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Idealizações e Prescrições Psicanalíticas acerca da Maternidade em Chodorow: um Debate Atual

Idelizations and Psychoanalytical Prescriptions about Maternity in Chodorow: A Present Debate

Idealizaciones y Prescripciones Psicoanalíticas sobre la Maternidad en Chodorow: un Debate Actual

Resumo

O propósito deste trabalho é discutir os problemas da idealização da maternidade em teorias psicanalíticas. Adotamos o livro The Reproduction of Mothering como objeto para análise em função de sua repercussão histórica na psicanálise e no feminismo, bem como pela fundamentação teórica utilizada também em recentes estudos psicanalíticos sobre a maternidade. O estudo permitiu evidenciar que, mesmo partindo de uma perspectiva feminista, o livro analisado reproduz a idealização da maternidade, não considerando as ambivalências presentes no cuidado de crianças, nem a possibilidade de mulheres não terem desejo de maternar. A hipótese trabalhada é a de que a perspectiva psicanalítica que dá base para as formulações da autora facilita a prescrição sobre quem pode ou não exercer o cuidado e a reduzir a importância do universo social e desejante de quem cuida. A psicanálise de Jean Laplanche é apresentada como alternativa potencialmente mais aberta para a diversidade presente no cuidado de crianças. Pretendemos com este trabalho evidenciar a necessidade do contínuo debate entre psicanálise e perspectivas de crítica social, como o feminismo, bem como instigar a problematização dos pressupostos das teorias psicanalíticas que se propõe atualmente a discutir os temas da maternidade e do cuidado de crianças.

Maternidade; Feminismo; Psicanálise; Nancy Chodorow; Jean Laplanche

Abstract

The aim of this paper is to discuss the problems of maternity idealization present in psychoanalytical theories. We adopt the book The Reproduction of Mothering as analysis’ object because of its historical repercussion in psychoanalysis and feminism, as well as because of its theoretical reasoning also used in recent psychoanalytical studies about maternity. The paper allowed to show that, even starting from a feminist perspective, the analyzed book reproduces the idealization of maternity, not considering the ambivalences present in children care, not even the possibility of women not desiring to be mothers. The hypothesis worked through is that the psychoanalytical perspective that lays the foundation for the author’s formulations facilitates the prescription about who can or cannot exercise the care and to reduce the importance of the social and desiring universe of the person who cares. Jean Laplanche’s psychoanalysis is presented as a potentially more open alternative to diversity present in children care. We intend with this paper to show the necessity of continuous debate between psychoanalysis and social critic perspectives, as feminism, as well as to instigate the problematization of purposes of psychoanalytical theories that presently propose to discuss themes about maternity and children care.

Maternity; Feminism; Psychonalysis; Nancy Chodorow; Jean Laplanche

Resumen

El propósito de este trabajo es discutir los problemas de la idealización de la maternidad en teorías psicoanalíticas. Adoptamos el libro The Reproduction of Mothering como objeto para análisis en función de su repercusión histórica en el psicoanálisis y en el feminismo, así como por la fundamentación teórica utilizada también en recientes estudios psicoanalíticos sobre la maternidad. El estudio permitió evidenciar que, aunque partiendo de una perspectiva feminista, el libro analizado reproduce la idealización de la maternidad, no considerando las ambivalencias presentes en el cuidado infantil, ni la posibilidad de que mujeres no tengan deseo de maternizar. La hipótesis trabajada es la de que la perspectiva psicoanalítica que da base para las formulaciones de la autora facilita la prescripción sobre quien puede o no ejercer el cuidado y a reducir la importancia del universo social y deseante de quien cuida. El psicoanálisis de Jean Laplanche se presenta como alternativa potencialmente más abierta para la diversidad presente en el cuidado infantil. Pretendemos con este trabajo evidenciar la necesidad del continuo debate entre el psicoanálisis y las perspectivas de la crítica social, como el feminismo, así como instigar la problematización de los supuestos de las teorías psicoanalíticas que actualmente se proponen a discutir los temas de la maternidad y del cuidado infantil.

Maternidad; Feminismo; Psicoanálisis; Nancy Chodorow; Jean Laplanche

O advento da teoria das relações objetais trouxe consigo a abertura de novos campos de pesquisa para a psicanálise a partir da ênfase no mundo objetal para a compreensão do psiquismo. Essa perspectiva deslocou o foco do Édipo e da identificação com o pai para a importância das relações pré-edípicas e do vínculo mãe-bebê ( Benjamin, 1988Benjamin, J. (1988). The bonds of love: Psychoanalysis, feminism, and the problem of domination . New York: Pantheon. ; Reis, 2008Reis, A. R. G. (2008). Do segundo sexo à segunda onda: discursos feministas sobre a maternidade (Dissertação de mestrado). Recuperado de http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/handle/ri/6436
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). As atividades de cuidado das crianças surgem então como foco privilegiado para a constituição psíquica e o desenvolvimento infantil a partir da figura da mãe.

Essa perspectiva atraiu a atenção de teóricas feministas por possibilitar, a um só tempo, a crítica à centralidade da inveja do pênis e dos complexos de Édipo e de castração na perspectiva freudiana, além do empoderamento das mulheres por meio do reconhecimento da importância da maternação1 1 Optamos pela adoção do neologismo maternação, também utilizado pelos tradutores do livro The Reproduction of Mothering – Nancy Chodorow e de Torn in Two – Rozsika Parker, para designar o conjunto de tarefas de cuidado direcionadas aos bebês e às crianças, tarefas essas historicamente atribuídas por nossa sociedade às mães e às mulheres. A opção pelo neologismo embasou-se na pouca ênfase dada ao desempenho das tarefas de cuidado nas definições dos termos de que dispomos em português, a saber, maternidade e maternagem, em que o primeiro refere-se, genericamente, às qualidades ou condições da mãe e o segundo ao caráter afetivo da relação estabelecida com a mãe ou com a pessoa que a substitui ( Ferreira, 2009a , 2009b ). para o desenvolvimento das crianças (Doane, & Hodges, 1992). De acordo com Doane e Hodges (1992)Doane, J. L., Hodges, D. (1992). From Klein to Kristeva: Psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother . Michigan: The University of Michigan Press. , a teoria das relações objetais se tornou popular entre as feministas a partir dos trabalhos de Nancy Chodorow, socióloga e psicanalista norte-americana que dedicou parte de sua obra ao estabelecimento do diálogo entre psicanálise e feminismo.

Em seu livro The Reproduction of Mothering,Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. analisa as teorias de diferentes áreas do conhecimento, tais como, as ciências biológicas, as ciências sociais e as psicologias (com enfoque especial na psicanálise freudiana), no que diz respeito ao desenvolvimento da mulher e ao fenômeno da maternação. Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. aponta diversas limitações nessa literatura – contradições e lacunas explicativas – e propõe uma leitura baseada nas relações desenvolvidas nos primórdios da vida infantil. A autora identifica no período pré-edípico os principais elementos que proporcionariam a reprodução da maternação pelas mulheres.

A concepção desenvolvida por Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. se fundamenta nas relações de objeto e a aproxima de teóricos cujas descrições da maternação são objeto de muitas críticas. Gostaríamos de destacar aquelas relativas à criação e prescrição da “boa mãe” por meio de discursos estratégicos com vistas a delegar unicamente às mulheres a responsabilidade pelo cuidado das crianças ( Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistador: O mito do amor materno (6a ed., W. Dutra, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. ; Knibiehler, 2002Knibiehler, Y. (2002). Histoire des mères et de la maternité en occident (2a ed.). Paris: PUF. ). As palestras radiofônicas de Winnicott (1999)Winnicott, D. W. (1999). Conversando com os pais (2a ed., A. Cabral, trad.). São Paulo: Martins Fontes. – uma das referências que sustentam as teses de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. – são um exemplo notável do empenho desses autores em fazer seus preceitos sobre o cuidado alcançarem especificamente as mães. Nesse sentido, entendemos ser preciso realizar uma leitura crítica, atenta e cuidadosa das proposições fundamentadas em teóricos das relações de objeto, questionando: “Quais as noções de feminilidade esses autores sustentam? Quais as perspectivas sobre a maternidade eles endossam? O que é a maternidade ‘suficientemente boa’? ‘Suficientemente boa’ de acordo com quem? Como são estabelecidos e sustentados os padrões da adequação maternal?” (Doane, & Hodges, 1992, p. 1, tradução nossa)2 2 “ What notions of femininity do these writers sustain? What views of motherhood do they endorse? What is ‘good enough’ mothering? ‘Good enough’ according to whom? How are standards of maternal propriety established and sustained?” (Doane, & Hodges, 1992, p. 1). .

É por considerarmos as potencialidades da teoria das relações objetais e por entendermos a importância teórica, clínica e social do diálogo entre psicanálise e feminismo, que nos propomos a apresentar e analisar as formulações de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. acerca da maternidade e do cuidado com bebês em The Reproduction of Mothering . Nossa finalidade é localizar no trabalho da autora elementos e formulações que, ao se proporem a explicar a reprodução da maternação, possam vir a reforçar narrativas, funções e discursos que favoreçam a prescrição e a idealização da maternidade e do cuidado com os bebês.

Como base para as nossas reflexões utilizaremos a Teoria da Sedução Generalizada de Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes. , bem como o método por ele inaugurado, que consiste na utilização dos postulados psicanalíticos para a leitura da própria produção teórica em psicanálise privilegiando as ideias que evidenciem a primazia da alteridade na constituição psíquica ( Laplanche, 1988Laplanche, J. (1988). Interpretar (com) Freud. In J. Laplanche, Teoria da sedução generalizada e outros ensaios (D. Vasconselos, trad., pp.21-32). Porto Alegre: Artes Médicas. ). A discussão do livro de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. levará em consideração também os apontamentos realizados por outras autoras feministas, tais como Doane e Hodges (1992)Doane, J. L., Hodges, D. (1992). From Klein to Kristeva: Psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother . Michigan: The University of Michigan Press. e Parker (1997)Parker, R. (1997). A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade (A. X. Lima, & D. X. Lima, trad.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. .

A escolha de The Reproduction of Mothering como base de análise se justifica devido à ampla influência por ele exercida na produção teórica feminista acerca das temáticas da maternidade e da maternação ( Adelman, 2004Adelman, M. (2004). Para além dos discursos: o poder da afetividade [Resenha do livro The Power of Feelings: Personal Meaning in Psychoanalysis , de N. Chodorow]. Cadernos Pagu , (23), 389-397. https://doi.org/10.1590/S0104-83332004000200013
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; Doane, & Hodges, 1992)3 3 Para uma visão estruturada acerca da influência exercida por The Reproduction of Mothering (1978) na produção feminista norte-americana confira o segundo capítulo de From Klein to Kristeva: psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother (Doane, & Hodges, 1992). . Chegando a compartilhar referenciais teóricos com trabalhos psicanalíticos recentes (por exemplo: Rosa, 2014)Rosa, C. D. (Org.) (2014). E o pai? Uma abordagem winnicottiana . São Paulo: DWW. que se propuseram a investigar o papel dos cuidados fornecidos pelos pais, secundarizando-os frente àqueles fornecidos pela mãe.

Com relação à abordagem psicanalítica dessas temáticas, tal qual nos propomos a realizar, é preciso lembrar com Foucault (1976/1988)Foucault, M. (1988). História da sexualidade: A vontade de saber (M.T.C. Albuquerque, & J.A.G. Albuquerque, trads.). Rio de Janeiro: Graal. (Trabalho original publicado em 1976). que, não raro, a psicanálise serve como dispositivo produtor de discursos de verdade, capazes de exercer controle sobre os corpos. Prescrições sobre os cuidados de bebês podem recolocar discursivamente em movimento jogos de poder generificados. Desse modo, utilizar a pesquisa para incitar/produzir discursivamente maternidades que não sejam destino para as mulheres se configura como uma forma de subverter a psicanálise enquanto dispositivo normativo a partir da crítica feminista.

Nancy Chodorow e os teóricos das relações de objeto: críticas e apropriações

Na segunda parte de seu livro, intitulada “The Psychoanalytic Story”, Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. realiza uma longa revisão das teorias psicanalíticas acerca do desenvolvimento humano, com enfoque especial nas fases pré-edípica e edípica. Sua crítica dirigida à psicanálise tradicional, assim como o seu relato sobre o desenvolvimento humano, se apoia nas formulações dos teóricos das relações objetais, dentre os quais figuram: D. W. Winnicott, John Bowlby, Margareth Mahler, Alice e Michael Balint, Ronald Fairbairn, Therese Benedek, entre outros. Conforme nos explica Azeredo (1991)Azeredo, S. (1991). Psicanálise da maternidade: uma crítica de Freud a partir da mulher [Resenha do livro Psicanálise da maternidade: uma crítica de Freud a partir da mulher , de N. Chodorow]. Cadernos de Pesquisa , (79), 81-84. Recuperado de http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/1022/1029
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, “Chodorow... interessa-se em compreender ‘o eu relacional’, a forma como o ego se constrói na relação com a mãe” (p. 83).

Embora não descreva as atitudes dos cuidadores para com a criança a nível de tarefas, Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. aceita e defende algumas das formulações dos teóricos das relações objetais. Afirma, por exemplo, que um cuidado constante, de qualidade e isento de arbitrariedades seria essencial para o desenvolvimento saudável, bem como que o grande desajuste entre as necessidades do recém-nascido e o cuidado a ele proporcionado poderia implicar em consequências para seu processo de maturação. Nesse sentido, o amparo, o contato e o suporte emocional são considerados pela autora tão essenciais ao desenvolvimento saudável de uma criança quanto a atenção aos cuidados físicos.

Ainda que se aproprie de algumas das formulações dos teóricos das relações de objeto, a crítica realizada por Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. se torna visível através de movimentos como: a denúncia da extrapolação, feita por muitos psicanalistas, acerca das necessidades da criança, na qual a necessidade de um cuidado constante e de qualidade realizado por um número reduzido de pessoas pode ser transformada na suposição e defesa de que essas tarefas devam ser realizadas pela mãe biológica, de modo particular, ou pelas mulheres de modo geral; o combate à ideia de que pequenas falhas no cuidado acarretariam em consequências nefastas para o desenvolvimento do ego do bebê; e a ênfase dada a grande responsabilidade imputada às mulheres enquanto únicas cuidadoras primárias, responsáveis, a um só tempo, tanto pela existência física e mental de seus filhos quanto pela autoestima e sensação de desajuste que porventura eles venham a experimentar. Doane e Hodges (1992)Doane, J. L., Hodges, D. (1992). From Klein to Kristeva: Psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother . Michigan: The University of Michigan Press. não apenas concordam como ampliam essa crítica, afirmando que a ‘elevação’ das mães à posição de únicas cuidadoras as tornaram também as únicas responsáveis, e culpadas, pela origem dos filhos, da família e do estado.

Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. critica ainda a noção de boa maternação sustentada por alguns analistas e baseada numa capacidade de adaptação sensível às necessidades de apego e afastamento da criança, bem como na renúncia de si e dos interesses dissociados da maternidade. Nesse sentido, afirma que: “Analistas não consideram suas prescrições difíceis de serem cumpridas pela maioria das mães ‘normais’. Isto se deve à sua visão acerca da natureza especial das mães, da maternação, e das relações mãe-bebê”4 4 “ Analysts do not consider their prescriptions difficult for most ‘normal’ mothers to fulfill. This is because of their view of the special nature of mothers, mothering, and mother-infant relationships ” ( Chodorow, 1978, p , p. 85). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p.85, tradução nossa).

Teóricos como Winnicott e Bowlby desconsideram a assimetria existente entre os interesses da mãe e do bebê e atribuem o cuidado e atenção dedicados ao filho a um estado especial próprio das mulheres, originado por suas capacidades naturais para o estabelecimento da identificação primária. Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. critica as explicações naturalizantes desses autores, mas, como evidenciaremos, também se afasta da dimensão do desejo e dos conflitos implicados nas atividades de cuidado. Freud (1905/1989)Freud, S. (1989). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In J. Strachey (Org.), Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. Ribeiro, trad., v. 7, pp.119-231). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905). já alertava para o fato de que o desejo humano, originado da pulsão sexual, não teria nem objeto nem alvo fixos; e reconhecer que o cuidado de crianças, assim como todas as ações humanas, pertence ao campo de desejo significa, em última instância, perder as garantias de que a maternação é um objeto fixo e estável para as mulheres. Deixa-se de se ter por certo que elas irão/deverão maternar ou o fazer, sempre, com amor e dedicação. A nosso ver, tais possibilidades são disruptivas demais para serem encaradas sem alguma resistência no interior dos discursos tradicionais sobre maternidade e gênero.

Embasando-se em considerações menos normativas dos teóricos das relações de objeto – tais como a que associa o bom desempenho das tarefas à capacidade de regredir a sentimentos e estados infantis, sem deixar de ser adulto, ou ainda ao fato de ter sido cuidado e estabelecido um bom relacionamento primário nas origens –, Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. questiona: se a capacidade para o cuidado deriva, tanto em homens quanto em mulheres, da experiência de terem sido cuidados um dia, o que justifica o fato de apenas ou majoritariamente as mulheres exercerem a maternação? É na tentativa de responder a essa pergunta que Chodorow irá desenvolver sua teoria.

Nancy Chodorow e a reprodução da maternação

Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. se propõe a esclarecer os mecanismos responsáveis pelo fenômeno da reprodução da maternação por mulheres nas sociedades ocidentais. Sua teoria remonta ao período pré-edípico, localizando nele as principais bases para essa reprodução. Para a autora, o fato de mulheres ainda hoje se configurarem como as principais cuidadoras primárias dos bebês traria profundas consequências para a constituição de meninos e meninas, uma vez que, tanto a intensidade quanto a duração da identificação primária, isto é, a identificação que a mãe estabelece com seu bebê, estariam sujeitas a importantes variações a depender do sexo-gênero da criança.

O sexo biológico dos bebês, bem como sua vinculação pelos adultos quase imediatamente a uma identidade de gênero5 5 É importante ressaltar que, em sua obra, Chodorow não fornece detalhes de como se dá o processo de identificação primária. Considerando-se a obra como um todo, bem como as bases teóricas utilizadas pela autora na construção de sua perspectiva, optamos pela interpretação de que é o olhar e as fantasias do adulto que, a um só tempo, generificam a criança e determinam o prolongamento ou ruptura da identificação primária. , desempenham na teoria de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. um papel essencial. Funcionam como uma espécie de obstáculo ao prolongamento da identificação entre a mãe e seu filho – que essa muito rapidamente enxergaria como alguém diferente dela – e como facilitador da manutenção e prolongamento da identificação com as meninas – que seriam mais facilmente tomadas pela mãe enquanto extensões de si mesma.

Para a autora, as meninas tenderiam a experienciar a si mesmas como estando em continuidade com os outros, como sendo mais flexíveis e possuindo fronteiras egoicas mais permeáveis por reterem a ligação pré-edípica com suas mães por um tempo prolongado (e mesmo indefinido). Enquanto os meninos, devido à necessidade de rompimento precoce da ligação pré-edípica com as mães, tenderiam a possuir fronteiras egoicas mais rígidas e a definirem a si mesmos como separados e distintos dos outros. Assim, as diferenças observadas no pré-édipo de meninos e meninas maternados por mulheres exerceriam influência não apenas nas fases subsequentes do desenvolvimento, como também na constituição de suas personalidades. A título de ilustração, a autora afirma que, por terem sido cuidadas por uma pessoa do mesmo gênero,

meninas emergem desse período com uma base para a “empatia” construída dentro da sua definição primária de self de uma maneira que os meninos não constroem. Meninas emergem com uma base mais forte para experienciar as necessidades ou sentimentos dos outros como pertencentes a si mesmas6 6 “ Girls emerge from this period with a basis for ‘empathy’ built into their primary definition of self in a way that boys do not. Girls emerge with a stronger basis for experiencing another’s needs or feelings as one’s own ” ( Chodorow, 1978, p , p. 167). (Chodorow, 1987, p.167, tradução nossa).

A autora nos lembra que, por terem a mãe enquanto objeto primário, a entrada dos meninos no édipo não implicaria em uma mudança de objeto, enquanto a das meninas sim. A construção da identidade de gênero e escolha de objeto se baseiam na norma heterossexual contida no modelo edípico tradicional. No entanto, ao contrário do postulado por Freud, a autora afirma que a entrada das meninas no Édipo não implicaria no abandono da relação primária com a mãe em favor do estabelecimento de uma relação com o pai, mas sim na construção de uma nova relação, uma relação triangular, na qual figurariam pai-mãe-filha. Devido ao fato de nunca abandonarem ou deixarem de se haver com as questões suscitadas pela ligação inicial com a mãe, “durante seu desenvolvimento, meninas veem a definir e experienciar a si mesmas em continuidade com os outros... O senso básico de self feminino é conectado com o mundo, enquanto o masculino é separado dele”7 7 “ Growing girls come to define and experience themselves as continuous with others... The basic feminine sense of self is connected to the world, the basic masculine sense of self is separate ” ( Chodorow, 1978, p , p. 169). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 169, tradução nossa).

Para Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , um dos resultados das vivências pré-edípicas e edípicas será a aquisição, pelas meninas, de um mundo objetal interno mais rico do que o dos meninos. Por terem se definido em relação nos períodos iniciais do desenvolvimento, elas teriam não apenas mais capacidades como também mais necessidades relacionais, de intimidade e afeto. Enquanto os meninos teriam suas capacidades e necessidades emocionais diminuídas e suprimidas.

Nesse cenário delineado pela autora, os relacionamentos heterossexuais seriam permeados por contradições e desencontros, uma vez que, as mulheres tenderiam a direcionar aos homens demandas relacionais, de afeto e intimidade que estes não seriam capazes de responder de forma satisfatória.

Nesse sentido, a autora entende que a vida adulta das mulheres no interior das famílias é repleta de insatisfações. Além da incompatibilidade entre as necessidades de homens e mulheres, destaca também o contato dificultado das mulheres com amigas e parentes femininos próximos em função do isolamento da família nuclear e os tabus erigidos contra a escolha homossexual de objeto. Tal configuração culmina no desejo das mulheres por um filho como forma de reestabelecer o relacionamento primário com a mãe e completar seu triângulo relacional. Nas palavras da autora,

a nível de estrutura psíquica, então, uma criança completa o triângulo relacional para uma mulher. Ter uma criança, e experienciar sua relação com um homem... permite que a mulher volte a impor sua estrutura relacional intrapsíquica sobre o mundo social8 8 “ On the level of psychic structure, then, a child complete the relational triangle for a woman. Having a child, and experiencing her relation to a men... enables her to reimpose intrapsychic relational structure on the social world ” ( Chodorow, 1978, p , p. 201). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 201, tradução nossa).

Se por um lado o desejo por uma criança completa a estrutura psíquica da mulher, por outro ele consuma o ciclo de reprodução da maternação a partir do momento em que essa mulher assume a totalidade das tarefas de cuidado para com seu filho.

O rompimento possível com essa reprodução é apresentado pela autora em seu posfácio. De acordo com Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , a divisão das tarefas de cuidado com os homens possibilitaria o enfraquecimento da imagem da mulher como única e principal responsável pelo cuidado com as crianças, o que, por sua vez, contribuiria para a superação da divisão sexual do trabalho e da desigualdade de gênero. A divisão das tarefas possibilitaria ainda que as meninas não enfrentassem tantas dificuldades para o estabelecimento de sua individuação, e que os meninos possuíssem um modelo real, com toda a sua complexidade, com o qual se identificar, afastando-os da identificação com um ideal masculino e da construção de uma masculinidade reativa, calcada na negação das ditas características femininas. Em outras palavras, a presença dos homens nas tarefas de cuidado auxiliaria na construção de identidades de gênero nas quais o masculino deixaria de ser entendido em termos de não feminino. De acordo com Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , a “conexão pessoal e identificação com ambos os membros do casal parental permitiria que uma pessoa escolhesse aquelas atividades que ela ou ele desejassem sem sentir que essas escolhas colocariam em perigo sua identidade de gênero” (p. 218, tradução nossa9 9 “ Personal connection to and identification with both parents would enable a person to choose those activities she or he desired, without feeling that such choices jeopardized their gender identity ” ( Chodorow, 1978, p , p. 218). ).

Certamente, a divisão das tarefas de cuidado e os possíveis benefícios dela decorrentes são altamente desejáveis para as reconfigurações das hierarquias de gênero. No entanto, algumas ressalvas são necessárias. Embora de suma importância, a divisão das tarefas de cuidado das crianças se configura apenas como um dos vários passos para o alcance/implementação desses objetivos que a autora tem em vista. É nessa mesma direção que, ao ter sua perspectiva teórica acusada de a-histórica, argumenta que, embora o sistema sexo-gênero esteja sofrendo alterações,

ele ainda permanece o mesmo em aspectos fundamentais. Não nos é de grande valia negar as raízes sociais e psicológicas da maternação das mulheres nem a extensão da nossa participação, muitas vezes a despeito de nossas intenções conscientes, nos arranjos contemporâneos do sistema sexo-gênero10 10 “ Yet it stays the same in fundamental ways. It does not help us to deny the social and psychological rootedness of women’s mothering nor the extent to which we participate, often in spite of our conscious intentions, in contemporary sex-gender arrangements ” ( Chodorow, 1978, p , p. 215). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 215, tradução nossa).

Tal como a autora tentou demonstrar em sua teorização sobre a reprodução da maternação, ser criado em uma cultura específica com suas normas, ideais e imperativos implica em um sem número de consequências psíquicas conscientes e inconscientes, sendo ainda necessário levar em consideração as infinitas variações que estarão presentes na história libidinal de cada sujeito. Nesse sentido, parece-nos por demais apressado afirmar que o fato de homens e mulheres exercerem tarefas de cuidado de forma conjunta garantiria que as crianças pudessem escolher livremente com quem se identificar ou desempenhar quais atividades mais lhe agradassem. Essa perspectiva, embora aponte para a descentralização do cuidado exercido por mulheres, acaba por reduzir o caráter ativo do adulto, consciente e inconsciente, na formação do psiquismo infantil, bem como o atravessamento da cultura nos processos identificatórios.

O ciclo da reprodução da maternação revela ainda uma rigidez da construção das habilidades de cuidado:

A maior extensão e a natureza diferente da experiência pré-edípica, bem como a continuação da preocupação com questões desse período significam que o senso de self das mulheres é contínuo com o dos outros e que elas preservam as capacidades para a identificação primária, ambas as quais permitem que as mulheres experimentem a empatia e a falta de senso de realidade necessária para cuidar de uma criança. Nos homens, essas qualidades foram reduzidas, tanto porque eles são tratados como um oposto por sua mãe quanto porque, mais tarde, seu apego a ela tem de ser reprimido. A base relacional para a maternação é, assim, estendida nas mulheres, e inibida nos homens, os quais experimentam a si mesmos como mais separados e distintos dos outros11 11 “ The greater length and different nature of their preoedipal experience, and their continuing preoccupation with issues of this period, mean that women’s sense of self is continuous with others and that they retain capacities for primary identification, both of which enable them to experience the empathy and lack of reality sense needed by a cared-for infant. In men, these qualities have been curtailed, both because they are treated as an opposite by their mother and because their later attachment to her must be repressed. The relational basis for mothering is thus extended in women, and inhibited in men, who experience themselves as more separate and distinct from others ” ( Chodorow, 1978, p , p. 207). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 207, tradução nossa).

Cabe destacar o caráter conflitivo que a proposta da autora para o rompimento do ciclo de reprodução da maternação assume quando comparada com as demais construções teóricas apresentadas ao longo do livro. Ora, se, de acordo com Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , os homens contemporâneos, em sua maioria maternados por mulheres, não teriam desenvolvido essas habilidades, e se, ainda de acordo com a autora, essas habilidades seriam essenciais para o cuidado com as crianças, como então a sua proposta para romper com a reprodução da maternação poderia ser implementada? Em outras palavras, como pessoas tão desprovidas de atributos essenciais ao cuidado com o outro conseguiriam exercê-lo de forma minimamente satisfatória? Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. não explica como a implementação de sua proposta seria possível, o que nos leva a desconfiar da existência de problemas estruturais em sua teoria.

Entendemos que a contradição acima apontada decorre da tentativa de condicionar o surgimento das habilidades para o cuidado aos laços desenvolvidos no pré-édipo, mais especificamente, à relação estabelecida com a cuidadora primária, desconsiderando assim uma série de fatores essenciais para o desenvolvimento dessas habilidades, tais como o desejo, a possibilidade de identificação com outros sujeitos, situações de vida que propiciem a experiência de cuidado ou ainda o esforço de aprendizado. Desconsiderando-se ainda, toda a complexidade e singularidade daqueles que cuidam dos bebês. Na escrita da autora, o mundo adulto é visto apenas como “mulher” ou “homem”, ambiente de cuidado estável ou não, mais ou menos empático, a depender do sexo da criança. Subtrai-se dos adultos os demais elementos que marcam seus posicionamentos nos discursos sociais e todo o conteúdo fantasístico que necessariamente possuem.

Essa perspectiva sobre o ambiente de cuidado é condizente com o referencial teórico que dá base à Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. . De modo similar, boa parte da teoria da maturação de Winnicott pressupõe um bebê que já possui todos os ingredientes para se desenvolver e que necessita apenas das condições propícias para isso. A comparação que o autor faz entre o bebê e um bulbo de narciso ( Winnicott, 1957/1982Winnicott, D. W. (1982). O bebê como organização em marcha. In D. W. Winnicott. A criança e o seu mundo (6a ed., A. Cabral, trad., pp. 23-30). Rio de Janeiro: LTC. (Trabalho original publicado em 1957). ) é precisa em evidenciar que o cuidado provido pelo mundo adulto – assim como a umidade, a temperatura e o substrato para as plantas – funciona como circunstância mais ou menos adequada para as necessidades do amadurecimento.

No entanto, Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. fornece aberturas para vislumbrarmos aspectos importantes de incidência dos conteúdos psíquicos e sociais dos adultos na formação das identificações das crianças. Podemos perguntar: é a criança quem percebe uma adequação ou inadequação de gênero diante da mãe ou é essa que de alguma forma lhe informa uma igualdade ou diferença entre ambos? Segundo a autora, mães tratam filhos meninos “como um oposto” de si mesmas. A sutil pressuposição de que as expectativas dos adultos afetam o desenvolvimento das crianças abre espaço para problematizarmos as interferências desejantes, políticas e sociais que se impõem nessa relação, conscientes ou não. A oposição dada como certa na relação mãe-filho vem a ser um dentre inúmeros atravessamentos identificatórios possíveis na situação de cuidado infantil. Parece-nos haver aqui um componente importante para a formação das identidades de gênero e para a complexificação da maneira como as habilidades de cuidado são formadas.

Outro ponto importante de crítica à teoria desenvolvida pela autora diz respeito ao desenvolvimento da mulher e às características comumente a elas atribuídas. Segundo Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , seu livro “esclarece noções psicanalíticas convencionais sobre o psiquismo das mulheres, cujas descrições tradicionais explicam em termos de fatores constitucionais ou anatômicos como passividade e espaço interno”12 12 “ Explains conventional psychoanalytic notions about women’s psyche, which tradicional accounts explain in terms of constitutional or anatomic factors like passivity and inner space ” ( Chodorow, 1978, p , p. 168). (p. 168, tradução nossa). Para ela, seu enfoque fornece novas explicações para a propensão à identificação, a percepção e a intuição íntimas, para a subjetividade e a vida fantasiosa mais forte e, até mesmo, para um superego menos rígido e punitivo ou “um superego mais aberto à persuasão e ao julgamento dos outros”13 13 “ A superego more open to persuasion and the judgments of others ” ( Chodorow, 1978, p , p. 169). (p. 169, tradução nossa) supostamente encontrado nas mulheres.

Dissociar esses aspectos, que podem sim estar presentes em algumas mulheres, de fatores constitucionais ou anatômicos sem dúvida se configura como um avanço. No entanto, ao localizar o desenvolvimento dessas características, e apenas delas , no pré-édipo sem realizar ressalvas ou se preocupar em investigar o desenvolvimento de características diferentes daquelas generalizadas pela cultura como intrinsecamente femininas, Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. termina por reforçar as idealizações e os estereótipos femininos. Ao afirmar que características complexas, tais como empatia, sensibilidade às necessidades dos outros, constituição do si mesmo em relação, entre outras, derivam necessariamente da relação estabelecida com a cuidadora primária, em especial, a partir de seu gênero, Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. realiza uma generalização que engessa sua teoria e dificulta sua aplicação prática na medida em que deixa pouco espaço para as particularidades das histórias libidinais dos sujeitos, e para o consequente reconhecimento da capacidade empática de um homem ou da dificuldade de perceber as necessidades dos outros em uma mulher, por exemplo. Cabe ressaltar ainda que novamente o cuidado é idealizado a partir de tarefas que envolvem empatia e outras sensibilidades, desconsiderando toda a gama de atividades que dizem respeito aos limites, normas, horários, rotinas etc.

Outro ponto passível de questionamento diz respeito aos desejos situados pela autora no interior dos relacionamentos heterossexuais. A dinâmica que caracteriza esses relacionamentos deriva, em grande medida, da maneira distinta com que homens e mulheres se desenvolvem, como já descrevemos, sendo por isso marcada por uma incompatibilidade essencial e por insatisfações. Seriam os relacionamentos heterossexuais assim tão insatisfatórios e fadados ao fracasso? Seriam os homens heterossexuais tão incapazes de se envolverem afetivamente e satisfazerem as necessidades emocionais de suas parceiras? Essas parceiras são mesmo sempre tão ávidas por envolvimento emocional? A estereotipia é flagrante e se ancora em uma demarcação quase essencialista das diferenças de gênero.

Na mesma direção, ao associar o desejo das mulheres em serem mães a uma forma de suprir suas necessidades emocionais, advindas da conservação do vínculo pré-edípico durante seu desenvolvimento e incapazes de encontrar satisfação adequada nos relacionamentos heterossexuais, a autora termina por recusar a ideia de que, o desejo pelo o que quer que seja é uma construção particular e contingente, que só pode ser significada a partir das vicissitudes dos arranjos pulsionais e da história libidinal de cada um.

Assim como aponta Reis (2008)Reis, A. R. G. (2008). Do segundo sexo à segunda onda: discursos feministas sobre a maternidade (Dissertação de mestrado). Recuperado de http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/handle/ri/6436
http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/h...
, Chodorow apresenta ainda uma visão bastante positiva da vivência subjetiva das mulheres na maternação, como é possível observar no seguinte trecho:

Eu tento fornecer uma explicação teórica do que tem sido uma verdade inquestionável – que as mulheres tiveram a responsabilidade primária pelo cuidado com as crianças... que as mulheres de modo geral querem ser mães e obtém satisfação por maternarem; e finalmente, que, com todos os conflitos e contradições, mulheres têm sucesso maternando14 14 “ I attempt to provide a theoretical account of what has unquestionably been true – that women have had primary responsibility for child care... that women by and large want to mother, and get gratification from their mothering; and finally, that, with all the conflicts and contradictions, women have succeed at mothering ” ( Chodorow, 1978, p , p. 7). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 7, tradução nossa).

Tal afirmação abre espaço para o reforço à estigmatização das mulheres que não desejam ser mães ou que não possuem uma visão tão positiva acerca dessas vivências; limita também o entendimento das ambivalências vivenciadas mesmo pelas mães que sentem a maternação como um sucesso para si mesmas. Essa postura de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. conflita com a crítica que ela mesma faz a analistas como Winnicott por defenderem que, ao maternarem, as mulheres ganhariam um nível de satisfação e vivenciariam uma experiência que não poderia ser obtida por meio de outros relacionamentos humanos.

A forma como o texto de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. é estruturado e apresentado aos leitores configura-se como outro ponto digno de nota. Em The Reproduction of Mothering , Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. se propõe a investigar e apresentar os mecanismos psíquicos envolvidos na reprodução da maternação pelas mulheres, e o faz. No entanto, apenas nos últimos capítulos a autora aponta para a possibilidade de flexibilização dos esquemas que descreve, afirmando que “em uma sociedade onde as mulheres fazem trabalho produtivo significativo, têm companhia adulta contínua enquanto cuidam das crianças, e têm relações emocionais satisfatórias com outros adultos, elas são menos propensas a superinvestir nos filhos”15 15 “ In a society where women do meaningful productive work, have ongoing adult companionship while they are parenting, and have satisfying emotional relationships with other adults, they are less likely to overinvest in children ” ( Chodorow, 1978, p , p. 212). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 212, tradução nossa), ou ainda, concordando que a ênfase nas diferenças de gênero pode terminar por encobrir diferenças importantes dentro dos gêneros, bem como a existência de semelhanças entre os gêneros.

Assim, ao se manter focada na descrição de como se dá a reprodução da maternação, a autora relega ao segundo plano o caráter de construção dos modos de vida por ela descritos, contribuindo com a interpretação de que sua teoria não se abre para a possibilidade de mudança.

O apagamento do sexual fomentando um discurso prescritivo e idealizado acerca do cuidado de bebês

Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. reconhece a influência de aspectos inconscientes na vida cotidiana, a existência de fantasias e conflitos internos, bem como a possibilidade de reabertura de situações da infância na vida adulta como, por exemplo, durante o desempenho de tarefas de cuidado. Sobre esse ponto afirma que “em cada período crítico do desenvolvimento das crianças, os próprios conflitos e experiências desse período de desenvolvimento vivenciado pelos cuidadores afetam suas atitudes e comportamento”16 16 “ In each critical period of their child’s development, the parent’s own development conflicts and experiences of that period affect their attitudes and behavior ” ( Chodorow, 1978, p , p. 204). ( Chodorow, 1978Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 204, tradução nossa). Embora assinale a existência dessa dimensão inconsciente dos adultos, esses elementos parecem sofrer uma espécie de apagamento durante a formulação dos aspectos centrais de sua teoria.

Como argumentamos até aqui, o embasamento de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. na teoria das relações de objeto acarreta repercussões problemáticas para a sustentação de sua teoria da reprodução da maternação, bem como de sua alternativa transformadora pela divisão dos cuidados das crianças entre homens e mulheres. O principal comprometimento que procuramos assinalar é a ausência de uma consideração mais aprofundada sobre a presença de elementos sociais e psíquicos do mundo adulto, dos cuidadores, no desenvolvimento das crianças. A respeito desses elementos, as vertentes psicanalíticas que baseiam a formação do psiquismo em conceitos como trauma, recalcamento originário, sexualidade infantil, dentre outros, fornecem contrapesos produtivos para a perspectiva da autora.

De acordo com Laplanche (1992Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes. /1998), o que estaria em questão quando do nascimento de uma criança, é o confronto desta com um adulto e, por extensão, com o mundo adulto – arranjo denominado situação antropológica fundamental. Esse cenário, caracterizado pelo estado de desajuda da criança, isto é, pela sua incapacidade de alcançar por si mesma os meios para garantir sua sobrevivência, a coloca na dependência de um cuidador que fornece a ela aportes as suas necessidades físicas e emocionais. A assimetria inerente a essa cena é outro aspecto que merece atenção: de um lado temos a criança, sem ego formado e completamente passiva, por não ter constituído ainda meios de defesa físicos e psíquicos adequados a tudo aquilo que vem do outro e dos cuidados por ele fornecidos; do outro lado temos o adulto com um psiquismo muito mais rico e estruturado do que o da criança, um adulto que “contempla a criança a partir de suas fantasias conscientes e/ou inconscientes” ( Belo, & Marzagão, 2011Belo, F. R. R., Marzagão, L. (2011). Sobre o amor. In F.R.R. Belo (Org.), Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo (pp.9-34). Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa. , p. 15). Assim, as tarefas de cuidado realizadas pelo adulto envolvem necessariamente o endereçamento de expectativas, desejos, nomeações etc., uma vez que não é possível se desfazer de sua dimensão inconsciente, de seu outro interno, nem de sua construção egoica a partir de elementos socialmente compartilhados – em maior ou menor grau.

Criar um bebê consiste em uma experiência diferenciada e pode gerar diversos efeitos no adulto. Para Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes. , o estado de desajuda da criança e sua necessidade de cuidados promovem no adulto a reabertura de sua situação originária: os cuidadores se veem confrontados por toda a gama de experiências por eles vivenciadas enquanto bebês, bem como por todo o espectro de fantasias construídas a partir dessas vivências. A situação de cuidado pode abarcar desde uma intensa identificação narcísica, fornecendo os cuidados dignos de sua majestade, o bebê, até a estranheza, a frustração e a impotência frente ao pequeno ser passivo e extremamente demandante. Certamente as sobreposições e flutuações entre esses dois extremos são o mais comum.

A assimetria inerente à cena de cuidado intensificada pela reabertura da situação originária do adulto e pela convocação de sua dimensão inconsciente, isto é, de seu outro interno, farão com que as mensagens verbais e não verbais transmitidas à criança durante o desempenho das tarefas de cuidado sejam enigmáticas. Mensagens que se encontram amalgamadas, imiscuídas e atravessadas pelo sexual infantil presente no adulto, em sua dimensão inconsciente. Para a perspectiva laplancheana,

a Sedução Generalizada poderia ser resumida como a impossibilidade de que o ser humano, em seus primórdios, não seja inoculado com uma série de elementos sexuais provenientes do outro. A sedução é generalizada justamente porque ninguém sabe que está seduzindo; o caráter generalizado da sedução advém da incapacidade do outro, adulto, de ter controle sobre a alteridade que age nele ( Ribeiro, 2006Ribeiro, P. C. (2006). O analista como guardião do enigma: a visão de Jean Laplanche. In A. C. Carvalho, & C. P. França (Orgs.), Estilos do xadrez psicanalítico: A técnica em questão (pp.51-64). Rio de Janeiro: Imago. , p. 54).

O cuidado praticado pelo adulto será responsável tanto pela proposição das mensagens enigmáticas à criança quanto pelo fornecimento de condições para que, aos poucos, ela se torne capaz de traduzi-las e metabolizá-las ( Bleichmar, 1994Bleichmar, S. (1994). A fundação do inconsciente: Destinos de pulsão, destinos do sujeito . (K. B. Behr, trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. ). Embora a qualidade do cuidado oferecido se encontre diretamente relacionada à capacidade de realizar traduções melhores ou piores, é importante ressaltar que, por estarem comprometidas com a dimensão inconsciente do adulto, com sua alteridade interna, as traduções, por melhores que possam ser, sempre deixarão um resto, impossível de ser traduzido ou metabolizado. Durante o desenvolvimento do bebê, uma tensão irá se formar entre as partes das mensagens que puderam ser traduzidas e integradas em um todo mais ou menos coerente e as partes que resistiram à tradução. O resultado desse longo processo será a cisão radical entre esses dois polos, denominado recalcamento originário. Cria-se a instância egoica, formada pelas mensagens que puderam ser traduzidas, e também o inconsciente, a partir dos restos não traduzidos dessas mensagens. Conforme nos explica Laplanche (1998)Laplanche, J. (1998). Objetivos do processo psicanalítico (P. H. B. Rondon, trad.). Cadernos de Psicanálise , 14 (17), 78-101. (Trabalho original publicado em 1992). , por meio do recalcamento originário a alteridade psíquica ( der Andere ), inicialmente caracterizada pela relação com o cuidador, muda radicalmente de lugar, “uma vez que o sistema psíquico se fecha sobre si mesmo, com a constituição do ego como instância, a alteridade tornou-se interna: o id tornou-se das Andere , o outro por excelência, porém um outro interno” (p. 91).

Entendemos que os cuidadores sempre serão assombrados pelo pulsional e, por extensão, pelo conflito de interesses, desejos e sentimentos durante o desempenho de suas tarefas. A ausência dos aspectos conflitivos na compreensão do cuidado de crianças é o que encaminha as descrições teóricas para a idealização dessa função. Nossa hipótese aqui é a de que, ao relegar ao segundo plano a dimensão inconsciente, a sexualidade infantil perversa e polimorfa, bem como o caráter intrinsecamente desviante da pulsão, postulados por Freud (1905/1989)Freud, S. (1989). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In J. Strachey (Org.), Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. Ribeiro, trad., v. 7, pp.119-231). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905). , se torna mais fácil acreditar em prescrições rígidas acerca das tarefas de cuidado. Prescindir da desvinculação essencial da pulsão a objetos específicos tem como efeito o estabelecimento de expectativas quanto aos destinos que o psiquismo deve ter.

Podemos notar como isso ocorre em Winnicott (1958/2000)Winnicott, D. W. (2000). Preocupação materna primária. In D.W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise (D. Bogomoletz, trad., pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958). a partir de sua noção de ego maduro. A maturidade comporta uma relação positiva e harmônica entre ego e pulsão, esta entendida dentro do quadro conceitual do autor. Apenas na imaturidade egoica a vida pulsional é capaz de fazer frente, entrar em confronto e até mesmo estraçalhar o ego. A normatividade presente nessa teoria desenvolvimentista carrega consigo a ideia de que conflitos psíquicos fogem ao esperado em adultos.

Reconhecemos assim o discurso tradicional de gênero no interior da teoria de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , já que, não há espaço para que o desenvolvimento das mulheres abarque o desejo de não cuidar e as ambivalências presentes no cuidado. Repete-se através da psicanálise que um grupo específico de pessoas, as mulheres, possuem propensão para o cuidado. Como ocorre nas teorias que preveem quais são/devem ser os fins do desenvolvimento humano, as variações da regra de que mulheres cuidam correm o risco de serem patologizadas. O apagamento teórico da origem pulsional do sujeito é diretamente proporcional à formulação de destinos maturacionais.

Considerações sobre psicanálise e o cuidado de crianças

Como bem nos lembra Parker (1997)Parker, R. (1997). A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade (A. X. Lima, & D. X. Lima, trad.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. , em seu livro dedicado à experiência da ambivalência na maternidade, não existe uma experiência única de ser mãe, uma vez que as mulheres possuem histórias diferentes e vivenciam essa experiência a partir de contextos sociais, econômicos e étnicos distintos. É nesse sentido que compreendemos a importância do acolhimento tanto da crítica que Chodorow e Contratto (1992)Chodorow, N., Contratto, S. (1992). The fantasy of the perfect mother. In B. Thorne, & M. Yalom (Org.), Rethinking the family: Some feminist questions (pp.191-214). Boston: Northeastern University Press. dirigiram a forma como algumas teóricas feministas vinham desejando discutir as tarefas de cuidado, afirmando que “uma teoria sobre a maternação requer uma teoria sobre a infância, assim como sobre o desenvolvimento infantil” (p. 209, tradução nossa17 17 “ A theory of mothering requires a theory of childhood and child development as well ” (Chodorow, & Contratto, 1992, p. 209). ), quanto de uma das principais críticas elaboradas por Doane e Hodges (1992)Doane, J. L., Hodges, D. (1992). From Klein to Kristeva: Psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother . Michigan: The University of Michigan Press. ao relato de Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , em particular, e dos psicanalistas de modo geral, a saber, a ênfase nas necessidades da criança assumida como não problemática e a pouca atenção comumente dada por esses teóricos à subjetividade da mulher.

A importância do estabelecimento de diálogos entre essas propostas se torna patente a partir do reconhecimento da necessidade de cuidado para com os bebês e crianças e da compreensão da magnitude da influência que construções idealizadas e naturalizadas acerca da mãe enquanto única ou preferencial cuidadora podem exercer nos mais diferentes setores. A esse respeito, Doane e Hodges (1992)Doane, J. L., Hodges, D. (1992). From Klein to Kristeva: Psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother . Michigan: The University of Michigan Press. nos fornecem dois exemplos categóricos. Elas demonstram como ideias associadas a uma mãe suficientemente boa, que se dedica inteiramente ao cuidado com os filhos, como queria Winnicott, ou dos filhos como objetos privilegiados das mães, uma vez que são os únicos capazes de aplacar suas necessidades emocionais, como presente em Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , podem influenciar a visão dos júris, dos juízes e dos advogados nas disputas pela guarda dos filhos. Destacam ainda como a defesa da mãe enquanto cuidadora abnegada ( selfless ) cujos interesses devem coincidir com os da criança acompanhada da naturalização de relações hierárquicas nas quais as necessidades e direitos das crianças prevalecem sobre as mulheres, podem subsidiar argumentos contrários a políticas pró-aborto, tendendo a validar a imagem da mulher como útero e do feto como pessoa.

A partir das críticas apresentadas e embasados na Teoria da Sedução Generalizada de Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes. , defendemos que, em primeiro lugar, um bebê necessita de um cuidador ou cuidadores que possam lhe fornecer amor, carinho e se ocupar de suas necessidades físicas, não importando o gênero ou a existência de laços de sangue entre eles. As tarefas de cuidado podem e devem ser compartilhadas entre os integrantes do casal parental ou entre os membros do arranjo pulsional que deu origem àquelas relações libidinais (geralmente, uma família) uma vez que o contato com a criança desde o início capacita os adultos para as funções de cuidado e favorece a criação de vínculos afetivos com a criança, ao mesmo tempo em que fornece momentos de descanso e tempo para se dedicarem a outros interesses dissociados das demandas da criança. Desde que o cuidado oferecido possua certa constância e regularidade, a divisão das tarefas não se configura como um problema.

Outro ponto que merece atenção diz respeito ao reconhecimento da existência de fantasias associadas ao cuidado e a maternação nos adultos, incluindo nesse grupo aqueles que buscam elaborar teoricamente essas temáticas. A fala de Parker (1997)Parker, R. (1997). A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade (A. X. Lima, & D. X. Lima, trad.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. ilustra bem esse fato, de acordo com a autora, “criancinhas ou mães, psicólogos ou políticos, ninguém acha fácil aceitar de verdade o fato de que as mães possam odiar e ao mesmo tempo amar suas filhas e filhos” (p. 23).

As noções de onipotência e de egoísmo infantil, por exemplo, caracterizadas pela dificuldade da criança em reconhecer a mãe enquanto separada de si e, portanto, como um sujeito que possui necessidades e interesses diferentes dos seus são frequentes em descrições psicanalíticas acerca dos primeiros tempos da relação mãe-bebê. No entanto, tal qual apontado por Chodorow (1978)Chodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , o problema se instala quando as teorias sobre a maternação passam a reproduzir e a prescrever essas expectativas infantis acerca da conduta materna.

Nesse sentido, a consideração da existência dessas fantasias em nós adultos mostra sua importância na medida em que permite nos implicar na sustentação das representações e dos ideais culturais acerca da maternidade e da maternação ( Parker, 1997Parker, R. (1997). A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade (A. X. Lima, & D. X. Lima, trad.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. ). Esse reconhecimento nos torna mais aptos a identificar e a fazer frente à infiltração dos desejos infantis seja em nossa produção teórica seja em nossas práticas profissionais e sociais.

Embora saibamos que uma ampla gama de sentimentos positivos e momentos prazerosos permeiem os cuidados das crianças, este não se configura como uma tarefa fácil. Nesse sentido, teorias que tendem a retratar a experiência da maternidade e da maternação como baseada exclusivamente em sentimentos positivos e na ausência de conflitos também parecem calcadas em fantasias e desejos infantis de amor incondicional. Como aponta Parker (1997)Parker, R. (1997). A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade (A. X. Lima, & D. X. Lima, trad.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. , a construção de espaços em que o reconhecimento da dificuldade da tarefa e a discussão efetiva da (co)existência de sentimentos de amor e de ódio pelos filhos sejam possíveis pode contribuir para o exercício de maternidades menos normativas. Segundo a autora, não existe no campo das tarefas de cuidado apenas uma maneira de ser boa mãe ou bom cuidador, cabendo aos envolvidos conhecerem uns aos outros e construírem, a seu modo, a melhor relação possível.

Como destacamos em nossa discussão, ainda que Chodorow se proponha a ter uma postura crítica e transformadora sobre a temática da maternidade e da maternação, seus pressupostos teóricos, baseados na psicanálise das relações de objeto, podem se revelar limitadores e reprodutores das dinâmicas hierárquicas de gênero. Em sua análise sobre a reprodução da maternação, a autora ao mesmo tempo em que articula e faz avançar a temática a partir de importantes críticas sociais e feministas, restringe excessivamente o reconhecimento da diversidade das experiências e possibilidades no âmbito do cuidado de crianças. Sua leitura sobre o desenvolvimento psíquico de homens e mulheres estabelece uma rígida caracterização de ambos, na qual, grosso modo, mulheres são capazes e tem desejo de cuidar e homens não. Essa teoria acaba por reproduzir um cenário que reduz o potencial transformador da proposta de descentralização dos cuidados infantis sobre as mulheres, fornecendo uma justificativa para a maternidade como destino dessas. Seria possível argumentar que Chodorow (1978) apenas sustenta teoricamente algo que acontece de fato. No entanto, procuramos mostrar que a descrição escolhida pela autora é parcial, na medida em que não explica e desconsidera a vontade de não cuidar, bem como as ambivalências que o cuidado de crianças gera nas mulheres. Dessa forma, a idealização e a prescrição da maternidade reaparecem consideravelmente em sua teoria, mesmo que a autora tenha como norte sua desconstrução.

Procuramos também sinalizar como a psicanálise pode partir de princípios menos limitantes em suas considerações sobre o humano por meio das ideias de sexualidade infantil perversa e polimorfa e da pulsão radicalmente isenta de objetos pré-definidos. Ambas noções dão base para uma maior abertura à diversidade de configurações pulsionais, incluindo seus aspectos conflitivos. A Teoria da Sedução Generalizada ( Laplanche, 1992Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes. ), calcada nesses princípios, fornece possibilidades teóricas de articulação entre a fundação do psiquismo infantil com o universo desejante do cuidador, não necessariamente mulher.

Referências

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  • 1
    Optamos pela adoção do neologismo maternação, também utilizado pelos tradutores do livro The Reproduction of Mothering – Nancy Chodorow e de Torn in Two – Rozsika Parker, para designar o conjunto de tarefas de cuidado direcionadas aos bebês e às crianças, tarefas essas historicamente atribuídas por nossa sociedade às mães e às mulheres. A opção pelo neologismo embasou-se na pouca ênfase dada ao desempenho das tarefas de cuidado nas definições dos termos de que dispomos em português, a saber, maternidade e maternagem, em que o primeiro refere-se, genericamente, às qualidades ou condições da mãe e o segundo ao caráter afetivo da relação estabelecida com a mãe ou com a pessoa que a substitui ( Ferreira, 2009aFerreira, A. (2009a). Maternagem. In M. Ferreira, & M. Anjos (Orgs.), Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. (4a ed., p. 1292). Curitiba: Positivo. , 2009bFerreira, A. (2009b). Maternidade. In M. Ferreira, & M. Anjos (Orgs.), Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. (4a ed., P. 1292). Curitiba: Positivo. ).
  • 2
    What notions of femininity do these writers sustain? What views of motherhood do they endorse? What is ‘good enough’ mothering? ‘Good enough’ according to whom? How are standards of maternal propriety established and sustained?” (Doane, & Hodges, 1992, p. 1).
  • 3
    Para uma visão estruturada acerca da influência exercida por The Reproduction of Mothering (1978) na produção feminista norte-americana confira o segundo capítulo de From Klein to Kristeva: psychoanalytic feminism and the search for the “good enough” mother (Doane, & Hodges, 1992).
  • 4
    Analysts do not consider their prescriptions difficult for most ‘normal’ mothers to fulfill. This is because of their view of the special nature of mothers, mothering, and mother-infant relationships ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 85).
  • 5
    É importante ressaltar que, em sua obra, Chodorow não fornece detalhes de como se dá o processo de identificação primária. Considerando-se a obra como um todo, bem como as bases teóricas utilizadas pela autora na construção de sua perspectiva, optamos pela interpretação de que é o olhar e as fantasias do adulto que, a um só tempo, generificam a criança e determinam o prolongamento ou ruptura da identificação primária.
  • 6
    Girls emerge from this period with a basis for ‘empathy’ built into their primary definition of self in a way that boys do not. Girls emerge with a stronger basis for experiencing another’s needs or feelings as one’s own ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 167).
  • 7
    Growing girls come to define and experience themselves as continuous with others... The basic feminine sense of self is connected to the world, the basic masculine sense of self is separate ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 169).
  • 8
    On the level of psychic structure, then, a child complete the relational triangle for a woman. Having a child, and experiencing her relation to a men... enables her to reimpose intrapsychic relational structure on the social world ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 201).
  • 9
    Personal connection to and identification with both parents would enable a person to choose those activities she or he desired, without feeling that such choices jeopardized their gender identity ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 218).
  • 10
    Yet it stays the same in fundamental ways. It does not help us to deny the social and psychological rootedness of women’s mothering nor the extent to which we participate, often in spite of our conscious intentions, in contemporary sex-gender arrangements ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 215).
  • 11
    The greater length and different nature of their preoedipal experience, and their continuing preoccupation with issues of this period, mean that women’s sense of self is continuous with others and that they retain capacities for primary identification, both of which enable them to experience the empathy and lack of reality sense needed by a cared-for infant. In men, these qualities have been curtailed, both because they are treated as an opposite by their mother and because their later attachment to her must be repressed. The relational basis for mothering is thus extended in women, and inhibited in men, who experience themselves as more separate and distinct from others ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 207).
  • 12
    Explains conventional psychoanalytic notions about women’s psyche, which tradicional accounts explain in terms of constitutional or anatomic factors like passivity and inner space ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 168).
  • 13
    A superego more open to persuasion and the judgments of others ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 169).
  • 14
    I attempt to provide a theoretical account of what has unquestionably been true – that women have had primary responsibility for child care... that women by and large want to mother, and get gratification from their mothering; and finally, that, with all the conflicts and contradictions, women have succeed at mothering ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 7).
  • 15
    In a society where women do meaningful productive work, have ongoing adult companionship while they are parenting, and have satisfying emotional relationships with other adults, they are less likely to overinvest in children ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 212).
  • 16
    In each critical period of their child’s development, the parent’s own development conflicts and experiences of that period affect their attitudes and behavior ” ( Chodorow, 1978, pChodorow, N. (1978). The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the sociology of gender. California: University of California Press. , p. 204).
  • 17
    A theory of mothering requires a theory of childhood and child development as well ” (Chodorow, & Contratto, 1992, p. 209).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2017
  • Aceito
    07 Out 2019
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