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INTEROPERABILIDADE SEMÂNTICA: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA ABORDAGEM ONTOLÓGICA DE QUINE

SEMANTIC INTEROPERABILITY: AN ANALYSIS UNDER THE PERSPECTIVE OF QUINE’S ONTOLOGICAL APPROACH

RESUMO

Analisa as perspectivas ontológicas dos estudos sobre interoperabilidade semântica da Ciência da Informação à luz das noções propostas na abordagem ontológica de Willard Van Orman Quine. Um importante campo de estudo para o desenvolvimento da interoperabilidade semântica é a Organização do Conhecimento. As pesquisa nesse campo são desenvolvidas com base em diferentes abordagens e posturas epistêmicas, dentre as quais se destacam as abordagens ontológica e epistemológica e as posturas pragmática e positivista. Uma suposição que permeia a pesquisa sobre Organização do Conhecimento, ainda que muitas vezes apareça apenas de forma implícita, diz respeito à necessidade de adquirir conhecimento objetivo sobre a realidade para desenvolver Sistemas de Organização do Conhecimento que tornem diferentes universos de conhecimento interoperáveis. A partir da análise das perspectivas ontológicas dos estudos sobre interoperabilidade semântica à luz das noções ontológicas de Quine é possível concluir que se debruçar sobre os diferentes domínios, o que é relacionado à abordagem epistemológica e subjetiva na Organização do Conhecimento, é a melhor forma que o profissional da informação tem para entrar em contato e identificar, na medida do possível, o lado objetivo do conhecimento para sua posterior representação.

Palavras-chave:
Organização do Conhecimento; Ontologia; Interoperabilidade Semântica; Filosofia Analítica; Pragmatismo

ABSTRACT

This article analyzes the ontological perspectives of studies on semantics interoperability of Information Science in the light of the notions proposed in the ontological approach of Willard Van Orman Quine. An important field of study for the development of semantic interoperability is the Knowledge Organization. Research in this field is based on different epistemic approaches and postures, among which the ontological and epistemological approaches and the pragmatic and positivist postures stand out. An assumption that permeates research on Knowledge Organization, even though it often appears only implicitly, concerns the need to acquire objective knowledge about the reality to develop Knowledge Organization systems that make different knowledge universes interoperable. From the analysis of the ontological perspectives of studies on semantics interoperability, in the light of Quine's ontological notions, it is possible to conclude that focusing on different domains, which is related to the subjective and epistemological approach in Knowledge Organization, is the best way that the information professional has to contact and identify, as far as possible, the objective side of knowledge for its subsequent representation.

Keywords:
Knowledge Organization; Ontology; Semantic Interoperability; Analytical Philosophy; Pragmatism

1 INTRODUÇÃO

A norma International Organization for Standardization (ISO) 25964-2:2013, define interoperabilidade como a capacidade de dois ou mais sistemas trocarem informações e usá-las (ISO, 2013). Fusco (2011FUSCO, E. Aplicação dos FRBR na modelagem de catálogos bibliográficos digitais. São Paulo: Cultura Academica, 2011.) descreve que estes sistemas podem ser computadores, meios de comunicação, redes de softwares e outros componentes de tecnologia de informação.

O propósito da interoperabilidade, de acordo com Arms et al. (2002ARMS, W. Y. et al. A spectrum of interoperability: the site for science prototype for the NSDL. D-Lib Magazine, [s.l.], v. 8, n. 1, 2002.), é desenvolver serviços consistentes utilizando recursos informacionais que são tecnicamente diferentes e gerenciados por organizações variadas. Tal propósito exige uma série de acordos mútuos que envolvem no mínimo três níveis: o técnico, o de conteúdo e o organizacional. Na literatura especializada, é possível encontrar outras definições e descrições para os níveis de interoperabilidade. Mas um nível, ou camada, que é unanimidade em todas estas descrições diz respeito ao nível do conteúdo, o qual Fusco (2011FUSCO, E. Aplicação dos FRBR na modelagem de catálogos bibliográficos digitais. São Paulo: Cultura Academica, 2011., p. 54, grifo nosso) considera que “remete à interoperabilidade semântica, na qual a representação e organização do conhecimento são áreas-chave a serem estudadas”.

A Organização do Conhecimento (OC) é um é um importante tema de pesquisa na área de Ciência da Informação (CI). Tais pesquisas são desenvolvidas com base em diferentes abordagens e posturas epistêmicas, dentre as quais se destacam as abordagens ontológica e epistemológica e as posturas pragmática e positivista. Uma suposição que permeia a pesquisa sobre OC, ainda que muitas vezes apareça apenas de forma implícita, diz respeito à necessidade de adquirir conhecimento objetivo sobre a realidade para desenvolver Sistemas de Organização do Conhecimento (SOC) que tornem diferentes universos de conhecimento interoperáveis.

De acordo com Gnoli (2008GNOLI, C. Ten Long-Term Research Questions in Knowledge Organization. Knowl. Org., [s.l.], v. 35, n. 2, p.137-149, 2008.), na abordagem ontológica o foco é o mundo e a suposta realidade objetiva. As questões ontológicas dizem respeito à subdivisão de uma classe em tipos (gênero e espécie) e partes, ou o reconhecimento de que um dado conceito consiste em um processo ou uma entidade estática. Na abordagem epistemológica, por outro lado, o autor aponta que as pesquisas se concentram em esquemas específicos de cada domínio, de modo a explicitar seus pressupostos epistemológicos e contexto cultural. Gnoli (2008) afirma que os pesquisadores em OC, que desenvolvem pesquisas sob a perspectiva da abordagem epistemológica, geralmente tomam exemplos a partir da linguagem e seu relativismo cultural, e citam filósofos como Ludwig Wittgenstein e os pragmáticos americanos.

Gnoli (2008GNOLI, C. Ten Long-Term Research Questions in Knowledge Organization. Knowl. Org., [s.l.], v. 35, n. 2, p.137-149, 2008.) utiliza o termo ontologia para definir uma abordagem específica na OC, mas ontologia também corresponde a um tipo específico de SOC e é uma disciplina da filosofia que objetiva descrever os tipos e estruturas de entidades, eventos, processos e relações que existem no mundo real (Smith, 2003SMITH, B. Ontology. In: FLORIDI, L. (ed.) The blackwell guide to the Philosophy of Computing and Information. Oxford: Blackwell Publishing, 2003.). O interesse por ontologias, bem como os princípios filosóficos destas, em CI, decorre principalmente da necessidade de compartilhar informação.

As teorias filosóficas sobre ontologia tiveram origem na filosofia antiga com Aristóteles, mas se desenvolveram substancialmente na filosofia contemporânea, tanto no âmbito da filosofia analítica quanto no âmbito da filosofia continental. De acordo com Compton (2014COMPTON, B. W. Ontology in information studies: without, within, and withal knowledge management. Journal of Documentation, [s.l.], v. 70, n. 3, May 2014.), a maioria dos filósofos analíticos vê a ontologia como uma classificação dos seres e a metafísica como o estudo do ser em si.

A influência e relevância da tradição filosófica analítica na OC são notórias, sendo evidenciada em trabalhos como Francelin e Kobashi (2011FRANCELIN, M. M.; KOBASHI, N. Y. Concepções sobre o conceito na organização da informação e do conhecimento. Ciência da Informação, Brasília (DF), v. 40, n. 2, 2011.) e Compton (2014COMPTON, B. W. Ontology in information studies: without, within, and withal knowledge management. Journal of Documentation, [s.l.], v. 70, n. 3, May 2014.), por exemplo. A definição do que vem a ser a filosofia analítica, no entanto, é complexa. De acordo com Glock (2011GLOCK, H. O que e a filosofia analítica? Porto Alegre: Penso, 2011.) a filosofia analítica se tornou tão diversificada a ponto de perder seu perfil direcionador; o que mantém juntos os filósofos analíticos não é um conjunto único de condições suficientes e necessárias, mas uma linha de semelhanças que se justapõem (doutrinais, metodológicas e estilísticas). Brito (2017BRITO, A. N. Filosofia da linguagem. [s.l.]: [s.n.], [2017]. (Publicado originalmente no portal www.filosofia.org.br, de responsabilidade de P. Ghiraldelli Jr.).) considera que o pensamento filosófico contemporâneo é irresoluto com respeito à delimitação entre a filosofia da linguagem e a filosofia analítica. Segundo Miguens (2007MIGUENS, S. Filosofia da Linguagem: uma introdução. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007.) a filosofia da linguagem tem como preocupação as relações entre pensamento, linguagem e mundo e sua origem e desenvolvimento não são separados da filosofia contemporânea e da tradição analítica. Brito (2017) considera que com o termo 'analítica' temos uma parte do conceito, notadamente o seu método, e com o termo “linguagem”, a outra parte: o objeto ao qual se aplica o método. Por conseguinte, toda a filosofia analítica contemporânea é, fundamentalmente, filosofia da linguagem, porque é uma filosofia analítica da linguagem.

Para Mortari (2017MORTARI, C. A. Contracapa. In: KRAUSE, D. Tópicos em ontologia analítica. São Paulo: Ed. Unesp, 2017.) a questão ontológica no âmbito da filosofia analítica diz respeito àquilo que há, segundo certa concepção filosófica ou teoria científica. De acordo com Krause (2017KRAUSE, D. Tópicos em ontologia analítica. São Paulo: Ed. Unesp, 2017., p. 18),

[…] é patente que as discussões sobre ontologia não podem mais desconhecer a lógica e ciência presentes. De certo modo, hoje tendemos a rejeitar qualquer forma de armchair ontology.

O filósofo Willard van Orman Quine (1908-2000) é um dos principais representantes de estudos ontológicos em filosofia analítica. De acordo com Krause (2017KRAUSE, D. Tópicos em ontologia analítica. São Paulo: Ed. Unesp, 2017.), Quine deu contribuições valiosas aos estudos de ontologia no escopo da filosofia analítica e proporcionou um direcionamento teórico que muito influenciou os estudos ontológicos. Na filosofia analítica considera-se que o tratamento e a solução de problemas filosóficos devem se dar por meio da análise lógica da linguagem.

A filosofia analítica e o positivismo lógico nem sempre foram diferenciados. Segundo Ghiraldelli (2007GHIRALDELLI , P. O que é pragmatismo. São Paulo: Brasiliense, 2007.), Quine abriu os rumos da filosofia analítica, libertando-a do positivismo lógico e renovou o pragmatismo clássico. A filosofia analítica e o pragmatismo têm ocupado uma posição de destaque na filosofia contemporânea. Os problemas e soluções apontados por essas correntes, tão controversos quanto influentes, vêm suscitando calorosas discussões entre os filósofos e intelectuais que nelas encontram afinidades de temas e a possibilidade de refletir os problemas atinentes à sua própria área sob prismas diferentes (Pinto, 1998PINTO, P. R. M. A abordagem pragmática do conhecimento. In: JENI, V.; GIRARDI, S. A Ciência e seus Impasses: debates e tendências em Filosofia, Ciências Sociais e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1998.).

O positivismo e o pragmatismo correspondem às posturas epistêmicas que caracterizam os dois polos teórico-metodológicos considerados por vezes antagônicos, mas igualmente relevantes, na OC. A partir desse contexto e levando-se em conta que na filosofia analítica da linguagem existe um potencial de fundamentação para o desenvolvimento dos processos e produtos da OC (Blair, 2003BLAIR, D. Information Retrieval and the Philosophy of language. ARIST, Virgínia, v. 37, [s.n.], p. 2-50, 2003.; Hjørland, 2007HJØRLAND, B. Semantic and Knowledge organization. ARIST, Virgínia, v. 41, [s.n.], p. 367-405, 2007.) e que a pesquisa ontológica não é um tema obsoleto na OC, sendo considerada especialmente importante para a interoperabilidade semântica (Gnoli, 2008GNOLI, C. Ten Long-Term Research Questions in Knowledge Organization. Knowl. Org., [s.l.], v. 35, n. 2, p.137-149, 2008.), este estudo tem como objetivo analisar as perspectivas ontológicas dos estudos sobre interoperabilidade semântica da CI à luz das noções propostas na abordagem ontológica de Willard Van Orman Quine.

Desse modo, o presente artigo apresenta uma síntese da abordagem ontológica de Quine e as relações identificadas entre essa abordagem e as perspectivas ontológicas presentes nas pesquisas sobre interoperabilidade semântica da área de CI. Na próxima seção apresentam-se os procedimentos metodológicos adotados.

2 PROCEDIMENTOS DE COLETA, SELEÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Para a análise e descrição da abordagem ontológica de Quine realizou-se a busca das obras do filósofo no catálogo da Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina (BU-UFSC) e nas bases de dados Web of Science (WoS) e Scopus. Utilizou-se a opção de busca por autor sem delimitação de período. A coleta de dados resultou em 31 publicações de Quine. A análise para a seleção e definição do corpus de pesquisa teve como base o entendimento de ontologia como o estudo do ser e dos tipos de coisas que existem, que se faz presente na definição da abordagem ontológica de Gnoli (2008GNOLI, C. Ten Long-Term Research Questions in Knowledge Organization. Knowl. Org., [s.l.], v. 35, n. 2, p.137-149, 2008.). A partir da pré-análise foram selecionados os ensaios (1) “Sobre o que há”, (2) “Identidade, ostensão e hipóstase”, (3) “Relatividade ontológica” e o sétimo capítulo do livro Palavra e Objeto, (4) “Decisão ôntica”. Além deste capítulo e dos ensaios selecionados, nos quais Quine aborda as questões ontológicas de modo direto (“o que há?” e “que tipos de coisas existem?”) verificou-se que, nas palavras do próprio Quine (2011, p. 184), a noção de compromisso ontológico, apresentada no ensaio “Sobre o que há” e desenvolvida no sétimo capítulo do livro Palavra e objeto, pertence à teoria da referência, que o filósofo desenvolve no âmbito da semântica como uma alternativa à teoria do significado.

A teoria do significado tem como principais conceitos, de acordo com Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 183), “sinonímia (ou identidade de significado), significância (ou posse de significado) e analiticidade (ou verdade em virtude do significado). Outro é o de implicação ou analiticidade do condicional”. Quine discute e critica os conceitos da teoria do significado no ensaio (5)“Dois dogmas do empirismo”, no qual explicita a diferença entre nomear e significar, que é o principal fundamento da sua teoria da referência. Que é apresentada no ensaio (6) ”Notas sobre a teoria da referência”.

Desse modo, em (1), (2), (3) e (4) encontramos as noções centrais para a descrição da abordagem ontológica de Quine e em (5) e (6) as noções complementares, ou seja, periféricas. Ressaltamos, contudo, que essa distinção entre noções centrais e periféricas diz respeito à descrição da abordagem ontológica de Quine. Se o propósito fosse a descrição do sistema filosófico de Quine como um todo, as localizações provavelmente se inverteriam, pois a crítica ao conceito de analiticidade, apresentada no ensaio Dois dogmas do empirismo, apareceria como um ponto central.

Para o levantamento bibliográfico de pesquisas sobre interoperabilidade semântica desenvolvidas na área de CI realizou-se busca na base de dados WoS. O levantamento bibliográfico foi realizado em julho de 2018. No quadro 1 apresenta-se a estratégia de busca adotada, o número de resultados obtidos e o método de análise empregado no conjunto de dados.

Quadro 1
Busca, seleção e análise das pesquisas sobre interoperabilidade semântica em CI

Dos 62 artigos recuperados na WoS e classificados na categoria Information Science Library Science um é em alemão e obteve-se acesso apenas a 54, os quais tiveram o texto completo analisados (análise de conteúdo).

Na análise de conteúdo adotou-se critérios semânticos para a análise categorial “por caixas”, cuja categoria de análise corresponde à perspectiva ontológica adotada. Tais perspectivas foram analisadas com base na abordagem ontológica de Quine. A ficha documental para a análise dessas publicações foi composta pelos seguintes campos: identificação do trabalho (título, autoria e data) objetivo, tipo de pesquisa (teórica ou aplicada), abrangência da interoperabilidade (geral ou de domínio), definição de interoperabilidade semântica, perspectiva ontológica, observações e extratos.

3 ABORDAGEM ONTOLÓGICA DE QUINE

A partir da análise das publicações de Quine que abordam as questões ontológicas identificou-se que para Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) qualquer debate sobre ontologia exige a estipulação de um conceito de existência; ele rejeita a doutrina que relaciona o ser, ou a existência, à significância e defende a que relaciona o ser à referência, que para ele pode ser uma entidade concreta ou abstrata. Quine desenvolve sua teoria da referência como uma contraproposta à teoria do significado por que considera que significado e referência são entidades distintas e que, apesar das inúmeras tentativas dos filósofos analíticos, não é possível identificar uma definição clara do que são os significados. O que também torna obscura a noção de analiticidade, sendo que um enunciado é considerado analítico quando é verdadeiro em virtude dos significados e independente de fatos. Quine (2011) considera que mesmo sendo óbvio que a verdade em geral depende tanto da linguagem quanto de fatores extralinguísticos (factuais), o que torna razoável a suposição de que em alguns enunciados o componente factual deva ser nulo (sendo estes os enunciados analíticos), não foi traçada uma fronteira entre enunciados analíticos e sintéticos. O que torna tal distinção um dogma, um artigo metafísico de fé.

Para Quine (2010QUINE, W. O. Decisão ôntica. In: QUINE, W. O. Palavra e objeto. Petrópolis: Editora Vozes. 2010., 2011) não cabe aos filósofos dizerem se há ou não classes ou qualquer outro tipo de entidade abstrata, mas sim aos pesquisadores e cientistas dizerem o que há, o que existe,

[…] dadas as classes, ou qualquer outro domínio lato de objetos de que um matemático precisa, compete-lhe dizer se em particular há quaisquer números pares primos ou quaisquer números cúbicos que sejam somas de pares de números cúbicos (Quine, 2010QUINE, W. O. Decisão ôntica. In: QUINE, W. O. Palavra e objeto. Petrópolis: Editora Vozes. 2010., p. 342).

Os filósofos, de acordo com Quine (2010QUINE, W. O. Decisão ôntica. In: QUINE, W. O. Palavra e objeto. Petrópolis: Editora Vozes. 2010.), não possuem um ponto de vista privilegiado, fora de qualquer esquema conceitual, eles não podem estudar nem rever o esquema conceitual fundamental da ciência e do senso comum sem ter algum esquema conceitual, seja o mesmo ou outro, que não carecerá menos de escrutínio filosófico e com o qual possam trabalhar.

De acordo com Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.), a matemática clássica está totalmente envolvida com compromissos relativos a uma ontologia de entidades abstratas. Para o filósofo, nos envolvemos em compromissos ontológicos quando dizemos, por exemplo,

[…] que há algo (variável ligada) que casas e pores do sol vermelhos têm em comum; ou que há algo que é um número primo maior do que um milhão [...], a única maneira de nos envolvermos em compromissos ontológicos: por nosso uso de variáveis ligadas. [...] estamos presos a uma pressuposição ontológica particular se, e apenas se, o objeto presumido da pressuposição tiver de ser reconhecido entre as entidades que nossas variáveis percorrem para tornar uma de nossas afirmações verdadeiras (Quine, 2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 26).

Contudo, o que está em questão não é o estado ontológico das coisas, mas sim os compromissos de um discurso. Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) não está sugerindo uma dependência do ser em relação à linguagem, pois o que há não depende, em geral, do uso que se faz da linguagem, mas o que se diz que há depende.

A aceitação de uma ontologia é, segundo o filósofo, semelhante à aceitação de uma teoria científica, em um sistema de Física, por exemplo, adotamos o esquema conceitual mais simples no qual os fragmentos desordenados da experiência bruta podem ser encaixados e organizados. Contudo, como o próprio Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 31) afirma,

[…] a simplicidade, como princípio orientador na construção de esquemas conceituais, não é uma noção clara e livre de ambiguidades, e é perfeitamente capaz de apresentar um padrão duplo ou múltiplo.

Cada esquema conceitual concorrente pode ter suas vantagens e, a seu modo, sua simplicidade específica, assim, de acordo com Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.), cada um merece ser desenvolvido,

[…] a questão de qual ontologia efetivamente adotar ainda fica em aberto, e o conselho óbvio é tolerância e espírito experimental. Vejamos com todos os meios como o esquema conceitual fisicalista pode ser reduzido a um fenomenalista; ainda assim, a Física exige ser levada adiante, irredutível in toto que seja. Vejamos como, ou em que medida, a ciência natural pode se tornar independente da Matemática platônica; mas levemos também a Matemática adiante e investiguemos seus fundamentos platônicos (Quine, 2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 34)

A física, a matemática e a fenomenologia são usadas como exemplos para essa afirmação por que teriam compromissos ontológicos concorrentes ou diferentes. De acordo com Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.), o esquema conceitual da física simplifica nossa apreensão da experiência em virtude da maneira como inúmeros eventos sensíveis dispersos podem ser associados e chamados de objetos individuais, objetos físicos são entidades postuladas que uniformizam e simplificam nossa apreensão do fluxo da experiência como a introdução de números irracionais simplifica as leis da Aritmética. O filósofo prossegue explicando que, na Aritmética elementar (dos números racionais) a Aritmética mais ampla (que inclui os números racionais e irracionais) é considerada um mito conveniente, mais simples do que a verdade literal, mas que contém a verdade literal como uma parte dispersa. Quine (2011, p. 33) aponta que “uma ontologia plantonista desse tipo é, do ponto de vista estritamente fisicalista, um mito, tanto quanto o próprio esquema conceitual fisicalista é um mito para o fenomenalismo”.

Quando o que se pretende dizer sobre algo não diz respeito a distinções entre suas partes, espaciais e/ou temporais, simplificamos o discurso fazendo referência a objetos singulares. De acordo com Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 104) “observações análogas valem, e de modo bastante evidente, para a integração conceitual - a integração de particulares em um universal”. Em um discurso sobre estágios pessoais no qual tudo o que se diz aplica-se igualmente a todos os estágios pessoais que ganham a mesma quantidade de dinheiro, o discurso é modificado pela mudança de seu tema de estágios pessoais para grupos de renda e desse modo distinções irrelevantes para o discurso em questão são excluídas do tema.

A questão dos universais tem origem em Aristóteles e permanece suscitando discussões e posicionamentos díspares. Estas discussões visam responder se os universais seriam entidades existentes em si mesmas, ou entidades mentais? De acordo com Marcondes (2007MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-Socráticos a Wittgenstein. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007., p. 134) existem basicamente quatro grandes linhas de tratamento desse tema:

Segundo o realismo platônico, gêneros e espécies (tais como “animal mamífero” e “cavalo”) seriam formas ou ideias, portanto entidades dotadas de uma existência autônoma, pertencentes ao mundo das ideias e independentes tanto das coisas concretas (“este cavalo”) quanto de nossos pensamentos (“o conceito de cavalo”). Para o realismo aristotélico, posição adotada, por exemplo, por São Tomás de Aquino, gêneros e espécies existem nas coisas, como formas da substancia individual, e podem ser conhecidos por nós através da abstração, em que destacamos do particular o universal, isto é, percebemos que este indivíduo é um cavalo, um animal mamífero etc. O conceitualismo foi desenvolvido sobretudo por Pedro Abelardo (1079-1142), em sua Lógica para principiantes, na qual sustenta que universais são apenas conceitos, ou seja, predicados de sentença que descrevem o objeto (“Isto é um cavalo”), existindo portanto na mente como meio de unir ou relacionar objetos particulares dotados das mesmas características ou qualidades.

A quarta linha corresponde ao nominalismo que teve origem na posição radical de Roscelino (séc. XII), que afirma serem os universais apenas palavras, não havendo nenhuma entidade real correspondente a eles. Marcondes (2007MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-Socráticos a Wittgenstein. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007., p. 134) descreve também o nominalismo de Guilherme de Ockham (c.1300-1350), que é considerado mais sofisticado e elaborado. Ockham, citado por Marcondes (2007), defende um misto de nominalismo e conceitualismo, pois entende o universal como um termo que corresponde a um conceito por meio do qual nos referimos a essas qualidades ou características.

Para Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) os objetos que não se distinguem uns dos outros nos termos de um dado discurso devem ser concebidos como idênticos para esse discurso. Ou seja, as referências aos objetos originais devem ser novamente concebidas, para os propósitos do discurso, como se referindo a outros objetos mais escassos, de tal modo que cada um dos originais indistinguíveis dá lugar ao mesmo novo objeto.

Essa máxima é relativa a um discurso e, portanto, Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) a considera vaga na medida em que a diferenciação entre discursos é vaga. Para Quine (1975) somos incapazes de dizer precisamente o que são os objetos em termos absolutos, a única forma de dizer quais são os objetos de uma teoria é dizer como reinterpretar essa teoria em outra, que seria a teoria de fundo. Para identificar os objetos de uma teoria, usa-se, de acordo com Quine (1975), as variáveis cujos valores são os objetos, que também correspondem a ontologia da mesma e que o filósofo diferencia da ideologia (ideias as quais uma determinada teoria pode expressar). Duas teorias podem ter a mesma ontologia e diferentes ideologias, Quine (2011) apresenta como exemplo a teoria dos números reais, sua ontologia exaure os números reais, por outro lado, a ideologia abarca também ideias, como soma, raiz, racionalidade, algebraicidade e similares, que não precisam ter nenhum correlato ontológico na gama das variáveis de quantificação da teoria.

De acordo com Quine (1975QUINE, W. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. In: RYLE, G. et al. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975., p. 153):

[…] quando questões concernentes à ontologia de uma teoria são sem significado absolutamente e se tornam significativas com relação a uma teoria de fundo, isso não ocorre em geral por que a teoria de fundo tenha um universo mais amplo.

Para o filósofo, o que torna as questões ontológicas sem significado quando tomadas em sentido absoluto é a circularidade e não a universalidade. Quine (1975QUINE, W. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. In: RYLE, G. et al. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975., 2011) atribui a tendência em se supor o contrário à suposta possibilidade de distinção entre questões fatuais e não-fatuais e elementos externos e internos nas teorias - amplamente discutida e criticada por ele no ensaio “Dois dogmas do empirismo”. Uma teoria de fundo supostamente seria universal, como pretendiam os positivistas ou empiristas lógicos, se fosse estabelecida a partir de princípios lógicos - de caráter analítico, ou seja, verdadeiros em função de sua própria forma lógica e de seu significado - e em hipóteses científicas - a serem verificadas através de um método empírico (reducionismo). Para Quine (2011) a busca por esse tipo de teoria de fundo, ou de metalinguagem, se fundamenta em dogmas, mais precisamente no dogma da distinção entre enunciados analíticos e sintéticos e no dogma do reducionismo, e uma teoria de fundo desse tipo não é possível.

4 DIÁLOGOS ENTRE A ABORDAGEM ONTOLÓGICA DE QUINE E AS PESQUISAS SOBRE INTEROPERABILIDADE SEMÂNTICA

A partir da análise dos textos das pesquisas sobre interoperabilidade semântica da área de CI foi possível identificar três categorias temáticas quanto à abrangência e ao tipo de pesquisa: pesquisas teóricas, pesquisas aplicadas e pesquisas aplicadas em domínios específicos, conforme a ilustração do gráfico 1.

Gráfico 1
Classificação das pesquisas sobre interoperabilidade semântica na área de CI

As pesquisas da área de CI sobre interoperabilidade semântica que compõem o corpus desse trabalho são majoritariamente aplicadas, dentre estas existem aquelas que se destinam ao desenvolvimento de produtos e/ou processos para a interoperabilidade semântica de modo geral e abrangente, independente do domínio (28% das pesquisas, o que corresponde a 15 artigos), e aquelas que se destinam a domínios específicos (61% das pesquisas, o que corresponde a 33 artigos). Observou-se que as questões relacionadas à interoperabilidade semântica em alguns domínios recebem maior atenção, o que se reflete na quantidade de publicações. Como, por exemplo, nos domínios das Geociências, Saúde e no âmbito da cultura e linguagem chinesa.

As pesquisas aplicadas abragem uma ampla gama de temáticas, dentre as quais podemos destacar o alinhamento semântico1 1 “Essencialmente, o alinhamento semântico significa encontrar correspondência entre diferentes vocabulários” (Leiva-Maderos et al., 2017, p. 484). , o crosswalk de metadados2 2 O crosswalk de metadados, de acordo com Leiva-Maderos, et al. (2017), é diferente do alinhamento semântico, na medida em que transforma as próprias ontologias para que se tornem interoperáveis. […] “é feito por meio de um processo conhecido como mapeamento, intimamente ligado ao gerenciamento eficiente dos bancos de dados, pois permite que as informações sejam processadas para diferentes aplicações. Um dos procedimentos mais usuais é o proposto por Shuming Li: dada uma série de regras de aprendizagem, determina a equivalência correta de informações de um conjunto de dados heterogêneos (vocabulários controlados, listas de termos, etc.) descritos de acordo com o protocolo OAI (Li et al., 2008). Processos semelhantes são propostos nos estudos de Nonthakarn e Ya-Ning. O primeiro usa o Dublin Core como um elemento-chave, enquanto o segundo se baseia mais no mapeamento de dados para o RDF” (Leiva-Maderos et al., 2017, p. 485). , aplicação de modelos conceituais, a aplicação das especificações do World Wide Web Consortium (W3C) para o desenvolvimento da Web Semântica, dentre outras.

As pesquisas teóricas sobre interoperabilidade semântica desenvolvidas na área de CI dizem respeito às seguintes temáticas: a) teorias e abordagens semânticas, Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.); b) definição do conceito de interoperabilidade semântica, Dolin e Auschuler (2011DOLIN, R. H.; ALSCHULER, L. Approaching semantic interoperability in Health Level Seven. Journal of the American Medical Informatics Association, Oxônia, v. 18, n. 1, p. 99-103, Jan. 2011.); e c) especificações conceituais do projeto da web semântica, Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.), Martinez-Costa et al. (2015), Lezcano, Sánchez-Alonso e Roa-Valverde (2013LEZCANO, L.; SANCHEZ-ALONSO, S.; ROA-VALVERDE, A. J. A survey on the exchange of linguistic resources Publishing linguistic linked open data on the Web. Program-Electronic Library and Information Systems, [s.l.], v. 47, n. 3, p. 263-281, 2013.) e Boteram (2010BOTERAM, F. "Content architecture" Semantic interoperability in an international comprehensive knowledge organisation system. Aslib Proceedings, [s.l.], v. 62, n. 4-5, p. 406-414, 2010.).

A partir da análise dos textos completos dos artigos classificados na categoria Information Science Library Science da WoS foi possível identificar também que não são todas as pesquisas sobre interoperabilidade semântica que adotam ou apresentam algum tipo de perspectiva ontológica. Ou seja, nem todas as pesquisas buscam resolver as questões e desafios para a interoperabilidade semântica a partir da identificação, compreensão, abstração, etc., “daquilo que há” e “dos tipos de coisas que existem”. Na perspectiva dessa pesquisa, a identificação de algum tipo de perspectiva ontológica foi possível principalmente a partir das pesquisas teóricas sobre interoperabilidade semântica.

As discussões sobre ontologia, com ou sem fundamentação filosófica, comumente aparecem nas pesquisas de CI associadas ao projeto da Web semântica. Esse é o caso do trabalho de Martinez-Costa et al. (2015), que busca trazer alguma fundamentação filosófica para o desenvolvimento de ontologias em Web Ontology Language (OWL), que, segundo os autores, é uma linguagem que estende o conjunto de especificações Resource Description Framework (RDF).

Quadro 2
Análise de Martinez-Costa, et al. ( 2015) com base na abordagem ontológica de Quine

A noção de compromisso ontológico foi originalmente definida por Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) no ensaio “Sobre o que há”, que aparece na lista de referências de Martinez-Costa et al. (2015). Contudo, os autores apresentam uma definição distinta daquela desenvolvida por Quine (2011).

Para Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.), quando afirmamos que “alguns cachorros são brancos” não nos comprometemos com o reconhecimento de “canidade” ou de “brancura” como entidades, o enunciado diz que algumas coisas que são cachorros são brancas, para que seja verdadeiro as coisas que a variável ligada “algo” percorre devem incluir alguns cães brancos, mas não precisa incluir canidade ou brancura. Isso corresponde à noção de compromisso ontológico, que é sintetizada por Quine (2011) na máxima “ser é ser o valor de uma variável”. Na definição de compromisso ontológico apresentada por Martinez-Costa et al. (2015) se faz referência a um artigo intitulado “Formal ontologies in biomedical knowledge representation”. Não obtivemos acesso ao texto completo desse artigo.

Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.) descreve o projeto da Web semântica e aponta o papel do RDF e dos Uniform Resource Identifiers (URI). De acordo com o autor, nesse projeto se entende que a chave para a interoperabilidade semântica é a identificação das coisas sobre as quais os documentos tratam (por meio de URI) da forma mais abrangente possível, o que evidencia uma perspectiva ontológica. No quadro 3 apresentam-se os extratos do texto de Talleras (2013).

Quadro 3
Análise de Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.) com base na abordagem ontológica de Quine

Na idealização da Web Semântica, segundo a descrição feita por Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.), se adere à crença de que cada enunciado significativo é equivalente a alguma construção lógica desenvolvida com base em termos que se referem à experiência imediata (reducionismo), o que segundo Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) subsidia a crença na distinção entre enunciados analíticos e sintéticos. Tanto o reducionismo, quanto a distinção entre enunciados analíticos e sintéticos correspondem a um ponto de vista representacionista da linguagem, no qual se supõe que o debate teórico não ultrapassa o nível do discurso-objeto. No caso da Web Semântica, conforme a descrição de Talleras (2013), isso é estendido para o discurso sujeito-predicado-objeto, que, apesar de ser mais complexo, nos remete ao que Quine (1975, p. 139) denomina de mito do museu, “no qual as coisas expostas são significados e as palavras são etiquetas”. Os URI podem ser vistos como as etiquetas e o RDF, ao possibilitar a representação de relações, agrega uma maior complexidade ao mito do museu original. Contudo, a nosso ver o ponto de vista representacionista, que atribui uma rigidez e objetivida à linguagem, permanece o mesmo.

Quine (1975QUINE, W. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. In: RYLE, G. et al. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975., 2010, 2011), por outro lado, vê a linguagem como um meio de interação social e não como um meio de representação. Para Quine (2011), nossos enunciados sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal da experiência sensível não individualmente, mas apenas como um corpo organizado e até mesmo a referência, a ontologia, é relativa, nunca é absoluta e objetiva. O que a nosso ver torna a identificação ou representação “das coisas sobre as quais os documentos são” por meio de URI algo bastante complexo e talvez inviável se os aspectos contextuais e de interpretação subjetiva forem plenamente levados em conta (Talleras, 2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013., tradução nossa).

Sanchez-Alonso e Garcia-Barriocanal (2006), de modo semelhante a Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.), também consideram que a melhor forma de se alcançar a interoperabilidade semântica seria por meio de definições formais dos termos e das relações. Contudo, Sanchez-Alonso e Garcia-Barriocanal (2006) não sugerem o uso de URI e do RDF para isso, mas sim a ontologia de fundamentação OpenCyc. No quadro 3 apresentamos os extratos da pesquisa destes autores que subsidiaram a comparação com a abordagem ontológica de Quine.

Quadro 4
Análise de Sanchez-Alonso e Garcia (2006) com base na abordagem ontológica de Quine

Sanchez-Alonso e Garcia-Barriocanal (2006) entendem que é possível alcançar definições formais e objetivas dos termos por meio de uma ontologia de fundamentação que tem como base o consenso. Podemos dizer que a OpenCyc procura ser uma representação da realidade e considera que aquilo que é consensual é real. Para Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.), cada esquema conceitual concorrente pode ter suas vantagens e cada um merece ser desenvolvido3 3 O que se aproxima do que Hjørland (2011) defende, segundo o autor, para avaliar uma fonte de informação, por exemplo, um verbete da Wikipédia, é necessário relacionar o conteúdo dessa fonte com a interpretação do estado do conhecimento na frente de pesquisa. O autor supracitado apresenta a um estudo que faz a comparação da qualidade do conteúdo sobre o rastreio do câncer de mama da Wikipédia, da Wikipédia em dinamarquês, da Enciclopédia Britânica e da Enciclopédia Nacional da Dinamarca. O rastreio do câncer de mama é um tema polêmico na pesquisa médica. O que segundo o autor: “Levanta a questão de saber se a metodologia sugerida só é relevante quando não há ‘conhecimento estabelecido’. Uma razão para se concentrar em controvérsias é que os ‘fatos estabelecidos’ (por exemplo, o ponto de fusão de chumbo) pode não ser adequado para diferenciar a qualidade das fontes de informação (por exemplo, quase todas as enciclopédias de hoje relatam corretamente o ponto de fusão do chumbo, variando somente sobre o número de casas decimais fornecidas). Eu também acredito que ‘o conhecimento estabelecido’ é um termo problemático devido ao princípio de falibilidade. Portanto, eu prefiro falar sobre os graus de consenso e da natureza mais ou menos dinâmica de frentes de pesquisa. Eu acredito que o consenso é relativamente raro. Como Broadfield (1946) escreveu: ‘O consenso é mais provável que apareça entre os ignorantes, de quem é característico ser unânime quanto à verdade daquilo que é falso’. Em questões intelectuais o acordo é raro. Portanto, considero que a metodologia apresentada neste artigo é amplamente aplicável” (Hjørland, 2011, p. 1897, tradução nossa). .

Assim como em Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.) e Sanchez-Alonso e Garcia-Barriocanal (2006), em Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.) também se considera que a interoperabilidade semântica depende de uma linguagem supostamente objetiva. A autora aborda as contribuições da teoria instrumental do significado, a qual é compatível com o sistema filosófico e a abordagem ontológica de Quine, no que se refere à OC, mas ao tratar especificamente sobre a interoperabilidade semântica - definida como a fusão automática de duas ou mais linguagens de recuperação - se percebe uma forte inclinação à teoria pictórica do significado. Ou seja, a teoria instrumental do significado é considerada mais efetiva no desenvolvimento de SOC individuais, mas no que tange a interoperabilidade semântica, na integração de diferentes SOC ou no desenvolvimento de um SOC para uso em ambientes diversos, essa teoria é considerada muito complexa.

Além disso, como Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.) descreve que na teoria pictórica do significado considera-se que existe uma fixidez da referência ao mesmo tempo em que considera essa teoria mais efetiva para o desenvolvimento de SOC que atendam às demandas atuais de interoperabilidade semântica, consideramos que isso demosntra a defesa de uma perspectiva ontológica, ainda que isso ocorra apenas de modo indireto.

Quadro 5
Análise de Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.) com base na abordagem ontológica de Quine

Em Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.) não se diferencia significado e referência, o que constitui o principal fundamento da teoria da referência desenvolvida por Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) e a partir da qual ele desenvolve a noção de compromisso ontológico. Além disso, a autora entende que a interoperabilidade semântica só é possível a partir de uma suposta objetividade e simplicidade que tem como fundamento o que, segundo Quine (2011), são dogmas do empirismo lógico: o reducionismo, a crença de que cada enunciado significativo é equivalente a alguma construção lógica desenvolvida com base em termos que se referem à experiência imediata; que subsidia o outro dogma, a distinção entre enunciados analíticos e sintéticos.

Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) entende que nossos enunciados sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal da experiência sensível não individualmente, mas apenas como um corpo organizado4 4 Quine (2011) explica que essa afirmação é uma contraproposta à doutrina do mundo físico de Carnap (apresentada na obra Aufbau) e que esse tema é discutido com propriedade por Pierre Duhem no livro “La Théorie Physique: son object et a struture”, publicado originalmente em 1906. A contraproposta de Quine (2011) e a doutrina de Duhem deu origem ao que é atualmente denominado e discutido na literatura como a tese Duhem-Quine. A tese Duhem-Quine estabelece basicamente que para qualquer observação de um fato científico, existem um número imenso de explicações e desse modo uma evidência empírica contrária não pode, necessariamente, forçar a revisão da teoria. De acordo com Quine (2011, p. 65) “enquanto se considerar que em geral há sentido em falar de confirmação e invalidação de um enunciado, parece ter sentido falar também de um tipo-limite de enunciado que é confirmado vacuamente ipso facto, aconteça o que acontecer, e tal enunciado é analítico”. e até mesmo a referência, a ontologia, é relativa, nunca é absoluta e objetiva. Sua noção de relatividade ontológica tem como fundamento básico a teoria semântica da verdade de Alfred Tarski (1901-1983), cujo elemento central é a definição de uma metalinguagem. Uma metalinguagem estabelecida a partir de princípios lógicos - de caráter analítico, ou seja, verdadeiros em função de sua própria forma lógica e de seu significado - e em hipóteses científicas - a serem verificadas através de um método empírico (reducionismo) é fundamentada em dogmas. E a suposta universalidade que uma metalinguagem desse tipo forneceria não é a chave para as questões ontológicas, segundo Quine (2010, 2011). Pois o que torna as questões ontológicas sem significado quando tomadas em sentido absoluto é a circularidade - a questão “o que é um F?” só pode ser respondida por recurso a um outro termo, por exemplo, um F é um G - e não a universalidade (Quine, 1975).

Assim como Quine (1975QUINE, W. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. In: RYLE, G. et al. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975.), Chen, Zeng e Chen (2016CHEN, S. J.; ZENG, M. L.; CHEN, H. H. Alignment of conceptual structures in controlled vocabularies in the domain of Chinese art: a discussion of issues and patterns. International Journal on Digital Libraries, [s.l.], v. 17, n. 1, p. 23-38, Mar. 2016.) - a partir dos resultados de um estudo de caso que visava o mapeamento de dois vocabulários controlados, um da China e um dos Estados Unidos - também parecem identificar e concordar com a relatividade ontológica. No quadro apresentamos os extratos que subsidiaram essa aproximação.

Quadro 6
Análise de Chen, Zeng e Chen (2016CHEN, S. J.; ZENG, M. L.; CHEN, H. H. Alignment of conceptual structures in controlled vocabularies in the domain of Chinese art: a discussion of issues and patterns. International Journal on Digital Libraries, [s.l.], v. 17, n. 1, p. 23-38, Mar. 2016.) com base na abordagem ontológica de Quine

Os resultados e as conclusões de Chen, Zeng e Chen (2016CHEN, S. J.; ZENG, M. L.; CHEN, H. H. Alignment of conceptual structures in controlled vocabularies in the domain of Chinese art: a discussion of issues and patterns. International Journal on Digital Libraries, [s.l.], v. 17, n. 1, p. 23-38, Mar. 2016.), a nosso ver, corroboram e evidenciam a relatividade ontológica - ao afirmar que alguns conceitos relacionados à cultura não podem ser exatamente alinhados - e o holismo semântico - ao afirmar que discrepâncias nas estruturas para muitos conceitos que são exclusivos da cultura chinesa são significativas e a forma de lidar com isso deve ser diferente da tradução termo-termo e novas soluções precisam ser desenvolvidas.

Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) defende um ponto de vista holista sobre a linguagem e sobre o conhecimento, pois considera que não faz sentido dizer o que são os objetos de uma teoria de um modo absoluto, mas faz sentido dizer como uma teoria de objetos é interpretável e reinterpretável em outra teoria. A reinterpretação de uma teoria, ou de um ponto de vista, em outra teoria depende do todo e das ligações que existem entre os vários elementos individuais que a compõem. A referência ou a ontologia de uma expressão depende da sua posição e do seu papel na teoria como um todo.

Assim como ocorre em Chen, Zeng e Chen (2016CHEN, S. J.; ZENG, M. L.; CHEN, H. H. Alignment of conceptual structures in controlled vocabularies in the domain of Chinese art: a discussion of issues and patterns. International Journal on Digital Libraries, [s.l.], v. 17, n. 1, p. 23-38, Mar. 2016.), as considerações de Dolin e Auschuler (2011DOLIN, R. H.; ALSCHULER, L. Approaching semantic interoperability in Health Level Seven. Journal of the American Medical Informatics Association, Oxônia, v. 18, n. 1, p. 99-103, Jan. 2011.) sobre o desenvolvimento de linguagens interoperáveis também corroboram as considerações de Quine (1975QUINE, W. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. In: RYLE, G. et al. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975., 2010, 2011) sobre a linguagem. Estes autores defendem uma linguagem inicialmente simplificada (com o mínimo necessário), ao mesmo tempo em que descartam a “fixidez da referência”, que é defendida por Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.), por exemplo.

Quadro 7
Análise de Dolin e Auschuler (2011DOLIN, R. H.; ALSCHULER, L. Approaching semantic interoperability in Health Level Seven. Journal of the American Medical Informatics Association, Oxônia, v. 18, n. 1, p. 99-103, Jan. 2011.) com base na abordagem ontológica de Quine

A noção filosófica de relatividade ontológica tem como ponto de partida as observações de Quine (2010QUINE, W. O. Decisão ôntica. In: QUINE, W. O. Palavra e objeto. Petrópolis: Editora Vozes. 2010., 2011) sobre a indeterminação da tradução, que começaram como um desafio à semelhança de significado e à noção de analiticidade. Mas apesar da indeterminação da tradução e da relatividade ontológica, Quine (2010) não defende qualquer tipo de impossibilidade de comunicação intersubjetiva, muito pelo contrário. Para o filósofo as discussões sobre qualquer tipo de entidade presente em um discurso devem ser levadas para um domínio no qual ambas as partes concordem quanto aos objetos e quanto aos termos que lhes dizem respeito e é a partir disso que Quine (2010) considera ser possível a ascensão semântica, a qual permite o debate teórico que ultrapassa o nível do discurso-objeto. Segundo Quine (2010), a aceitação de uma ontologia é semelhante à aceitação de uma teoria científica, na qual se adota o esquema conceitual mais simples para organizar e encaixar os fragmentos desordenados da experiência bruta. Para o filósofo, cada esquema conceitual concorrente pode ter suas vantagens e, a seu modo, sua simplicidade específica, assim cada um merece ser desenvolvido.

Uma diferença sutil, mas muito importante, entre a perspectiva ontológica identificada em Dolin e Auschuler (2011DOLIN, R. H.; ALSCHULER, L. Approaching semantic interoperability in Health Level Seven. Journal of the American Medical Informatics Association, Oxônia, v. 18, n. 1, p. 99-103, Jan. 2011.) e em Talleras (2013TALLERAS, K. From many records to one graph: heterogeneity conflicts in the linked data restructuring cycle. Information Research-an International Electronic Journal, [s.l.], v. 18, n. 3, Sept. 2013.) ou Svenonius (2004SVENONIUS, E. The epistemological foundations of knowledge representations. Library Trends, [s.l.], v. 52, n. 3, p. 571-587, Winter. 2004.) é a forma de ver o desenvolvimento de linguagem como algo flexível e adaptável, o que é evidenciado quando os autores afirmam que “esperar que todos falem em rhymed couplets como pré-condição para o diálogo” (Dolin; Auschuler, 2011, p.100, tradução nossa) seria uma má ideia. Essa forma de ver o desenvolvimento da linguagem difere do ponto de vista representacionista que parece dominar as pesquisas sobre interoperabilidade semântica desenvolvidas na área de CI. Ainda que esse ponto de vista muitas vezes apareça apenas de modo implícito e seja difícil de rastrear, identificar e analisar.

As pesquisas sobre interoperabilidade semântica na área de CI são majoritariamente aplicadas e, muitas vezes, se limitam a desenvolver processos e produtos sem se preocupar em apresentar os fundamentos que estão por trás dos mesmos. O que ocorre, por exemplo, em uma das pesquisas mais citadas, Dolin et al. (2006DOLIN, R. H. et al. HL7 Clinical Document Architecture, Release 2. Journal of the American Medical Informatics Association, Oxônia, v. 13, n. 1, p. 30-39, Jan./Feb. 2006.), que trata do padrão HL7. Não é de estranhar que depois de 5 anos dois autores dessa pesquisa fizeram o mea culpa e como eles mesmos disseram, em Dolin e Auschuler (2011), deram um passo atrás e buscaram responder o que vem a ser a interoperabilidade semântica.

A maior parte das pesquisas apresenta pouca ou nenhuma fundamentação teórica sobre a linguagem ou sobre o que se entende por objetividade, por exemplo. Isso dificulta a identificação da adoção ou não de alguma perspectiva ontológica. Limitações à parte, é possível dizer que os objetivos propostos para a pesquisa foram atingidos. Com base na abordagem ontológica de Quine, realizou-se a análise das perspectivas ontológicas de seis dentre os 54 artigos sobre interoperabilidade semântica indexados na WoS e classificados na categoria Information Science Library Science.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou construir um estudo teórico sobre interoperabilidade semântica pela perspectiva da abordagem ontológica de Quine com o intuito de fundamentar o futuro desenvolvimento de produtos e processos de OC no âmbito da CI. A interoperabilidade semântica é um tema que apresenta vasto campo de exploração na pesquisa científica. A literatura analisada sinaliza uma maior preocupação com os aspectos metodológicos e aplicados relacionados à interoperabilidade semântica. É possível perceber a carência e a necessidade de avanços nas discussões teóricas. Muitas pesquisas não apresentam sequer uma definição de interoperabilidade semântica, se limitando a discutir aspectos processuais e técnicos desenvolvidos.

A partir da análise dos artigos que integraram o corpus da pesquisa, pode-se dizer que a simplicidade e/ou objetividade das linguagens artificiais ou formais, de um modo geral, é considerada necessária para a interoperabilidade semântica. Consideramos que tal objetividade parece não ser possível por meio da mera especulação lógica e filosófica. De acordo com Quine, os filósofos não possuem um ponto de vista privilegiado que possa responder à pergunta “o que há” e resolver as discussões ontológicas que dela suscitam. Para Quine, dizer se há ou não há objetos abstratos, o que corresponde à famosa querela dos universais, não cabe ao filósofo. A área da matemática, por exemplo, está amplamente comprometida com a existência de objetos abstratos. Nos estudos econômicos e sociais Quine apresenta um interessante exemplo da definição dos grupos de renda que evidencia como a aceitação dos universais pode ser útil para a ciência. Quine relata que até mesmo na área da Física existem teorias amplamente aceitas que tratam de objetos, ou entidades, cuja existência objetiva não é plenamente comprovada e que se assume a existência dos mesmos para a consistência da teoria. Para Quine, a filosofia partilha com outras áreas a preocupação com a questão sobre o que há e cabe aos pesquisadores e cientistas das determinadas áreas dizerem o que há, o que existe. O que proporciona uma forma alternativa de ver a divisão entre as abordagens básicas na OC proposta por Gnoli (2008GNOLI, C. Ten Long-Term Research Questions in Knowledge Organization. Knowl. Org., [s.l.], v. 35, n. 2, p.137-149, 2008.). Talvez, se debruçar sobre os diferentes domínios (o que Gnoli (2008) relaciona à abordagem epistemológica, que segundo ele tem como foco o lado subjetivo do conhecimento) seja a melhor forma que o profissional da informação tenha para entrar em contato e identificar, na medida do possível, o lado objetivo do conhecimento para sua posterior representação. Pode-se dizer que isso corresponde também à principal contribuição que a abordagem ontológica de Quine traz para o desenvolvimento da pesquisa em OC.

Cabe destacar que para Quine não é possível uma distinção clara dos elementos objetivos e subjetivos de uma teoria científica ou de qualquer tipo de conhecimento. O conhecimento depende da linguagem e em Quine a linguagem não é entendida do ponto de vista representacionista (mito do museu). Quine defende um ponto de vista holista sobre a linguagem e sobre o conhecimento. Nessa perspectiva, não faz sentido dizer o que são os objetos de uma teoria de um modo absoluto, mas faz sentido dizer como uma teoria de objetos pode ser interpretada e/ou reinterpretada em outra.

Um fundamento essencial da abordagem ontológica de Quine é a crítica à divisão entre verdades analíticas e sintéticas e à crença de que cada enunciado significativo é equivalente a alguma construção lógica desenvolvida com base em termos que se referem à experiência imediata (reducionismo), que segundo o filósofo são os dois dogmas do empirismo, ou seja, do positivismo lógico. Pode-se dizer que a abordagem ontológica de Quine, ao contrário do que ocorre no campo de OC conforme pesquisa de Weiss e Bräscher (2015WEISS, L. C.; BRÄSCHER, M. Abordagens e paradigmas na Organização do Conhecimento. In: GUIMARÃES, J. A. C.; DODEBEI, V. Organização do conhecimento e diversidade cultural. Marília: ISKO-Brasil: FUNDEPE, 2015.), é desenvolvida a partir de um ponto de vista pragmático e não positivista. Tal abordagem não ignora os aspectos linguísticos, culturais e contextuais, Quine aceita a subjetividade que é inerente a qualquer tipo de conhecimento e toda complexidade que isso acarreta. O que, no âmbito da OC, corrobora, por exemplo, as considerações de Hjørland e Pedersen (2005HJØRLAND, B.; PEDERSEN, K. N. A substantive theory of classification for information retrieval. Journal of Documentation, [s.l.], v 61, n. 5, 2005.) de que assim como as distintas áreas do conhecimento não são neutras, ou seja, não são completamente objetivas, os SOC também não serão. Os autores supracitados consideram que não é possível ser neutro na OC porque o conhecimento em si não é algo puramente objetivo, em qualquer área é possível encontrar visões diferentes e, muitas vezes, concorrentes sobre o mesmo fenômeno. Ocultar visões diferentes ou concorrentes nos SOC, segundo Hjørland e Pedersen (2005), suprime a capacidade dos usuários desenvolverem seus próprios pontos de vista.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    “Essencialmente, o alinhamento semântico significa encontrar correspondência entre diferentes vocabulários” (Leiva-Maderos et al., 2017, p. 484).
  • 2
    O crosswalk de metadados, de acordo com Leiva-Maderos, et al. (2017), é diferente do alinhamento semântico, na medida em que transforma as próprias ontologias para que se tornem interoperáveis. […] “é feito por meio de um processo conhecido como mapeamento, intimamente ligado ao gerenciamento eficiente dos bancos de dados, pois permite que as informações sejam processadas para diferentes aplicações. Um dos procedimentos mais usuais é o proposto por Shuming Li: dada uma série de regras de aprendizagem, determina a equivalência correta de informações de um conjunto de dados heterogêneos (vocabulários controlados, listas de termos, etc.) descritos de acordo com o protocolo OAI (Li et al., 2008). Processos semelhantes são propostos nos estudos de Nonthakarn e Ya-Ning. O primeiro usa o Dublin Core como um elemento-chave, enquanto o segundo se baseia mais no mapeamento de dados para o RDF” (Leiva-Maderos et al., 2017, p. 485).
  • 3
    O que se aproxima do que Hjørland (2011HJØRLAND, B. Evaluation of an information source illustrated by a case study: effect of screening for breast cancer. JASIST, [s.l.], v. 62, n. 10, 2011.) defende, segundo o autor, para avaliar uma fonte de informação, por exemplo, um verbete da Wikipédia, é necessário relacionar o conteúdo dessa fonte com a interpretação do estado do conhecimento na frente de pesquisa. O autor supracitado apresenta a um estudo que faz a comparação da qualidade do conteúdo sobre o rastreio do câncer de mama da Wikipédia, da Wikipédia em dinamarquês, da Enciclopédia Britânica e da Enciclopédia Nacional da Dinamarca. O rastreio do câncer de mama é um tema polêmico na pesquisa médica. O que segundo o autor: “Levanta a questão de saber se a metodologia sugerida só é relevante quando não há ‘conhecimento estabelecido’. Uma razão para se concentrar em controvérsias é que os ‘fatos estabelecidos’ (por exemplo, o ponto de fusão de chumbo) pode não ser adequado para diferenciar a qualidade das fontes de informação (por exemplo, quase todas as enciclopédias de hoje relatam corretamente o ponto de fusão do chumbo, variando somente sobre o número de casas decimais fornecidas). Eu também acredito que ‘o conhecimento estabelecido’ é um termo problemático devido ao princípio de falibilidade. Portanto, eu prefiro falar sobre os graus de consenso e da natureza mais ou menos dinâmica de frentes de pesquisa. Eu acredito que o consenso é relativamente raro. Como Broadfield (1946) escreveu: ‘O consenso é mais provável que apareça entre os ignorantes, de quem é característico ser unânime quanto à verdade daquilo que é falso’. Em questões intelectuais o acordo é raro. Portanto, considero que a metodologia apresentada neste artigo é amplamente aplicável” (Hjørland, 2011, p. 1897, tradução nossa).
  • 4
    Quine (2011QUINE, W. O. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) explica que essa afirmação é uma contraproposta à doutrina do mundo físico de Carnap (apresentada na obra Aufbau) e que esse tema é discutido com propriedade por Pierre Duhem no livro “La Théorie Physique: son object et a struture”, publicado originalmente em 1906. A contraproposta de Quine (2011) e a doutrina de Duhem deu origem ao que é atualmente denominado e discutido na literatura como a tese Duhem-Quine. A tese Duhem-Quine estabelece basicamente que para qualquer observação de um fato científico, existem um número imenso de explicações e desse modo uma evidência empírica contrária não pode, necessariamente, forçar a revisão da teoria. De acordo com Quine (2011, p. 65) “enquanto se considerar que em geral há sentido em falar de confirmação e invalidação de um enunciado, parece ter sentido falar também de um tipo-limite de enunciado que é confirmado vacuamente ipso facto, aconteça o que acontecer, e tal enunciado é analítico”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2022
  • Aceito
    05 Out 2023
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