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A ciência psicológica para além de sua interface com a saúde: alguns diálogos

RESENHA

A ciência psicológica para além de sua interface com a saúde: alguns diálogos

Fabio Scorsolini-Comin

Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba-MG, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fabio Scorsolini-Comin Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, Educação e Trabalho. Avenida Getúlio Guaritá, 159, Abadia. CEP 38.025-440. Uberaba, MG, Brasil. E-mail: scorsolini@psicologia.uftm.edu.br

Pasian, S. R., Romanelli, G., & Cunha, M. V. (Orgs.) (2009). Investigação científica em Psicologia: Aplicações atuais em saúde. São Paulo: Vetor.

A diversidade da Psicologia, longe de se cristalizar sob a noção de áreas do conhecimento, inclui a multiplicidade teórico-metodológica que fundamenta a prática de pesquisa e a intervenção profissional (Gondim, Bastos & Peixoto, 2010). A partir disso, pode-se compreender que esta ciência incorpora uma pluralidade de perspectivas que se baseiam em diferentes concepções de homem, de sociedade e do próprio bem-estar. Para além de sua indissociável interface com a saúde, a Psicologia vem cada vez mais buscando dialogar com diferentes áreas e abordagens, em busca não só de uma definição de sua identidade, mas como forma de contribuir para uma formação mais sólida e pluralista de seus profissionais, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho contemporâneo (Abbad & Mourão, 2010) e do despontar da pesquisa como campo de atuação em nosso país.

É neste sentido que esta obra, organizada pelos professores Sonia Regina Pasian, Geraldo Romanelli e Marcus Vinícius da Cunha, do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, constitui uma leitura premente para os profissionais e pesquisadores da Psicologia e áreas afins. Primeiro porque esta obra nos convida a uma reflexão que, reconhecendo-se dialógica, em uma acepção bakhtiniana, nunca se dá por finalizado, abrindo trincheiras interpretativas e práticas advindas de reflexões sobre ciência, conhecimento e pesquisa em saúde. Por este prisma, a obra se propõe a dialogar com alguns interlocutores, como atletas, agentes comunitários, cuidadores, pacientes, familiares, profissionais de saúde e, necessariamente, com os pesquisadores, que lançam seus olhares aos diferentes fenômenos relacionados ao homem, utilizando, para isso, teorias, métodos, abordagens e práticas igualmente diversas.

O objetivo da obra foi reunir os trabalhos produzidos por alunos e seus orientadores dos programas de mestrado e doutorado da referida instituição. O Programa de Pós-graduação em Psicologia em apreço iniciou suas atividades em 1995, com recomendação da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior) em outubro do mesmo ano. Atualmente, possui quatro linhas de pesquisa, sendo que esta coletânea agrega, especificamente, os estudos desenvolvidos na de número quatro, intitulada "Saúde-doença: prevenção, promoção, intervenção e avaliação", composta por 11 docentes. Esta linha de pesquisa focaliza o processo saúde-doença, desenvolvendo estudos relacionados a fatores ambientais, a variáveis psicossociais e demais condições relacionadas à qualidade de vida, bem como o processo de adoecimento e enfrentamento de pessoais adoecidas, seus familiares e equipes de saúde; e estudos relativos a práticas e/ou programas institucionais e/ou comunitários, nos diferentes níveis de atenção à saúde, utilizando diversas perspectivas teóricas e metodológicas dos campos da Psicologia Clínica, Social e da Saúde.

O livro é dividido em quatro partes. A primeira delas trata dos profissionais de saúde, trazendo dois capítulos, um sobre as representações dos trabalhadores da saúde sobre os acidentes ocupacionais, da autoria de Maria Rosa Rodrigues Rissi e Alcyone Artioli Machado, e outro sobre os sentidos produzidos por agentes comunitários de saúde acerca do HIV/AIDS no contexto do Programa de Saúde da Família (PSF), de Nara Helena Pereira da Silva e Carmen Lúcia Cardoso. No primeiro, destacam-se os reflexos do acidente ocupacional para a prática profissional, apontando para a necessidade da incorporação de novos saberes e novas práticas de atuação para que os trabalhadores possam tanto retomar suas rotinas de trabalho após o acidente como possam promover um ambiente seguro e no qual haja espaço para a prevenção do risco. Já na prática dos agentes de saúde, as autoras partem da visão desses profissionais como um elemento essencial na construção da integralidade, uma vez que ligam a comunidade aos serviços de saúde, possibilitando um diálogo entre essas partes, fundamental para a atuação no contexto do PSF. Investigando os sentidos sobre a doença e seu tratamento, o grupo possibilitou a expressão de sentimentos e concepções que abriram margem para a transformação naquele contexto.

Tendo como núcleo aglutinador a família, a segunda parte trata das vivências familiares na interface com o cuidar. Sob uma perspectiva construcionista social, o primeiro capítulo, da autoria de Laura Vilela e Souza e Manoel Antônio dos Santos, trata da construção dos sentidos em um grupo de apoio a familiares de pessoas com transtornos alimentares (TA). Conversando com esses familiares, os pesquisadores possibilitaram a construção de novas descrições acerca da doença e das pessoas acometidas pelos TAs, favorecendo a assunção de novos posicionamentos dos familiares e da adoção de práticas mais adaptativas no contexto do tratamento. O segundo capítulo, de Maria Ângela Fávero-Nunes e Manoel Antônio dos Santos, versa sobre a dinâmica familiar e a sobrecarga de mães com filhos autistas. A partir de encontros com essas mães, em um estudo de caráter descritivo e transversal, considera-se o enfrentamento do quadro clínico por meio de uma vivência de forte carga de estresse, fazendo com que essas mulheres negligenciem outros papéis na família, como os de esposa e de mães dos demais filhos. Ainda em relação à figura materna, o terceiro capítulo desta parte, de Shirley Santos Teles e Elizabeth Ranier Martins do Valle, por meio de recorte fenomenológico, aborda o ser mãe no contexto do cuidado a crianças curadas de câncer. As autoras tratam da necessidade de reorganização do papel materno, uma vez que a experiência da finitude do filho é entrelaçada com a percepção da própria finitude da mãe. Torna-se importante, neste contexto, a incorporação dos familiares no tratamento e no pós-tratamento da doença, a fim de que a família possa constituir uma rede de apoio segura e favorecedora do bem-estar.

Ainda em relação ao câncer, a terceira parte do livro aborda as vivências dos adultos acometidos pela doença. O universo pós-tratamento do câncer de mama é trazido à baila em um estudo de mestrado de Gisele da Silva, orientado por Manoel Antônio dos Santos. Embora se tratem de mulheres que já passaram pelas terapêuticas cirúrgicas, químio e/ou radioterápicas, os pesquisadores elencam uma ampla gama de eventos estressores, destacando a necessidade de que essas pacientes sejam igualmente acompanhadas e acolhidas pelos servços de saúde. Em uma vertente psicanalítica pós-freudiana, Rodrigo Sanches Peres e Manoel Antônio dos Santos tratam dos aspectos psicossomáticos do transplante de medula óssea (TMO) por meio de entrevistas psicológicas e da utilização de técnicas projetivas, integrando tanto os aspectos biológicos da doença como seus fatores psíquicos, favorecendo um diálogo que não se encerra em uma única explicação do quadro. Ainda em uma vertente integralizadora, o terceiro trabalho desta parte se detém na avaliação da qualidade de vida de pacientes submetidos ao TMO. A pesquisa conduzida por Érika Arantes de Oliveira-Cardoso e Manoel Antônio dos Santos discute de que modo o diagnóstico de câncer interfere na qualidade de vida desses pacientes, tanto no nível físico como no emocional, em termos dos sentimentos de desespero e desamparo. As conclusões do estudo levam em consideração a importância da avaliação, na perspectiva dos pacientes, como forma de promover reflexões e adoções de novas posturas por parte da equipe multidisciplinar envolvida no tratamento da doença.

A última parte do livro revela os olhares sobre a afetividade como dimensão constitutiva do ser humano. Nesse sentido, há dois capítulos. Um deles é uma pesquisa fenomenológica sobre o conceito de enfrentamento, da autoria de Daniel de Paula Lima e Oliveira Lopes e de Elizabeth Ranier Martins do Valle. Trazendo o conceito de enfrentamento em sua interface com o ser sadio existencialmente, o capítulo se propõe a levantar questionamentos e instrumentalizar os profissionais envolvidos com a Psico-Oncologia, rumo à dignidade da assistência em saúde, o que passa pelo caminho do cuidado possível tanto para com o outro quanto para consigo, na visão dos autores. O último capítulo aborda as variáveis emocionais envolvidas no desempenho de atletas, a partir do estudo de mestrado de Marco Antonio Di Bonifácio, orientado por José Lino Oliveira Bueno. Na perspectiva da Psicologia do Esporte, os autores revisam e discutem variáveis como a ansiedade, o estresse e a motivação como relacionadas ao desempenho de atletas de alta performance. Em termos das escalas existentes, enlevam a Lista de Estados de Ânimo Presentes (LEP) como um instrumento adequado à mensuração dessas variáveis, o que pode contribuir para uma abordagem mais realista do desempenho dos atletas.

À guisa de conclusão, podemos evocar alguns sentidos trazidos pela obra, como a sua busca por um diálogo entre a investigação científica (tradicionalmente identificada com a academia) e as aplicações atuais em saúde (contemporaneamente compreendidas como uma prática para além da pesquisa). Assim, o objetivo da coletânea extrapola a reunião de pesquisas sobre saúde e levanta uma relação de mão dupla: uma pesquisa que contribui para a prática (uma necessidade deflagrada pelos programas de pós-graduação e que tem sido valorizada pela CAPES), mas também uma prática que alimenta a pesquisa, favorecendo um diálogo tão almejado e igualmente complexo.

Como destacado por Bakhtin (1992), em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade de sentidos esquecidos, mas que, no desenvolvimento do diálogo, poderão ser rememorados e renascer de um modo novo, ou seja, "todo sentido festejará um dia o seu renascimento" (p. 414). Que novos sentidos possam, portanto, irromper a prática, fomentar a teoria e propiciar o renascimento constante de uma ciência psicológica que se deseja em construção.

Recebido: 13/01/2010

1ª revisão: 11/02/2010

Aceite final: 30/03/2010

Fabio Scorsolini-Comin é Professor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, Educação e Trabalho da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (NEPPS-USP-CNPq) e do grupo A Análise do Discurso e suas Interfaces (USP-CNPq).

  • Abbad, G. S., & Mourăo, L. (2010). Competęncias profissionais e estratégicas de qualificaçăo e requalificaçăo. In: A. V. B. Bastos, & S. M. G. Gondim, (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 380-401). Porto Alegre: Artmed.
  • Bakhtin, M. (1992). Estética da criaçăo verbal. (Trad. M. E. G. G. Pereira). Săo Paulo: Martins Fontes.
  • Gondim, S. M. G., Bastos, A. V. B., & Peixoto, L. S. A. (2010). Áreas de atuaçăo, atividades e abordagens teóricas do psicólogo brasileiro. In: A. V. B. Bastos, & S. M. G. Gondim, (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 174-199). Porto Alegre: Artmed.
  • Endereço para correspondência:

    Fabio Scorsolini-Comin
    Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais.
    Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, Educação e Trabalho.
    Avenida Getúlio Guaritá, 159, Abadia.
    CEP 38.025-440. Uberaba, MG, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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