seguir, são indicadas, em contrapartida, algumas proposições nucleares do construtivismo semiótico-cultural, com respeito à relação sujeito-realidade, que podem estabelecer diálogo com as proposições engelmanianas, anteriormente destacadas. Finalmente, são colocadas algumas questões a respeito da abordagem de Engelmann à consciência, advindas desse diálogo.

construção do conhecimento; consciência


This paper arises from a semiotic-constructivist reflective exercise respect to some central features of Arno Engelmann´s theoretical formulations about consciousness. First, some of the main Engelmann´s proposals about the focused subject are summarized. Following and in counterpart, some nuclear semiotic-construtivist proposals addressing to the subject-reality relationship , which can be viewed as establishing a dialogue with the previously Engelmaniann formulations, are highlighted. Last but not least, some questions respect to the Engelmann´s approach to consciousness followed from that dialogue are set to be discussed.

construction of knowledge; consciousness


SEÇÃO ESPECIAL - ARNO ENGELMANN

A propósito das consciências: diálogo com Arno Engelmann

About consciousness: dialogue with to Arno Engelmann

Lívia Mathias Simão

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Av. Prof. Mello Moraes, 1721 Cidade Universitária A de Salles Oliveira 05508-9000 São Paulo SP Brasil E-mail: limsimao@usp.br.

RESUMO

Este texto é resultado de um exercício de reflexão, desde a ótica semiótico-construtivista, a respeito de alguns aspectos centrais das formulações teóricas de Arno Engelmannn sobre consciência. Inicialmente é feita uma síntese das proposições de Engelmann sobre o tema, consideradas centrais para esta reflexão. A seguir, são indicadas, em contrapartida, algumas proposições nucleares do construtivismo semiótico-cultural, com respeito à relação sujeito-realidade, que podem estabelecer diálogo com as proposições engelmanianas, anteriormente destacadas. Finalmente, são colocadas algumas questões a respeito da abordagem de Engelmann à consciência, advindas desse diálogo.

Palavras-chave: construção do conhecimento; consciência

ABSTRACT

This paper arises from a semiotic-constructivist reflective exercise respect to some central features of Arno Engelmann´s theoretical formulations about consciousness. First, some of the main Engelmann´s proposals about the focused subject are summarized. Following and in counterpart, some nuclear semiotic-construtivist proposals addressing to the subject-reality relationship , which can be viewed as establishing a dialogue with the previously Engelmaniann formulations, are highlighted. Last but not least, some questions respect to the Engelmann´s approach to consciousness followed from that dialogue are set to be discussed.

Key words: construction of knowledge; consciousness.

Estamos inevitavelmente sempre falando de algum lugar. As discussões filosóficas têm talvez como principal ganho nos fazer refletir sobre as implicações ético - científicas de estarmos em determinado lugar. E estaremos sempre em algum.

Estou falando aqui da perspectiva da psicologia construtivista semiótico - cultural, com a qual tenho me envolvido para abordar as relações entre interação verbal e processos de construção de conhecimento, com ênfase nas construções possíveis para o sujeito, diante do significado afetivo - cognitivo que a relação com o outro tem para ele (Simão, 2000a; 2000b; 2001; 2002a; 2002b).

Deste lugar, sempre damos especial atenção ao contexto em que as ações ocorrem, porque elas só podem ser compreendidas em seu significado afetivo - cognitivo quando contextualizadas.

É justamente neste sentido contextual, e não apenas formal e de "boas maneiras", que agradeço ao José Lino pela oportunidade de estar aqui com vocês, na USP Ribeirão Preto, fazendo a tentativa bastante estimulante e difícil de refletir, criticamente e de maneira sintética, sobre algumas das idéias que tiveram grande influência na minha formação acadêmica: as idéias do professor, amigo e colega Arno Engelmann sobre consciência.

"Mas o relato verbal relata o relatado num efeito de inferência" (Engelmann, 1985, p. 2). Felizmente ou infelizmente, não computei quantas horas, com idas e vindas, Beth Tunes1 1 Profa. Dra. Elizabeth Tunes (Universidade de Brasília e Universidade Católica de Brasília). e eu nos debruçamos sobre esta formulação do Arno, quando fazíamos nossas teses de mestrado e doutoramento.... Era, para nós, uma formulação que encerrava o fascínio e o enigma de nos sentirmos próximas a uma versão filosoficamente relevante dos fenômenos que eram temas das nossas pesquisas. É bom lembrar que estávamos no final da década de 70, início dos anos 80 do século XX, quando ainda, em alguns setores da Psicologia brasileira, encontrava-se forte resistência ao reconhecimento da condição fascinante e inescapável do ser humano como alguém que se relaciona interpretativa e inferencialmente com sua própria experiência. Aquela formulação do Arno funcionava, pois, emblematicamente como um encorajamento e um aval para nós, já que o pesquisador não foge à regra dos humanos: tem sua ação não só racionalmente, mas também afetiva e emocionalmente orientada. Não é à toa que minha primeira anotação de aula no curso "A Psicologia como parte da filosofia e das ciências", ministrado pelo Arno em 1989, foi a de que "o que interessa não é como o psicólogo se relaciona com o sujeito, animal ou humano, com o paciente, mas sim como ele vê essa relação". Arno nos abriu, e abre a seus novos alunos, a perspectiva do desafio de tratar com aquilo que é fenomenologicamente significativo, fazendo-o já através de seu próprio discurso nos textos que escreve: interage diretamente com o leitor, na primeira pessoa e no tempo presente, falando da experiência de estar aqui e agora, convidando - o para o diálogo filosófico - científico que a partir daí se instala. Não faz mistério de suas opções. Consegue compatibilizar fala coloquial com densidade filosófico - científica, "marca registrada" de seus textos.

Curiosamente, ou compreensivelmente, é daquela mesma proposição do Arno que eu parto novamente hoje para delinear alguns aspectos que penso serem fundamentais para a questão da consciência.

"O relato verbal relata o relatado num efeito de inferência" (Engelmann, 1985, p. 2) implica três instâncias interrelacionadas e fundamentais para essa questão: linguagem, subjetividade e consciência, que, por sua vez, remetem, dialogicamente, ao indizível, ao intersubjetivo e ao inconsciente.

Passo a sintetizar minha compreensão de algumas das proposições do Arno que considero centrais e que estão presentes em Engelmann (1983; 1985; 1988; 1989; 1997; 2001).

O recorte da obra foi, evidentemente, forçoso e o critério que utilizei foi o das interseções mais relevantes que vejo das idéias do Arno com a área de pesquisa que desenvolvo, seja no sentido convergente, seja no sentido de problematiza-las ambas.

Para mim, o fenômeno fundamental de que Arno parte é o do conhecimento do mundo pelo eu, ou seja, da questão filosófica das condições de conhecimento, inclusive científico. A possibilidade de conhecer tem como premissas o ceticismo probabilista humano e o emergentismo gestáltico da teoria geral de sistemas de von Bertalanffy.

Desse lugar Arno faz proposições especificamente atinentes à questão da consciência.

A partir dos conceitos de dado primário e secundário e de hipótese de primeira e segunda ordem, ele chega às formulações de dois tipos de consciência. A consciência do outro, chamada inicialmente de consciência - 2 e posteriormente de consciência mediata, é formada de experiências do outro e reconstruída parcialmente na consciência do eu. Ela é mediata porque conhecida através de fenômenos psicológicos expressivos do outro, como por exemplo a fala. É, portanto, construída e será sempre inferida. Além disso, a consciência mediata é temporal, intencional e determinada pelos estados organísmicos e pela experiência. Ela é uma pequena parte de um dos níveis de organização do ser humano e pressupõe uma relação de conhecimento probabilística do mundo real pelo eu. Se se postula uma consciência - 2, haverá, é claro, uma consciência - 1. Ela é a consciência do eu que é dada imediatamente. É atemporal e epistemológica, base de qualquer descoberta do ser humano. A consciência imediata é "maior" que as formas de expressão, por exemplo, a linguagem. Salvo a própria consciência imediata, tudo mais no universo é mediato.

O desdobramento teórico - epistemológico da distinção entre consciências implicou a construção atual de Arno sobre os dois mundos: o meu - mundo e o resto - do - mundo. O meu mundo advém da consciência imediata e o resto - do - mundo da consciência mediata. Todos nós apresentamos meu - mundo e resto - do - mundo, e eles serão sempre diferentes para cada um de nós e para nós mesmos em diferentes momentos de nossas vidas. Nossas proposições sobre o meu - mundo dos outros e o meu - mundo de mim em tempos passados, inclusive imediatamente passados, isto é, sobre o resto - do - mundo para mim, serão sempre inferências feitas através de expressões minhas ou do outro. O mesmo vale para o outro, a respeito de mim. Mas a inferência é um processo singular, individual, donde a construção, o conhecimento inferencial do chamado "mundo", que aqui se define como resto - do - mundo, depende do meu - mundo de cada pessoa.

Passo agora a pontuar rapidamente algumas das proposições centrais do construtivismo semiótico - cultural que podem ter certa convergência com as proposições do Arno que destaquei acima, mas que, ao mesmo tempo, suscitam questões com relação a elas. Na perspectiva dos construtivismos, a realidade é construída e reconstruída pelo eu, através, fundamentalmente, da mediação de formas de expressão do outro que são interpretadas pelo eu. Esta interpretação é sujeita à negociação eu - outro, especialmente através da interação verbal, dando lugar, muitas vezes, à emergência de novos significados, que serão balizadores (Valsiner, 1997a, 1998) de futuras interpretações e negociações. As formas de expressão e de interpretação variam com a cultura, a época e, principalmente, na mesma pessoa em tempos diferentes, devido à relação dialógica eu - mundo2 2 A relação dialógica, tal como a entendo, supõe que eu - mundo compõem uma díade na qual se definem mutuamente, sem entretanto haver uma fusão que os torne indistinguíveis. Isto pressupõe a separação inclusiva, no sentido de Valsiner (1997b), onde a própria relação entre os elementos é parte do sistema e, porntanto, essencial para se compreenda a própria constituição de cada um. . Neste sentido, sujeito e cultura são mutuamente constitutivos, mas o sujeito é seletivo em sua disponibilidade para a relação eu - outro, que concretiza indiretamente a relação sujeito - cultura.

Dentre as formas de expressão do outro, a expressão verbal tem sido culturalmente privilegiada, daí a centralidade da relação eu - interlocutor na construção da realidade. Neste sentido, sinteticamente falando, o conhecimento da realidade, incluídos aí o si mesmo, o outro e a relação si mesmo - outro, é uma construção e reconstrução a partir da experiência individual mediata, singular e subjetiva, donde o caráter de novidade e irrepetibilidade das construções simbólicas da realidade.

Na relação eu - interlocutor, a experiência com a realidade é, na verdade, experiência com a expressão direta ou indireta (marcas) do outro, que é interpretada pelo eu, que se expressará a partir daí para o outro, que se vê como eu, e assim por diante. Na interação verbal, a fala é a expressão por excelência interpretada na construção não só do conhecimento sobre a realidade, que é conteúdo da conversa (tematizada na conversa), mas também na construção do outro e da relação eu - outro como realidade.

Dado esse caráter mediado e construtivo da relação eu - mundo, que inclui a relação eu - outro, a realidade é uma versão mais ou menos plausível que o sujeito constrói e reconstrói em seu processo de desenvolvimento, que dura toda sua vida. Este processo construtivo é um processo mental, que se dá num tempo irreversível (no sentido de Prigogine e Valsiner), pela ação simbólica do eu, ação esta que é tanto instrumental - racional como afetivo - subjetiva (Boesch, 1991).

Feita esta rápida síntese gostaria de propor algumas questões, no sentido de provocar diálogo, a partir do enfoque e das preocupações construtivistas que podem ser denotadas pelas palavras - chave emergência do novo, irrepetibilidade, constituição mútua entre sujeito e experiência contextual, intersubjetividade, alteridade:

  1. Penso que as formulações de Arno sobre a consciência se fundamentam e, ao mesmo tempo, enfatizam a

    precedência do sujeito na construção do resto - do - mundo, que é o mundo possível de ser compartilhado. Qual seria o papel do outro, da alteridade, nessa construção?

  2. Como se coloca, mais exatamente, a relação entre a singularidade dos

    restos - do - mundo individuais, por um lado, e a repetibilidade como critério científico (Engelmann, 2001, p. 212), por outro? Ou, dito de forma mais ampla, quais as relações da experiência individual, da cultura e da ciência, enquanto

    restos - do - mundo, com o

    meu - mundo? As hipóteses básicas não são também pertencentes aos restos - do - mundo individuais?

  3. Que relações

    meu - mundo /

    resto - do - mundo dariam conta da emergência da novidade nos processos de desenvolvimento ontogenético e cultural?

  4. Como a consciência imediata dura apenas um momento, todas as outras consciências do sujeito tornam-se mediatas, como as das outras pés soas (Engelmann, 1997, p. 28). Assim, o eu é sempre mediato como instância para si mesmo e, portanto, jamais capta a si como idêntico. Isto daria conta da experiência de mutabilidade do eu para si mesmo. Mas como ficaria a experiência complementar e essencial de percepção de constância em si mesmo? O mesmo valeria para a experiência com o outro.

  5. "Uma consciência não pode conhecer outra consciência do mesmo modo que se conhece a si mesma" (Engelmann, 1997, p. 30). Mas o auto-conhecimento não seria igualmente mediato, já que as consciências imediatas são momentâneas, e passam a ser daí lembranças?

Artigo recebido para publicação em 07/02; aceito em agosto de 2002.

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  • Valsiner, J. (1998). The guided mind - A sociogenetic approach to personality Cambridge: Harvard University Press.
  • Endereço para correspondência:

    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
    Av. Prof. Mello Moraes, 1721
    Cidade Universitária A de Salles Oliveira
    05508-9000
    São Paulo SP Brasil
    E-mail:
  • 1
    Profa. Dra. Elizabeth Tunes (Universidade de Brasília e Universidade Católica de Brasília).
  • 2
    A relação dialógica, tal como a entendo, supõe que eu - mundo compõem uma díade na qual se definem mutuamente, sem entretanto haver uma fusão que os torne indistinguíveis. Isto pressupõe a separação inclusiva, no sentido de Valsiner (1997b), onde a própria relação entre os elementos é parte do sistema e, porntanto, essencial para se compreenda a própria constituição de cada um.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      07 Fev 2002
    • Aceito
      Ago 2002
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