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O Racismo Enraizado nas Famílias Inter-Raciais de São Paulo

Deep-Rooted Racism in Interracial Families from São Paulo

Racismo Arraigado en las Familias Interraciales de São Paulo

Resumo

O racismo estrutural é uma realidade na sociedade brasileira e pode ser manifestado no interior de famílias inter-raciais. As crianças e as pessoas adultas que experienciam sentimentos de aceitação ou de rejeição nas dinâmicas familiares desenvolvem diferentes formas de ver a si mesmas, os outros e o mundo ao redor. Este estudo teve por objetivo avaliar as percepções de suporte emocional, rejeição parental na infância e discriminação cotidiana entre pessoas brancas, pardas e pretas. Participaram 175 pessoas, 80% do gênero feminino, com idade da amostra total variando de 18-39 anos (M = 24; DP = 5,11). Cento e três participantes se identificaram como branca/o, 42, como preta/o e 30, como parda/o. Todos responderam um formulário online composto pela Escala de Lembranças de Práticas Parentais, Escala de Discriminação Cotidiana e questões sociodemográficas. O resultado do teste Manova indicou que não houve diferença estatisticamente significativa entre as pessoas brancas, pardas e pretas em relação ao suporte emocional e à rejeição parental. Quanto à percepção de discriminação, houve diferença estatisticamente significativa nas subescalas de Tratamento Injusto [X²(2) = 17,360; p < 0,001] e Rejeição Pessoal [X²(2) = 27,970; p < 0,001], pessoas pretas apresentaram maiores médias que pardas e brancas, respectivamente. Discute-se a importância de falar sobre racismo nas relações familiares. Espera-se percepções de rejeição parental menor para pessoas brancas e de discriminação cotidiana maior para pardas e pretas.

Palavras-chave:
Racismo; Rejeição; Suporte Emocional; Discriminação Cotidiana; Família

Abstract

Structural racism is a reality in Brazilian society and it can manifest within interracial families. Children and adults who experience feelings of acceptance or rejection in family dynamics develop different forms of seeing themselves, others, and the world around them. This study aimed to analyze perceptions of emotional support, parental rejection in childhood, and everyday discrimination between white, mixed, and black people. The participants were 175 people, 80% women, aged between 18 to 39 years (M = 24; DP = 5.11). A hundred and three participants identified themselves as white, 42 as black, and 30 as mixed. All answered an online form with the Memories on Parenting Practices, Everyday Discrimination Scale, and sociodemographic questions. Results show that the MANOVA test indicated no statistically significant difference between white, black, and mixed people regarding emotional support and parental rejection. Concerning the perception of discrimination, there was a statistically significant difference in the Unfair Treatment [X2(2) = 17.360; p < 0.001] and Personal Rejection [X2(2) = 27.970; p < 0.001] subscales, black people presented higher averages than mixed and white groups, respectively. This study discusses the importance of discussing racism in family relationships. Perceptions of lower parental rejection for white people and higher everyday discrimination for mixed and blacks are expected.

Keywords:
Racism; Rejection; Emotional Support; Everyday Discrimination; Family

Resumen

El racismo estructural es una realidad en la sociedad brasileña y puede manifestarse en familias interraciales. Los niños y los adultos que experimentan sentimientos de aceptación o rechazo en la dinámica familiar desarrollan diferentes formas de verse a sí mismos, a los demás y al mundo que los rodea. Este estudio tuvo como objetivo evaluar las percepciones de apoyo emocional, rechazo de los padres en la infancia y discriminación cotidiana entre personas blancas, mestizas y negras. Participaron 175 personas, 80% mujeres, con una edad de la muestra total de entre 18 y 39 años (M = 24; DE = 5,11). Ciento tres participantes se identificaron como blancos; 42 como negros y 30 como pardos. Todos respondieron un formulario en línea que consta de la Escala de Recuerdo de Prácticas de Crianza, la Escala Discriminación en la Vida Cotidiana y de preguntas sociodemográficas. El resultado de la prueba Manova indicó que no hubo diferencias estadísticamente significativas entre las personas con respecto al apoyo emocional y el rechazo de los padres. En cuanto a la percepción de discriminación, hubo uma diferencia estadísticamente significativa en las subescalas de trato injusto [X2(2) = 17,360; p < 0,001] y rechazo personal [X2(2) = 27,970; p < 0,001], los negros tenían promedios más altos que los pardos y los blancos, respectivamente. Se discute la importancia de hablar de racismo en las relaciones familiares. Se esperan percepciones de menor rechazo de los padres hacia las personas blancas y mayor discriminación diaria hacia los pardos y negros..

Palabras clave:
Racismo; Rechazo; Soporte Emocional; Discriminación en la Vida Cotidiana Familia

O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravização de povos africanos. Esse processo durou mais de 300 anos e, ao longo da história do país, verifica-se a manutenção do racismo estrutural, refletindo em práticas discriminatórias em diferentes âmbitos da sociedade. As desigualdades raciais podem ser exemplificadas pelos indicadores socioeconômicos. Os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, em 2018, pretos e pardos representavam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população com os menores rendimentos e 27,7% dos 10% da população com os maiores rendimentos. O rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas foi 73,9% superior ao da população preta ou parda. Os brancos ganhavam, por hora, 45% a mais do que pretos ou pardos com o mesmo nível de formação. Ou seja, pretos e pardos apontam índices parecidos e distantes daqueles apresentados pelos brancos (Daflon, Carvalhaes, & Feres Jr., 2017Daflon, V. T., Carvalhaes, F., & Feres, J., Jr. (2017). Sentindo na pele: Percepções de discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil. Dados, 60(2), 293-330. https://doi.org/10.1590/001152582017121
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).

O racismo está tão impregnado nas estruturas sociais brasileiras que se desvela inclusive nas relações familiares (Schucman, 2018Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA.). A família, enquanto espaço de troca de afetos, de laços sólidos, é um importante mediador entre o indivíduo e a sociedade (Baptista & Teodoro, 2020Baptista, M. N., & Teodoro, M. L. M. (2020). Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenção. Artmed), e lançar luz nas relações de suporte emocional, rejeição e a discriminação cotidiana ocorridas no seio familiar pode desvelar questões importantes a serem consideradas pela psicologia, tais como a apropriação, legitimação e manutenção das hierarquias raciais.

As teorias raciais surgiram na Europa, em um período histórico-social marcado pelas expansões de territórios ultramarinos. Fez-se necessário justificar o processo de escravização dos povos africanos e indígenas, a colonização e a expansão do capitalismo por meio de uma ideologia que sustentasse uma suposta diferenciação da humanidade formulada por critérios eurocêntricos: a) a existência de uma raça (branca-europeia) detentora de superioridade física, moral, intelectual e estética; e b) as outras raças seriam então inferiores e constituiriam um perigo para o patrimônio biológico (Schucman, 2018Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA.). Seguindo essa linha argumentativa, Munanga (2004Munanga, K. (2004). Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia [Apresentação de trabalho]. 3 º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação, Niterói, RJ, Brasil.) ressalta que, no imaginário social, a ideia de raça está atrelada às ciências biológicas e sociais produzidas nos séculos XIX e XX. Os discursos produzidos por intelectuais dessas ciências a partir de teorias pseudocientíficas tinham um caráter doutrinário, com objetivos de justificar e legitimar os sistemas de dominação racial.

De acordo com Guimarães (1999Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34.), o termo racismo remete a três dimensões: a) à concepção de raças biológicas (racialismo); b) atitude moral quanto ao tratamento recebido por pessoas de distintas raças; e c) posição estrutural de desigualdade social entre as raças. Ainda segundo Guimarães (2016)Guimarães, A. S. A. (2016). O legado de Carlos Hasenbalg (1942-2014). Afro-Ásia, (53), 277-290., as raças podem ser entendidas como categorias socialmente eficazes para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios entre as pessoas. Conforme Lima (2020Lima, M. E. O. (2020). Psicologia social do preconceito e do racismo. Blucher.), o racismo refere-se a uma crença essencialista que naturaliza a diferença entre as pessoas e ocorre por um processo de hierarquização, exclusão social e discriminação em nível individual, cultural e institucional. Isso se dá por meio de práticas ou comportamentos implícitos, como os preconceitos, ou explícitos, com a restrição de acessos e direitos. A discriminação pode ser definida como uma ação que visa impedir a garantia de direitos individuais e sociais de determinados indivíduos ou grupos devido a certas características e ou por pertencimento a referidos grupos (Allport, Clark, & Pettigrew, 1954Allport, G. W., Clark, K., & Pettigrew, T. (1954). The nature of prejudice. Addison-Wesley.). Lima (2013)Lima, M. E. O. (2013). Preconceito. In L. Camino, A. R. R. Torres, M. E. O. Lima, & M. E. Pereira (Orgs.), Psicologia social: Temas e teorias (pp. 589-640). TechnoPolitik., por sua vez, aponta que o preconceito tem componentes cognitivos (crenças e estereótipos), afetivos (antipatia e aversão) e comportamentais (tendências para discriminação). Segundo Guimarães (2016)Guimarães, A. S. A. (2016). O legado de Carlos Hasenbalg (1942-2014). Afro-Ásia, (53), 277-290., o racismo orienta modos de perceber, agir, interagir e pensar, e tem uma função social específica: estratificar e perpetuar o privilégio da branquitude.

Cumpre destacar que os estudos sobre raça, a partir de 1990, tiveram uma mudança de perspectiva entre teóricos (Carone & Bento, 2017Carone, I., & Bento, M. A. S. (2017). Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Vozes.; Schucman, 2014Schucman, L. V. (2014). Sim, nós somos racistas: Estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, 26(1), 83-94. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100010
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), buscando refletir de modo crítico a identidade racial branca e suas manifestações (Santos, Schucman, & Martins, 2012Santos, A. O., Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2012). Breve histórico do pensamento psicológico brasileiro sobre relações étnico-raciais. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 166-175. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500012
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). Schucman (2014)Schucman, L. V. (2014). Sim, nós somos racistas: Estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, 26(1), 83-94. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100010
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analisa a branquitude como um produto da história e uma posição de privilégios: os sujeitos que a ocupam nos dias de hoje mantêm e preservam o acesso aos recursos materiais e simbólicos que foram gerados pelo colonialismo e pelo imperialismo. Logo, para compreender a branquitude, Schucman (2014)Schucman, L. V. (2014). Sim, nós somos racistas: Estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, 26(1), 83-94. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000100010
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afirma que é necessário entender o processo de construção das estruturas de poder fundamentais, concretas e subjetivas nas quais as desigualdades raciais se perpetuam. Os estudos sobre relações raciais que apenas focaram na população negra e indígena contribuíram para legitimar a noção de que a identidade racial branca era a norma. A perspectiva atual sobre raça busca inverter esse raciocínio ao analisar o centro dessa estrutura, ou seja, os brancos (Dyer, 1988Dyer, R. (1988). White. Routledge).

As pesquisadoras Beltrão, Sugahara e Teixeira (2016) concluíram, ao comparar dados dos censos de 1960 e de 2010, que houve um crescimento notável dos casamentos inter-raciais, de 8,2%, em 1960, para 30,7%, em 2010. Elas também identificaram um aumento significativo dessas configurações entre os casais inter-raciais: a) homens brancos, pretos, amarelos e indígenas com mulheres pardas; b) homens brancos, amarelos, pardos e indígenas com mulheres pretas; c) homens pardos com mulheres brancas; d) homens pretos com mulheres brancas e pardas.

Mas por que é importante falar a respeito dos frutos de uniões inter-raciais? Brito (2003) define família como uma instituição social-histórica básica, a qual abrange várias combinações de sentido e significados. Para a autora, as famílias transmitem valores e crenças a respeito dos grupos raciais a partir das relações estabelecidas entre os seus membros, das atitudes de aceitação ou rejeição e das expectativas criadas ao reproduzir uma hierarquia racial pautada, muitas vezes, na valorização da branquitude. Consequentemente, características fenotípicas, tais como a textura de cabelo, a cor da pele, a cor dos olhos e o formato de nariz e lábios, podem se tornar variáveis que interferem na valorização ou rejeição de seus membros.

É inegável a importância das relações estabelecidas no seio familiar para o desenvolvimento saudável do indivíduo ao longo do seu ciclo vital. Muitos sofrimentos psicossociais são gerados e impostos durante a vida familiar do indivíduo (Teodoro & Baptista, 2012Teodoro, M. L. M., & Baptista, M. N. (Orgs.). (2012). Psicologia de família: Teoria, avaliação e intervenção. Artmed.). Por ser o primeiro grupo social do qual o indivíduo faz parte, ela tem funções essenciais para o desenvolvimento e o estabelecimento das relações com os demais (Teodoro & Baptista, 2012Teodoro, M. L. M., & Baptista, M. N. (Orgs.). (2012). Psicologia de família: Teoria, avaliação e intervenção. Artmed.). As famílias são sistemas que transmitem normas, valores, condutas e forças de aprovação ou sanção das condutas dos seus membros, e os pais ou responsáveis tendem a decidir estratégias educativas conforme sua visão de mundo, com o intuito de influenciar formas de pensar e agir (França, Andrade, & Silva, 2016França, D. X., Andrade, I. K. S., & Silva, K. C. (2016). Valores e discriminação racial em crianças. Veredas - Revista Eletrônica de Ciências, 9(2), 5-23.). As experiências vivenciadas nessas relações, em uma perspectiva cognitivo-comportamental, irão influenciar a maneira como pensamos a respeito de nós mesmos, dos outros e do mundo que nos cerca, influenciando a forma como agimos e nos sentimentos nas diferentes interações e contextos (Wright et al., 2019Wright, J. H.; Brown, G.K.; Thase, M.E. & Basco, M.R. (2019) Aprendendo a terapia cognitivo-comportamental: um guia ilustrado. Porto Alegre: Artmed.).

A maneira como os pais educam seus filhos sofre influências de diversos fatores em diferentes sistemas sociais, tais como os valores culturais, a condição socioeconômica da família, o tipo de configuração familiar, a rede de apoio social da família, as características individuais da criança e dos pais e as experiências prévias dos genitores com a família de origem (Patias, Siqueira, & Dias, 2013Patias, N. D., Siqueira, A. C., & Dias, A.C.G. (2013). Práticas educativas e intervenção com pais: a educação como proteção ao desenvolvimento dos filhos. Mudanças - Psicologia da Saúde, 2(1), 29-40. https://doi.org/10.15603/2176-1019/mud.v21n1p29-40
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).

Para França (2013França, D. X. D. (2013). A socialização e as relações interétnicas. In L. Camino, A. R. R. Torres, M. E. O. Lima, & M. E. Pereira (Orgs.), Psicologia social: Temas e teorias (pp. 541-587). TechnoPolitik.), o processo de socialização tem um caráter contínuo e adaptativo, e a família atua como o primeiro e mais importante contexto de desenvolvimento físico, psicológico e social da criança. Ainda segundo a autora, recentes estudos mostram que a visão dos pais sobre os grupos raciais tem influência nas atitudes das crianças para com esses grupos e na formação de identidade delas. Hughes e Chen (1999Hughes, D., & Chen, L. (1999). The nature of parents’ race-related communications to children: A developmental perspective. In L. Balter & C. S. Tamis-LeMonda (Eds.), Child psychology: A handbook of contemporary issues (pp. 467-490). Psychology Press.) identificaram que a comunicação pai-filho, por meio das práticas parentais, exerce um papel importante na orientação e socialização racial, como a conscientização sobre a existência do preconceito e discriminação e preparação para enfrentá-los, ênfase na necessidade de valorizar todos os grupos raciais e destaque para o orgulho racial por meio das tradições e histórias familiares.

Hughes et al. (2006Hughes, D., Rodriguez, J., Smith, E. P., Johnson, D. J., Stevenson, H. C., & Spicer, P. (2006). Parents’ ethnic-racial socialization practices: A review of research and directions for future study. Developmental Psychology, 42(5), 747-770. https://doi.org/10.1037/0012-1649.42.5.747
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) ressaltam a socialização racial como principal prática utilizada por famílias e comunidades afro-americanas para lidar com assuntos relacionados ao racismo, e as consequências dessas estratégias são as seguintes: a) contribuição positiva no desenvolvimento da identidade racial e na autoestima; b) menor frequência de envolvimento em brigas, e consequentemente, melhor gerenciamento da raiva; c) pessoas com maior exposição a mensagens de orgulho racial demonstraram estar menos negativamente afetadas pela discriminação racial percebida, em comparação às que relataram exposição mínima a mensagens positivas sobre o seu grupo e cultura.

Segundo Brito (2003), a forma como os familiares validam os sentimentos dos filhos diante de uma situação de discriminação racial irá influenciar na maneira como eles se sentem, agem e se relacionam consigo mesmos e com os outros. No estudo de França (2006França, D. X. (2006). Socialização do preconceito em crianças negras, mulatas e brancas do Brasil [Tese de doutorado não publicada]. Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.) sobre socialização e práticas educativas, os resultados apontaram que, quando os pais valorizam a própria identidade racial, o mesmo também ocorre nos filhos. De acordo com Linehan (2010Linehan, M. M. (2010). Treinamento de habilidades em DBT: Manual de terapia comportamental dialética para terapeuta. Artmed.), quando a expressão das experiências privadas não é reconhecida, é banalizada ou mesmo punida, ou seja, quando ocorre o que a autora define como invalidação, o indivíduo pode identificar que está errado em sua descrição e na análise pessoal que fez sobre sua experiência pessoal, em particular a respeito do que está causando suas emoções, crenças e ações. Consequentemente, pessoas que não têm acolhimento e suporte emocional podem evitar interações nesse espaço ou tentar mudar seus comportamentos ou demais características para satisfazer as expectativas do meio e, desse modo, diminuir a invalidação.

Para Brito (2003), famílias inter-raciais podem ter um despreparo diante do racismo, do preconceito e da discriminação racial, e isso pode levar ao desenvolvimento de estratégias deficitárias para o enfrentamento das situações; mas também podem apresentar atitudes de resistência e contestação para lidar com essas questões. Participaram da pesquisa da autora pais, mães e filhos de duas famílias inter-raciais, os quais foram entrevistados. Os dados obtidos indicam que, embora as famílias utilizem estratégias para ensinar os filhos a lidar com racismo e discriminação racial, essa não era uma prioridade na educação dos filhos. A orientação dos pais estava associada a experiências discriminatórias que os filhos poderiam enfrentar em diferentes contextos (escola, família estendida, em clubes, na rua etc.).

Schucman (2018Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA.), ao contextualizar a bibliografia sobre famílias inter-raciais no Brasil, aponta que, embora essas famílias representem cerca de um terço dos casamentos no país, ainda carecem de estudos nacionais que investiguem de que forma elas se estruturam no que diz respeito às hierarquias raciais. Schucman (2018)Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA. salientou que as pesquisas brasileiras com essas famílias apresentam as seguintes limitações: a) falta de compreensão da complexidade existente dentro dessas relações por conta de diferentes reações quanto ao mesmo fenômeno, no caso, o racismo; b) problematizar apenas o sujeito negro nas relações familiares e, assim, realizar associações simplistas como a do casamento inter-racial ter como propósito ascensão social e embranquecimento; e c) ausência de estudos discutindo os processos de formação de identidade racial dos filhos de uniões inter-raciais (o mestiço brasileiro).

Schucman (2018Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA.) buscou verificar como as hierarquias raciais da sociedade se reproduzem no interior das famílias cujos integrantes se autoclassificam diferentemente em relação à raça - como brancos, negros ou mestiços - e em como essas hierarquias coexistem e interagem com os afetos. Foram entrevistadas cinco famílias inter-raciais, quatro delas residentes da cidade de São Paulo e uma, de Santo André. Dentre os resultados obtidos, destaca-se o uso do mecanismo de negação pelos membros brancos de famílias inter-raciais como parte de uma dinâmica de rejeição, apagamento e consequente esquecimento da ancestralidade negra. Além disso, Schucman (2018)Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA. reflete sobre os efeitos psicossociais da violência racial e do racismo para a subjetividade dos indivíduos, destacando relatos que indicam a presença de conflitos raciais dentro de sua família em função da repetição de uma lógica racista em que a negritude toma um lugar de inferioridade, ao passo que a branquitude assume uma posição de superioridade, afetando as relações de afeto e acolhimento com os familiares.

Embora exista uma quantidade significativa de estudos brasileiros sobre as relações familiares e a socialização das crianças, poucos têm o recorte racial. Isto é, ainda são escassos os estudos brasileiros sobre dinâmicas familiares e relações raciais (Schucman & Fachim, 2016Schucman, L. V., & Fachim, F. L. (2016). A cor de Amanda: identificações familiares, mestiçagem e classificações raciais brasileiras. Interfaces Brasil/Canadá, 16(3), 182-205.). Lima (2020Lima, M. E. O. (2020). Psicologia social do preconceito e do racismo. Blucher.) também aponta a lacuna de pesquisa empírica sobre racismo no Brasil: apenas 9 dos 82 (11%) artigos analisados pelo autor usam essa metodologia no estudo. Tomás (2016Tomás, M. C. (2016). Relações raciais nas famílias brasileiras. Rebep, 33(3). http://dx.doi.org/10.20947/s0102-30982016c0013
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) destaca que, dentre aqueles cujo objetivo era analisar as relações raciais no seio familiar, verifica-se uma predominância de estudos sobre casamentos inter-raciais, diferenças socioeconômicas entre famílias chefiadas por negros e brancos e a relação família-escola, ou seja, nosso conhecimento a respeito do processo de socialização e estigma no seio da família ainda é escasso.

A partir dos apontamentos realizados, verifica-se tanto a importância quanto a necessidade de estudos que visem compreender a dimensão dos reflexos do racismo intrafamiliar via diferenças no tratamento individual e nas relações por conta da reprodução de uma hierarquia racial em que as expectativas dos familiares se pautam nos traços físicos (tonalidade da pele e textura do cabelo) dos indivíduos (Hordge-Freeman, 2018Hordge-Freeman, E. (2018). A cor do amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. EdUFSCar.). Assim, este estudo pretende avaliar as percepções de suporte emocional, rejeição parental na infância e discriminação cotidiana entre pessoas brancas, pardas e pretas, a partir das seguintes hipóteses: a) a rejeição parental seria menor para indivíduos brancos; e b) a percepção de discriminação racial seria maior para as pessoas pardas e pretas.

Método

Participantes

Participaram do estudo 175 pessoas com idades entre 18 e 39 anos (M = 24 anos; DP = 5,11), a maioria das participantes eram do gênero feminino (80%), se identificaram como branca/o (58,9%) e eram estudantes de graduação (69,7%). Cem participantes (57,1%) eram heterossexuais e 34,3% eram pertencentes à classe socioeconômica B2, com um estrato de renda média domiciliar de R$ 5.363,19. A Tabela 1 apresenta os dados de caracterização de participantes.

Tabela 1
Caracterização das/os participantes de acordo com a identificação racial.

Instrumentos

Escala de Lembranças Sobre Práticas Parentais (Embu) - traduzida para o português e validada por Canavarro e Pereira (2007Canavarro, M. C., & Pereira, A. I. (2007). A percepção dos filhos sobre os estilos educativos parentais: A versão portuguesa do EMBU-C. Revista Iberoamericana de Diagnóstico y Evaluación - e Avaliação Psicológica, 2(24), 193-210.), em sua versão reduzida de 23 itens numa escala de resposta de frequência com quatro pontos (1-não, nunca; 2-sim, ocasionalmente; 3-sim, frequentemente e 4-sim, a maior parte do tempo). Neste estudo foram utilizados apenas os 12 itens relativos aos fatores suporte emocional e rejeição. Os itens relacionados ao suporte emocional retratam uma série de comportamentos parentais que geram nos/as filhos/as a sensação de conforto. Nesse sentido, busca-se afirmar o valor do/a filho como pessoa por meio de elogios, da contribuição positiva no processo de aprendizagem, do encorajamento, da demonstração de carinho, afeto e orgulho, por exemplo, o item “Se as coisas dessem errado comigo, eu sentia que os meus pais tentavam me confortar e encorajar”. O fator rejeição descreve comportamentos parentais com a intenção de mudar a vontade do/a filho/a. Os itens incluem situações de castigos físicos, privação de privilégios, tratamento diferenciado e críticas. A título de exemplo, o “Meus pais ficavam bravos comigo sem explicar o porquê”.

Escala de Discriminação Cotidiana - traduzida, adaptada e validada para a língua portuguesa por Freitas, Coimbra, Marturano e Fontaine (2015Freitas, D. F., Coimbra, S., Marturano, E. M., & Fontaine, A. M. (2015). Adaptação da escala de discriminação quotidiana para jovens portugueses. Psicologia: Reflexão e Crítica, 28(4), 708-717. http://dx.doi.org/10.1590/1678-7153.201528408
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), a partir da Everyday Discrimination Scale (Williams, Yum, Jackson, & Anderson, 1997Williams, D. R., Yu, Y., Jackson, J. S., & Anderson, N. B.. (1997). Racial differences in physical and mental health: Socio-economic status, stress and discrimination. Journal of Health Psychology, 2(3), 335-351. https://doi.org/10.1177/135910539700200305
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). Essa escala é um dos instrumentos mais utilizados para avaliar a percepção de discriminação cotidiana. A versão utilizada na pesquisa em questão foi de 10 itens, dos quais nove eram originais e um foi criado na adaptação para jovens portugueses. A resposta foi numa escala de frequência com seis pontos: 0 - nunca, 1 - raramente (menos de 1 vez/ano), 2 - por vezes (algumas vezes/ano), 3 - algumas vezes (algumas vezes/mês), 4 - muitas vezes (pelo menos uma vez/semana) e 5 - quase sempre (quase todos os dias). Quando o/a participante indicasse a frequência de algum item como igual ou superior a 3 (algumas vezes/mês), ele/a era convidado/a a elencar, entre uma lista de características (gênero, etnia ou raça, idade, religião, altura, peso, outro aspecto da aparência física, orientação sexual, classe econômica, condição ou problema físico, condição ou problema mental, ou outro motivo), quais ele/a considera como principais motivos para o tratamento injusto ou rejeição pessoal.

Questionário sociodemográfico - elaborado para uso nesse estudo com perguntas sobre idade, gênero, identidade racial, nível de escolaridade e orientação sexual. Em relação à dinâmica familiar, foi perguntado a/ao participante qual figura desempenhou o maior papel de mãe e de pai na infância (mãe/pai biológico, mãe/pai adotivo, madrasta/padrasto, outros). Também foram questionados o estado civil e a identidade racial dos pais.

Critério de Classificação Econômica Brasil (https://www.abep.org/criterio-brasil) - instrumento estabelecido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep) para classificar os estratos sociais. Conta com a avaliação de 15 variáveis para estimar a renda permanente das famílias. Entre as variáveis, as/os participantes devem relatar a quantidade de bens duráveis (carro, TV, micro-ondas, DVD, aspirador de pó, freezer, geladeira), condições de moradia (como número de banheiros) e a presença de mensalistas; além do nível de escolaridade do chefe da casa e oferta de serviços públicos (água encanada e rua pavimentada). A cada um desses quesitos é atribuída uma pontuação para concluir a qual classe a família pertence: classe A (45-100 pontos); B1 (38 a 44 pontos); B2 (29-37 pontos); C1 (23-28 pontos); C2 (17-22 pontos); D-E (0 a 16 pontos).

Procedimento

O recrutamento de participantes ocorreu a partir de um convite para a realização da pesquisa, com informações quanto ao critério de participação (ser maior de 18 anos e ser brasileiro/a), tema geral (família e relações raciais), duração (tempo médio), anonimato do/a participante, sigilo das respostas, riscos da participação (desconforto emocional e psicológicos, evocar sentimentos ou lembranças desagradáveis ou leve cansaço), benefícios (contribuir para a construção do conhecimento sobre dinâmicas familiares e relações raciais e refletir sobre suas experiências num ambiente protegido e sigiloso) e disponibilidade de contato para possíveis dúvidas dos/as participantes. O convite foi divulgado em redes sociais como Facebook e WhatsApp, focando em grupos disponíveis nessas redes, e no informativo eletrônico da instituição de ensino na qual as autoras estão vinculadas.

Antes de iniciar o preenchimento do formulário online no Google Forms, as/os participantes tinham de ler o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e selecionar a opção “Li e concordo em participar da pesquisa” para ter acesso às perguntas. Além do TCLE, o formulário era composto por questões demográficas, Critério Brasil, o Embu e a Escala de Discriminação Cotidiana.

Análise dos Dados

As respostas das/os participantes eram automaticamente registradas em uma planilha do Excel. A partir desses dados, foi elaborado um banco de dados no programa estatístico Statistical Package for Social Science (SPSS)® versão 25.0. Os instrumentos foram analisados de acordo com as instruções dos autores, e os dados foram analisados segundo medidas descritivas (mínimo, máximo, média, desvio padrão e frequência). Para verificar a normalidade dos dados, foram realizados os testes de Kolmogorov-Smirnova e Shapiro-Wilk, os quais indicaram que as respostas de todas as escalas utilizadas não apresentaram necessária homogeneidade de variâncias para testes estatísticos paramétricos. Assim, para a comparação entre grupos, foi utilizado o teste estatístico Manova para modelos não paramétricos (Puri & Sen, 1971Puri, M. L., & Sen, P. K. (1971). Nonparametric methods in multivariate analysis. Wiley.).

Considerações Éticas

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos sob o número de protocolo CAAE 97650918.9.0000.5504.

Resultados

A maior parte das/os participantes relatou como figura materna a mãe biológica (93,1%), mas os resultados também identificaram outra mulher adulta (4,6%), mãe adotiva (1,1%), avó (0,6%) e madrasta (0,6%). Quanto à figura paterna, o pai biológico foi a resposta de 83,4% das/os participantes, outra pessoa (9,2%), ninguém (5,7%) e pai adotivo (1,7%).

No que diz respeito ao estado civil dos pais das/os participantes, 54,9% estavam casados, 22,9%, separados ou divorciados, 10,9% um ou ambos os pais já faleceram, 6,9% nunca moraram juntos, 4% não são casados, mas estavam juntos e 0,6% não morou com os pais biológicos. Quando se intersecciona os dados entre estado civil dos pais e identidade racial, nota-se que 59,2% das/os participantes brancas/os tinham pais casados, enquanto 50% das/os pardos e 47,6% das/os pretas/os tinham pais na mesma situação. Em relação aos pais separados ou divorciados, os dados são os seguintes: pretas/os (23,8%), pardas/os (23,3%) e brancas/as (22,3%). A maioria das/os participantes pardas/os (80%) e pretas/os (64,3%), e 28,2% das/os brancas/os identificaram ser provenientes de uniões inter-raciais. A configuração mais comum entre os casais inter-raciais foi a de homens pretos, pardos e mestiços (66,25%) e mulheres brancas (50%).

A Tabela 2 apresenta os dados relacionados ao suporte emocional e rejeição das figuras maternas e paternas das/os participantes. Os dados da Tabela 2 indicam que, de acordo com as/os participantes, as figuras maternas e paternas tiveram, em média, mais comportamentos relacionados ao suporte emocional (sensação de conforto e a certeza de ser aprovado como pessoa pelos pais) do que à rejeição parental (comportamentos com a intenção de mudar a vontade do filho, entendidos como rejeição do filho como indivíduo) ao longo da infância. Ao realizar o teste Manova para comparação da média entre os grupos, verificou-se que as diferenças não eram estatisticamente significativas, a saber: rejeição do pai X²(2) = 0,612; p = 0,736; rejeição da mãe X²(2) = 4,718; p = 0,095; suporte do pai X²(2) = 3,710; p = 0,156; e suporte da mãe X²(2) = 2,421; p = 0,298.

Tabela 2
Suporte emocional e rejeição das figuras maternas e paternas das/os participantes.

A Tabela 3 apresenta os dados relativos à escala de discriminação cotidiana. Os dados da Tabela 3 indicam que as/os participantes, em média, perceberam mais rejeição pessoal do que tratamento injusto. Ao comparar os grupos de participantes, verificou-se diferença estatisticamente significativa tanto para tratamento injusto [X²(2) = 17,36; p < 0,001] quanto para rejeição pessoal [X²(2) = 27,970; p < 0,001], com o grupo de pretos apresentando maiores médias de rejeição pessoal (M = 10,3; DP = 5,6) e tratamento injusto (M = 7,9; DP = 4,6), que as/os participantes pardas/os e brancas/os. Os valores por pessoas do gênero feminino em rejeição pessoal (M = 7,28; DP = 5,07) foram maiores comparados ao masculino (M = 5,8; DP = 3,56). A situação foi a mesma nas médias do fator de tratamento injusto, sendo a feminina M = 5,9; DP = 4,3 e a masculina, M = 4,5; DP = 2,86. A orientação sexual também apresentou níveis de rejeição pessoal maiores para as pessoas não heterossexuais (M = 8,28; DP = 5,38) em relação às pessoas heterossexuais (M = 6,01; DP = 4,14).

Tabela 3
Percepção de rejeição pessoal e tratamento injusto entre brancas/os, pretas/os e pardas/os.

Discussão

Ao buscar compreender a dimensão da influência do racismo na família via diferenças no tratamento individual e nas relações familiares, a presente pesquisa teve como objetivo avaliar as percepções de suporte emocional, rejeição parental na infância e discriminação cotidiana entre pessoas brancas, pardas e pretas. A hipótese inicial de que a rejeição parental seria maior para pardos/as e pretos/as, quando comparado aos/as brancos/as, não foi confirmada, visto que não houve diferenças estatisticamente significativas. Já a hipótese de que a percepção de discriminação racial seria mais frequente entre as pessoas pretas e pardas, os dados indicaram diferenças estatísticas e as médias apresentadas por essas pessoas em relação à rejeição pessoal e ao tratamento injusto (Tabela 3) foram maiores comparadas às das/os participantes brancas/os.

No que tange à percepção das/os participantes quanto ao suporte emocional e à rejeição parentais, os dados indicaram que as médias de suporte emocional foram maiores que as de rejeição; e que as mães apresentaram médias superiores aos pais em ambos, dado que vai ao encontro dos dados da literatura da área (Kobarg, Vieira, & Vieira, 2010Kobarg, A. P. R., Vieira, V., & Vieira, M. L. (2010). Validação da escala de lembranças sobre práticas parentais (Embu). Avaliação Psicológica, 9(1), 77-85.; Reichenheim, Sampaio, & Moraes, 2016Reichenheim, M. E., Sampaio, P. F., & Moraes, C. L. (2016). Estrutura dimensional da versão brasileira do instrumento s-Embu para aferição de práticas educativas parentais em adolescentes. Cadernos de Saúde Pública, 32(8), Artigo e00179915. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00179915
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). Sugere-se que estudos futuros sejam realizados com uma amostra mais variada e maior de participantes, de modo a identificar se essas variáveis podem apresentar diferenças estatisticamente significativas.

Hordge-Freeman (2018Hordge-Freeman, E. (2018). A cor do amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. EdUFSCar.), em um estudo realizado com pretos e pardos de 10 famílias residentes em um bairro urbano e pobre de Salvador (BA), identificou que a tonalidade da cor e os traços físicos podem estar intrinsecamente ligados a distribuições de afetos que privilegiam aqueles com maior proximidade à estética da branquitude, em detrimento daqueles interpretados com características mais associadas a pessoas negras. Segundo a autora, a percepção da família pode reproduzir um viés racista à medida que as características raciais são identificadas, avaliadas e trocadas por recursos emocionais, assim como por oportunidades econômicas e sociais (Hordge-Freeman, 2018Hordge-Freeman, E. (2018). A cor do amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. EdUFSCar.). Tal atitude diferencial e condicional para a disponibilização de afeto e cuidado compromete a visão do indivíduo a respeito de si, do outro e do mundo, podendo resultar em problemas psicossociais ao longo da vida do indivíduo (Teodoro & Baptista, 2012Teodoro, M. L. M., & Baptista, M. N. (Orgs.). (2012). Psicologia de família: Teoria, avaliação e intervenção. Artmed.), uma vez que ajuda a perpetuar sua posição ao comprometer a motivação, a autoestima e a confiança necessárias atingir o sucesso (Hordge-Freeman, 2018Hordge-Freeman, E. (2018). A cor do amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. EdUFSCar.).

Schucman (2018Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA.) identificou a relevância de se levar em conta a negritude e a branquitude como fatores para o desenvolvimento e a qualidade dos vínculos familiares. Enquanto a primeira se estrutura socialmente como lugar de inferioridade, a segunda detém poder e privilégio para exercer violências. Assim, sugere-se estudos futuros que visem analisar as relações familiares considerem aspectos relacionados à branquitude. Também seria interessante compreender as consequências psicológicas nos indivíduos que experienciaram episódios racistas em suas famílias, bem como desenvolver intervenções de conscientização racial para esse contexto, a fim de garantir o bem-estar de todas/os, independentemente da cor, raça ou etnia.

Quanto à percepção social de discriminação cotidiana (Tabela 3), os resultados obtidos indicaram que: a) apenas os resultados das/os brancas/os estão abaixo da média da amostra geral de percepção de discriminação nas duas dimensões (rejeição pessoal e tratamento injusto); b) há um aumento gradual das médias de percepção de discriminação, e os participantes brancos têm as menores médias (RP = 5,35; TI = 4,73), seguidos dos pardos (RP = 7,96; TI = 5,63), e pretos (RP = 10,26; TI = 7,92). Esse último dado corrobora a hipótese inicial de que a percepção de discriminação cotidiana seria mais frequente entre as pessoas não brancas.

Os índices de percepção de discriminação encontrados nos resultados vão ao encontro da literatura da área (Daflon et al., 2017Daflon, V. T., Carvalhaes, F., & Feres, J., Jr. (2017). Sentindo na pele: Percepções de discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil. Dados, 60(2), 293-330. https://doi.org/10.1590/001152582017121
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; Rennó, Smith, Layton, & Batista, 2011Rennó, L. R., Smith, A. E., Layton, M. L., & Batista, F. (2011). Legitimidade e qualidade da democracia no Brasil: Uma visão da cidadania. Lapop.). De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra da Domícilios (PNAD, 2015Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. (2015). https://bit.ly/3QobxrO
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), a percepção de discriminação entre as/os pardas/os se mostra mais baixa que entre as/os pretas/os, no entanto, esses grupos se assemelham no que diz respeito às desigualdades estruturais, uma vez que apresentam níveis similares de escolaridade, renda e mortalidade. Barnes et al. (2004Barnes, L. L., De Leon, C. F. M., Wilson, R. S., Bienias, J. L., Bennett, D. A., & Evans, D. A. (2004). Racial differences in perceived discrimination in a community population of older blacks and whites. Journal of Aging and Health, 16(3), 315-337. https://doi.org/10.1177/0898264304264202
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), em estudo que teve como objetivo examinar a prevalência de discriminação explícita em uma população de idosos birraciais e se havia correlação entre discriminação e sintomas depressivos, verificaram que as pontuações nas subescalas de tratamento injusto e rejeição pessoal eram maiores nos idosos pretos quando comparados aos idosos brancos, corroborando os achados neste estudo para a população jovem.

Segundo Daflon et al. (2017Daflon, V. T., Carvalhaes, F., & Feres, J., Jr. (2017). Sentindo na pele: Percepções de discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil. Dados, 60(2), 293-330. https://doi.org/10.1590/001152582017121
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), comumente os pesquisadores brasileiros tendem a agrupar pretos e pardos em uma mesma categoria devido às semelhanças em diversos indicadores socioeconômicos. Contudo, os autores alertam para divergências quanto ao padrão de identidade e percepção de discriminação entre os grupos. Para explicar esta divergência entre a discriminação detectada pelas análises socioeconômicas e a discriminação percebida pelo grupo de pessoas que se autoclassificam como pardas, os autores analisaram os dados dos chefes de família de uma survey conduzida em 2008 com uma amostra probabilística de 8.048 domicílios representativa do Brasil. A partir dos dados de caracterização (idade, sexo, escolaridade, renda, região do país em que vive e autodeclaração de cor) e de nove questões que compõem a Escala de Discriminação Cotidiana, foi conduzida a análise de modelos de regressão logística, ajustados com controles para sexo, região geográfica, idade e renda. Fizemos testes de termos interativos entre cor autodeclarada e nível educacional. Os dados obtidos indicaram que as variáveis região do país, idade e escolaridade apresentaram diferenças estatísticas; já sexo e renda não apresentaram diferenças estatisticamente significativas. Ademais, pretos e pardos têm mais probabilidade de relatar situações de discriminação do que os brancos (75% e 49%, respectivamente), diferença estatisticamente significativa. Para os autores, ao discutir a discriminação percebida por pretos, pardos e brancos no Brasil, a raça não pode ser analisada independentemente da dimensão socioeconômica, pois pardos de baixo status socioeconômico estão próximos dos pretos de mesma condição, enquanto pardos de status elevado reportam pouca discriminação, e nisso se aproximam muito dos brancos.

Considerações Finais

A partir dos dados apresentados sobre percepções de rejeição, suporte emocional e discriminação racial, nota-se que as hierarquias raciais se estruturam em nível micro, como no interior das famílias, e macro, como a sociedade brasileira. As/os participantes pardas/os e pretas/os apresentaram valores maiores de rejeição dentro da família e maior percepção de discriminação cotidiana, vivenciada em situações corriqueiras por meio das diferenças de tratamento e desvalorização.

Acredita-se que este estudo tenha contribuído para a discussão sobre família, relações raciais e discriminação, contudo, algumas limitações devem ser destacadas. Por ser um estudo retrospectivo a respeito das lembranças das práticas parentais, os dados podem estar sujeitos a vieses como tendenciosidade, informação e seleção. Assim, pesquisas futuras com jovens pretas/os, pardas/os e brancas/os que investiguem as dinâmicas estabelecidas na família são incentivadas para se discutir como as relações raciais atravessam esse contexto.

Outra limitação a ser destacada refere-se à amostra de participantes. Por ser uma amostra de conveniência, recrutada em redes sociais, a maioria de participantes foi do gênero feminino (80%), branca/o (58,9%) e estudantes universitárias/os (69,7%). Assim, sugere-se que, em pesquisas futuras, uma amostra probabilística em relação à autodeclaração de cor e um número maior de participantes permitirão análises estatísticas mais ricas.

Por fim, espera-se que o estudo tenha contribuído para a compreensão do processo de socialização, apontando o racismo enraizado na sociedade brasileira e perpetuado no contexto da família desde a infância por meio das práticas parentais de rejeição às crianças pretas e pardas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2020
  • Aceito
    11 Ago 2021
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