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Reconstrução em Movimento: Impactos do Terremoto de 2010 em Imigrantes Haitianos

Reconstruction in Movement: 2010 Earthquake Impacts on Haitian Immigrants

Reconstrucción en Movimiento: Impactos del Terremoto de 2010 en Inmigrantes Haitianos

Resumo

A cultura oferece rituais e discursos que orientam o indivíduo, inclusive nos acontecimentos que excedem as possibilidades imediatas de representação psíquica, os eventos traumáticos. Em janeiro de 2010, o Haiti foi atingido por um terremoto com proporções catastróficas. A dificuldade do país em responder ao ocorrido, que agravou a situação precária da maioria de sua população, levou muitos haitianos a emigrarem, sendo o Brasil um dos destinos – ainda que provisório. O processo migratório, principalmente nas migrações involuntárias, implica em diversas mudanças e pode levar o sujeito a um estado de vulnerabilidade psíquica, pois muito daquilo que o orientava em sua existência é ameaçado pelo contato com a cultura diferente. O objetivo principal deste estudo foi analisar quais os impactos psicológicos do terremoto que, além de levar a experiência do imprevisível pelo evento em si, foi seguido de uma migração necessária para a continuidade e reconstrução da vida. De natureza qualitativa e exploratória, o procedimento de coleta de informações se deu por meio de entrevistas semiestruturadas. Aplicou-se a análise de conteúdo das narrativas, orientada pelo olhar psicanalítico e etnopsiquiátrico. Os resultados demonstram que a lembrança traumática, as perdas de pessoas próximas, a casa, o trabalho e a educação foram acrescidos às dificuldades de uma migração que, apesar de facilitada legalmente, é vivida com dificuldade de integração pela maioria desses sujeitos. Em contrapartida, o desejo de reconstrução da história individual e coletiva apresenta-se como importante força na vida dessas pessoas que, mesmo a distância, procuram compartilhar projetos com os conterrâneos.

Palavras-chave
Desastre Natural; Sofrimento; Imigração; Migração Humana; Haiti

Abstract

Culture provides rituals and discourses that guide the individual, including in events that exceed the immediate possibilities of psychological representation, the traumatic ones. In January 2010 Haiti was hit by an earthquake with catastrophic proportions. The difficulty that the country had to respond to what happened aggravated the precarious situation of the majority of its population, leading many Haitians to emigrate, with Brazil as one of the destinations - albeit temporary. The migration process, especially in the involuntary migration, involves several changes and can lead the individual to a mental state of vulnerability, once much of what guided one in his or her existence is threatened by the contact with a different culture. The aim of this study was to analyze which are the psychological impacts due an earthquake that, in addition to bringing the experience of the unpredictable event itself, was followed by a migration required for the continuity and reconstruction of life. From qualitative and exploratory nature, the procedure to collect data was performed through semi-structured interviews. Content analysis of the narratives was carried out, guided by the psychoanalytic and ethnopsychiatric approaches. The results show that the traumatic memory, the loss of close persons, home, work and education were added to the difficulties of a migration that, although legally facilitated, is experienced with difficulty to integration for the majority of these individuals. On the other hand, the desire for reconstruction of individual and collective history presents itself as a major force in the lives of people who, even distant, seek to share projects with their compatriots.

Keywords
Natural Disaster; Suffering; Immigration; Human Migration; Haiti

Resumen

La cultura ofrece rituales y discursos que orientan al sujeto, inclusive en los eventos traumáticos, que son acontecimientos que exceden las posibilidades inmediatas de representación psíquica. En enero de 2011, Haití fue tomado por un terremoto con proporciones catastróficas. La dificultad del país en responder a lo ocurrido agravó la situación precaria de la mayor parte de su populación, motivando la emigración de muchos haitianos, siendo Brasil uno de los destinos – aunque provisorio. El proceso migratorio, principalmente el de las migraciones involuntarias, implica diversas mudanzas y puede llevar al sujeto a un estado de vulnerabilidad psíquica, puesto que aquello que lo orientaba en su existencia es amenazado por el contacto con una cultura diferente. El objetivo principal de este estudio fue analizar cuáles son los impactos psicológicos del terremoto que, más allá de llevar la experiencia de lo imprevisible por el evento en sí, fue seguido de una migración necesaria para la continuidad y reconstrucción de vida. De naturaleza cualitativa y exploratoria, el procedimiento de colecta de informaciones en este estudio fue realizado por medio de entrevistas semiestructuradas. Fue aplicado el análisis de contenidos a los discursos, orientado por las perspectivas psicoanalítica y etnopsiquiátrica. Los resultados demuestran que la recordación de eventos traumáticos, la pérdida de personas cercanas, casa, trabajo y educación fueron acrecentadas a las dificultades de una migración que, a pesar de ser facilitada legalmente, es experimentada con dificultad de integración por la mayoría de los participantes de este estudio. En contrapartida, el deseo de reconstrucción de la historia individual y colectiva aparece como una importante fuerza en la vida de estas personas que, aún en la distancia, buscan compartir proyectos con los coterráneos.

Palabras clave
Desastre Natural; Sufrimiento; Inmigración; Migración Humana; Haití

Introdução

A vinda e permanência de haitianos no Brasil nos últimos cinco anos tem sido tema de notícias, estudos e desafia instâncias governamentais e não governamentais brasileiras. Após a ocorrência de um terremoto com proporções catastróficas em 12 de janeiro de 2010 no Haiti, a configuração da imigração haitiana pelo mundo alterou-se e o Brasil passou a ser um dos destinos dessas pessoas. Com a concessão de vistos de permanência por razões humanitárias, o Estado brasileiro facilitou legalmente a entrada e residência dos oriundos do país caribenho.

Compreendido como um desastre natural, o terremoto ocorrido em 2010, com epicentro na capital do Haiti, Porto Príncipe, deixou cerca de 300 mil mortos e aproximadamente três milhões de pessoas vitimadas de alguma forma (Godoy, 2011Godoy, G. G. (2011). O caso dos haitianos no Brasil e a via da proteção humanitária complementar. In A. C. Ramos, G. Rodrigues, & G. A. Almeida, 60 anos de ACNUR : Perspectivas de futuro (pp. 45-68). São Paulo, SP: CL-A Cultural.), além de levar a uma importante ruptura na vida dos cidadãos daquela terra bem como de seus familiares ao gerar perdas materiais, econômicas, humanas e ambientais, que ultrapassaram a capacidade de enfrentamento do país com seus próprios recursos. Afora isso, o evento agravou as condições de precariedade do país.

É fundamental considerar os desdobramentos psicológicos deste tipo de evento, que pode gerar impactos na saúde mental e sofrimento psíquico diante das perdas vivenciadas (Alves, Lacerda, & Legal, 2012Alves, R. B., Lacerda, M. A. C., & Legal, E. J. (2012). A atuação do psicólogo diante dos desastres naturais: uma revisão. Psicologia em Estudo, 17(2), 307-315. https://doi.org/10.1590/S1413-73722012000200014
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; Cohen, 2008Cohen, R. E. (2008). Lecciones aprendidas durante desastres naturales: 1970-2007. Revista Peruana Medicina Experimental y Salud Publica, 25(1), 109-17. Recuperado de http://www.scielo.org.pe/pdf/rins/v25n1/a13v25n1.pdf
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; Cova, & Rincón, 2010Cova, F., & Rincón, P. (2010). El terremoto y tsunami del 27-F y sus efectos em la salud mental. Terapia Psicológica, 28(2), 179-185. https://doi.org/10.4067/S0718-48082010000200006
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; Loubat, Fernández, & Morales, 2010Loubat, M., Fernández, A. M., & Morales, M. (2010). La experiencia de Peralillo: Una intervención psicológica para el estado de emergencia. Terapia Psicológica, 28(2), 203-207. https://doi.org/10.4067/S0718-48082010000200009
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; Martins-Borges, 2013Martins-Borges, L. (2013). Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 21(4)0, 151-162. https://doi.org/10.1590/S1980-85852013000100009
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; Sommer et al., 2013Sommer, K. A., Abufhele M. M., Briceño, A. M. A., Dávila, A. D., Barreau, M. V., Castro, S. M. et al. (2013). Intervención de salud mental en niños expuestos a desastre natural. Revista Chilena de Pediatría, 84(1), 59-67. https://doi.org/10.4067/S0370-41062013000100007
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). Nesses casos, costuma-se esperar reações emocionais intensas, o que não significa a ocorrência de quadros psicopatológicos. Porém, tal previsibilidade não minimiza a importância de se atentar a estas reações, que podem caracterizar um trauma (Sá, Werlang, & Paranhos, 2008Sá, S. D., Werlang, B. S. G., & Paranhos, M. E. (2008). Intervenção em crise. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 4(1). https://doi.org/10.5935/1808-5687.20080008
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). A magnitude do ocorrido não é a única responsável pelos desdobramentos: eles dependerão igualmente de como e quais papéis representam na psique de cada sujeito que o vivencia (Bastos, 2008Bastos, C. L. (2008). Tempo e psicopatologia cultural das experiências traumáticas. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, 11(2), 195-207. https://doi.org/10.1590/S1415-47142008000200002
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; Kohn, Levav, Donaire, Machuca, & Tamashiro, 2005Kohn, R., Levav, I., Donaire, I., Machuca, M., & Tamashiro, R. (2005). Psychological and psychopathological reactions in Honduras following Hurricane Mitch: Implications for service planning. Revista Panamericana de Salud Pública, 18(4/5), 287–95. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/766c/5cec1a1c8275542be82aff7e8a242538d996.pdf
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).

Há que se considerar que não há catástrofe natural em si mesma, pois a qualidade catastrófica está diretamente relacionada às suas consequências. Portanto, é importante lembrar que o impacto da ação da natureza está fortemente determinado por fatores sociais (Cova, & Rincón, 2010Cova, F., & Rincón, P. (2010). El terremoto y tsunami del 27-F y sus efectos em la salud mental. Terapia Psicológica, 28(2), 179-185. https://doi.org/10.4067/S0718-48082010000200006
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; Lopes et al., 2010Lopes, D. C., Costa, D. S., Soares, E. V., Furtado, J. R., Alves, L. M., Solino, M. N., & Cartagena, S. M. C. (2010). Gestão de riscos e de desastres: Contribuições da psicologia. Florianópolis, SC: Associação Cultural Cabeça ao Vento.). A dificuldade do país em responder ao ocorrido levou muitos haitianos a emigrarem para diversos países, incluindo o Brasil.

O risco de deslocamento por desastres naturais praticamente duplicou nas últimas quatro décadas. Com o avanço de tecnologias de monitoramento, medidas de prevenção e alertas de desastres, menos pessoas morrem em decorrência desse tipo de evento. Porém, há tendências cada vez maiores de deslocamento entre aqueles que sobrevivem. Estima-se que, entre 2008 e 2013, a média de deslocados por desastres naturais por ano era de 27 milhões, sendo esse número nunca menor que 15 milhões (Internal Displacement Monitoring Centre [IDMC], 2014Internal Displacement Monitoring Centre. (2014). Global estimates 2014: People displaced by disasters. Geneva: Norwegian Refugee Council, Internal Displacement Monitoring Centre.).

Migração é um movimento populacional de travessia de uma fronteira internacional ou nacional, que compreende qualquer deslocamento de pessoas, independentemente da extensão ou das causas (Organização Internacional para as Migrações [OIM], 2009Organização Internacional para as Migrações. (2009). Glossário sobre migração (Direito Internacional da Migração, nº 22). Genebra: o autor.). O processo migratório, por sua vez, ultrapassa o mero atravessamento de fronteiras. É um processo definido pelos aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e eventuais da terra da qual se parte; relaciona-se com o percurso engendrado até a chegada ao destino, nem sempre escolhido, desejado e coerente com aquilo que se esperava encontrar.

As condições do país de acolhimento, nos mais diversos âmbitos, também repercutem na vida dos imigrantes. Esse processo como um todo tem efeitos psicológicos importantes, os quais são geralmente negligenciados, devido à necessidade imediata de atenção a dimensões básicas à sobrevivência, seguidos das preocupações legais de acolhimento. Além disso, os deslocamentos de pessoas devido a catástrofes naturais exigem destas uma reorganização das fronteiras pessoais, interpessoais, socioeconômicas, culturais e geográficas, o que requer importante capacidade de adaptação (Schininà, Hosn, Ataya, Dieuveut, & Salem, 2010Schininà, G., Hosn, M. A., Ataya, A., Dieuveut, K., & Salem, M-A. (2010). Psychosocial response to the Haiti earth quake: the experiences of International Organization for Migration. Intervention, 8(2), 158-164. Recuperado de https://www.interventionjournal.com/sites/default/files/Psychosocial_response_to_the_Haiti_earthquake__the.9.pdf
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).

Sendo assim, cabe compreender o terremoto não como um desastre que afetou apenas o território físico no qual ocorreu. Junto a sua destruição, houve também a desestruturação das pessoas que a esse território se referem no tocante à identidade (Paula, Valencio, & Correa, 2013Paula, E. A., Valencio, N., & Correa, D. (2013). Entre desastres catastróficos e mobilidades controladas: Das idas e vindas de camponeses brasileiros à chegada dos imigrantes haitianos no “reino deste mundo amazônico”. Contemporânea, 3(1), 45-71. Recuperado de http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/118/65
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). Somam-se a isso todas as perdas decorrentes do terremoto e as dificuldades enfrentadas no trajeto e na permanência no Brasil: idioma, emprego, habitação, formação, regularização migratória, saúde, discriminação e segurança social (Fernandes, 2014Fernandes, D. (2014). Projeto “Estudos sobre a migração haitiana ao Brasil e diálogo bilateral”: Relatório de pesquisa. Belo Horizonte, MG: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.).

A intensidade da situação traumática deve ser considerada como importante fator ao se pensar na dificuldade do psiquismo em trabalhar tal evento – a elaboração psíquica (Carvalho, 2012Carvalho, M. T. M. (2012). Sofrimento psíquico, acontecimento traumático e angústia pulsional. Psicologia em Estudo, 17(3), 487-497. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pe/v17n3/a14v17n3
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). As repercussões da situação traumática, evidentemente, variam conforme o destino dado à experiência (Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.). Ele tende a deixar uma lacuna pelo fato de não ter sido representado, o que marca no sujeito uma vida na qual o antes e o depois do trauma parecem não se encontrar, ou seja, há um corte na continuidade. Mas é na noção de temporalidade a posteriori que reside a esperança, algo diferente na noção linear do passado sobre o presente.

“A cada momento, o presente se associa ao passado e transforma sua significação” (Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., p. 21). Assim, não cabe mais uma determinação do presente e futuro pelo passado, mas considera-se que todas as ideias e interesses do presente influenciam a reconstrução da história. A resposta possível à devastação do traumático, à sua falta de sentido, se dá na tentativa de construir narrativas que o tornem menos gratuito. É nesse ponto que se (re)começa a tecer a teia de significados, de representações (Carvalho, 2012Carvalho, M. T. M. (2012). Sofrimento psíquico, acontecimento traumático e angústia pulsional. Psicologia em Estudo, 17(3), 487-497. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pe/v17n3/a14v17n3
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; Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.).

O papel da cultura na construção dessa outra narrativa é imprescindível, ao oferecer rituais e discursos que têm função protetora (Sturm, Baubet, & Moro, 2010Sturm, G., Baubet, T., & Moro, M. R. (2010). Culture, trauma, and subjectivity: The French ethnopsychoanalytic approach. Traumatology, 16(4), 27-38. Recupeado de http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1534765610393183
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). A permanência ao longo das peripécias da vida requer que se opere com os restos daquilo que foi ouvido e vivido, deixando em território estrangeiro, porém interno, aquilo que não pode ser traduzido (Carvalho, 2012Carvalho, M. T. M. (2012). Sofrimento psíquico, acontecimento traumático e angústia pulsional. Psicologia em Estudo, 17(3), 487-497. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pe/v17n3/a14v17n3
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; Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.). Assim, as possibilidades de representação de eventos que excedem a capacidade de resposta imediata do aparelho psíquico – como sobreviver a um terremoto e vivenciar um processo migratório forçado pelas sequelas do desastre – são regulados pela cultura.

O presente artigo tem como objetivo principal apresentar os resultados de uma pesquisa qualitativa concernente aos principais impactos psicológicos, deixados pela exposição ao terremoto de 2010, em imigrantes haitianos que residem em uma região do Brasil. A imigração desse grupo, forçada pelo agravamento de condições precárias de vida após o terremoto, também é objeto de análise e discussão. Afinal, as demandas de reorganização externa e interna são condições de ambos os eventos: exposição ao terremoto e imigração.

Método

Participantes

No que tange à escolha dos participantes, foi utilizada uma amostra não probabilística e, portanto, intencional. Participaram do estudo, de caráter qualitativo descritivo e exploratório, sete haitianos residentes em uma região brasileira onde a pesquisa foi elaborada. Pautou-se no fechamento amostral por saturação teórica. A saturação ocorre operacionalmente quando a inclusão de novos participantes é suspensa, devido à avaliação do pesquisador de que há certa redundância ou repetição nas informações obtidas, no que diz respeito ao conteúdo delimitado pelo problema de pesquisa (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008Fontanella, B. J. B., Ricas, J., & Turato, E. R. (2008). Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, 24(1), 17-27. https://ddoi.org/10.1590/S0102-311X2008000100003
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).

Os participantes responderam aos seguintes critérios de inclusão: serem haitianos(as); terem mais de 18 anos de idade; residirem no Brasil há no mínimo 12 meses; estarem presentes e residirem no Haiti quando ocorreu o terremoto; compreenderem a língua portuguesa; terem sofrido algum dano direto com o terremoto como: ferimento, terem visto alguém ferido ou morto, perda de alguém significativo, perda ou abalo do local onde residiam e/ou perda da atividade ocupacional (estudo ou trabalho).

O acesso aos participantes se deu pelo método bola de neve (snowball), considerado um meio de amostragem por cadeia de referências. O primeiro nível dessa cadeia foi constituído pelo apoio de um movimento social que promove periodicamente discussões e organiza ações de apoio à integração dos recentes imigrantes na cidade onde a pesquisa foi realizada e municípios vizinhos. O grupo conta com representantes da sociedade civil e poder público que desenvolvem atividades de pesquisa, extensão e ações a respeito de diversos temas que interpõem as imigrações.

Instrumentos

A coleta de informações foi realizada por meio da aplicação de um questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada. O questionário sociodemográfico utilizado foi construído por pesquisadores que integram o núcleo de estudos do qual se originou a pesquisa, a fim de obter dados que levem em conta especificidades da situação migratória. Possui, portanto, 27 questões distribuídas em seis categorias: dados pessoais (nome, sexo, idade, estado civil, país e cidade de nascimento, cidade onde reside), escolaridade e ocupação (escolaridade, ocupação atual e anterior à imigração), residência (número de cômodos, tipo de residência, número de pessoas com quem reside e tipo de relacionamento com elas), religião/crença (se possui e se é praticante), língua (língua primária, se fala outras línguas, grau de apropriação do português antes da imigração e atual) e dados sobre a imigração (data, quantas vezes imigrou, com quem imigrou, quem ficou no país de origem, motivação, tipo de visto de entrada no Brasil e atual).

O roteiro elaborado para a entrevista semiestruturada contém 24 perguntas, divididas em quatro categorias. Ele foi baseado em considerações das abordagens teóricas que orientaram o estudo e em dois trabalhos que abordam a construção de escalas relacionadas ao tema (Caiuby, Lacerda, Quintana, Torii, & Andreoli, 2012Caiuby, A. V. S., Lacerda, S. S., Quintana, M. I., Torii, T. S., Andreoli, S. B. (2012). Adaptação transcultural da versão brasileira da Escala do Impacto do Evento - Revisada (IES-R). Cadernos de Saúde Pública, 28(3), 597-603. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000300019
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; Papadopoulos, 2007Papadopoulos, R. K. (2007). Refugees, trauma and Adversity-Activated Development. European Journal of Psychotherapy and Counselling, 9(3), 301-312. https://doi.org/10.1080/13642530701496930
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). Cabe ressaltar que se optou pela não utilização dos instrumentos contidos nos estudos citados devido ao desafio de adaptação de tais instrumentos para populações imigrantes. Isso requer mais do que a tradução, mas a adaptação às especificidades étnicas e culturais (Caetano, Clark, & Tam, 1998Caetano, R., Clark, C. L. & Tam, T. (1998). Alcohol consumption among racial/ethnic minorities. Alcohol Health and Reserch World, 22(4), 233-242. Recuperado de http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.556.6875&rep=rep1&type=pdf
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). Sem um ajuste minucioso de tais instrumentos, colocam-se em risco as propriedades psicométricas deles e, por conseguinte, a validade do estudo.

Procedimentos

Coleta de dados

Primeiramente foi estabelecido contato com as pessoas ou instituições indicadas por meio do primeiro nível da rede de referência. Neste contato, apresentou-se o panorama geral do estudo e foi realizado o convite de participação. No caso de aceite, agendou-se um encontro presencial, em local definido pelo possível participante para o esclarecimento detalhado dos propósitos do estudo, verificação dos critérios de inclusão, respostas às dúvidas, leitura e apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Com base no roteiro de entrevista elaborado, avaliou-se, por sua extensão bem como pelo teor dos conteúdos abordados – referentes a temas que investigavam a história dos participantes e poderiam desencadear reações afetivas intensas –, a importância da realização de dois encontros com cada participante. Essa opção levou em conta não somente as implicações metodológicas, mas também as éticas. A própria hipótese referente aos impactos negativos da exposição ao terremoto e da imigração forçada pelos desdobramentos do evento, marcam a complexidade que atravessa o “falar sobre”. Além disso, a diferença cultural entre a pesquisadora e os participantes não são mero detalhe: é fundamental a constituição de alguma relação de confiança para que se abra espaço para determinados assuntos fora do âmbito circunscrito pela cultura de origem.

Assinado o TCLE, foi iniciado o primeiro tempo das entrevistas. O áudio das falas foi gravado, a fim de garantir a apreensão integral das informações para posterior análise. No primeiro encontro, abordou-se até a questão 11 do roteiro da entrevista semiestruturada. No segundo encontro, a entrevista foi retomada a partir da questão 12 do mesmo roteiro. Ao fim das entrevistas, foi realizado o preenchimento dos dados sociodemográficos.

A pesquisa foi completada de acordo com os princípios éticos estabelecidos pelo disposto na Resolução n° 466 (2012)Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012. [Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos]. Recuperado de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
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com especial atenção dada aos riscos psíquicos referentes à participação na pesquisa.

Análise de dados

Os áudios foram transcritos e os documentos com as transcrições foram explorados via software Atlas-ti. Sua utilização justifica-se, inicialmente, pela quantidade de informações obtidas nos 14 encontros ocorridos – dois com cada participante –. Ele é indicado como instrumento organizador e sistematizador em caso de grande quantidade de informações qualitativas (Gilz, 2007Gilz, C. (2007). Os desafios e facilidades do uso do programa de software atlas/ti na análise de dados da pesquisa: A coleção “redescobrindo o universo religioso” na formação do professor. Anais do Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, Curitiba, PR, Brasil, 7.).

Na sequência, a análise foi orientada pelas proposições de Bardin (1977)Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo (L. A. Reto, & A. Pinheiro, Trad.). Lisboa: Edições 70. com sua análise de conteúdo. A última busca garantir uma análise que oscile e integre o rigor da objetividade e a fecundidade da subjetividade das informações coletadas (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo (L. A. Reto, & A. Pinheiro, Trad.). Lisboa: Edições 70.). Trata-se de um trabalho minucioso, que se inicia com a leitura flutuante e segue em busca de identificar núcleos de sentido, que foram codificados e agrupados em categorias mais amplas.

Resultados e discussão

A análise do conteúdo das narrativas, oriundas das entrevistas semiestruturadas, culminou em quatro categorias de análise, que serão apresentadas e discutidas separadamente. Cada categoria é composta por subcategorias que, por sua vez, são constituídas de unidades temáticas. Estas unidades representam cadeias de significados análogos, baseadas nas narrativas. O agrupamento em subcategorias de temas mais amplos contribui para a compreensão das categorias, mais abrangentes e relacionadas aos objetivos do estudo, por intermédio da discussão detalhada de cada uma das unidades, como apresentado na sequência.

Processo migratório

A primeira categoria de análise, nomeada PROCESSO MIGRATÓRIO, é compreendida por tudo aquilo que se refere ao deslocamento dos participantes até a chegada ao Brasil, dentro do que foi investigado na presente pesquisa. Apreende-se esse processo para além do deslocamento no sentido estrito da palavra: a migração é composta por um conjunto de fatores que a caracteriza. No presente estudo, o processo migratório é compreendido pela Motivação para migrar, Etapa pré-migratória, Características do percurso e suas respectivas unidades de análise, como demonstrado na Quadro 1.

Quadro 1
Categoria: Processo migratório.

A Motivação para migrar foi nomeada pelos participantes por meio de Dificuldades financeiras decorrentes do terremoto e de Dificuldades para continuar os estudos. A migração como estratégia de sobrevivência no contexto haitiano é conhecida e discutida por estudiosos de diversas áreas (Handerson, 2015Handerson, J. (2015). Diáspora: As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.; Moraes, Andrade, & Mattos, 2013Moraes, I. A., Andrade, C. A. A., & Mattos, B. R. B. (2013). A imigração haitiana para o Brasil: Causas e desafios. Revista Conjuntura Austral, 4(20), 95-114. https://doi.org/10.22456/2178-8839.35798
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; Pacífico, & Pinheiro, 2013Pacífico, A. P., & Pinheiro, T. K. F. (2013). O status do imigrante haitiano no Brasil após o terremoto de 2010 sob a perspectiva do Pós-Estruturalismo. Revista Perspectivas do Desenvolvimento, 1(1), 107-125. Recuperado de http://periodicos.unb.br/index.php/perspectivasdodesenvolvimento/article/view/9837/7233
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; Patarra, & Fernandes, 2011Patarra, N. L., & Fernandes, D. (2011). Brasil: país de imigração? E-Metropolis, (24), 65-89.; Paula et al., 2013Paula, E. A., Valencio, N., & Correa, D. (2013). Entre desastres catastróficos e mobilidades controladas: Das idas e vindas de camponeses brasileiros à chegada dos imigrantes haitianos no “reino deste mundo amazônico”. Contemporânea, 3(1), 45-71. Recuperado de http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/118/65
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). Magalhães (2014)Magalhães, L. F. A. (2014). O Haiti é aqui: Primeiros apontamentos sobre os imigrantes haitianos em Balneário Camboriú – Santa Catarina – Brasil. Revista PerCursos, 15(28), 223-256. https://doi.org/10.5965/1984724215282014223
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pontua o quanto a presença estrangeira em termos militares, econômicos e políticos no Haiti, ao longo da história do país, contribui para uma representação de “ajuda internacional”. Assim, mesmo aqueles que conseguem superar dificuldades referentes ao básico à sobrevivência, deparam-se com obstáculos para atingirem condições financeiras que os satisfaçam e emigram. Magalhães (2014)Magalhães, L. F. A. (2014). O Haiti é aqui: Primeiros apontamentos sobre os imigrantes haitianos em Balneário Camboriú – Santa Catarina – Brasil. Revista PerCursos, 15(28), 223-256. https://doi.org/10.5965/1984724215282014223
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nomeia esse fenômeno como “expulsão da população”, por compreender que o deslocamento é forçado por esse panorama.

A concretude dos efeitos catastróficos do terremoto aumentou a instabilidade que pairava sobre o Haiti. As consequências financeiras do terremoto, que afetaram todos os participantes e se apresentam de maneira explícita em seus discursos, foram equacionadas, em alguns casos, com o auxílio de familiares que já moravam em outros países, além daqueles que se mudaram logo após o evento, como pode ocorrer nos casos de desastres naturais de grande escala (Véron, & Golaz, 2015Véron, J., & Golaz, V. (2015). Can environmental migration be measured? Population and Societies, (522), 1-4. Recuperado de https://www.ined.fr/fichier/s_rubrique/23737/population.societes.2015.522.migration.environmental.en.pdf
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).

Logo, enquanto as dificuldades financeiras compuseram a principal motivação para migrar, a etapa anterior à partida, a Etapa pré-migratória, foi representada pelos Deslocamentos anteriores, pela Definição do destino e pelas Despedidas. Pensar no período pré-migratório remete à possibilidade, observada desde os deslocamentos de outras pessoas que já haviam deixado o Haiti, de reverter o quadro a partir da migração. Observa-se que a solução para se reconstruir após as consequências mais visíveis de um terremoto, na compreensão dessa população, encontra-se na própria dinâmica de aposta no deslocamento geográfico como possibilidade e desejo de êxito.

A “escolha” do destino, ao que o conteúdo das entrevistas indicou, estava pautada em uma imagem do Brasil como aquele que facilita a entrada e permanência – por meio da Resolução Normativa n° 97 (2002)Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012. Dispõe sobre a concessão do visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti. Brasília, DF: Conselho Nacional de Imigração., que concede visto de permanência por razões humanitárias exclusivamente aos haitianos –, que tem empregos disponíveis ou possibilidades de formação ou, ainda, como destino provisório até que se obtenha a possibilidade de migrar legalmente para outro país. Portanto, a vontade de vir para o Brasil não foi um fator relevante na decisão.

A tristeza que acompanhou as despedidas emergiu das falas em suas diversas manifestações. Deixar o Haiti significou, acima de tudo, deixar as pessoas que lá ficaram. E não parece exagero afirmar que esse significado se destaca. Ao refletir acerca da cultura haitiana é fundamental considerar que a noção de identidade é marcada pela possibilidade de pertencimento, sendo mais importante dizer que “se pertence a” do que “se é” (Schininà et al., 2010Schininà, G., Hosn, M. A., Ataya, A., Dieuveut, K., & Salem, M-A. (2010). Psychosocial response to the Haiti earth quake: the experiences of International Organization for Migration. Intervention, 8(2), 158-164. Recuperado de https://www.interventionjournal.com/sites/default/files/Psychosocial_response_to_the_Haiti_earthquake__the.9.pdf
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). Assim, a despedida parece marcar também a saída objetiva de um lugar, em termos de função no âmbito familiar, o que demanda trabalho psíquico. De fato, continua-se ocupando algum outro lugar, mas a tristeza implicada no luto necessário da posição que se deixa é inevitável.

Apesar das rotas até o Brasil variarem, o percurso migratório dos participantes foi caracterizado, como indica a subcategoria Características do percurso, por um Intenso fluxo de pensamentos e pelo Apoio de outras pessoas. No que se refere aos pensamentos, havia algo comum: a incerteza de êxito e as preocupações eram companhias certas nas travessias. O caminho era longo, cansativo e cheio de percalços, o que podia incluir assaltos, doenças, problemas com autoridades no Equador ou Peru e gastos com “coiotes” (traficantes de pessoas). Acrescidas às tristezas das despedidas, incertezas das chegadas e compromisso com os familiares que ficaram no Haiti – investidores afetivos e, por vezes, econômicos desta empreitada – os pensamentos repletos de aflição compunham o “ambiente psíquico” dessas pessoas. Geralmente, ao longo da viagem, o contato com a família era inexistente.

Por outro lado, também a ligação afetiva fez da chegada um momento de alegria, quando finalmente se pôde contatar os amados e relatar as boas notícias. Esse apoio foi objetivamente fundamental para o percurso, pois muitos haitianos já possuíam conterrâneos no Brasil ou juntaram-se a eles no caminho, constituindo certa rede de apoio. Com o auxílio de outras pessoas puderam pensar suas rotas, obtiveram informações sobre o que fazer na chegada e locais/pessoas que deveriam procurar ou contatar ao adentrarem no território brasileiro.

O gatilho da migração dessa população foram as consequências devastadoras do terremoto. Porém, outros aspectos forneceram elementos de compreensão. O conteúdo das entrevistas sugeriu a importância, no que concerne ao psiquismo, de se sentir “amparado”. Diante da vulnerabilidade que o deslocamento pode gerar, contar com apoio daqueles que passam ou passaram por situação semelhante, principalmente quando estes são conterrâneos, é um aspecto que contribui para vivenciar o processo com menos sofrimento.

Exposição ao terremoto

Compreendida a partir do Evento traumático, dos Efeitos primários do evento traumático, e dos Sintomas psíquicos, por meio de suas respectivas unidades temáticas (Quadro 2), a EXPOSIÇÃO AO TERREMOTO foi uma vivência traumática. Teoricamente, o evento traumático pode ser compreendido como uma situação excessiva, capaz de romper com a teia de representações do sujeito, impossibilitando assim que seja representado de imediato pelo psiquismo, dado seu caráter intrusivo e inesperado.

Quadro 2
Categoria: Exposição ao terremoto.

O Evento traumático, nesse caso, foi caracterizado pela sua Imprevisibilidade, pelo Desamparo sentido pelos sobreviventes, o excessivo Contato com a morte e a Dificuldade em responder ao evento com os próprios recursos – materiais e simbólicos. Um dos participantes proferiu: “eu só tinha visto isso em filme” (Participante 2). O apontamento marca a “irrealidade” do evento, ainda que como acontecimento geológico, científico, ele possa ser apreendido. É a passagem ao domínio da experiência, nesse contexto que o torna impossível. Afetivamente indigerível, ao menos no imediatismo da vivência.

O fato de “ninguém saber”, tão recorrente nas falas, sustentou a sensação de estranho, unida ao pavor causado. Freud (1919/2010)Freud, S. (2010). O inquietante. In S. Freud, Histórico de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). (pp. 328-376, P. C. Souza, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Original publicado em 1919)., ao escrever sobre o inquietante (unheimlich), afirma a relação do termo com aquilo que desperta angústia, horror, algo da ordem do terrível. O tremor de terra e os desabamentos, que o sucederam, ultrapassaram o decaimento do concreto, do material. Remeteram à experiência humana vivenciada em algum momento por todos: o desamparo. As falas marcam o teor da sensação de “nada ter ou poder” à medida que apontam quão abruptas e intensas foram as perdas.

Sobreviver a um evento dessa magnitude é ter que lidar com a morte de todos os que não tiveram o mesmo destino. A quantidade, a forma como as pessoas morreram e as dificuldades para realizar rituais fúnebres costumeiros escancaram a fragilidade frente à vida, ainda que na cultura haitiana compreenda-se a morte como processo natural (Pierre et al., 2010Pierre, A., Minn, P., Sterlin, C., Annoual, P. C., Jaimes, A., Raphaël, F. et al. (2010). Culture and mental health in Haiti: A literature review. Geneva: WHO. Recuperado em http://www.who.int/mental_health/emergencies/culture_mental_health_haiti_eng.pdf
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). Então, a questão não reside puramente no contato, mas no tipo de contato. A negação da morte material torna-se impossível. E o excessivo – característica da situação traumática – dificulta também sua simbolização.

A dificuldade de se dizer sobre o dia a dia nos meses que sucederam ao evento – ou ao menos dizer algo além dos desdobramentos psicológicos da experiência – demonstraram o abismo que ter sido exposto a um terremoto abriu. As emoções amortecidas, os sentimentos dissociados e o tempo despendido na tentativa de não entrar em contato com os afetos que relembravam o ocorrido sinalizam a ruptura. No entanto, o pouco a pouco aponta para o papel das relações na reconstrução simbólica frente ao traumático.

Não se pode negligenciar os impactos psicológicos do terremoto, que ultrapassam o estresse físico e mental, como advertem Zaiontz e Sarkar (2014)Zaiontz, C. A., & Sarkar, A. (2014). Cultural themes in post traumatic adjustment. Clinical Neuropsychiatry, 11(1), 20-31. Recuperado de http://www.clinicalneuropsychiatry.org/pdf/zaiontzweb.pdf
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ao abordar o traumático em diferentes culturas. Os Sintomas psíquicos da exposição ao terremoto foram compreendidos pelo Medo, as Revivências e a Hipervigilância. Estado emocional negativo, o medo passou a habitar a vida dos sobreviventes após o terremoto. Nos períodos imediatamente após o evento, ele tinha objeto certo: a ocorrência de outros terremotos e todos os efeitos deles consequentes. Assim como uma farpa encravada, o medo fazia do evento algo vivo, constantemente presente e difícil de cicatrizar.

O evento traumático, como experiência de desamparo, agora é relacionado a uma situação: o terremoto. Assim, ele ocupa o lugar de situação de perigo, na qual o núcleo da compreensão reside na admissão do desamparo material e psíquico frente à sua possibilidade de ocorrência. Acaba por abalar a segurança do sujeito frente a outras situações, como se quase tudo pudesse ser golpeado e literalmente tremido – e temido.

Assim, a atenção em relação aos perigos ficou aguçada pós-evento. Estar no Brasil, que não é acometido por terremotos de magnitudes significativas, não garante segurança. E isso porque a hipervigilância não se refere exclusivamente a um novo terremoto, mas esta situação virou o protótipo de ameaça à vida – e a noção de segurança que a ampara –, que antes podia até ser sabida, mas não era conhecida. A atenção passa a ser redobrada em torno a grandes construções e a lugares onde as saídas não são claramente indicadas ou propriamente facilitadas.

Os Efeitos primários do evento traumático no caso dos haitianos foram compreendidos por meio das questões que envolviam a Moradia, o Cotidiano e a Função do grupo social. Após o terremoto, a morada não era composta pela posse de um lugar. Foi constituída pela possibilidade de compartilhar um espaço qualquer com as pessoas queridas. Acostumou-se a dormir na rua, desde que não se estivesse sozinho. Assim, os primeiros meses seguidos ao evento demandaram dos sobreviventes uma reorganização externa, concreta, que contribuísse para uma reconstrução interna.

Zaiontz e Sarkar (2014)Zaiontz, C. A., & Sarkar, A. (2014). Cultural themes in post traumatic adjustment. Clinical Neuropsychiatry, 11(1), 20-31. Recuperado de http://www.clinicalneuropsychiatry.org/pdf/zaiontzweb.pdf
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lembram que, ao poder falar sobre o vivenciado com o grupo, nesse tipo de evento, cria-se a possibilidade de despersonalização da experiência individual, em detrimento de algo mais compartilhado. Os meios que a cultura oferta para lidar com o imprevisível são ativados, lembrados e sentidos no contato com os outros, no compartilhamento da experiência. Perceber que não se está sozinho retoma o fundamental frente à vida, à noção de amparo e proteção, rompidos pela experiência do evento.

Ainda que conscientemente não tenha sido relatada, a percepção dos participantes de que houve o aumento da solidariedade entre as pessoas faz emergir que a reconstrução não se inicia na solidão e que a vida aponta para o laço. Os rituais possíveis de acontecer – como as orações em grupo, a conversa, o compartilhamento de refeições – ofereceram importantes recursos de movimentação, de recomeço.

A exposição ao terremoto, portanto, foi caracterizada como a experiência de uma situação traumática pelas suas características e consequências, o que exigiu – e parece ainda exigir – rearranjos concretos e subjetivos. O sofrimento é inevitável, mas as vinculações certamente chamam a atenção e minimizam os efeitos negativos do ocorrido. Com a migração como um dos importantes desdobramentos dessa vivência, foi possível identificar também os fatores de risco e fatores de proteção, anteriores e posteriores à migração.

Fatores de risco

Enquanto uma forma de apresentação do mal-estar, o sofrimento psíquico pode variar no que concerne à intensidade e aos modos de manifestação. Seja como for, é afetado por diversas condições ou variáveis que, ao culminarem em efeitos agravantes do sofrimento, são compreendidos como fatores de risco, ou seja: os fatores de risco são condições ou variáveis que contribuem para o estado de vulnerabilidade do sujeito.

Podem-se apreender os fatores de risco que atuam sobre os haitianos imigrantes participantes, como demonstra a Quadro 3, por meio dos Acontecimentos pré-migratórios, dos Aspectos sociais no país de acolhimento e das Reminiscências do terremoto.

Quadro 3
Categoria: Fatores de risco.

A Exposição ao evento traumático – terremoto – e as Perdas decorrentes, tanto da própria situação quanto de seus desdobramentos – como as perdas inerentes a migração – foram os Acontecimentos pré-migratórios, que podem ser caracterizados como fatores de risco que contribuem ao sofrimento psíquico. Além de deixarem uma marca afetiva, por vezes difícil de nomear, aparecem como um risco à saúde mental que não se restringe às compreensões teóricas dominantes (ocidentais) concernentes ao trauma, mas também é percebida como perigosa pelos próprios haitianos. Vale pontuar que problemas relacionados à saúde mental são vistos como tabu, de maneira geral, na cultura haitiana (Pierre et al., 2010Pierre, A., Minn, P., Sterlin, C., Annoual, P. C., Jaimes, A., Raphaël, F. et al. (2010). Culture and mental health in Haiti: A literature review. Geneva: WHO. Recuperado em http://www.who.int/mental_health/emergencies/culture_mental_health_haiti_eng.pdf
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).

A vergonha, um dos sentimentos comumente relatados, reside tanto no risco de adoecimento, quanto na possibilidade de conviver com alguém que adoeça na alma, como alguns se referiam às questões subjetivas. Acrescida à dificuldade de se falar sobre questões ligadas a saúde mental fora do seio familiar, relatar sobre os sintomas decorrentes da exposição ao evento traumático torna-se tarefa difícil em outro lugar que não o país de origem, o que se apresenta como um entrave à elaboração por intermédio da fala; abre brecha – ou dificulta a cicatrização da brecha aberta, por outro lado – para outras vias de expressão do sofrimento, marcadas principalmente pelo isolamento decorrente da vergonha de se expor.

Como alguns estudos apontam, a morte de familiares e pessoas próximas, as perdas ligadas às ocupações e aos danos às residências na ocorrência de desastres naturais agravam os riscos relacionados ao sofrimento psíquico dos sobreviventes (Cova, & Rincón, 2010Cova, F., & Rincón, P. (2010). El terremoto y tsunami del 27-F y sus efectos em la salud mental. Terapia Psicológica, 28(2), 179-185. https://doi.org/10.4067/S0718-48082010000200006
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; Kohn et al., 2005Kohn, R., Levav, I., Donaire, I., Machuca, M., & Tamashiro, R. (2005). Psychological and psychopathological reactions in Honduras following Hurricane Mitch: Implications for service planning. Revista Panamericana de Salud Pública, 18(4/5), 287–95. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/766c/5cec1a1c8275542be82aff7e8a242538d996.pdf
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, Montazeri et al., 2005Montazeri, A., Baradaran, H., Omidvari, S., Azin, S. A., Ebadi, M., Garmaroudi, G. et al. (2005). Psychological distress among Bam earthquake survivors in Iran: A population-based study. BioMed Central Public Health, 5(4), 1-6. https://doi.org/10.1186/1471-2458-5-4
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). Além disso, sabe-se que a imigração involuntária representa risco à saúde mental também pela sua relação com os eventos pré-migratórios que forçaram a saída do país de origem (Martins-Borges, 2013Martins-Borges, L. (2013). Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 21(4)0, 151-162. https://doi.org/10.1590/S1980-85852013000100009
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).

A maneira como aqueles que chegam são recebidos no país de acolhimento também impactam suas vidas. Nesse sentido, os Aspectos sociais do país de acolhimento foram compreendidos pela Discriminação, os Problemas financeiros enfrentados e a Dificuldade de integração com brasileiros. De modo geral, esses aspectos podem ter consequências negativas ou positivas na integração, no bem-estar e na saúde mental dos imigrantes. Na situação estudada, uma dupla discriminação se apresenta: pela cor da pele e pelo status de estrangeiro. Ser estrangeiro marca a alteridade, faz lembrar a condição estrangeira de cada um de nós e, portanto, tombar a presunção de ser “um”, inteiro, sem limites e único (Souza, 1998Souza, N. S. (1998). O estrangeiro: nossa condição. In C. Koltai (Org.), O estrangeiro. São Paulo: Escuta.).

É como se a presença dessas pessoas, imigrantes e negras, fizesse retornar o passado sofrido de uma história silenciada, que incorporou as relações de poder dos tempos de colonização, sem nenhuma elaboração. Na impossibilidade de fazer diferente, repete. Para além das dificuldades com aprendizagem do idioma e dos trâmites burocráticos para fazer valer seus conhecimentos laborais, os participantes se veem diante de desafios econômicos que impactam muito suas vidas. Esses desafios não são dissociados do histórico de desigualdades no contexto brasileiro bem como das características que levam à discriminação.

Mesmo quando qualificados no país de origem, a maioria dos imigrantes haitianos, no Brasil, ocupam postos de trabalho pouco atrativos para os brasileiros. Isso se deve tanto à dificuldade e aos custos ligados à revalidação de documentos comprobatórios, quanto à vulnerabilidade e necessidade imediata de constituir alguma renda por parte dessas pessoas. Desamparadas em diversos âmbitos, aceitam propostas pouco atrativas para brasileiros, com o risco maior de não terem seus direitos laborais garantidos. Os baixos salários, decorrentes das atividades prestadas marcam a sensação de impotência no intento individual e coletivo, constantemente atravessados na cultura haitiana. São pessoas que trabalham muito e têm pouco tempo e recursos para o lazer.

Como resultado, observa-se a restrição no que se refere à circulação na cidade de residência e, consequentemente, a redução nas relações sociais que poderiam advir desses percursos. Assim, esses imigrantes restringem-se, de maneira geral, aos períodos de trabalho/estudo e de permanência em casa, tanto pela falta de tempo quanto de dinheiro. Esse aspecto dificulta a integração na cultura de acolhimento, o que certamente é envolto por outras características além dos recursos concretos.

Além disso, a perda do quadro cultural de referência e as exigências psíquicas que a migração demanda, ainda mais em determinadas condições migratórias, fazem com que decodificar a realidade se torne uma tarefa trabalhosa, o que impacta as relações (Betts, 2013Betts, J. (2013). Diferença cultural, sofrimentos da identidade e a clínica psicanalítica hoje. SIG Revista de Psicanálise, 2(1), 85-97. Recuperado de http://sig.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Num_2_EmPauta2.pdf
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; Martins-Borges, 2013Martins-Borges, L. (2013). Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 21(4)0, 151-162. https://doi.org/10.1590/S1980-85852013000100009
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). Principalmente no que concerne ao contato entre as pessoas, os implícitos da cultura ocupam lugar privilegiado. Assim, a dificuldade de integração com os brasileiros nativos também emergiu das narrativas como algo que opera na manutenção do isolamento dessas pessoas. Suas relações se restringem, de maneira geral, à convivência com conterrâneos ou outros imigrantes africanos.

A Tristeza e a Percepção de mudanças em si foram as formas encontradas pelos participantes para representar as Reminiscências do terremoto que atuaram como fator de risco. Manifestada por formas distintas – choro, evitação sobre o tema, silêncio – a tristeza foi o sentimento mais nomeado pelos participantes como aquilo que restou do terremoto em suas vidas. É caracterizado como fator de risco pela sua insistência, agravada pela migração, que mantém cenários de distâncias: da família, de hábitos, lugares. Todas as situações, desencadeadoras de tristezas por colocarem em contato com a perda.

Todos os fatores de risco identificados parecem remeter à fragilidade que os participantes percebem em si mesmos, o que acaba por falar da necessidade de uma rede social, atualmente atravessada pelas dificuldades impostas pela migração. Permeados pelas perdas, sentem, em alguns momentos, que perderam a capacidade e a possibilidade de estabelecer novos vínculos, visto que os efeitos das perdas cravam algo diferente em suas histórias.

Fatores de proteção

Abordar os fatores de proteção não significa compreender que a vulnerabilidade ou o risco são inexistentes em determinado momento e certas situações ao longo do ciclo de vida, mas direciona a atenção aos recursos que se têm e se criam para integrar os infortúnios à própria história com menos prejuízo (Schenker, & Minayo, 2005Schenker, M., & Minayo, M. C. S. (2005). Fatores de risco e de proteção para o uso de drogas na adolescência. Ciência e Saúde Coletiva, 10(3), 707-717. https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000300027
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).

Essa categoria foi compreendida a partir dos Vínculos, Manutenção do vínculo com a cultura de origem e Projetos futuros, por meio de suas respectivas unidades temáticas, como se pode observar na Quadro 4.

Quadro 4
Categoria: Fatores de proteção.

Os Vínculos foram compreendidos por meio do Contato com a família, Amigos e Religião, dado o caráter de ligação que cada uma dessas unidades temáticas indica. Primeiro e principal fator de proteção ligado aos vínculos, eis o contato com os familiares, seja lá onde eles estejam. Todos os participantes relataram contatos frequentes com aqueles que ficaram no Haiti, mas também com os membros da família que estão no Brasil, nos casos em que isso ocorre. Importante notar que a tecnologia possibilita a minimização de alguns efeitos da distância geográfica, facilitando a troca (Ainslie, Tummala-Narra, Harlem, Barbanel, & Ruth, 2013Ainslie, R. C., Tummala-Narra, P., Harlem, A., Barbanel, L., & Ruth, R. (2013). Contemporary psychoanalytic views on the experience of immigration. Psychoanalytic Psychology, 30(4): 663-679. https://doi.org/10.1037/a0034588
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).

Porém, a família não é o único dos elementos de compreensão dos vínculos como fator protetivo. A rede composta pelas pessoas que não possuem vínculos consanguíneos, mas estão próximas, cumpre uma função valorosa. Como substitutivos dos familiares os laços compostos pela amizade tecem uma rede fundamental. A dificuldade da continuidade de laços com brasileiros, discutido na categoria anterior, tem relação com o fato de esse tipo de laço ser estabelecido geralmente com conterrâneos e imigrantes de outras nacionalidades, principalmente africanos. No entanto, reflexões acerca da constituição do sujeito, sua socialização na cultura e os próprios impactos da migração apontam questões importantes nesse sentido.

Ao lembrar que é na relação com os outros que o sujeito se constitui e constrói modos de lidar com as adversidades, não se pode ignorar o atravessamento da cultura nesse processo. A identificação com os conterrâneos ou ainda aqueles que partilham de implícitos culturais semelhantes facilita o contato e remete ao lugar conhecido, familiar. Ora, se é no seio familiar que se inaugura também a noção de proteção, não surpreende a “nova família” que se compõe no encontro entre aqueles que partilham de elementos comuns, o que inclui um terremoto na história.

Há que se considerar que o manejo do sofrimento psíquico de eventos traumáticos em sociedades coletivistas, comparadas às organizações mais individualistas, é “melhor sucedido” pela relação com a crença (Bastos, 2008Bastos, C. L. (2008). Tempo e psicopatologia cultural das experiências traumáticas. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, 11(2), 195-207. https://doi.org/10.1590/S1415-47142008000200002
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). Ao remeter a Deus ou a elementos do destino aquilo de mal que lhes ocorre, ajuda a evitar a culpa e transmite para os rituais da religião as possibilidades de reparação – como pela oração, por exemplo. Diminui significativamente a sensação de solidão. Comparecer às missas ou cultos tira-os de casa e promove encontros, opera em direção à socialização, uma vez que nos espaços de exercício das práticas religiosas acabam por encontrar pessoas da comunidade, que não se restringem a imigrantes. Ao oferecer muito mais do que retirar, a religião cria ligações e assim protege.

A Manutenção do vínculo com a cultura de origem foi compreendida pelo Contato com os conterrâneos no idioma primário, com os Hábitos alimentares e a relação com a Música. A maioria desses imigrantes é rodeada por pessoas oriundas de sua terra. Isso permite que se comunique com frequência na língua primária, bem como não se deixe de lado elementos importantes que remetem à terra natal como os hábitos alimentares e a música. O contato com a cultura de origem disponibiliza modalidades de significação das experiências. Para o imigrante oferece componentes que auxiliam nas mudanças necessárias, sem abrir mão daquilo que se é.

Os Projetos futuros foram compreendidos pelos planos ligados ao Trabalho, à Família e a Outros deslocamentos geográficos. O fato de planos futuros estarem presentes nos discursos dos participantes indica o quanto algumas premissas básicas em relação à vida não foram atingidas pela exposição ao terremoto e à imigração. Isso significa que o movimento, cerne do circuito pulsional psíquico, segue presente em busca de realizações que possibilitem satisfação. Ao retomar ao fato de que a “escolha” do Brasil não se constituiu por projeções e desejos no país de acolhimento, mas, principalmente, pela oportunidade mais facilitada, os projetos futuros abrangem também o desejo de seguir no deslocamento.

A atividade frente à vontade de se deslocar abarca esperanças e idealização. Por indicar uma continuidade que não se encontra dissociada da realidade, uma vez que essas pessoas já migraram uma vez, os deslocamentos posteriores em busca de soluções não encontradas no Brasil caracterizam-se como fatores de proteção. Mesmo que não ocorram, a boa notícia reside no projeto, na possibilidade de poder se lançar no futuro mesmo após ter havido a experiência tão próxima de fim da vida. Afinal, fatores de proteção não eliminam os riscos, mas não paralisam o sujeito frente a estes.

Considerações finais

A palavra trauma, corrente no discurso ocidental leigo, é atribuída a eventos da vida com tamanha frequência que, por vezes, perde seu teor de demarcação de algo terrível, sendo posta como sinônimo de dificuldades um pouco mais intensas da vida cotidiana. Questionar-se em torno desse conceito diante de um evento catastrófico, como o terremoto de 2010, no Haiti, foi primeiramente uma tentativa de compreender, além do conceito, a experiência de um grupo de sobreviventes do terremoto.

A imigração não é, portanto, uma simples consequência do evento, uma vez que se concretizou no pós-desastre e foi motivada pelas circunstâncias deste, além de ser atravessada por características que a constituem como uma saída paradoxal frente ao impensável. Por um lado, é vista no contexto haitiano como uma possibilidade plausível quando as dificuldades se impõem, apoiada e sustentada pela rede familiar onde quer que ela esteja, o que a define como um projeto coletivo, mesmo que ocorra só. Vale pontuar que essa aposta na migração como uma saída – no sentido da alternativa – é engendrada na história marcada por eventos traumáticos e em um sistema econômico complexos. Não são meras escolhas dos migrantes. Ao optar pela dimensão involuntária da imigração, não se delimita apenas um conceito, mas foca-se nas consequências psíquicas que o atravessam.

A experiência do terremoto deixou marcas profundas nos sobreviventes, integrando-se como parte da história do Haiti, além de constituir a base de uma renúncia importante: a de habitar a terra natal. Isso não quer dizer que essas pessoas jamais migrariam; porém, as características desse processo são envoltas por particularidades quando ocorridas pós-desastre. Diferentemente das imposições advindas da violência de outro semelhante – outro humano, como na tortura, abusos sexuais, genocídios, as mortes de guerra –, esse desastre parece ter potencial menor de destruição de alguns recursos que colaboram para a elaboração. Como os participantes afirmaram, sentiram um aumento no senso fraternal, na solidariedade entre as pessoas. O terremoto não alterou a crença no valor e o cuidado que os outros podem proporcionar, fato este que parece contribuir de maneira significativa para lidar com seus efeitos.

Esse estudo oferece importantes elementos para considerar os aspectos psicológicos dos imigrantes haitianos, na perspectiva de suas próprias vozes. Assim, compreende um material útil para orientar discussões no âmbito das práticas de atenção à saúde, de assistência social e políticas públicas de acolhimento e de atenção integral, não somente dessa população específica, mas também dos imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil. Convoca, também, a Psicologia a se atentar e a desenvolver estudos ligados aos fenômenos psíquicos que interpõem as migrações, por meio da escuta e consideração aos aspectos referentes às diferenças culturais e seu papel na integração de eventos traumáticos.

Não sendo isento de limitações, esse estudo abarcou um número pequeno de participantes. Ainda que não tenha objetivado generalizações e prezado pelo rigor que orienta as pesquisas qualitativas, reconhece-se que escutar a realidade de um número maior de pessoas aumenta a gama de experiências significativas para refletir sobre a realidade dos imigrantes haitianos no Brasil. Espera-se que o estudo instigue e indique possibilidades de investigações futuras no âmbito dos fenômenos migratórios contemporâneos sob o olhar da Psicologia, principalmente no que concerne às migrações involuntárias.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2016
  • Aceito
    13 Out 2017
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