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Afinal, por que somos tantas psicólogas?

Afinal, por que somos tantas psicólogas?

Fúlvia Rosemberg

Pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas

Acho que decidi fazer psicologia quando tinha 16 anos. Devia estar cursando o 1.° ou 2.° clássico. É certo que uma orientação humanística já havia sido feita: como tantas outras adolescentes, com 14 anos tinha "escolhido" o clássico. A razão desta 1.ª "decisão" foi confusa, mas me lembro de argumentos meus e dos outros do tipo: "A Fúlvia não dá para Matemática". Outras irmãs (e mesmo minha mãe) antes de mim, já apontavam a direção: uma normalista e outra cursando direito. Entre os meninos, meus irmãos, as opções foram mais diversificadas: científico, clássico, seminário.

Como gostava de estudar e não me via trabalhando logo, acho que por isso recusei o normal. Fui parar, então, no clássico, iniciando um longo conviver em gueto sexual: no clássico éramos provavelmente 30 mulheres e uns 5 homens. No cursinho, não consigo me lembrar de rapazes: em plena adolescência, de tendência heterossexual marcada, vibrante de sensualidade, os rostos de colegas de que me lembro são todos femininos. Continuei pertencendo à maioria feminina na faculdade, no doutoramento. Hoje, no Departamento de Pesquisas Educacionais, para 18 pesquisadoras do quadro apenas um homem.

Pela metade do curso clássico discutíamos a opção por uma faculdade. Não sei bem se era carreira. Nunca foi questionado que continuaria estudando, que faria faculdade. Mas qual? Como postura consciente, tenho idéia de ter feito cursinho para psicologia por exclusão. Não queria fazer direito (problemas de identificação com a irmã mais velha?), não queria seguir magistério. Dançando, num baile de formatura, na época, retive uma cena — Meu par, querendo me apertar, propondo o rosto colado que eu recusava, dizendo num sussurro excitante: "talvez fazendo psicologia você entenda por que não quer se encostar em mim!".

Com ou sem sexualidade reprimida, me preparei conscientemente para o vestibular. Disciplinas: Português, Inglês, Francês, Filosofia e... Matemática. Como troféu da época, e a contradição da minha vida acadêmica e profissional: mesmo não sendo "dotada para raciocínio matemático", estudaria Matemática no cursinho, de igual para igual, com um candidato à engenharia do ITA, tirei 9 na prova escrita de Matemática, passei sem oral nos exames de estatística durante o curso de psicologia (com o professor SEVERO, tradicional por seu rigor), sou pesquisadora, gosto de demografia e orientei essa minha discussão através de alguns marcos numéricos.

O ponto de partida foi um convite da Associação Profissional dos Psicólogos de Minas Gerais para que participasse da mesa redonda "Psicologia Profissão Feminina".

Tinha conhecimento de uma pesquisa que o Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo e o Conselho Regional de Psicologia (VI Região) haviam encomendado ao DIEESE sobre nosso perfil profissional.

À medida que os números iam sendo revelados fui me encontrando e identificando naquela massa anônima. De pronto espantei-me e, confesso, até mesmo um pouco irritada com minha falta de originalidade: dos 12.553 psicólogos registrados no Conselho Regional de Psicologia da VI Região, 88% éramos mulheres.

Mais tarde esse espanto foi reforçado com os dados de uma outra pesquisa, desta vez realizada entre psicólogos do Distrito Federal (Borges-Andrade et al., s/d). Aí, encontrei a confirmação de que na verdade, por mais irritante que seja a ironia do Nelson Rodrigues, somos sim é psicólogas com a, e muitas de nós da PUC! Essa obviedade me intrigou: afinal, por que somos tantas psicólogas?

Quem trabalha com estatística educacional já enfrenta problemas: veracidade e continuidade dos dados, estabilidade nas definições de categorias, atualidade e disponibilidade das publicações contendo dados secundários. Quem trabalha com dados secundários à luz da variável sexo enfrenta problema duplo, pois, a despeito das inúmeras recomendações nacionais e internacionais, as estatísticas sobre a educação brasileira, nos últimos anos, e no que diz respeito à variável sexo, são omissas, avaras e sexistas. Ou o dado não é coletado (por exemplo, desde 1974 os dados nacionais processados sobre ensino superior não discriminam mais a variável sexo), ou ele é coletado parcimoniosamente, apenas para uma categoria e não para outra (tem-se dado discriminado por sexo para corpo docente e não discente no ensino superior) ou então ele é coletado usando como referência implícita (isto é, como normal e modelar) a trajetória de vida escolar masculina.

Estas imperfeições na coleta, processamento e divulgação dos dados refletem-se na organização deste texto, que às vezes assume a forma de uma colcha de retalhos nacional. Na ausência de um dado para uma região usei de outra e vice-versa.

I. Formação

A última década observou três fenômenos importantes relativos ao ensino superior:

1. sua expansão;

2. a maior expansão do setor privado em detrimento do público, devido principalmente "ao incentivo dado à criação de pequenas escolas isoladas particulares, as quais não possuindo condições de investir em outras áreas, optavam, na maioria das vezes, pelos cursos de humanidades" (SESU, 1980:2);

3. e finalmente uma importante expansão da matrícula feminina, que de minoritária em 1971 (41,5%), já sobrepujava a masculina no meio do decênio (DEISO/IBGE, 1979:325).

A psicologia contribui, com sua parcela, para configurar esta estrutura da universidade brasileira. Expandiu na década, graças ao setor privado e também, em parte, à participação da mulher. Assim é que a nível nacional, os 28 cursos de psicologia em 1971, passaram a 51 em 1977. No Estado de São Paulo em 1970 existiam 5 cursos particulares e 4 públicos; em 1979 continuavam a existir os mesmos 4 cursos públicos porém, os particulares passaram a 20!

A terceira contribuição - de uma expansão das matrículas femininas - é possível entendê-la, no caso da psicologia, de duas formas complementares. De um aldo, o próprio fato de os cursos de psicologia terem aumentado no período mencionado - e sendo a psicologia um curso "escolhido" principalmente por mulheres - já indicaria uma contribuição da psicologia para a expansão das matrículas de mulheres no ensino superior. Por outro, de acordo com informações sobre o vestibular do CESGRANRIO no período compreendido entre 1973 e 1977 estaria também ocorrendo um aumento da "escolha" feminina pelo vestibular de psicologia. Com efeito, H. Lewin (1977) estudando o padrão de escolhas masculinas e femininas pelas carreiras oferecidas pelo vestibular CESGRANRIO observou que PSICOLOGIA obtém uma taxa de feminilidade superior a 80% e que essa taxa passou de 80,5% em 1973 para 86,0% em 1977.

Em resumo, a formação universitária em psicologia poderia quase que se constituir em micromodelo do que ocorreu com o ensino superior na década; expansão, expansão graças à rede particular e absorvendo um grande número de mulheres.

Já ultrapassamos a euforia do milagre brasileiro. A cada dia que passa, o cotidiano vem-nos mostrando que certas expansões são falaciosas e não atestam uma melhoria da condição de vida. Esta expansão das matrículas femininas no ensino superior está longe de suscitar euforia e alardes. É importante que se tente compreendê-la. Se é verdade que, de acordo com observações de Glaura Miranda (1975), as mulheres portadoras de diploma universitário têm mais chance de serem absorvidas pelo mercado de trabalho, é verdade também que a abertura do ensino superior às mulheres, ao invés de diversificar o leque de carreiras possíveis, manteve a dicotomização entre carreiras masculinas e femininas. E sabe-se que no mercado de trabalho a dicotomização masculina-feminina corresponde também a carreiras consideradas mais privilegiadas (engenharia, por exemplo) e menos privilegiadas (ramos da filosofia, enfermagem e... psicologia).* * A pesquisa sobre o perfil profissional do psicólogo do Distrito Federal (Borges-Andrade, s/d), indica essa mesma tendência: "Os percentuais dos pós-graduados que trabalham são mais elevados que o percentual (80,9%) dos psicólogos (em geral) exercendo sua profissão." (pág. 32).

II. Mercado de Trabalho

No fim da década de 70 e no início de 80 foram realizadas as duas pesquias anteriormente citadas sobre nosso perfil profissional: a da Associação Profissional dos Psicólogos do Distrito Federal (datada de 79), que se baseia nas informações prestadas por 355 psicólogos atuantes no Distrito Federal; a do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo, e do Conselho Regional de Psicologia, realizada pelo DIEESE em 1981 e que se apoiou em 500 entrevistas fornecidas por 500 psicólogos da Grande São Paulo e do interior do Estado (20 cidades).

Muitos dos dados coletados e interpretados nessas duas pesquisas refletem perfeitamente a situação da mulher no mercado de trabalho. Ou seja, a psicologia parece não constituir uma carreira desviante no que diz respeito às discriminações sofridas pela mulher: remuneração inferior à masculina; remuneração complementar à renda familiar; número de horas de trabalho fora de casa inferior ao do homem; encargos familiares que competem com a atuação profissional; dificuldades de absorção pelo mercado de trabalho (vide quadro).

Ora, quando esta situação profissional é integrada à formação universitária, parece que estamos diante de um paradoxo, ou pelo menos de uma indagação: por que tantas mulheres continuam a frequentar um curso, que não é gratuito, para enfrentar este mercado de trabalho, que as rejeita na proporção de 1/3 e que quando as aceita oferece-lhes uma remuneração tão pouco gratificante?

Objetivamente o relatório da pesquisa de São Paulo interpreta o paradoxo da seguinte forma: "Globalmente, os dados aqui apresentados colocam em evidência a questão do compromisso entre a formação acadêmica e o exercício da profissão, que não apresentam relação estreita para o conjunto da categoria, uma vez que razoável parcela da categoria não trabalha como psicólogo, e o tempo de ingresso em atividade profissional é, para boa proporção da categoria, posterior ao momento de formatura." Gostaria, porém, de propor um avanço na interpretação integrando-a à condição feminina.

Por trás do espanto refletido na frase citada existe, talvez, uma aceitação implícita (e que é de muitos nós) da teoria do capital humano, brilhante e jocosamente reinterpretada por Salm (1980) através da frase: há quem trate a escola como um departamento de pessoal do mercado de trabalho. Os dados observados sobre a formação e situação profissional do psicólogo nos estão mostrando que a possibilidade de incorporação de um indivíduo no mercado de trabalho ultrapassa de muito a sua formação educacional, entendida como capacitação ou como credenciamento. E isto é tanto mais evidente quando se pensa comparativamente na escolaridade de homens e mulheres. Por uma série de indicadores (sobre os quais poderei voltar mais tarde) frequentar a escola parece desempenhar funções diferentes na vida de homens e mulheres. Pode-se mesmo supor que frequentar escola e obter um diploma não sejam a mesma coisa para as mulheres. Mas, ainda que a escola ainda poderia estar desempenhando para as mulheres a função de guarda e proteção, de modo semelhante aos conventos no século XVIII.

Portanto, esta defasagem entre altos custos de formação (tempo de permanência na escola, tensão proveniente de competição, gastos com pagamento das mensalidades, de transporte e outros) e pequenos (ou não tão altos) benefícios profissionais tende a nos mostrar que, provavelmente, as mulheres estão fruindo o frequentar um curso de psicologia através de outros circuitos que não obrigatoriamente aqueles possíveis pelo mercado de trabalho. Este descompasso entre formação e trabalho profissional só aparentemente se constitui em anomia, pois ao contrário poderia estar mostrando um bom potencial de adaptação das mulheres às condições concretas de vida, em família, na escola e no mercado de trabalho.

III. Uma Tentativa de Compreensão

Dito de forma mais explícita, pode-se pensar também que as mulheres continuam a "escolher" o curso de psicologia (como outras carreiras ditas femininas) pela eficiência do processo de socialização no reforçamento de modelos de papéis sexuais dicotomizados; pelo serviço que essa formação dicotomizada vem prestando à manutenção de uma estrutura de empregos segregacionista; e pelos benefícios imediatos que traz a uma população de mulheres necessitando ainda conciliar sua dupla perspectiva de vida e que no concreto de seu cotidiano implicará ou uma opção afetivamente frustradora ou a dupla jornada de trabalho. Retomarei cada um destes pontos tentando explicitá-los mais adequadamente.

O reforço dos modelos sexuais tradicionais: Uma plêiade de estudos relativamente recentes em Psicologia vem sugerindo que a socialização diferencial dos sexos, reservando à mulher um papel expressivo e ao homem um papel instrumental, acarreta limitações nas expectativas e motivações femininas quanto a seu desempenho na vida adulta.

O impacto que causaram as constatações de Horner (1968) sobre o medo do sucesso, presente e comum entre mulheres inteligentes, indica o quanto ainda somos ignorantes sobre os mecanismos psicológicos profundos conseqüentes a uma socialização dividida entre a maternidade e o trabalho profissional, e que constituem freios formidáveis à vontade de inovação. A absorção, melhor seria mesmo dizer a impregnação, deste modelo tradicional e ambíguo se efetua para além dos muros domésticos, estando presente na rua, na igreja, nos meios de comunicação, na escola. Inclusive nos cursos de psicologia.

A atuação da escola como reprodutora da ideologia dominante tem sido freqüentemente denunciada por todos aqueles que visam à construção de uma sociedade democrática. No campo específico da reprodução de modelos sexistas, a bibliografia norte-americana e européia vem desmontando pouco a pouco as engrenagens escolares responsáveis pela transmissão de modelos sexuais bipolarizados. Tem-se, então, informação sobre a existência de padrões sexistas na interação entre professores e alunos, que, mesmo sendo de natureza inconsciente, não apenas refletem os valores discriminatórios da sociedade abrangente, mas também se originam da própria cultura escolar. A situação de sala de aula, necessitando e exigindo comportamento obediente dos alunos, tenderia a reforçar estes mesmos componentes sexistas criados e reforçados por outras instituições.

Apesar do interesse que grupos de professores vêm demonstrando em conhecer e em melhorar a condição das mulheres, não existe, a nosso conhecimento, nenhuma proposta oficial de inclusão deste tema no currículo de normalistas ou nas disciplinas didáticas de nível superior quando se teria, então, condição de refletir sobre a própria discriminação sofrida, bem como sobre a atuação enquanto reforçadoras de tais padrões.

Além da denúncia, da descrição dos mecanismos psicológicos e dos programas anti-sexistas no campo da interação professor-aluno, pesquisadores de países europeus e norte-americanos têm encontrado fortes indícios da existência de discriminação contra a mulher nos currículos e nos materiais didáticos utilizados em todos os níveis escolares, desde o pré-primário até a universidade.

No Brasil, as pesquisas visando a denunciar a existência de uma cultura sexista na escola têm-se dedicado principalmente à análise de textos didáticos. E os resultados brasileiros têm sido idênticos aos denunciados no Exterior: o material didático utilizado na escola veicula uma imagem dos papéis sexuais bipolarizada, valorizando o sexo masculino, apresentando-o como o representante da espécie humana; no seu canto, a mulher, principalmente adulta, é tida como ser inferior, passiva, dependente do homem, restringindo sua vida à esfera do doméstico, à maternidade.

Se os mecanismos psicológicos envolvidos na interação humana podem ter significado afetivo mais profundo que currículos e materiais didáticos, estes, por sua vez, têm a vantagem da flexibilidade por se tratar de material simbólico. Deste modo, se a menina e a jovem encontram no seu cotidiano poucos modelos alternativos concretos de mulheres desviantes das carreiras tradicionais, currículos e materiais didáticos podem oferecer modelos simbólicos, abrindo em muito o leque das informações disponíveis.

É importante que se tenha consciência da extraordinária penetração dos valores sexistas nas manifestações do saber oficial, isto é, o utilizado e recomendado pela escola: dicionários de língua pátria omitem verbetes sobre profissões não tradicionalmente femininas (por exemplo, engenheira, pesquisadora) e manuais de pediatria recomendam que na idade pré-puberal "haverá maior diversificação dos exercícios físicos para o sexo feminino e para o masculino; para aquele, buscam desenvolver a graça e o ritmo do movimento, enquanto para este exigem movimentos mais amplos, flexíveis e resistentes; têm também caráter higiênico." (Alcântara, p. 141).

Se os exemplos que escolhi podem ser criticáveis pela quase jocosidade que encerram, a questão não deixa de ser bastante grave: os centros produtores e difusores de conhecimento não alcançaram a questão da discriminação contra a mulher ao nível de um problema exigindo sua eliminação, o que, sabemos, só ocorrerá se a sociedade civil se mobilizar. Inclusive a acadêmica. Inclusive através da própria revisão dos conhecimentos acumulados. Inclusive e principalmente os do âmbito da psicologia.

Não sabemos da existência de qualquer recomendação, no passado e no presente, visando a combater as discriminações sexuais em currículos e materiais didáticos. E as comissões curriculares em suas recomendações existiram e continuam a existir, vigilantes à mais leve oposição aos valores tradicionais. Mais grave ainda é que organismos oficiais (MOBRAL, FENAME e INL) produzem e/ou coeditam e/ou distribuem material didático veiculando imagens ultrapassadas, tradicionais, discriminadoras e, por vezes, mesmo preconceituosas contra a mulher. E os cursos de psicologia acabam também por veicular teorias psicológicas ideologicamente enviesadas e respaldadas no conhecimento científico, tido por muitos como neutro e objetivo, isto é, acima de qualquer suspeita. Aqui, gostaria de dar destaque à postura que a psicologia (com algumas exceções), enquanto corpo de conhecimento, tem dado à questão da maternidade, reforçando e criando componentes ideológicos sobre o trabalho feminino e conseqüentemente avaliando as formas alternativas de cuidado e educação de criança pequena.

A ideologia da "finalidade da 'mulher matura se esgota na maternidade" ou "a mãe é do filho como o filho é da mãe" encontrou um aliado muito importante no especilista da infância - higienistas, médicos, psicólogos. Se os médicos depositaram na mãe a principal responsabilidade pela saúde física da criança, os "psi" responsabilizaram-se pela saúde mental. O modelo ideal e saudável, o único modelo adequado de educação da criança pequena é no interior da díade. E mais ainda. A maternidade é a redenção da mulher se nos ativermos a certos textos de Freud, de seus seguidores e vulgarizadores (Badinter, 1980; Ehrenreich & English, 1979).

Se por um lado a maternidade realiza a mulher, por outro lado a evolução da criança em termos psicológicos depende dessa mesma mulher: e aí um outro grupo de psicólogos é responsável pela amarração ideológica definitiva. Spitz e Bowlby introduzindo o conceito da síndrome do hospitalismo, jogaram a suspeita definitiva sobre a educação e guarda da criança pequena em qualquer outra instituição que não seja a família.

Os trabalhos sobre as carências psicológicas de crianças criadas em instituições vieram fechar o círculo: de um lado colocar a família como instituição não só adequada como a única normal para educação da criança; exacerbar, por outro, o sentimento de culpa da mãe, usando como canal de divulgação poderoso os meios de comunicação de massa. A família, em especial a mãe, são os melhores, se não os únicos seres adaptados e adequados para criar a criança pequena: essa mãe "natural" e "instintivamente" preparada para esta função não é porém apta, necessitando do reforço do especialista. Especialista que vai interpondo-se, como intermediário importante, na relação entre a mãe e a criança.

Como conseqüência direta sobre a instituição creche, a família passa a ser o modelo que deve ser imitado. A creche passa a ser aceita apenas como substituta da mãe. Para escapar ao estigma da instituição (que se associa a imagens de abandono, desamor, carência) a creche se cola ao modelo familiar e se propõe a uma substituição. Substituição pesada em conseqüências: para a mãe, para o pessoal que nela trabalha e conseqüentemente para a criança.

A persistência de discriminações sexuais na escola é ainda reforçada, no caso brasileiro, pela ausência quase que absoluta de materiais alternativos. A não ser alguns raros livros de lazer recentemente publicados que se preocupam em propor modelos femininos alternativos aos tradicionais, a professora brasileira não dispõe de instrumental de apoio, semelhante ao que existe em outros países do mundo. A revisão crítica da psicologia, no plano de igualdade entre os sexos, tem ficado quase que exclusivamente restrita ao militantismo feminista, o que vale dizer, pouco acessível. Acessibilidade esta ainda restringida pelo fato de a reflexão brasileira no setor ser escassa, devendo-se recorrer a textos estrangeiros com as conseqüentes barreiras de custo e língua.

A escola também reforça diretamente nos alunos os padrões tradicionais pela própria estrutura hierárquica de cargos e funções que propicia, aos homens, postos superiores aos das mulheres. Tendo diante de si modelos femininos simbólicos e reais tradicionais, a menina, a moça e a mulher adulta têm pouca possibilidade de trilhar desvios, de sair do habitual. Complementarmente, o estudante de sexo masculino também deixa de conviver com modelos femininos divergentes, o que pode enrijecer suas percepções e expectativas quanto ao desempenho de homens e de mulheres. Essa situação se vê agravada pelo fato de que a segregação observada entre alunos se mantém no corpo docente: mulheres tendem a ser com maior freqüência professoras de cursos freqüentados por mulheres.

A menos que se desenvolva uma ação, também no plano escolar, que vise à transformação da condição feminina, as reformas preocupadas apenas com a expansão do ensino contribuirão para reforçar os papéis tradicionais de homens e mulheres.

A segregação ocupacional: Bruschini (1979), estudando a força de trabalho masculina e feminina não-agrícola, observa que sua distribuição se processa desigualmente por entre ocupações e setores de atividade, ocorrendo verdadeira segregação ocupacional por sexo. De um lado, a participação masculina se distribui relativamente bem por entre as ocupações e os setores de atividade, ao passo que a feminina se concentra em empregos domésticos, de professora, enfermeira ou balconista (pág. 13). Esta segregação provoca, segundo a mesma autora, "o surgimento de um 'mercado de trabalho dual' que permite explicar as diferenças de salário entre homens e mulheres em termos da análise da oferta e da procura" (pág. 18). Apesar de pouco significativa a contribuição das mulheres universitárias no cômputo geral da taxa de participação da mulher na força de trabalho, sua colocação em carreiras educacionais (professorado e afins) é bastante alta, tendo dobrado nas duas últimas décadas (pág. 19).

A segregação observada na formação secundária, universitária, se mantém geralmente durante a vida profissional, com desvantagens evidentes no mercado de trabalho.

Acreditar que o desenvolvimento econômico e a expansão do ensino por si só possam corrigir o viés histórico é perpetuar uma situação indesejável. Por outro lado, imaginar que apenas a ação educacional poderia reorientar e banir as especializações observadas seria ingenuidade, pois a atual estrutura do mercado de trabalho se encarregaria de reduzir estas mulheres a desempregadas plenas.

Sabedoria da conciliação ou senso da realidade: Enfrentando esta estrutura do mercado de trabalho, vivendo (e reproduzindo) o peso de discriminações, sofrendo o impacto do processo de socialização durante a infância e a vida adulta e não contando com o companheiro ou equipamentos coletivos com quem possa dividir as lides domésticas, principalmente a guarda, educação e proteção dos filhos pequenos, projeto e trajetória educacional da mulher tendem a divergir da masculina. Sendo dadas e mantidas as condições atuais, nada mais estratégico que, tendo a possibilidade de freqüentar a escola, a "opção" feminina seja por cursos flexíveis. Cursos — como o de psicologia — que por sua generalidade, não-tecnicidade, não-especialidade permitam um leque alternativo de "opções" profissionais mesmo que elas impliquem subemprego: professora particular, intérprete, secretária, jornalista, professora, recepcionista, pesquisadora. Cursos que permitam "aumentar a cultura geral" resposta dada preferencialmente por mulheres quando são questionadas sobre as razões que levaram-nas a "escolher" as carreiras freqüentadas (Lewin, 1977 e a Bonitatibus, 1977). Cursos, enfim, que "permitam" que 1/3 das pessoas formadas (como a Psicologia) exerça uma outra atividade profissional, diferente daquela para a qual se credencionam na Universidade.

Aumentar a cultura geral pode significar tanto armazenar conhecimentos gerais suscetíveis de se converterem em instrumento de trabalho profissional, quanto em serem utilizados no cotidiano doméstico: enquanto mãe, enquanto esposa, enquanto pessoa não-profissional.

Na medida em que o futuro profissional é incerto, pois a maternidade pode, independente da vontade individual ou da expectativa da mulher, impedir o prosseguimento de uma carreira profissional por falta quase que absoluta de formas alternativas de cuidado e educação do filho, procurar conhecimentos polivalentes ou reconvertíveis ao cotidiano parece-nos demonstrar o exercício de um poderoso senso de realidade. Uma estratégia de sobrevivência. Estou querendo sugerir que moças também escolhem cursos assistenciais, ligados à área de educação ou para-médicos — como a psicologia — não apenas porque sua socialização conduziu-as a "preferirem" papéis expressivos; não apenas por seu passado escolar que privilegiou as humanidades em detrimento das ciências e da técnica mas também pelo ajustamento de tais cursos à ambivalência de sua condição. A funcionalidade dessas especializações no aqui e agora do cotidiano de muitas mulheres seria mais um determinante da segregação educacional e de sua permanência.

Modelar-se, adaptar-se, conciliar: seus processos internos são a margem de manobra que lhes resta para dar conta de expectativas suas que não se esgotam na preservação da espécie humana.

O sistema escolar não é uma ilha. Também não é neutro. Modificações substanciais significando igualdade de oportunidades educacionais para os sexos não ocorrem apenas pela miscegenação do ensino, pela expansão das matrículas femininas. Educação igualitária, hoje, seria aquela que, assumindo também a existência de discriminação sexual se propusesse a uma ação mobilizadora.

Bibliografia

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SALM, Claudio L. Escola e trabalho. São Paulo, Brasiliense, 112 p., 1980.

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SPITZ, Renée. Hospitalism: an inquiry into the genesis of psychiatric conditions in early childhood. Psychoanal Study Child, (1): 53-74, 1945.

Este texto constitui versão revista e atualizada do artigo "Psicologia:Profissão Feminina" publicado nos "Cadernos de Psicologia

  • ALCÂNTARA, Pedro de, & MARCONDES, Eduardo. Pediatria básica, v. 1, 2.Ş ed., São Paulo, Sarvier, 1968.
  • BADINTER, Elisabeth. L'amour en plus: histoire de l'amour maternel. Paris, Flammarion, 1980.
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  • HORNER, Matina. Sex differences in achievement motivation and performance in competitive and non-competitive situations. Michigan, University Microfilms, 1968.
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  • SPITZ, Renée. Hospitalism: an inquiry into the genesis of psychiatric conditions in early childhood. Psychoanal Study Child, (1): 53-74, 1945.
  • *
    A pesquisa sobre o perfil profissional do psicólogo do Distrito Federal (Borges-Andrade, s/d), indica essa mesma tendência: "Os percentuais dos pós-graduados que trabalham são mais elevados que o percentual (80,9%) dos psicólogos (em geral) exercendo sua profissão." (pág. 32).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2012
    • Data do Fascículo
      1984
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