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Os recursos da memória de trabalho e suas influências na compreensão da leitura

Los recursos de la memoria de trabajo y sus influencias en la comprensión de la lectura

Working memory and reading comprehension

Resumos

Este estudo discute a relação entre a memória de trabalho e o desempenho dos leitores em tarefas de compreensão de textos escritos, e tem como objetivo investigar a relação entre memória de trabalho e compreensão da leitura através da identificação dos fundamentos teóricos que sustentam a hipótese de que a memória de trabalho, componente da função executiva do cérebro, esteja associada a habilidades de compreensão da leitura. Os recursos da memória de trabalho parecem afetar a capacidade individual de realizar muitos dos processos associados à construção da representação de texto, como os processos de integração e de inferência. Falhas em variáveis de processamento e de conhecimento podem levar a dificuldades de compreensão que abrangem processamento lexical ineficiente, prejuízo na habilidade de inferência e na capacidade de monitoramento da compreensão, além de limitações da memória de trabalho.

Processos cognitivos; Leitura; Compreensão da leitura; Cognição


Este estudio discute la relación entre la memoria de trabajo y el desempeño de los lectores en tareas de comprensión de textos escritos, y tiene como objetivo investigar la relación entre memoria de trabajo y comprensión de la lectura a través de la identificación de los fundamentos teóricos que sostienen la hipótesis de que la memoria de trabajo, componente de la función ejecutiva del cerebro, esté asociada a habilidades de comprensión de la lectura. Los recursos de la memoria de trabajo parecen afectar la capacidad individual de realizar muchos de los procesos asociados a la construcción de la representación de texto, como los procesos de integración y de inferencia. Fallas en variables de procesamiento y de conocimiento pueden llevar a dificultades de comprensión que abarcan procesamiento lexical ineficiente, pérdida en la habilidad de inferencia y en la capacidad de monitoreo de la comprensión, además de limitaciones de la memoria de trabajo.

Procesos cognitivos; Lectura; Compresión de lectura; Cognición


This study discusses the relation between the working memory and the readers' performance on written texts comprehension tasks, aiming to investigate the relation between the working memory and reading comprehension by identifying the theoretical foundation that supports the hypothesis that the working memory, a component of the executive function of the brain, is associated to abilities of reading comprehension. The working memory resources seem to affect the individual ability to perform many of the processes associated to the construction of the text representation, such as the integration and inference processes. Failures in the processing variables and knowledge can lead to comprehension difficulties such as inefficient lexical processing, impaired ability of inference and the ability of comprehension monitoring besides working memory limitations.

Cognitive memory; Reading; Reading comprehension; Cognition


ARTIGOS

Os recursos da memória de trabalho e suas influências na compreensão da leitura

Working memory and reading comprehension

Los recursos de la memoria de trabajo y sus influencias en la comprensión de la lectura

Elaine Leporate Barroso Faria* * Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora e docente da Universidade do Estado de Minas Gerais, Barbacena – MG – Brasil. E-mail: eleporate@gmail.com ; Carlos Alberto Mourão Júnior** ** Doutor em Ciências (Endocrinologia Clinica) pela Universidade Federal de São Paulo e docente da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora – MG – Brasil. E-mail: camouraojr@gmail.com

Universidade Federal de Juiz de Fora

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Elaine Leporate Barroso Faria Departamento de Fisiologia – ICB, Universidade Federal de Juiz de Fora. CEP: 36036-900. Juiz de Fora, MG. E-mail: eleporate@gmail.com

RESUMO

Este estudo discute a relação entre a memória de trabalho e o desempenho dos leitores em tarefas de compreensão de textos escritos, e tem como objetivo investigar a relação entre memória de trabalho e compreensão da leitura através da identificação dos fundamentos teóricos que sustentam a hipótese de que a memória de trabalho, componente da função executiva do cérebro, esteja associada a habilidades de compreensão da leitura. Os recursos da memória de trabalho parecem afetar a capacidade individual de realizar muitos dos processos associados à construção da representação de texto, como os processos de integração e de inferência. Falhas em variáveis de processamento e de conhecimento podem levar a dificuldades de compreensão que abrangem processamento lexical ineficiente, prejuízo na habilidade de inferência e na capacidade de monitoramento da compreensão, além de limitações da memória de trabalho.

Palavras-chave: Processos cognitivos, Leitura, Compreensão da leitura, Cognição.

ABSTRACT

This study discusses the relation between the working memory and the readers' performance on written texts comprehension tasks, aiming to investigate the relation between the working memory and reading comprehension by identifying the theoretical foundation that supports the hypothesis that the working memory, a component of the executive function of the brain, is associated to abilities of reading comprehension. The working memory resources seem to affect the individual ability to perform many of the processes associated to the construction of the text representation, such as the integration and inference processes. Failures in the processing variables and knowledge can lead to comprehension difficulties such as inefficient lexical processing, impaired ability of inference and the ability of comprehension monitoring besides working memory limitations.

Keywords: Cognitive memory, Reading, Reading comprehension, Cognition.

RESUMEN

Este estudio discute la relación entre la memoria de trabajo y el desempeño de los lectores en tareas de comprensión de textos escritos, y tiene como objetivo investigar la relación entre memoria de trabajo y comprensión de la lectura a través de la identificación de los fundamentos teóricos que sostienen la hipótesis de que la memoria de trabajo, componente de la función ejecutiva del cerebro, esté asociada a habilidades de comprensión de la lectura. Los recursos de la memoria de trabajo parecen afectar la capacidad individual de realizar muchos de los procesos asociados a la construcción de la representación de texto, como los procesos de integración y de inferencia. Fallas en variables de procesamiento y de conocimiento pueden llevar a dificultades de comprensión que abarcan procesamiento lexical ineficiente, pérdida en la habilidad de inferencia y en la capacidad de monitoreo de la comprensión, además de limitaciones de la memoria de trabajo.

Palavras clave: Procesos cognitivos, Lectura, Compresión de lectura, Cognición.

Neste estudo, apresentamos considerações sobre a relação entre a memória de trabalho e o desempenho dos leitores em tarefas de compreensão de textos escritos. Buscamos, através do diálogo interdisciplinar, aproximar saberes científicos como possibilidade para avaliarmos o ensino da leitura que vise à compreensão leitora desde as séries iniciais, uma vez que o desempenho nessa etapa de escolaridade constitui um fator altamente preditivo do desempenho ulterior (Gomes, 2008).

Temos como objetivo investigar a relação entre memória de trabalho e compreensão da leitura através da identificação dos fundamentos teóricos que sustentam a hipótese de que a memória de trabalho, componente da função executiva do cérebro, esteja associada a habilidades de compreensão da leitura. Dessa forma, destacamos a importância do estudo dos recursos da memória de trabalho como um dos componentes cognitivos fundamentais para a aquisição e o desempenho em leitura. Acreditamos que este estudo possa contribuir com um ensino que promova o desenvolvimento e a potencialização de habilidades de compreensão leitora, em processos de intervenção, mediante diagnósticos direcionados para a etapa do desenvolvimento da leitura, que proporcionem ao leitor menos habilidoso progressões graduais para a compreensão e a proficiência e para a prevenção das dificuldades de aprendizagem nesse processo.

Adotamos como método a pesquisa teórica articulada através da revisão da literatura do conceito de função executiva, de memória de trabalho e de modelos teóricos que explicam o processo de compreensão da leitura. A base deste estudo está nos fundamentos da abordagem da Psicologia cognitiva e de seu paradigma dominante, a teoria do processamento da informação, que, a partir de modelos cognitivos dos processos mentais superiores, explica o processamento da informação na mente humana, no modo como os indivíduos percebem, aprendem, recordam e ponderam a informação. Adotamos os pressupostos da neuropsicologia cognitiva que investiga as diferentes operações mentais necessárias para a execução de determinadas tarefas cognitivas e as relações entre cérebro, comportamento e as funções cerebrais preservadas ou alteradas. Para o estudo do processo de compreensão, nós nos apropriamos, também, do enfoque da área da psicolinguística ao considerarmos o estudo da leitura como atividade interativa entre leitor, texto e contexto, em que o leitor ativo constrói significados a partir de hipóteses relacionadas com o seu conhecimento de mundo e que são acionados nas tarefas de compreensão de textos.

Neste artigo, apresentamos, inicialmente, a descrição do construto de memória de trabalho, componente cognitivo responsável pelo armazenamento temporário de informações. A seguir, discutimos alguns modelos de leitura e o fluxo de processamento da informação envolvidos na leitura, e um modelo teórico de compreensão textual. Pontuamos a relação entre a memória de trabalho e o desempenho dos leitores em tarefas de compreensão de textos com algumas evidências empíricas e as variáveis de realização de inferências e de controle ou monitoramento envolvidos no processo de compreensão.

Função executiva e memória de trabalho

Nos últimos anos, a memória de trabalho (MT) tem sido o foco de uma grande parte das pesquisas teóricas e empíricas na Psicologia cognitiva e na neurociência cognitiva; através de estudos de imagem cerebral, a alta atividade no lobo frontal foi revelada quando esse processador central está trabalhando. De acordo com nossos estudos, a função executiva aparece na condição de posto de comando do cérebro, mais especificamente, na porção frontal do lobo frontal, no córtex pré-frontal (Goldberg, 2002; Mourão-Júnior & Melo, 2011). A função executiva é a função dos lobos frontais, e desempenha papel fundamental no planejamento de estratégias de ação e na formação de metas e de objetivos. Dessa forma, concentração, atenção, controle dos impulsos e das emoções, planejamentos, tomadas de decisões, organização e controle estão subordinados às funções executivas dos lobos frontais.

No entanto, pouco se conhecia sobre os lobos frontais, e mesmo os estudos iniciais de neurologia continham descrições elaboradas de funções desempenhadas por diversas partes do cérebro. Devido ao fato de os lobos frontais não estarem ligados a nenhuma função única e facilmente definida, por muito tempo foram considerados os lobos silenciosos, e somente nas últimas décadas é que se tornaram o foco de interesse de intensas investigações científicas, tendo lhes sido dada a devida importância para a cognição (Goldberg, 2002; Mourão-Júnior & Melo, 2011).

Um caso conhecido na literatura científica e que trouxe luz ao entendimento da fisiologia dos lobos frontais foi o acidente ocorrido em 1848 com o jovem Phineas Gage. Esse supervisor de construção de ferrovias de 25 anos de idade, ao dar início, por acaso, a uma explosão que lançou uma barra de ferro como um foguete pelo ar, teve a barra penetrada em sua face esquerda, e essa furou seu crânio, atravessou a frente do cérebro e saiu em alta velocidade pelo topo da cabeça antes de aterrissar a mais de trinta metros de distância, envolta em sangue e cérebro. Embora Gage tenha recuperado os sentidos logo após o acidente, e, segundo testemunhas, falasse racionalmente, logo perceberam que “Gage havia deixado de ser Gage”. Descrito, anteriormente, como possuidor de mente equilibrada e como indivíduo persistente que transformava todos os seus planos em ação, após o acidente, tornou-se rude, estranho, desatencioso ao extremo, incapaz de fazer boas escolhas, e passou o resto de seus dias vagando sem objetivo. Tudo o que se sabia acerca da lesão cerebral de Gage é que provavelmente se localizava no lobo frontal. Concluiu-se que a explosão havia poupado os centros motor e de linguagem de Gage, porém não as partes do cérebro responsáveis pelo caráter e pela razão (Damásio, 1996). Gage tinha problemas para manter um padrão de comportamento após sua lesão e tinha dificuldade em planejar e organizar esses comportamentos, talvez pela lesão em seu lobo frontal (Bear, Connors, & Paradiso, 2002), já que essas lesões ocasionam desintegração da cognição; no entanto, os movimentos, a linguagem e a capacidade para reconhecer objetos e para memorizar informações são mantidos (Goldberg, 2002).

Os lobos frontais, frente a todas as estruturas do cérebro, desempenham um papel crítico no sucesso ou no fracasso em todo processo de aprendizagem, e executam as funções mais avançadas e complexas de todo o cérebro, as denominadas funções executivas, vinculadas à intencionalidade, ao planejamento, ao propósito e à tomada de decisões complexas. Assim, motivação, impulso, previsão e percepção clara das metas de um indivíduo são centrais para o sucesso em qualquer percurso da vida, e esses prerrequisitos do sucesso são controlados pelos lobos frontais (Goldberg, 2002).

A MT é um componente da função executiva, um sistema cognitivo que nos permite reter uma quantidade de informações, cerca de 2 a 7 itens, por um breve período de tempo, e compreende a capacidade de armazenagem temporária de informações e de processamento dessas mesmas informações ou de outros conhecimentos. Segundo Goff, Prati e Ong, a “memória de trabalho é o sistema que mantém informações em um estado ativo para apoiar o processamento on-line, e envolve o processamento e armazenamento simultâneo de informações” (2005, p. 589). Então, a habilidade para integrar ideias, a fim de desenvolver uma compreensão do material escrito, necessita tanto do armazenamento quanto do processamento, isto é, as informações prévias devem ser mantidas na memória enquanto a nova informação é codificada e integrada.

A MT serve como um buffer para as proposições ou os significados lidos mais recentemente no texto, e permite a integração para o estabelecimento da coerência textual e para a retenção das informações recuperadas da memória de longo prazo a fim de facilitar a integração dessas informações com o texto (Cain, Bryant, & Oakhill, 2004).

Existe o consenso de que a MT pode ser mensurada somente por tarefas que requerem a coordenação das funções de processamento e armazenamento, e esse critério distingue tarefas de memória de trabalho e memória de curto prazo (Seigneuric, Ehrlich, Oakhill, & Yuill, 2000). Remetendo ao modelo tradicional de memória de curto prazo proposto por Atkinson & Shiffrin em 1968, esta é descrita como a “capacidade simples para o armazenamento de informações em um breve espaço de tempo” (Primi, 2002, p. 66), em que a avaliação consiste em medir a extensão de memória – memory span, em que se solicita ao sujeito que repita listas de palavras simples, sendo que as listas aumentam em tamanho, progressivamente, o que permite avaliar até quantas palavras o indivíduo é capaz de repetir corretamente (Primi, 2002). O construto de MT do modelo multicomponente (Baddeley & Hitch, 1974; Baddeley, 1992, 1996, 2000) difere do sistema unitário de memória de curto prazo, considerando a capacidade da MT de armazenar e de processar informações. Uma tarefa clássica utilizada para medir a MT que requer, simultaneamente, o armazenamento e o processamento é denominada extensão em leitura – reading span, em que “os sujeitos devem ler listas com duas a seis frases (...) e após a leitura, devem responder algumas perguntas e ao final repetir a última palavra de cada frase” (Primi, 2002, p. 67).

Assim, o estudo da MT é respaldado em diferentes pesquisas teóricas e empíricas. No entanto, existe uma concordância quanto ao enunciado de que a MT compreende um sistema de atenção que possui capacidade limitada, e que é complementado por sistemas de armazenamento localizados perifericamente (Baddeley, 2003; Mourão- Júnior & Melo, 2011). Nesse sentido, a MT é um sistema de armazenamento temporário e de manipulação de informações que permite organizar uma sequência de ações com a finalidade de se atingir um objetivo, como em tarefas de compreensão, aprendizagem e raciocínio (Baddeley, 2000). Esse componente armazena e retém temporariamente a informação apenas enquanto uma determinada tarefa está sendo realizada, e, se a informação não é mais necessária, é extinta logo em seguida (Mourão-Júnior & Melo, 2011). Sua função é a de manter ativo um delimitado volume de informações durante um curto período de tempo, inclusive, fornece base para outros processos cognitivos.

A MT se faz notar em diversas tarefas do cotidiano, como na manutenção temporária de um número de telefone para realizar uma ligação, na resolução mental de contas matemáticas, ao seguirmos direções e instruções ou ao mantermos o controle dos itens de uma lista de compras quando estamos no supermercado (Gathercole, 2008; Malloy-Diniz, Sedo, Fuentes, & Leite, 2008). O mesmo ocorre quando proferimos uma palestra ou aula ou quando lemos um texto, isto é, no momento em que a informação chega à mente, cabe à MT manter, durante segundos, ou no máximo três minutos, a informação que está sendo processada no momento (Castro & Gabriel, 2007; Izquierdo, 2011).

Outra função importante da MT é comparar as informações novas que chegam através das vias sensoriais com as que estão armazenadas nos arquivos de memória a longo prazo, função necessária para a organização e o planejamento de ações (Mourão-Júnior & Abramov, 2011). Entendemos que a MT é ativada sempre que são evocados experiências, conhecimentos ou procedimentos para a verificação de conteúdos similares a essas informações em nossos arquivos de memórias. Quando lembramos os vários caminhos que levam ao mesmo destino, nós os comparamos em nossa mente a fim de escolher o caminho mais curto. A MT, portanto é basicamente realizada on line, ou seja, exerce a função de gerenciar o nosso contato com a realidade, decide o que ficará guardado ou não na memória declarativa ou procedural ou o que deverá ser evocado dessas memórias.

Podemos dizer que o papel gerenciador da MT é o de receber toda e qualquer informação, de determinar se a informação é nova ou não e se tem alguma utilidade para o organismo, mantendo a informação enquanto está sendo percebida ou processada. Isso implica saber que, mediante conexões com sistemas mnemônicos, isto é, com vários tipos de memórias que têm características próprias, a MT determina se, diante de uma situação nova, ocorrerá ou não um aprendizado, o que é possível tendo em vista as possíveis relações da experiência atual com outras experiências semelhantes que estão registradas nos sistemas mnemônicos (Izquierdo, 2011).

A MT é apenas uma das funções pelas quais o córtex pré-frontal, através do controle topdown do córtex perceptual posterior, medeia a organização temporal do comportamento, da linguagem e do raciocínio (Fuster, 2006). Então, o sistema operacional do córtex préfrontal é fundamental para a sobrevivência e para a comunicação constante com o meio e com o acervo mnemônico, como é o caso da memória de curta duração, que depende do processamento prévio das informações que são armazenadas temporariamente na memória de trabalho e que determina se a informação é útil e se deve ser armazenada nos sistemas de curto ou longo prazo. Uma falha ou disfunção na MT dificulta ou anula o julgamento acerca dos acontecimentos, o que prejudica a nossa percepção da realidade. Assim, para o bom funcionamento na aquisição, na formação ou na evocação das memórias declarativas episódicas e semânticas, é necessário um bom funcionamento da MT e do córtex pré-frontal.

O processo de leitura e a compreensão de textos

A leitura envolve basicamente transformar um texto, que constitui uma representação gráfica, em pensamento ou significado. O ato de ler palavras sem a busca pela compreensão do material escrito fica limitado à imitação de sons de linguagem, e a mera repetição de um texto nada mais seria do que a memorização e o exercício oral, em que a escrita de letras e caracteres se torna mera cópia ou rabisco (Paris & Hamilton, 2009). Sabemos que a tarefa central da escolaridade formal é buscar o sentido das palavras impressas e o significado do conteúdo dos textos, além de compartilhar, por meio da comunicação, o pensamento interpretativo, construtivo e crítico (Paris & Hamilton, 2009).

Dessa forma, “a leitura é uma atividade complexa, composta por múltiplos processos interdependentes, dos quais os fundamentais seriam o reconhecimento de palavras e a compreensão da mensagem escrita” (Salles & Parente, 1992, p. 321), porque a leitura não envolve somente o reconhecimento de palavras isoladas, mas tem como objetivo primordial a compreensão do material lido (Salles & Parente, 1992).

A compreensão da leitura reflete a interação comunicativa entre as intenções do autor, o conteúdo do texto, as habilidades e os propósitos do leitor e do contexto de interação (Paris & Hamilton, 2009), tarefa complexa que se baseia em diferentes processos e habilidades cognitivas como a percepção, a memória, a inferência1 1 Inferências baseadas no conhecimento são “construídas quando estruturas de conhecimento da memória de longo prazo são ativadas e incorporadas na representação do significado do texto” (Salles & Parente, 2004, p. 72). É o conhecimento anterior que o leitor possui sobre o assunto que lhe permite realizar as inferências necessárias para integrar as partes do texto a fim de compreender o conteúdo do mesmo. Essas inferências auxiliam o leitor a clarificar detalhes não mencionados no texto, e são o mesmo que ler nas entrelinhas do texto. e o uso de estratégias e de monitoramento. Consideramos, também, que a compreensão leitora depende de conhecimentos que envolvem o vocabulário e de habilidades cognitivas como a decodificação das palavras, a fluência de leitura e a compreensão da linguagem, além de habilidades relacionadas à função executiva, como a memória de trabalho, o planejamento, a organização e o controle (Sesma, Mahone, Levine, Eason, & Cutting, 2009). Dessa forma, avaliar os modelos de processamento da informação envolvidos na leitura nos conduz ao entendimento acerca do processo de compreensão leitora.

Modelos de processamento da informação envolvidos na leitura

Na literatura, encontramos modelos de processamento da informação que explicam os processos cognitivos envolvidos na leitura, e o que os diferencia é a direção do fluxo de informação. Pontuamos esses modelos para explicitar as relações entre decodificação e compreensão apresentadas na literatura, a fim de compreendermos como se desenvolve o processo de compreensão, mesmo porque a leitura não envolve apenas a identificação de palavras isoladas, mas constitui condição necessária, porém insuficiente, à compreensão do material lido. Segundo Landi (2009), a compreensão requer precisão no reconhecimento e na decodificação da palavra, e afirma a autora que essas habilidades são preditores de habilidade de compreensão, porém outras habilidades também são preditores de compreensão, como a habilidade de manter a informação on line na memória de trabalho, a realização de inferências e o monitoramento da compreensão.

Sendo assim, os modelos de processamento da informação da leitura descrevem as operações mentais aplicadas pelo leitor ao texto – input, que resulta em compreensão – output (Paris & Hamilton, 2009). LaBerge e Samuels propuseram uma visão simplista na qual a compreensão é o resultado da eficiência da decodificação, isto é, através da decodificação automática, novos recursos cognitivos tornam-se disponíveis para a compreensão, sendo que esta é derivada do reconhecimento da palavra. Nesse modelo, a informação visual é transformada através de uma série de estágios de processamento que envolvem sistemas de memória visual, fonológica e episódica, até que seja, finalmente, compreendida em um sistema semântico (LaBerge & Samuels, 1974). No entanto, LaBerge e Samuels forneceram pouca descrição dos processos cognitivos envolvidos na compreensão, porque eles a consideram uma consequência automática da decodificação rápida das palavras, embora exista uma relação óbvia entre habilidades de decodificação e compreensão em leitura, mas uma não garante a outra (Paris & Hamilton, 2009). Entendemos que a habilidade de decodificar palavras não é suficiente para a compreensão de um texto, porque a leitura não envolve apenas a decodificação de sinais gráficos, mas um processo de interação e de construção de sentidos.

Gough (1972) tentou retratar a complexidade da leitura apresentando um modelo simples de leitura em que a ênfase está no processo de decodificação. Nesse modelo ascendente, o processamento é denominado bottom-up, em que a leitura é processada de maneira linear e sequencial a partir do que está impresso para a compreensão e de forma sintética, isto é, o leitor combina letras com palavras, palavras com frases e, por fim, sentenças com significados. Os leitores extraem informações da página impressa e lidam com letras e palavras de maneira completa e sistemática (Gough, 1991; Roazzi & Leal, 1996; Treiman, 2001). A versão bottom-up de leitura, porém, minimiza o papel do contexto e as experiências e as competências cognitivas do leitor na aplicação ativa de estratégias e enfatiza o reconhecimento de palavras, sendo esse modelo de pouca utilidade para os educadores que trabalham com os alunos no desenvolvimento de estratégias em leitura de textos desafiadores (Hoffman, 2009).

Outro modelo de leitura é o descendente, ou top-down, desenvolvido por Goodman (1967), que incide sobre o que os leitores trazem para o processo. Segundo o autor, a leitura é como um “jogo de adivinhações psicolinguísticas”, isto é, o leitor capta sinais gráficos das palavras, forma uma imagem perceptiva e lê por um processo de seleção, e utiliza, constantemente, a memória de curto prazo e a memória de longo prazo (Goodman, 1967). O leitor absorve as informações do texto que são guiadas pelo conhecimento prévio e pelas expectativas formuladas, e interage com o texto por meio de estratégias destinadas a criar significados a partir do texto (Treiman, 2001). Esse processamento é não linear, e a leitura é processada a partir da integração todo-partes, em que o leitor utiliza seu conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo, e faz previsões e inferências através das pistas do texto para a construção de significados a partir da leitura (Roazzi & Leal, 1996; Gomes, 2008). Assim, as perspectivas e as experiências do leitor são consideradas nesse modelo de processamento.

Para esclarecer o modelo de leitura postulado por Goodman, nós nos apoiamos em Paris e Hamilton

Ele teorizou que a leitura envolve teste de hipótese contínua pelo qual o leitor procura confirmar o significado hipotetizado do texto. O leitor utiliza o contexto e o menos possível o input para julgar a validade da hipótese inicial. Leitores mais proficientes formulam melhor hipóteses iniciais e requerem menos input para analisar a veracidade de suas hipóteses. Eles não decodificam cada palavra para construir significados, em vez disso, o significado é aceito ou rejeitado com base na confirmação da hipótese por meio de algumas palavras no texto” (2009, p. 42)

O que percebemos é que tanto o modelo top-down quanto o bottom-up têm suas limitações, porque o primeiro tende a enfatizar as habilidades de nível superior, como a previsão de significados através de pistas do contexto, e o segundo enfatiza as habilidades de nível inferior, como a identificação rápida e precisa das estruturas lexicais e gramaticais, subestimando a contribuição do leitor que tem expectativas e faz previsões sobre o texto e processa informações. Na estratégia ascendente, a pessoa inicia com a informação no nível de aspectos imediatos perceptíveis sensorialmente e manipula os aspectos percebidos baseado na informação memorizada para extrair significação do material lido. Dessa forma, as estratégias ascendentes são cruciais para a compreensão do que lemos e ouvimos (Kintsch, 1988), mas explicam apenas parte da maneira como derivamos significação das palavras que ouvimos ou lemos. Utilizamos também as estratégias descendentes, em que partimos das experiências prévias e baseamos nossas expectativas a partir dessas experiências, dando formas à significação que extraímos da linguagem percebida.

Outros teóricos da leitura reconheceram a importância tanto do texto quanto do leitor no processo de leitura, surgindo assim a abordagem interativa (Rumelhart, 1977; Stanovich, 1980). “Modelos interativos de leitura parecem fornecer uma conceituação mais precisa do desempenho de leitura do que os modelos estritamente top-down ou bottom-up” (Stanovich, 1980, p. 32). Rumelhart propôs um modelo interativo para explicar o papel do contexto durante a leitura, isto é, o modelo permite que as informações contidas em um estado superior de processamento influenciem a análise que ocorre em um momento inferior. “Uma questão central no desenvolvimento de um modelo do processo de leitura é a forma como o contexto em que um elemento linguístico é encontrado afeta a maneira como esse elemento é processado e, finalmente, interpretado” (Rumelhart & McClelland, 1981, p. 37).

Nesse modelo, a leitura é a interação dos processos bottom-up e top-down, e os leitores constroem significados a partir do texto usando várias habilidades, em que o processamento bottom-up é focado na decodificação e na compreensão de palavras e o processamento top-down envolve a integração do conhecimento prévio com o texto. No modelo de Stanovich, o sistema é compensatório porque os leitores podem compensar a deficiência em um nível de processamento por outro nível, por exemplo, usar habilidades fortes para compensar habilidades fracas em que o leitor se apoia no conhecimento que está mais ao seu alcance (Paris & Hamilton, 2009). O processamento top-down pode ser mais útil ao leitor menos habilidoso no reconhecimento de palavras, mas que tem conhecimento do assunto do texto, enquanto o leitor mais habilidoso no reconhecimento vocabular e que não sabe muito sobre o conteúdo do texto irá apoiar-se no processamento bottom-up.

A partir dos estudos dos modelos de leitura, compactuamos com a ideia de que essas visões simplistas não dão conta de identificar as relações de desenvolvimento entre decodificação de palavras e compreensão da linguagem. Essa visão envolve a ideia que “(...) a compreensão aumenta continuamente com a habilidade de decodificação” (Paris & Hamilton, 2009, p. 35), sendo que a compreensão fica severamente limitada ou até mesmo nula até que a maioria das palavras seja decodificada. Consideramos que, uma vez que a decodificação seja feita, os leitores devem construir o sentido que pode estar explícito e/ou implícito no texto. Frente à complexidade do processo de compreensão de textos, o modelo de Kintsch pressupõe aspectos cognitivos e contextuais sem destaque para os aspectos isolados da leitura.

Modelo cognitivo de processamento de texto

Um modelo de compreensão de leitura mais popular, de maior abrangência e de grande impacto é o modelo de construçãointegração (CI) proposto por Kintsch (1988, 1998). Esse modelo é uma revisão da teoria da compreensão textual descrita por Kintsch e Van Dijk (1978), em que se passou a considerar o processo construtivo do leitor na compreensão do significado do texto. A partir dessa perspectiva, o leitor constrói uma representação mental do texto reunindo as ideias do autor com as suas ideias, a partir do seu conhecimento prévio, e diferentes níveis de representação vão sendo elaborados durante a leitura para que a compreensão ocorra (Kintsch, 1988). Então, compreender implica a realização, pelo leitor, de conexões entre as ideias expressas em um texto através do seu conhecimento prévio. Após compreendermos um texto, esperamos ser capazes de responder a perguntas sobre o seu conteúdo, recordar ou resumi-lo e verificar as declarações sobre o assunto parafraseando-o (Kintsch, 1988). Então, o leitor compreende o material lido a partir de um modelo mental que envolve um processo de construção e de integração (Andrade & Dias, 2006).

De acordo com o proposto, o modelo de construção-integração é um modelo bottomup, porque inicia com a decodificação do texto literal, e é um modelo top-down, porque o modelo de situação depende do conhecimento prévio, de vocabulário e da ativação de esquemas relevantes (Paris & Hamilton, 2009). Kintsch (1998) afirmou que os leitores constroem simultaneamente um modelo de texto literal e um modelo elaborado de situação implícita no texto. Essas duas representações de texto são construídas através da releitura e da reflexão sobre o significado de forma cíclica para que eles se reforcem mutuamente. Assim, dadas as limitações da memória de trabalho em não operar com todo o volume de informações uma única vez, o processamento de um texto é feito em ciclos, isto é, aproximadamente em uma frase, através de um resumo das informações relevantes (Salles & Parente, 2004). A construção de uma base textual, isto é, a representação da informação contida no texto, depende da capacidade do leitor para construir as relações entre a microestrutura, isto é, entre as frases do texto, quanto entre a macroestrutura do texto – estrutura mais geral de significado, dois níveis de relações proposicionais (Salles & Parente, 2004; Paris & Hamilton, 2009). Segundo Salles & Parente, “a compreensão seria um processo que permite elaborar a macroestrutura do texto a partir de sua microestrutura” (2004, p. 72). A construção do modelo de situação, isto é, a informação que o leitor extrai do texto a partir do seu conhecimento prévio, reflete a capacidade do leitor para fazer inferências que vão além da base textual e para conectar as experiências anteriores a outros conhecimentos. Dessa forma, conciliar as inferências sucessivas e o desdobramento das relações no texto em representações coerentes é a parte de integração do modelo, em que o leitor constrói os sentidos do texto a partir do conhecimento prévio que possui e das informações que obtém através da leitura.

De acordo com essa perspectiva, “longe de ser uma simples busca de informações explícitas, a compreensão é um processo de construção de significados a partir da integração de informações literais e inferenciais” (Spinillo, 2008, p. 30). Queremos dizer que informações literais são aquelas explícitas no texto, e as inferenciais são aquelas informações implícitas que derivam da integração de informações intratextuais entre si e entre o conhecimento que o leitor possui (Spinillo, 2008). Então, no processo de compreensão, estão implicados os objetivos e as motivações do leitor bem como as características situacionais em que a compreensão está ocorrendo.

Memória de trabalho e compreensão da leitura

Na literatura, encontramos uma quantidade considerável de pesquisas sobre a relação entre a memória de trabalho e o desempenho dos leitores em tarefas de compreensão (Seigneuric, Ehrlich, Oakhill, & Yuill, 2000; Cain, Oakhill, & Bryant, 2004; Oakhill, Hartt, & Samols, 2005; Seigneuric & Ehrlich, 2005; Goff, Prati, & Ong, 2005; Swanson & Jerman, 2007; Paris & Hamilton, 2009; Sesma, Mahone, Levine, Eason, & Cutting, 2009), e tais evidências corroboram a ideia de que os problemas de compreensão estão associados com déficits de memória de trabalho (Swanson, 1999) e que a capacidade da memória de trabalho influencia o desempenho da compreensão da leitura (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004; Seigneuric & Ehrlich, 2005; Seigneuric, Ehrlich, Oakhill, & Yuill, 2000; Swanson & Jerman, 2007).

Seigneuric et al. (2000) estudaram a relação entre a capacidade da memória de trabalho e a compreensão da leitura administrando tarefas de compreensão de leitura, vocabulário, habilidades de codificação e de memória de trabalho a crianças (N = 48) da 4ª série de uma escola francesa. Os resultados revelam que a memória de trabalho emergiu como um importante preditor da compreensão da leitura e que o desempenho nas tarefas de memória de trabalho está relacionado às habilidades de compreensão de leitura das crianças, sendo provável que a deficiência em compreendedores pobres pode ser a base pelo menos de alguns dos problemas desses indivíduos com a integração e a compreensão de textos. Isso se deve ao fato de as habilidades desses compreendedores para integrar informações de diferentes partes de um texto ou para detectar inconsistências entre as partes do texto serem prejudicadas quando as demandas da memória de trabalho são aumentadas frente às exigências das tarefas (Oakhill, Hartt, & Samols, 1996; Yuill, Oakhill, & Parkin, 1989). Assim, o processamento de texto é influenciado por demandas da memória de trabalho (Yuill, Oakhill, & Parkin, 1989), sendo provável que compreendedores pobres sejam capazes de integrar as informações quando a tarefa não impõe muito de uma demanda de memória de trabalho, mas essa integração se rompe quando as demandas de memória de trabalho são altas (Oakhill, Hartt, & Samols, 2005).

As tarefas de memória de trabalho requerem a coordenação entre a função de processamento e de armazenamento, o que exige altas demandas do controle atencional para se evitar interferências durante a recuperação de informações (Seigneuric, Ehrlich, Oakhill, & Yuill, 2000). Pesquisadores têm sugerido que a capacidade de inibir ou de suprimir informações é importante no funcionamento eficiente da memória de trabalho (Conway & Engle, 1994).

Em um estudo com universitários (N = 40) da Universidade da Carolina do Sul, os pesquisadores argumentam que as diferenças individuais na capacidade da memória de trabalho seriam importantes para uma tarefa somente durante as fases que requerem que a tarefa seja realizada em condições controladas, isto é, a capacidade de atenção limitada (Conway & Engle, 1994). Os pesquisadores sugerem que as diferenças individuais em recursos atencionais levam a diferenças na capacidade de inibir ou de suprimir informações irrelevantes. Eles mencionam a relação com a teoria de Baddeley (1986) e são coerentes com a ideia de um executivo central como um sistema atencional importante para inibir a informação irrelevante bem como para ativar e manter informações relevantes para a tarefa. Assim, o conhecimento dessas unidades representadas na parte ativa da memória seria afetado não só pela capacidade de manter a informação ativa mas também pela capacidade de prevenir informações irrelevantes que poderiam interferir com a memória ativa (Conway & Engle, 1994).

Um estudo com crianças (N = 28) da 5ª série de uma escola pública rural mostrou que os bons compreendedores eram mais eficientes para suprimir significados de palavras irrelevantes do que os compreendedores pobres, sugerindo que as diferenças nas habilidades de compreensão podem ser atribuídas pelas diferenças no modo pelo qual as sentenças são semanticamente codificadas, porque, nesse estudo em contextos de sentenças, bons compreendedores fizeram inferências semânticas apenas para metas adequadas, enquanto compreendores pobres fizeram inferências iguais tanto para metas adequadas quanto para inadequadas (Merril, Sperber, & McCauley, 1981).

Em um estudo longitudinal, Cain, Oakhill e Bryant (2004) abordaram a relação entre a capacidade da memória de trabalho e as habilidades de compreensão da leitura em crianças (N = 172) de 8 a 11 anos, na costa sul da Inglaterra. Um dos objetivos desse estudo foi examinar a relação entre os recursos de processamento da memória de trabalho, a compreensão da leitura e as habilidades linguísticas de nível superior, tal como a realização de inferências que auxiliam a construção da representação do texto baseada no seu significado. Os pesquisadores concluíram que a memória de trabalho deveria ser considerada um dos vários fatores que podem influenciar na capacidade e no desenvolvimento da compreensão.

Na memória de trabalho, a integração e a inferência têm lugar; porém, apenas a capacidade da memória de trabalho pode não ser suficiente para garantir que a inferência ocorra, porque o conhecimento de mundo do leitor deve ser relevante, a partir do qual uma inferência pode ser feita (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004). Dessa forma, os recursos da memória de trabalho afetam a capacidade individual para realizar muitos dos processos associados à construção da representação de texto, como os processos de integração e de inferência.

Os processos de integração e de inferência são importantes para a construção de um modelo coerente e integrado de um texto. A integração entre as sentenças adjacentes é necessária para estabelecer coerência local, e inferências sobre eventos diferentes, ações, e estados são requeridos para fazer a coerência do texto como um todo” (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004, p. 31)

De acordo com essa perspectiva, os recursos da memória de trabalho são importantes na execução de habilidades de inferência e de monitoramento. Falhas em variáveis de processamento e de conhecimento podem levar a dificuldades de compreensão, que abrangem processamento lexical ineficiente, prejuízo na habilidade de inferência e na capacidade de monitoramento da compreensão, além de limitações da memória de trabalho (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004). Ressaltamos que “monitoramento da compreensão é o processo pelo qual um indivíduo avalia o estado de seu/sua compreensão da informação” (Oakhill, Hartt, & Samols, 2005, p. 658).

O monitoramento, habilidade metacognitiva, é a capacidade do leitor de refletir sobre seu próprio entendimento, e é essencial para integrar a informação processada no ato de ler. O monitoramento é realizado através da regulação do estudo de textos escritos e está relacionado com o tempo gasto pelo leitor para o entendimento do assunto. Então, à medida que o leitor encontra problemas no texto, ele monitora e controla esses problemas com o objetivo de compreender o texto, e não de decifrá-lo. Parece que a habilidade do leitor em monitorar seu aprendizado interfere em suas ações decisórias sobre qual assunto aprofundar ou quanto mais é necessário aprofundar. As falhas de conhecimento envolvem, por exemplo, o conhecimento empobrecido sobre o significado de palavras ou de domínios específicos, e as variáveis de processamento englobam a capacidade de realizar inferências e de monitorar a compreensão (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004).

No entanto, a compreensão pode ser aperfeiçoada a partir de instruções de como ler estrategicamente (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004). Se a memória de trabalho, o monitoramento, a compreensão e as habilidades de realização de inferências são inadequadas, instruções no monitoramento da compreensão e na realização de inferência podem ajudar a contornar problemas na compreensão da leitura que são associadas a limitações da memória de trabalho e que, geralmente, são consideradas menos passíveis de intervenção (Cain, Oakhill, & Bryant, 2004; Baker & Beall, 2009).

Atualmente, pesquisadores reconhecem que não é suficiente examinar as contribuições da metacognição para a compreensão sem também levar em conta a variedade de outros fatores que as influenciam, como a relação da memória de trabalho com a metacognição (Baker & Beall, 2009). A habilidade metacognitiva é uma função executiva fundamental para o leitor proficiente que realiza tentativas de dar sentido à informação textual recebida (Oakhill, Hartt, & Samols, 2005; Wagoner, 1983).

A falta de monitoramento dos leitores menos habilidosos tem sido demonstrada pela introdução de vários tipos de problemas dentro do texto, como palavras sem sentido ou informação inconsistente dentro das passagens do texto. As tarefas de detecção de erros exigem que o leitor avalie a sua compreensão do texto e regule a sua leitura para solucionar quaisquer problemas que venham interferir na sua compreensão (Oakhill, Hartt, & Samols, 2005).

Oakhill, Hart e Samols (2005) realizaram estudos para investigar as diferenças nas habilidades de monitoramento da compreensão entre compreendedores bons e pobres. Nesse estudo, foram selecionadas 24 crianças (N = 24), sendo 12 bons compreendedores e 12 compreendedores pobres, dentre a triagem de 119, em duas escolas inglesas de ensino fundamental, uma em Brighton e outra em Saltdean. Diante dos resultados de dois experimentos realizados com o grupo, as autoras sugerem ser possível afirmar que compreendedores menos habilidosos executam pobremente tarefas de monitoramento, de inferência e outras tarefas que requerem a integração da informação porque têm memória de trabalho menos eficiente. É improvável que os problemas com a memória de trabalho desempenhem um papel fundamental causal nos problemas de compreensão, porque existem evidências de que compreendedores pobres, algumas vezes, apresentam dificuldades na tarefa de monitoramento da compreensão, mesmo quando as tarefas de demandas da memória de trabalho são baixas, como no caso do experimento, em que apenas se solicitou às crianças que detectassem se as sentenças apresentadas tinham problemas. Outro ponto levantado pelas pesquisadoras é que as dificuldades dos compreendedores pobres não podem ser explicadas completamente em termos de memória de trabalho.

Discussão

O presente estudo objetivou investigar a relação dos recursos da memória de trabalho e as possíveis influências no desempenho dos leitores em tarefas de compreensão de textos escritos. As pesquisas revelam que a memória de trabalho exerce um papel crítico na compreensão da linguagem, que a capacidade da memória de trabalho é um forte preditor de compreensão da leitura e que limitações na memória de trabalho podem tornar difícil a compreensão.

De acordo com os pressupostos teóricos apresentados, a memória de trabalho é ativamente manipulada, processada e temporariamente armazenada, até que seja esquecida ou codificada na memória de longo prazo, e esse funcionamento ativo constitui uma função de nível superior do cérebro. No entanto, a memória de trabalho é restrita pela capacidade e pelo breve período de tempo que a informação pode ser mantida, sendo que existem diferenças individuais em relação a essa capacidade (Rai, Loschly, Harris, Peck, & Cook, 2011).

A compreensão é um processo de construção de significados realizada a partir da integração de informações contidas em um texto e da realização de inferências que são feitas para que o leitor integre as partes do texto a fim de compreender o seu conteúdo.

Então, compreender um texto requer a realização de inferências, e quanto mais inferências são necessárias para que o leitor compreenda um texto, mais forte é a influência dos limites de recursos da memória de trabalho (Rai et al., 2011). No entanto, os leitores menos habilidosos parecem menos propensos a realizar inferências, ou requerem mais tempo de processamento para fazêlas em relação aos leitores proficientes. Os leitores menos habilidosos são menos sensíveis a inconsistências ou a problemas no texto e são menos capazes de utilizar estratégias para superar as dificuldades encontradas no processo de compreensão de textos.

Por fim, se o processamento da linguagem é menos automatizado totalmente, irá requerer mais atenção do leitor, então o recurso do executivo central será mais exigido no processamento da informação. Nos leitores que apresentam de baixa a moderada proficiência na leitura, o processamento da linguagem leva a uma redução nos recursos executivos da memória de trabalho.

É provável que a prática da leitura aumente de maneira significativa a capacidade da memória de trabalho, uma vez que a execução de habilidades de inferência demanda os recursos da memória de trabalho. Melhor compreensão dos complexos processos que envolvem a memória de trabalho e a compreensão leitora pode contribuir para o ensino da leitura através do incentivo à realização de inferências, ao controle através do monitoramento, sendo essas algumas das habilidades cognitivas que conduzem o leitor à compreensão.

Recebido 21/11/2011

Aprovado 29/11/2012

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  • Endereço para correspondência
    Elaine Leporate Barroso Faria
    Departamento de Fisiologia – ICB, Universidade Federal de Juiz de Fora. CEP: 36036-900. Juiz de Fora, MG.
    E-mail:
  • *
    Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora e docente da Universidade do Estado de Minas Gerais, Barbacena – MG – Brasil. E-mail:
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    Doutor em Ciências (Endocrinologia Clinica) pela Universidade Federal de São Paulo e docente da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora – MG – Brasil. E-mail:
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    Inferências baseadas no conhecimento são “construídas quando estruturas de conhecimento da memória de longo prazo são ativadas e incorporadas na representação do significado do texto” (Salles & Parente, 2004, p. 72). É o conhecimento anterior que o leitor possui sobre o assunto que lhe permite realizar as inferências necessárias para integrar as partes do texto a fim de compreender o conteúdo do mesmo. Essas inferências auxiliam o leitor a clarificar detalhes não mencionados no texto, e são o mesmo que ler nas entrelinhas do texto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      21 Nov 2011
    • Aceito
      29 Nov 2012
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