Acessibilidade / Reportar erro

O laudo psicológico e a classe especial

O laudo psicológico e a classe especial1 1 Esse texto faz parte da Introdução da Dissertação de Mestrado: "O LAUDO PSICOLÓGICO E A CLASSE ESPECIAL: UMA ANÁLISE DE LAUDOS PSICOLÓGICOS UTILIZADOS NO ENCAMINHAMENTO DE CRIANÇAS ÀS CLASSES ESPECIAIS", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Regina Maluf. Este trabalho foi defendido em maio de 1997, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação da PUC de São Paulo. A Banca Examinadora foi composta pelo Prof. Dr. Odair Sass e pela Profa. Dra. Maria Helena Souza Patto.

Roberto Moraes Salazar2 2 Mestre pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação da PUC/SP, Psicólogo e Professor em cursos de graduação e pós-graduação "lato-sensu " na cidade de São Paulo.

O laudo psicológico, em referência ao encaminhamento de portadores de deficiências mentais leves a classes especiais, "freqüentemente, não é mais do que um engodo". O psicólogo termina por legitimar discriminação e segregação de crianças, "a pretexto de problemas ou dificuldades que apresentam na escola ". Esta questão é discutida em vista da realização de pesquisa pertinente à matéria.

1 - Considerações iniciais

No decorrer da minha vida profissional, atuando como psicólogo clínico e educacional, vejo emergir diariamente muitas questões e problemas que me têm despertado interesse. Entre as questões e os problemas que mais me têm preocupado estão aqueles originados das ações derivadas das relações que se firmam entre o psicólogo e a escola. E entre tantas inquietações, aquela que mais me perturba atualmente, refere-se ao laudo psicológico utilizado para o encaminhamento de crianças às classes especiais para portadores de deficiência mental (DM).

Esta inquietação é resultante do fato de entendermos que o laudo, produto derivado de ações que se constituem das relações formalizadas entre o psicólogo e a escola, têm se caracterizado como um documento perverso e poderoso ao ser utilizado para encaminhar à classe especial crianças que são discriminadas e segregadas sob pretexto de problemas ou dificuldades que apresentam na escola.

Ao longo desses anos de atuação convivendo com o cotidiano de algumas escolas, pude observar que há uma tendência para se acreditar que problemas escolares relacionados às questões de aprendizagem, derivados das ações que se processam no seio da escola, só terão solução, se forem repassados aos especialistas que se situam fora do espaço escolar. Esse modo de pensar propicia um aumento cada vez maior no número de encaminhamentos de crianças para serviços psicológicos com queixas de problemas escolares que pretensamente se legitimam sobre a base de aspectos psicológicos e não pedagógicos. Esse procedimento reflete, a nosso ver, um modo de justificar uma ação escolar pouco eficaz, muitas vezes calcada em práticas preconceituosas, discriminatórias e estereotipadas, levando a escola, com freqüência, a atribuir a responsabilidade das causas dos inúmeros problemas que surgem durante as relações estabelecidas entre ela e o aluno, à criança e à sua família.

Em 1989, a equipe de Saúde Mental do Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS-3) / Administração Reginal de Saúde (ARS-3) - em São Paulo, realizou um levantamento com crianças na faixa etária de seis a catorze anos, entre os dias dois e quinze de maio, em treze das vinte e uma Unidades Básicas de Saúde (UBS) pertencentes a essa regional, para conhecer a origem e os motivos dos encaminhamentos que recebiam. Nele se constatou que dos 88 encaminhamentos de crianças feitos para atendimentos nessas UBS, 44 (50%) foram realizados por escolas e 23 (26,2%) pelos pais. Das 82 queixas formalizadas para justificar esses encaminhamentos, 41 (50%) eram referentes a dificuldades de aprendizagem na escola e 17 (20,73%) se referiam a distúrbios de comportamento relacionados à escola.

É interessante enfatizar, que dos 88 encaminhamentos realizados para as Unidades de Saúde, metade deles era proveniente de escolas. No tocante às queixas, dois terços delas se situavam nas "dificuldades de aprendizagem" e nos "distúrbios de comportamento" e apenas um terço não mantinha relação alguma com questões escolares. Essa situação reflete, de maneira muito sutil, a discriminação e o preconceito que a maioria das crianças encaminhadas sofre e contribui para reafirmar muitas das idéias equivocadas que se mantêm sobre o fracasso delas na escola.

Para melhor compreensão de números tão expressivos de encaminhamentos escolares com queixas dessa natureza, remetemos aos textos de Patto(1990), Collares & Moysés(1992; 1986) e Machado(1990) quando se referem ao fracasso escolar. Segundo essas autoras, ao se atribuir as causas do insucesso escolar à própria criança, localiza-se nela uma incapacidade para aprender. Assim, a escola aparece isenta de responsabilidade e o fracasso da criança passa a ser explicado sob nominações causais variadas, tais como: "distúrbios", "disfunção", "problemas", "dificuldades", "carência", "desnutrição", "família desestruturada", entre outras, que se situam num âmbito bem mais próximo da doença e de razões sociais do que de situações escolares reais.

Nessa perspectiva passa-se a crer que as respostas ou soluções para as causas desses problemas -que dão origem à produção do fracasso escolar - não se encontram mais na escola, mas sim fora dela.

Essas posições, como é possível perceber, levam invariavelmente a se transferirem responsabilidades que seriam da área pedagógica - que deve criar e buscar soluções na própria escola para auxiliar as dificuldades dos seus alunos - para outras áreas situadas em outros níveis de uma ação não pedagógica e que se encontram além dos muros e dos portões escolares, como por exemplo: a área psicológica. Desse modo, essa transferência de uma área para outra, configura-se geralmente, de forma mais significativa e mais freqüente, a partir de uma solicitação da escola aos pais da criança com dificuldades de comportamento ou de aprendizagem. Assim, a escola pressiona os pais a encaminharem o aluno que ela considera problemático ao psicólogo para que este avalie e/ou trate dos seus "problemas escolares". Nesse sentido, a escola repassa uma responsabilidade que é sua a um outro profissional, o psicólogo, na crença de que este poderá explicar ou solucionar a queixa em questão.

Entretanto se analisarmos a fundo essas ações, veremos de um lado a escola querendo abrir mão das suas responsabilidades pedagógicas e do outro o psicólogo acreditando na sua competência para esclarecer e resolver os problemas escolares a partir das suas avaliações, apesar da sua formação pouco adequada e do seu insuficiente conhecimento para lidar com as questões educacionais que emergem na instituição escolar3 3 Ver pesquisa realizada por Maria Regina Maluf (1996, pp.71-86) que discute a forma como o conhecimento da Psicologia é passado e apropriado pelo psicólogo durante a sua formação. .

Temos visto autores como Collares & Moyses (1992) se posicionarem de forma bastante crítica, sobre essa ação dos profissionais da saúde - incluindo aqui o psicólogo - e o modo como ela vem se processando dentro do espaço escolar, principalmente no que se refere ao modo como eles encaram os problemas escolares das crianças ao realizarem as suas avaliações, como podemos ver no texto que se segue:

"A atuação de um profissional da saúde no espaço escolar inevitavelmente acarreta a patologização desse espaço. Sua formação é calcada exclusivamente no modelo clínico, preferencialmente individual, biológico... De modo geral, esses profissionais, assim como o médico, tendem a utilizar o modelo clinico indiscriminadamente, frente a qualquer problema, inclusive frente às questões sociais. Tornam-se, assim, eficientes (porque inconscientes) agentes de um processo de ocultação dos determinantes sociais dos conflitos; tendem a biologizar, a patologizar qualquer problema que devam enfrentar. Tentam encontrar a doença, o distúrbio, o desvio que explique e justifique o problema. 'Doença'preferencialmente biológica, mas sempre localizada no indivíduo, isentando de responsabilidades o sistema educacional." (Coitares & Moysés, 1992, p.27)

Collares & Moysés comentam que essa forma de atuar leva a um processo de patologização que altera as relações profissionais na escola, quando transforma os professores - "responsáveis por analisar e resolver os problemas educacionais" - em triadores de alunos para encaminhá-los aos especialistas da saúde. Para elas esse procedimento acalma a angústia, pois além de transferir os deveres desses professores, desloca o eixo de preocupações do coletivo para o particular. Assim, "o que deveria ser objeto de reflexão e mudança - o processo pedagógico - fica mascarado, escamoteado, pelo diagnosticar e tratar singularizados, uma vez que o problema, o 'mal' está sempre localizado no aluno. E o fim do processo é a culpabilização da víima."(Collares & Moysés, 1992, p.27) Ainda segundo as autoras, esses rótulos atribuídos às crianças que apresentam dificuldades na escola e que se firmam nesse processo de avaliação diagnóstica que culpabiliza o aluno ao localizar nele o problema, não interferem apenas na vida escolar, mas também em todo o desenvolvimento da personalidade, da auto-estima, do autoconceito. Desse modo, a criança introjeta a 'doença' e passa a se considerar doente, mantendo assim esses rótulos cruelmente ligados à vida.

Nessa ótica, em que os problemas enfrentados no espaço escolar são situados quase que exclusivamente na própria criança e nos quais os profissionais da saúde contribuem com os seus diagnóticos para a extensão e gravidade dessa "patologização", a escola, que tem o dever de educar e de democratizar o seu espaço para todos, se vê obrigada - apesar das suas tentativas de encaminhamento - a tomar de volta para si essas crianças consideradas "doentes" e assim uma pretensa solução que tem se apresentado, foi a criação e a crescente ampliação das classes especiais nas escolas.

A classe especial

A classe especial é uma modalidade de atendimento entre outras três oferecidas na Educação Especial para alunos caracterizados como "excepcionais", conforme a definição estabelecida na Deliberação do Conselho Estadual de Educação - CEE n° 13/734 4 "Homologada pela Resolução SE de 10-8-73, publicada no DO de U/8/83, p.20/21" (in: SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde - DAE, 1987, p. 31) , que considera como "...excepcionais os alunos que, devido a condições físicas, mentais, emocionais ou sócio-culturais, necessitam de processos especiais de educação para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades." Essa caracterização se dá a partir de uma avaliação específica da criança por um profissional credenciado na área na qual a excepcionalidade se manifesta. As excepcionalidades consideradas para efeito de avaliação e de atendimento em classes especiais são: as deficiências auditiva, física, mental e visual em um determinado nível, e também os alunos superdotados e talentosos (SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde - DAE, 1987).

A criação de classes especiais para esses fins é decorrente de dois fatores:

O primeiro deles está assegurado por um princípio básico da Constituição Brasileira que estabelece o direito à educação igual para todos. Esse princípio fundamenta a legislação federal e estadual, que estabelece e fixa normas gerais, no sentido de oferecer um atendimento educacional especializado que atenda às necessidades específicas dos portadores de deficiência e dos superdotados, com o objetivo de integrá-los nas atividades regulares da escola e na comunidade, após um período de permanência na classe especial. Estes princípios foram reafirmados e reassegurados na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as novas Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Esta nova LDB contém pontos sobre a Educação Especial, apresentados dentro de uma proposta de um sistema nacional de educação e estão incorporados no Título V - Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino, no seu Capítulo V, composto pelos artigos 58, 59 e 60.

O outro fator se deve às preocupações e às crenças de muitos educadores, que vêem nessa modalidade de atendimento, uma possibilidade de propiciar ao aluno de classe especial - a partir de um ambiente físico adequado, com professor, equipamentos, métodos, técnicas e recursos pedagógicos especializados - condições de desenvolvimento global.

Essa modalidade de atendimento, geralmente é encontrada dentro das escolas pertencentes à rede pública de ensino estadual. Atende um número preestabelecido de crianças, agrupadas de acordo com o tipo de necessidade especial da qual são portadoras. Essas necessidades devem ser devidamente diagnosticadas por um profissional credenciado e as crianças devem ser acompanhadas em sala de aula por um professor especializado.

A classe especial para portadores de DM

Nesse quadro em que se configuram e se situam as classes especiais, vamos encontrar uma modalidade que se destina a atender exclusivamente as crianças caracterizadas como DM - "portadores de deficiência mental leve"(educável) -que "são alunos que, embora possuam grau de inteligência abaixo da média, podem ser alfabetizados seguindo programa curricular adaptado às suas condições pessoais, alcançando ajustamento social e ocupacional e, na idade adulta, independência econômica parcial ou total5 5 Segundo a definição atribuída na Portaria Interministerial n° 186, de 10 de março de 1978 (in: SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde -DAE, 1987, p.12) ."

Porem, antes que o aluno portador de DM possa frequentar a classe especial, é necessário que ele seja avaliado por uma equipe interdisciplinar ou na impossibilidade dessa avaliação acontecer, deverá ser realizada uma outra, por um profissional credenciado, que caracterize o grau de excepcionalidade da criança. Nesse caso, que se refere à área de deficiência mental, o profissional responsável designado para essa função, deverá ser o psicólogo.

Essa avaliação é uma exigência legal6 6 Cf. Portaria Conjunta CENP/CEI/COGSP/DAE, Publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 24 de dezembro de 1986(in: SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde - DAE, 1987, pp.40-41) que tem como objetivo obter informações específicas de acordo com as normas estabelecidas na Instrução DAE/SE7 7 Ibid, (pp.43-45) , como por exemplo o índice de QI da criança avaliada. Concluídos esses procedimentos e constatada a "incapacidade" ou "deficiência" do aluno para permanecer na classe comum, o resultado da avaliação deve ser comunicado em forma de relatório (laudo) e mantido no prontuário do aluno para consulta do professor.

A questão a ser estudada

Nesse ponto em que se configura essa interface dentro do sistema educacional - de um lado as classes especiais para portadores de deficiência mental e de um outro os relatórios de avaliação psicológica utilizados nos encaminhamentos de alunos para essas classes - é que gostaríamos de situar a questão do nosso problema de pesquisa, a saber, como estão sendo realizados os laudos psicológicos utilizados no encaminhamento de crianças às classes especiais para portadores de DM.

Como podemos verificar na literatura (Machado, 1996,1990) e nas pesquisas de Souza & Sayão e de Collares & Moysés, apresentadas no I Encontro de Educação Especial8 8 Este evento foi realizado em São Paulo pelo Conselho Regional de Psicologia - região 06, em 27 e 28 de outubro de 1995. Os trabalhos apresentados nesse primeiro Encontro e citados neste artigo, estão no livro: "Educação Especial em Debate ", organizado pelo CRP/06, publicado pela Casa do Psicólogo e lançado no II Encontro de Educação Especial, realizado em São Paulo, nos dias 13 e 14 de junho de 1997, pelo Conselho Regional de Psicologia. , esses laudos têm se tornado nos últimos anos alvo de constantes críticas e preocupações entre vários autores que têm se inquietado com o cotidiano das classes especiais.

As críticas feitas referem-se a que o psicólogo, ao realizar suas avaliações e produzir um laudo psicológico em que deverá atestar se a criança "está apta ou não" para ser encaminhada para a classe especial, acaba por comprometer esse trabalho ao aceitar, reforçar e endossar de forma acrítica, a posição da escola que localiza no aluno o problema ou a dificuldade que ele apresenta para aprender. Ao fazer isso, o psicólogo muitas vezes não conhece os problemas intra e extra-escolares que se dão na vida do aluno e nos bastidores das classes especiais. Outras críticas apontadas se referem ao fato de o psicólogo utilizar instrumentos e técnicas tradicionais da psicologia pouco adequados à realidade da criança. Assim esses psicólogos muitas vezes se preocupam apenas em avaliar, classificar, rotular e por fim apresentar o veredicto sob a forma de um laudo. Desse modo, o profissional objetiva a crença da "criança doente" - já cristalizada antes na escola - em detrimento das suas reais potencialidades, cronificando apatologização numa pseudodeficiência mental. Nesse contexto, que sabemos se processar numa relação bem mais complexa do que essa que apontamos até agora, o psicólogo acaba contribuindo com os seus laudos para a discriminação que se faz das crianças consideradas problemas, tornando esse quadro ainda mais pungente quando falamos do encaminhamento delas para as classes especiais.

Machado (1994), na pesquisa que realizou com classes especiais para DM, mostrou que os resultados de uma avaliação contida em um laudo psicológico podem ser nocivos e ter repercussões gravíssimas sobre a vida escolar de uma criança encaminhada para essa classe. Nesse prisma, a autora chama a nossa atenção sobre os cuidados que se devem tomar ao se encaminhar uma criança para a classe especial. Ela aponta para a responsabilidade que se deve ter ao analisar os efeitos desse acontecimento, de modo que se possa prever possíveis mudanças nas opiniões constatadas e nas condutas sugeridas (p.85). Assim, diante das considerações apresentadas pela autora, nas quais os laudos se inserem, é possível dizer que esse documento, que tem a pretensão de se mostrar um instrumento útil, em favor e em defesa do aluno que passa por uma avaliação psicológica, para promover, defender, preservar e garantir o seu desenvolvimento global9 9 Este desenvolvimento global é entendido no sentido de desenvolvimento sócio-emocional, escolar, psicomotor, orientação temporo-espacial, linguagem etc. dentro da escola, frequentemente não é mais do que parte de um engodo ainda presente na escola que se fundamenta ainda em antigos paradigmas e concepções psicológicas, ultrapassadas, que já não podem ser sustentadas nesse cotidiano, a não ser para fundamentar a estabilização e a cronificação desse processo patológico sobre as crianças socialmente menos favorecidas.

Entendemos que o modo como vêm sendo elaborados esses documentos hoje, é decorrente em grande parte da própria matriz teórica em que os laudos elaborados pelos psicólogos estão assentados. Tal forma de proceder, traz em si condições limitadas e limitadoras próprias de um determinado momento do pensamento psicológico, em que se acreditava que o desenvolvimento do ser humano decorria mais da influência das características biológicas que ele apresentava do que das interações sociais que ele mantinha. Esta concepção, fortalecida pelos "sistemas teóricos de inspiração biológica e fisicalista que, de uma forma ou de outra, imprimiram à psicologia o rumo da ciência positivista" (Patto, 1984, p.90), ainda se mantém forte e viva em nosso meio, associada a uma postura liberal10 10 Ver L.A. Cunha, 1979, pp.27-60 e M.H.S. Patto, 1996, pp.53-64 na qual se fundou o sistema educacional do nosso país e que ainda persiste na escola. Tal concepção não permite que esses laudos ofereçam alternativas e aberturas suficientes sobre a forma de coletar os seus dados e de emitir as suas informações, de modo que possam ser mais condizentes com a realidade e com as condições de vida nas quais a criança está inserida.

Essas posições - ainda remanescentes nos enfoques teóricos que dão sustentação aos laudos psicológicos - influenciam na forma e no modo como os mesmos são compostos, contribuindo assim para reafirmar ainda mais as condições já traduzidas nas reflexões realizadas por Patto (1990; 1988), sobre o estigma e a segregação que estão presentes e cristalizados dentro do espaço escolar, contra milhares de crianças que são rotuladas dia-a-dia em nossas escolas por laudos emitidos por esses especialistas como "diferentes" ou "deficientes", o que colabora, com certeza, para justificar a "produção do fracasso escolar" e consequentemente, para a exclusão dessas crianças da escola. Tal situação faz fomentar e ratificar a idéia da necessidade de criar-se, de maneira indiscriminada, mais e mais classes especiais, como única solução ou alternativa para superar esses problemas escolares já crônicos em muitas dessas instituições, prejudicando ou impedindo a criança de seguir o seu processo natural de escolarização, através da exclusão.

Quando a exclusão não acontece para esses alunos, o que vemos é uma outra situação bem mais cruel e dolorosa à qual muitas dessas crianças são submetidas e da qual se tornam vítimas: a segregação e a discriminação na escola. Esse quadro, no meu entender, se constitui de modo constrangedor, opressor e discriminatório, talvez muito pior do que aquele que ocorre no processo de exclusão, por ser bem mais violento, isto porque, além de se criar e de se estabelecer um processo de "patologização" das questões educacionais e sociais (que isenta o sistema social e a escola de suas responsabilidades na produção do fracasso dessas crianças) gera-se um outro, bem mais sutil e muito mais grave, qual seja o de facilitar a internação de crianças nas classes especiais.

Diante dessa realidade e por perceber que o laudo é parte fundamental na estabilização e cronificação desse processo de internação, ao pensar sobre um tema de pesquisa para desenvolver no mestrado, senti necessidade de centrar a minha atenção na questão do laudo psicológico utilizado para encaminhar crianças à classe especial.

O começo da história: porque o interesse em conhecer os laudos

As razões motivadoras deste estudo prendem-se às minhas participações no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo11 11 A Região 06, é constituída pelo Estado de São Paulo. A sede, localiza-se na capital do Estado. .- CRP/06-

Em fevereiro/94, o CRP/06 organizou vários grupos de discussões de diversos setores de atuação da psicologia para debaterem as propostas de uma ação nacional que representasse a posição do conjunto de psicólogos dessa regional para levá-las ao Congresso Nacional Constituinte da Psicologia12 12 Com o apoio do plenário do congresso esse evento passou a ser denominado 1o. Congresso Nacional da Psicologia. , que se realizou em agosto/94, em Campos do Jordão/SP.

Este Congresso foi precedido em todos os Conselhos de Psicologia do país por discussões realizadas em encontros setoriais e Pré-Congressos Regionais, que debateram e formularam propostas de ação para as áreas de atuação da Psicologia, entre elas a Educação, sob a luz de grandes eixos temáticos, tais como: Entidades e Organização Política; Exercício Profissional e Formação Profissional13 13 Ver Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia. Processo Constituinte: Repensando a Psicologia. Congresso Nacional Constituinte da Psicologia, Campos do Jordão 25 a 28 de agosto de 1994. .

As questões iniciais do meu tema-problema de pesquisa, começaram a se configurar melhor no período em que participei intensamente das atividades que se desenrolaram no CRP/06, como discussões mantidas pelos encontros setoriais de Educação; na qualidade de integrante da delegação14 14 Nos pré-congressos também foram escolhidos os delegados (psicólogos representantes) para defenderem as teses elaboradas pelos vários grupos de trabalho nos respectivos Congressos: Regional e Nacional. paulista nesses Congressos e como fiscal eventual requisitado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo para apurar, no interior do Estado, denúncias de irregularidades na confecção de laudos que eram utilizados para encaminhar crianças para classes especiais.

Pude observar nos materiais, dados e informações levantados e obtidos nesse momento no Conselho Regional - que a maioria dos laudos psicológicos encaminhados às escolas, deixava evidente a desinformação, o desconhecimento e o descaso que muitos psicólogos têm sobre as exigências básicas do seu "bom" uso, como também, sobre a forma como os seus laudos são utilizados no sistema escolar.

Ao realizar uma pesquisa preliminar para traçar algumas linhas norteadoras que subsidiassem a elaboração do meu projeto inicial de pesquisa, com o objetivo de obter dados e informações mais precisas e concretas sobre esses documentos, pude notar numa primeira análise, ao vistoriar treze laudos contidos em prontuários de alunos de uma classe especial de uma escola da região Oeste do Município de São Paulo, que:

a) sses documentos constituíam-se desvinculados de uma análise crítica e profunda das condições de vida e do cotidiano escolar da criança.

b) esses documentos pouco elucidavam, ajudavam ou orientavam nas resoluções e nas superações das questões relativas aos alunos das classes especiais.

Com freqüência, temos observado que aspectos como esses, acima apontados, têm sido os responsáveis por muitas das críticas que são dirigidas a esses documentos. As críticas apontam que os laudos têm servido apenas para fortalecer o estigma e a segregação que existem na escola, ao não oferecerem informações psicológicas suficientes e/ou necessárias, úteis à solução ou à superação do problema da criança avaliada (Machado, 1996, 1990; Parto, 1995; Sass, 1994; I Encontro de Educação Especial15 15 Ver ref. bibliográficas: Conselho Regional de Psicologia - São Paulo. "Educação Especial em Debate", 1997. ). Soma-se a essas críticas também o fato de que a matriz teórica e ideológica na qual se fundamenta o parecer -outra denominação dada ao laudo -não favorece uma compreensão da dimensão psicológica do indivíduo, da sua realidade e das suas ações. Possibilita sim, criar distorções que com uma certa constância têm gerado erros, medos, incertezas e dúvidas, conforme pudemos observar nos trabalhos desenvolvidos por Machado (1996, 1990).

A esse respeito há um artigo de Patto, que ilustra muito bem essa idéia:

"Laudos invariavelmente ausentes de substrato teórico, mergulhados no senso comum, lacônicos, arbitrários, carentes de crítica, feitos com uma displicência reveladora de desrespeito pelo cliente e de certeza de que as pessoas vítimas dessas práticas não têm nenhum poder a opor ao poder técnico, servem, na verdade, para estancar a carreira escolar de tantos pequenos brasileiros" (Patto, 1995, p.16).

Nessa perspectiva, entendemos ser necessário discutirmos mais e conhecermos melhor esses documentos que se constituem sobre representações distintas dos psicólogos como comenta Sass, em artigo publicado no Jornal do CRP/06:

"... é curioso refletir sobre os entendimentos paradoxais suscitados pelo laudo psicológico, tanto entre os próprios psicólogos quanto em outros segmentos sociais. A par da cega aceitação do laudo psicológico, há uma rejeição igualmente cega à elaboração de documento técnico sobre a intimidade do sujeito. Psicólogos recusam os instrumentos historicamente construídos, sob variados pretextos, enquanto leigos reivindicam a utilização de tais instrumentos para justificar a condição subjetiva da pessoa... " (Sass, 1994, p. 16).

Apoiado nos argumentos e nas considerações apresentadas até agora, procuramos conduzir esse trabalho. Para isso visamos aos seguintes objetivos:

1- Conceituar teórica e historicamente o significado e a construção do laudo psicológico, quanto aos seguintes aspectos:

a) - como se constituiu o laudo.

b) - como o laudo é entendido, concebido e utilizado, no que se refere ao encaminhamento de crianças às classes especiais de DM.

2- Coletar um conjunto de documentos que foram efetivamente utilizados para encaminhar crianças para as classes especiais de DM.

3- Analisar esses documentos, para obter informações mais detalhadas de como eles estão sendo realizados hoje, seguindo um roteiro previamente estabelecido.

Com base nos resultados da análise desses dados, nos propomos também a:

1- Discutir a elaboração do diagnóstico psicológico na formação do psicólogo.

2- Fornecer subsídios para refletir sobre a formação profissional e o trabalho na instituição escolar.

Acredito que essa pesquisa nos permitirá obter elementos para compreendermos melhor os rumos e as formas como são elaborados esses laudos psicológicos hoje, e, consequentemente, servirá para refletirmos sobre o sentido real que eles têm no sistema educacional brasileiro.

O fato de descortinarmos este "caso de (des)amor", que se configura nas relações estabelecidas entre o laudo psicológico e o encaminhamento da criança para uma classe especial de DM, fornecerá a nós, psicólogos, uma base para refletirmos sobre as formas atuais de encaminhamento de crianças às classes especiais e assim, pensarmos em formas de intervenções junto a essas classes, que sejam mais justas e mais úteis para essas crianças. Esta intervenção, a nosso ver, deverá ser mediada por uma ação mais crítica do psicólogo sobre o seu trabalho, onde ele, consciente do seu papel, possa garantir, de fato, para esses alunos frequentemente rotulados como "deficientes mentais", um melhor atendimento psicológico, a fim de possibilitar para essas crianças uma permanência segura, saudável e estável na escola.

NOTAS REDACIONAIS

  • CONSELHO FEDERAL & CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA. Processo Constituinte : repensando a Psicologia. Documento do Congresso Nacional Constituinte da Psicologia, Campos do Jordão-SP, 25 a 28 de agosto de 1994.
  • CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA - SÃO PAULO. Educação Especial em Debate. (I Encontro de Educação Especial -outubro/1995). São Paulo, Casa do Psicólogo-CRP/06, 1997.
  • COLLARES, C.A.L. & MOYSÉS, M.A.A. O profissional de saúde e o fracasso escolar compassos e descompassos. Texto apresentado no I Encontro de Educação Especial, realizado em 27 - 28 de outubro de 1995, promovido pelo C R P / 06.
  • COLLARES, C.A.L. & MOYSÉS, M.A.A. Diagnóstico da medicalização do processo ensino-aprendizagem na 1a. série do 1o. grau no município de Campinas. In :Em Aberto. Brasília, ano 11, n. 53, Jan. / mar. 1992, pp.13-28.
  • O renascimento da saúde escolar legitimando a ampliação do mercado de trabalho na escola. In : Cadernos CEDES. São Paulo, Papirus, n . 28, 1992, pp.23-30.
  • Educação ou Saúde? Educação X Saúde? Educação e Saúde? In: Cadernos CEDES. São Paulo, Cortez Editora, n . 15, 1a. reimpressão - nov.1986, pp.7-16.
  • CUNHA, L.A. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1979, pp.27-60.
  • DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E DO ENSINO DE 1o. e 2o. GRAUS (Legislação e normas básicas para sua implantação). São Paulo, Imprensa Oficial do Estado S.A. - IMESP, 1983.
  • EQUIPE DE SAÚDE MENTAL DO SUDS 3 / ARS 3 - Comissão do Escolar / Grupo de Trabalhadores. Tabulação e análise dos dados levantados sobre a demanda infantil em Unidades Básicas(SVDS-3/ARS-3). São Paulo, Junho, 1989. (mimeo)
  • MACHADO, A. M. Reinventando a avaliação Psicológica. Tese de Doutorado, Psicologia Social - IPUSP, São Paulo, 1996.
  • Crianças de Classe Especial : Efeitos do encontro da saúde com a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.
  • Inventando uma intervenção na escola pública. Dissertação de Mestrado, IPUSP, São Paulo, 1990.
  • MALUF, M.R. A formação profissional do psicólogo brasileiro. In: Interações. São Paulo, vol.1, n.1, 1996, pp. 31-45.
  • Psicólogo Brasileiro: formação, problemas e perspectivas. In: Coletâneas da ANPEPP, Formações em Psicologia Pós-Graduação. vol.1, n. 8, UFMG, 1996, pp. 71-86.
  • Formação e atuação do psicólogo na educação: Dinâmica de transformação. In : Psicólogo Brasileiro : Práticas emergentes e desafios na formação São Paulo, Casa do Psicólogo, 1994, pp.157 -200.
  • PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar : histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1a. ed. 1990, 4a. reimpressão, 1996, pp. 53-64.
  • PATTO, M.H.S. Laudos psicológicos : notas para urna reflexão. Jornal do Conselho Regional de Psicologia 6a. Região, jan./fev/1995, n. 91, p.16.
  • O fracasso escolar como objeto de estudo : anotações sobre as características de um discurso. In : Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n.65, maio/ 1988, pp. 72-77.
  • Psicologia e Ideologia : uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo, T.A. Queiroz, 1984, p.90.
  • SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde -DAE. Avaliação psicológica de alunos da rede estadual de ensino - Orientação aos recursos da comunidade. São Paulo, SE/DAE, 1987.
  • SASS, O. A sociedade laudatória. Jornal do CRP - Conselho Regional de Psicologia 6 a . Região, jul./ago./1994, n .88, p.16.
  • 1
    Esse texto faz parte da
    Introdução da Dissertação de Mestrado:
    "O LAUDO PSICOLÓGICO E A CLASSE ESPECIAL: UMA ANÁLISE DE LAUDOS PSICOLÓGICOS UTILIZADOS NO ENCAMINHAMENTO DE CRIANÇAS ÀS CLASSES ESPECIAIS", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Regina Maluf. Este trabalho foi defendido em maio de 1997, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação da PUC de São Paulo. A Banca Examinadora foi composta pelo Prof. Dr. Odair Sass e pela Profa. Dra. Maria Helena Souza Patto.
  • 2
    Mestre pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação da PUC/SP, Psicólogo e Professor em cursos de graduação e pós-graduação "lato-sensu " na cidade de São Paulo.
  • 3
    Ver pesquisa realizada por Maria Regina Maluf (1996, pp.71-86) que discute a forma como o conhecimento da Psicologia é passado e apropriado pelo psicólogo durante a sua formação.
  • 4
    "Homologada pela Resolução SE de 10-8-73, publicada no DO de U/8/83, p.20/21" (in: SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde - DAE, 1987, p. 31)
  • 5
    Segundo a definição atribuída na Portaria Interministerial n° 186, de 10 de março de 1978 (in: SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde -DAE, 1987, p.12)
  • 6
    Cf. Portaria Conjunta CENP/CEI/COGSP/DAE, Publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 24 de dezembro de 1986(in: SÃO PAULO (ESTADO) Secretaria da Saúde - DAE, 1987, pp.40-41)
  • 7
    Ibid, (pp.43-45)
  • 8
    Este evento foi realizado em São Paulo pelo Conselho Regional de Psicologia - região 06, em 27 e 28 de outubro de 1995. Os trabalhos apresentados nesse primeiro Encontro e citados neste artigo, estão no livro:
    "Educação Especial em Debate ", organizado pelo CRP/06, publicado pela Casa do Psicólogo e lançado no II Encontro de Educação Especial, realizado em São Paulo, nos dias 13 e 14 de junho de 1997, pelo Conselho Regional de Psicologia.
  • 9
    Este desenvolvimento global é entendido no sentido de desenvolvimento sócio-emocional, escolar, psicomotor, orientação temporo-espacial, linguagem etc.
  • 10
    Ver L.A. Cunha, 1979, pp.27-60 e M.H.S. Patto, 1996, pp.53-64
  • 11
    A Região 06, é constituída pelo Estado de São Paulo. A sede, localiza-se na capital do Estado.
  • 12
    Com o apoio do plenário do congresso esse evento passou a ser denominado 1o. Congresso Nacional da Psicologia.
  • 13
    Ver Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia. Processo Constituinte: Repensando a Psicologia. Congresso Nacional Constituinte da Psicologia, Campos do Jordão 25 a 28 de agosto de 1994.
  • 14
    Nos pré-congressos também foram escolhidos os delegados (psicólogos representantes) para defenderem as teses elaboradas pelos vários grupos de trabalho nos respectivos Congressos: Regional e Nacional.
  • 15
    Ver ref. bibliográficas: Conselho Regional de Psicologia - São Paulo. "Educação Especial em Debate", 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Set 2012
    • Data do Fascículo
      1996
    Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: revista@cfp.org.br