Resumo
Este artigo visa compartilhar a experiência da Navegantes Clínica Psi, construída em 2024 por três profissionais da psicologia: duas brasileiras e um mexicano. O objetivo inicial da Clínica consistia em realizar atendimentos grupais a pessoas migrantes brasileiras espalhadas pelo mundo. Usando metodologias grupais e inventando outras a partir das nossas vivências profissionais e militantes, nossa intenção era criar comunidades - mesmo que por meio de encontros virtuais -, na contramão do tão frequente sentimento de solidão, muito comum a quem migra. Ao longo do desenvolvimento do primeiro grupo realizado, apoiados nas reuniões semanais de debate sobre a clínica, fomos entendendo que nosso caminho na Navegantes era muito mais amplo. Muito além da migração, o que faz a nossa clínica existir são os grupos. Entendemos que desenvolver grupos como dispositivos terapêuticos é uma estratégia radical de encontro entre as diferenças - territoriais, culturais, de sexualidade, raciais, teóricas, entre tantas outras. Como escutar essas diferenças, organizar os encontros e desenvolver os grupos como espaços de trocas são alguns dos tópicos que exploraremos neste relato-ensaio de experiência. Com esta mirada, e colocando em discussão o conceito de interseccionalidade, analisamos as experiências grupais que temos desenvolvido e propomos um questionamento sobre as práticas individualizantes e excludentes da psicologia contemporânea, na esperança de fazer ressoar os encontros alegres e criativos que vivemos na diversidade e de impulsionar outras ousadias clínicas a partir do comum e dos coletivos.
Palavras-chave:
Psicologia de Grupos; Migração; Diferença; Clínica Psi
Abstract
This study describes the experience of Navegantes Clinica Psi, founded in 2024 by two Brazilian and a Mexican psychologists. Its initial goal was to provide group care to Brazilian migrants around the world. Using group methodologies and generating others based on our professional and activist experiences, we aimed to create communities - including via virtual meetings - to counter the all-too-frequent feeling of loneliness, a common occurrence among migrants. As the first group with migrants, clinical work meetings showed that our path at Navegantes was much broader. Far beyond migration, groups make our clinic. We understand that developing groups as therapeutic devices configures a radical strategy for encountering territorial, cultural, sexual, racial, theoretical, among many other differences. How to listen to these differences, organize meetings, and develop groups as spaces for exchange are some of the topics we will explore in this experience report. Thus, and discussing the concept of intersectionality, we analyze the group experiences we have developed and propose a questioning of the individualizing and exclusionary practices of contemporary psychology, hoping to resonate with the joyful and creative encounters we have experienced in diversity and to foster other clinical ventures based on the common and the collective.
Keywords:
Group Psychology; Migration; Difference; Psychological Clinic
Resumen
Este artículo presenta la experiencia de Navegantes Clínica Psi fundada en 2024 por tres profesionales de la psicología: dos brasileñas y un mexicano. El objetivo inicial de la clínica era proporcionar atención grupal a migrantes brasileños en todo el mundo. Utilizando metodologías de grupo y generando otras a partir de nuestras experiencias profesionales y militantes, nuestra intención era crear comunidades - incluso mediante encuentros virtuales - en oposición al demasiado frecuente sentimiento de soledad, muy común entre quienes emigran. A medida que se desarrollaba el primer grupo con migrantes, en las reuniones de trabajo clínico nos dimos cuenta de que nuestro camino en Navegantes era mucho más amplio. Más allá de la migración, lo que hace que nuestra clínica exista son los grupos. Entendemos que desarrollar grupos como dispositivos terapéuticos es una estrategia radical de encuentro con las diferencias territoriales, culturales, sexuales, raciales y teóricas, entre muchas otras. Cómo escuchar estas diferencias, organizar encuentros y desarrollar grupos como espacios de intercambio son algunos de los temas que exploraremos en este informe de experiencia. Con esto en mente y discutiendo el concepto de interseccionalidad, analizamos las experiencias grupales que hemos desarrollado y proponemos un cuestionamiento a las prácticas individualizantes y excluyentes de la psicología contemporánea, con la esperanza de hacer resonar los encuentros alegres y creativos que hemos vivido en la diversidad e impulsar otras osadías clínicas basadas en lo común y lo colectivo.
Palabras clave:
Psicología de Grupos; Migración; Diferencia; Clínica Psi
Para começo de conversa, contaremos uma história: nossa clínica começou com um movimento migratório. Estávamos em 2022, apenas começando a sair das restrições da pandemia, quando duas psicólogas sociais brasileiras viajaram para a Cidade do México para desenvolver suas pesquisas de doutorado. Uma vinha de Porto Alegre, a outra do Rio de Janeiro, uma para estudar feminismos na UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México), outra para estudar raça/racismos na UAM (Universidad Autónoma Metropolitana - Unidad Xochimilco). No México se conheceram e encontraram também um mexicano que, nesse momento, estudava as relações entre jovens e violência na periferia onde cresceu, no mestrado em Psicologia Social na UAM-Xochimilco.
Para nenhum dos três a migração era um tema central de estudo ou trabalho, mas, quando alguns anos mais tarde quisemos dar outra forma a nossa amizade e nos propusemos a trabalhar juntos, foi inevitável que nossa clínica, assim como nossas vidas, ficasse marcada pela migração. Pela migração e pela ideia de trabalho em grupo. Devido a esse atravessamento comum, nosso primeiro projeto foi realizar um grupo terapêutico dirigido a pessoas do Brasil que estavam pelo mundo trabalhando, estudando, amando ou simplesmente de passagem por outros países e que, portanto, tinham a necessidade de compartilhar alguns pesos que essas circunstâncias implicam.
Já quando fomos desenvolver nosso método de trabalho, motivados por experiências anteriores, decidimos apostar nos grupos como dispositivo clínico principal (Barros, 2007; Guattari, 2012). A esse momento já sabíamos também que, durante movimentos migratórios, é comum a estratégia de agrupar-se “entre os seus” para conseguir estabelecer-se longe do território habitual/natural.
O tema da diferença foi tomando espaço em nossas discussões e encontros. As diferenças entre migrações, entre os distintos costumes - a depender da região do Brasil de onde se veio, as diversas culturas da cidade onde se estabeleceu em determinado país, os sentimentos e desafios de cada história das pessoas que se movem longe de sua terra natal. Os corpos, as sexualidades, as idades, as maternidades, as cores, os sabores, as condições sociais e familiares. No final, parece que tudo é diferente. Inclusive, as diferenças entre nossa própria equipe: entre nossas formações acadêmicas, nossas trajetórias, nossas distintas formas de entender a clínica, ou seja, de como entender o sofrimento e sobre como acompanhá-lo. Como desenvolver um dispositivo clínico comum em meio a tantas diferenças?
A seguir, em “O contágio do grupo”, compartilharemos alguns referenciais pertinentes para delimitar o campo de atuação a que referimos quando falamos de Psicologia de Grupos. Em seguida, em “Como escutar a diferença?” e “Terapia não é um espelho, é um encontro”, atravessaremos as principais controvérsias de nossa prática clínica e abordaremos a correlação com a temática dos grupos e suas intersecções. Por fim, em “Grupo: uma ousadia?”, a partir de nossa experiência concreta de trabalho, discutiremos sobre como os grupos podem ser espaços fundamentais de encontro entre as diferenças.
No marco das comemorações dos 50 anos da interseccionalidade no Brasil, celebrados nesta publicação do Conselho Federal de Psicologia (CFP), “Navegar pelas diferenças, criar territórios comuns” é um convite a refletir sobre os dilemas contemporâneos das práticas clínicas e a questionar o lugar da Psicologia em determinadas disputas históricas.
O contágio do grupo
A história individual dos três navegantes que aqui vos escreve tinha outra coisa em comum além da migração: o trabalho com grupos. Marianna foi militante do Partido Comunista Brasileiro e de movimentos sociais feministas e de diversidade sexual e de gênero; Ana Marcela formou-se em grupos de jovens da Teologia da Libertação, depois pelo movimento estudantil ligado ao MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e, mais tarde, tornou-se assessora parlamentar de Marielle Franco; Alejandro cresceu em um bairro popular, sua juventude foi dentro de uma pandilla, grupo de jovens da vizinhança que veio a estudar no mestrado, e é formado numa escola de psicanálise na qual o trabalho clínico com grupos, como parte dos processos terapêuticos dos pacientes, é fundamental. Ou seja, antes da nossa Clínica entrar em nossas vidas e, juntamente com ela, fomos atravessados, subjetivados, contagiados por vários grupos, profissional e pessoalmente.
Então, na verdade, para nós o maior questionamento passou a ser: por que não trabalhar em grupos? Apesar de nossas convicções, frequentemente, precisamos justificar esta escolha, já que na época da primazia das terapias hiper individualizadas, quase algorítmicas, em que uma pessoa pode eleger a partir de uma grande oferta o tipo de profissional, seu aspecto, sua formação, orientação terapêutica, política, sexual, identitária, quase como reflexos nos quais pode encontrar-se com outras versões de si mesmo, por que propor-se a trabalhar em grupo, ou seja, com outros distintos de si?
No grupo originário, primitivo, das cavernas, era muito evidente a necessidade de estarem reunidos para sobreviver como espécie. Fazer frente às inclemências do tempo, produzir ferramentas, roupas, linguagens, organizar-se para caçar um mamute, foram atividades que o grupo humano desenvolveu para se adaptar e dominar paulatinamente a uma natureza que, em muitas dimensões, era-lhe originalmente hostil. O ser humano aprendeu a viver em grupo para assegurar sua subsistência. Na atualidade, tudo isso se torna aparentemente desnecessário. Atravessamos uma época na qual o sujeito é imaginado como alguém que não necessita de outrem e de sua perturbadora presença para fazer o que se propõe. Parece mais difícil reconhecer a necessidade e o valor do outro. De todo modo, o grupo nos dá algo mais que carne, calor e abrigo; há algo de estar com outros que resulta ineludível para se poder viver (Cerón, 2024, p. 32)1.
São indubitáveis os aportes do trabalho em grupo relacionados com as distintas disciplinas terapêuticas. O saber psicanalítico já demonstrou, por um lado, desde Pichón-Riviere (1997) a Rene Kaës, passando por Wilfred Bion (1980) e todo o movimento de grupos na Argentina, que historicamente seu interesse, apesar dos modismos, não está centrado no trabalho terapêutico individual. Nos Grupos T, desenvolvidos por Lewin por meados da década de 1940, nas diversas experiências de grupo desenvolvidas por pesquisadores do Instituto Tavistock, até os experimentos da psicologia social levados à cabo por Stanley Milgram e publicados nos anos sessenta, podemos ver diferentes formas, abordagens, intencionalidades e resultados do trabalho grupal associado à terapia psicológica.
Por outro lado e, inclusive, uma referência importante para o trabalho desenvolvido nos grupos da Navegantes Clínica Psi, temos a experiência em La Borde, a famosa clínica de psiquiatria na França, fundada em meados da década de 1950. Os trabalhos produzidos por Félix Guattari, Jean Oury, e tantos outros personagens importantes para a Análise Institucional, a Antipsiquiatria e a Luta Antimanicomial também foram desenvolvidos em grupos. Ao se lançarem a uma prática diferente do que era convencionalmente destinada aos loucos, Oury, Guattari e sua equipe foram modificando as práticas institucionais de tal maneira que problematizaram não só a forma como se tratava os internos, desumanizando-os e serializando-os, mas também os efeitos dessas mesmas mortificações nos técnicos, na equipe de apoio e nos médicos (Guattari, 2012). Nesse sentido, propuseram uma mudança de paradigma, incluindo as divisões sociais do trabalho. Foram aos poucos revezando tarefas, fazendo assembleias, dando espaço para os internos decidirem e organizarem suas próprias vidas e as atividades coletivas da instituição.
Dessas experiências que nos inspiram, extraímos pistas para serem colocadas em análise quando se começa um trabalho grupal, a saber: a instituição a qual o grupo está vinculado; a não hierarquização dos papéis do grupo; a problematização dos comportamentos e regras tidas como naturais; o entendimento do trabalho como política e produção de afetos, entre muitos outros elementos que nos vão ajudando a criar formas de estar em coletivo como psis.
A experiência de La Borde nos mostrou, ao contrário [da segregação reforçada das orientações oficiais da época], que a mistura das categorias nosográficas diferentes e a aproximação de faixas etárias podiam constituir vetores terapêuticos não negligenciáveis. As atitudes segregativas formam um todo; as que se encontram entre as doenças mentais, as que isolam os doentes mentais do mundo “normal”, a que se tem em relação às crianças em dificuldades, as que relegam as pessoas idosas a uma espécie de guetos participam do mesmo continuum onde se encontram o racismo, a xenofobia e a recusa das diferenças culturais e existenciais (Guattari, 2012, p. 172).
Ainda que não seja o objetivo do presente artigo fazer uma genealogia das experiências supracitadas, consideramos importante mencioná-las como referenciais históricos que auxiliam a desenvolver o trabalho que realizamos na Clínica Navegantes, que nos ajudam a entender o grupo como um dispositivo de acolhimento, escuta, diálogo e, sobretudo, encontros entre diferenças.
Consideramos pertinente afirmar, desde já, que nossas fontes sobre o trabalho em grupo não se restringem ao campo psi. Na verdade, analisamos os grupos para muito além desse âmbito: notamos sua presença e relevância para a produção científica a partir de diversas outras disciplinas, como a antropologia, a sociologia ou a pedagogia. Apenas para mencionar algumas, podemos citar a importância que a observação de rituais grupais tiveram nos trabalhos antropológicos de Víctor Turner acerca dos ritos e do simbólico; ou nos trabalhos sociológicos “A sociedade das esquinas”, de William Foot Whyte, e “The Gang”, de Frederic Trasher, que, no início do século XX, refletiram sobre esta particular forma de agrupação urbana.
Outrossim, em um rápido panorama, gostaríamos de destacar também as dimensões de grupos que escapam ao saber disciplinar e que coabitam na cotidianidade, isto é, o grupo como forma histórica de vínculo humano. Nos bairros de toda América, o fenômeno das bandas2 como grupos da juventude que circulavam nas ruas e sua incontornável relevância para o devir das comunidades às quais pertenciam3. As associações de trabalhadores, as assembleias, os sindicatos. Por outra via, nas escolas, o grupo como um dispositivo em permanente disputa, por colocarem em jogo não apenas as relações de ensino, mas distintas relações que remetem ao e formam para o social. Ainda, o casamento ou outras formas de relacionamento, pode ser visto como um encontro entre ao menos dois grupos que se cristaliza em uma aliança entre pessoas que pretendem formar outro grupo, qual seja, uma família. Até mesmo os grupos de avós que se reúnem para conversar e desayunar4, tomar um café no meio da tarde ou um chimarrão, simplesmente para falar daquilo que já deixou de ser como era. Tudo isso também nos remete a essa forma de relacionar-nos que insiste em prevalecer apesar do acirramento do individualismo: o grupo.
Assim como as demais referências, não pretendemos esgotar os exemplos daquilo que entendemos por grupos, senão mostrar uma fotografia que registra algumas coordenadas e situam nossa proposta no que tange a uma clínica grupal. Somos seres sociais, agrupamo-nos todo o tempo e desenvolvemos modos de vida em grupo. Do nosso ponto de vista, todas essas formas cotidianas de agrupar-se também devem estar referidas em um dispositivo terapêutico.
Tomando como exemplo o grupo de migrantes, o que temos feito, através de distintas dinâmicas, envolve promover a reflexão e a ressignificação de distintas circunstâncias das viagens de cada um(a), passando por situações aparentemente comuns - como fazer as malas -, ou aparentemente únicas - como descobrir um novo sabor, buscar um lugar para viver, aprender um idioma ou fazer amizades em outro país. O que temos descoberto é que mesmo nas experiências aparentemente mais comuns, existem inúmeras diferenças. E, mesmo nas circunstâncias mais diversas, pode existir algo em comum.
De fato, estamos tratando de um dispositivo terapêutico pensado para certos males associados com um tipo de migração específica, que não é forçada pelo imperialismo e outras violências, que não necessariamente busca uma mudança de vida no norte, como acontece com grande parte da migração mexicana para os Estados Unidos, por exemplo. Trata-se, pois, de pessoas que, na maior parte, são profissionais ou estudantes que estão de passagem ou residindo indefinidamente em outros países ou que resolveram ficar depois de uma estadia, sem saber exatamente se vão voltar a viver ou não em suas terras de origem, e que podem ou não enfrentar durante este período ou trazer em suas bagagens histórias de violência.
Mesmo assim, as ideias e preconceitos que já nos deparamos sobre o grupo, sobre trabalhar em grupo ou, principalmente, sobre a terapia em grupo, são múltiplas, de modo que ofertar um trabalho em grupo se dá de forma circunstancialmente diferente. No México e no Brasil, por exemplo, a terapia grupal está muito identificada com os grupos de autoajuda, com o coaching, ou seja, com a catarse, a culpa, com os supostamente especialistas que oferecem soluções rápidas. Chama-nos a atenção que, em relação à oferta, o grupo parece tornar-se mais interessante para o público em geral se é denominado de “reflexivo” do que se for chamado de “terapêutico”, mesmo que a demanda seja nitidamente terapêutica. Isso poderia indicar que existe uma certa relutância ou resistência à experiência da terapia com outros. Parece que fazer acompanhamento individual é mais aceito hoje em dia na sociedade, trabalho árduo da psicologia social no intuito de popularizar a profissão, mas terapias grupais ainda carregam um certo estigma. Aparentemente, não seria frutífero ouvir outras pessoas e falar de si em grupo, nem pensar a terapia ou o cuidado de si como exercícios coletivos, pois sem o espaço privado a sessão poderia não ser “profunda o suficiente”, conclusão da qual discordamos profundamente. Estar em contato com outras pessoas, no plural, pode ser uma oportunidade ímpar de produzir outros em si, produzir-se diferente, estranhar-se e poder recontar sua própria história a partir de múltiplos olhares.
No processo, é possível, por um lado, ver um desenvolvimento do grupo, da confiança, um tom, um compasso, uma forma de falar, de aproximar-se dos temas. Por outro lado, o grupo remete a esse espaço de precedência imediata do qual fazem parte as(os) participantes, como suas famílias, suas amizades, as pessoas das quais sentem saudade, mas também a comunidade da qual fazem parte, a região do Brasil da qual provêm e, em última instância, há também um reconhecimento enquanto pessoas brasileiras. Bem distante de qualquer nacionalismo, existe no grupo um movimento que provoca muito alívio e que consiste no fato de poder sentar-se um momento com outras pessoas que compreendem um mesmo idioma, os códigos, as saudades que, à primeira vista, têm algo em comum e podem, portanto, formar comunidades.
Como nos ensina Barros (2007), há algo no grupo que só pode acontecer ali, no encontro com outros. Nas suas palavras, mais precisamente, “três direções norteiam a intervenção em grupos: a problematização, a desindividualização e a experimentação” (p. 323). Nossa prática Navegante também caminha com desafios similares: desnaturalizar o que parece dado no mundo e nas vidas singulares como fato consumado ou irrefutável; colocar em questão a supremacia do eu, modo de subjetivação típico do capitalismo neoliberal e condição crônica do adoecimento coletivo que atinge a todas e todos nós; além de inventar e criar maneiras não só de abordar assuntos que podem ser difíceis, mas, sobretudo, suscitar no coletivo a possibilidade de experimentar ser e viver de outras formas.
Como escutar a diferença?
O cotidiano do trabalho clínico em Psicologia impõe a quem ocupa o lugar de terapeuta a tarefa de ouvir histórias marcadas por múltiplas particularidades. Ainda que residam em um mesmo bairro, ainda que vivam sob o mesmo teto, ou ainda que tenham saído da mesma placenta: cada história de vida possui características muito específicas que impõe a necessidade de uma escuta atenta e sensível.
No entanto, esta/este terapeuta, marcado também por sua própria trajetória, nem sempre consegue estar imediatamente atento a essas particularidades. Muito além de uma questão de atenção, muitas vezes trata-se de uma implicação com seu próprio referencial clínico, ancorado em determinadas categorias e métodos que negligenciam ou anulam as diferenças. Esse foi um importante fator para, ao longo das últimas décadas, disseminarem-se formas de fazer a clínica com o subsídio de referenciais “externos” à Psicologia, como clínicas feministas, clínicas da diversidade, clínicas sociais, clínicas antirracistas. Na mesma esteira, políticas públicas de reparação histórica - como as cotas sociais e raciais nas Universidades - provocaram mudanças na forma de fazer Ciência no país, fato que certamente atingiu a ciência psicológica e provocou seu contato com outros saberes.
Não obstante, outro fator pertinente ao surgimento de novas abordagens clínicas correlaciona-se com o “mercado de direitos” que ascendeu junto ao neoliberalismo e sua política ideológica baseada na lógica da privatização. Poder “fazer você mesmo” e frequentar “espaços exclusivos para você” tornaram-se máximas muito sedutoras no mundo do trabalho e do consumo, estimulando, assim, uma infinidade de ofertas identitárias, isto é, para você identificar-se.
Em meio a esses e outros tantos fatores, referendando-se também na queixa comum de pessoas que não se sentem ouvidas e acolhidas em espaços normativos da psicologia, nos últimos anos, passaram-se a disseminar espaços clínicos com enfoque em determinados marcadores sociais da diferença, como nas questões de gênero e sexualidade, étnico-raciais, capacitistas, etc. No recente documento publicado pelo Conselho Federal de Psicologia, Referências técnicas para atuação de psicologia(s) no atendimento a mulheres em situação de violência (CFP, 2024),5 fica nítida a influência dessa forma de fazer Psicologia, considerada um marco importante na história da profissão.
Demarcar as diferenças, contudo, não deveria ser um pressuposto para fragmentar as estratégias de cuidado, hierarquizar violências ou anulá-las. Com essa preocupação, a partir das lutas de movimentos sociais, assim como no âmbito da clínica em Psicologia, e em outras disciplinas como o Direito, interseccionalidade foi o conceito que se disseminou a fim de confrontar qualquer ideia de sujeito universal e, ao mesmo tempo, evitar que a multiplicidade de marcadores se transformassem em meras somas aritméticas das opressões. O objetivo de uma operação interseccional seria, desse modo, analisar como o encontro entre diferenças em um determinado corpo produzem experiências singulares.
Em 1985 participei da Conferência Internacional de Mulheres em Nairobi. Ali, mais de 10 mil mulheres de mais de 150 países se reuniram para tratar de problemas de nossa subordinação universal como “segundo sexo”, mas o aspecto mais notável dessa conferência era a heterogeneidade de nossa condição social. As questões levantadas pelos diferentes grupos de mulheres presentes à conferência, especialmente as do Terceiro Mundo, serviram para sublinhar o fato de que os problemas que afetam as mulheres não podem ser analisados isoladamente do contexto de desigualdade nacional e internacional (Brah, 2006, p. 340-341).
O que impulsionou os movimentos de afirmação das diferenças sob uma perspectiva interseccional, portanto, foram problemas reais relacionados particularmente à história de vida de pessoas, militantes ou não, em relação a aspectos estruturais, como nos conta Avtar Brah (2006), com especial destaque aos movimentos de mulheres negras. Embora não utilize o conceito de interseccionalidade neste artigo, ao colocar em análise as diferentes concepções de diferenças, Brah (2006, p. 376) propôs uma perspectiva estratégica que não compartimentaliza as opressões, mas sim compreende como elas se interconectam e articulam, feito semelhante ao de outras tantas intelectuais dedicadas a construir estratégias de confluências entre movimentos, como no caso das lutas antirracistas.
Processos de racialização são, é claro, historicamente específicos, e diferentes grupos foram racializados de maneira diferente em circunstâncias variadas, e na base de diferentes significantes de “diferença”. Cada racismo tem uma história particular. Surgiu no contexto de um conjunto específico de circunstâncias econômicas, políticas e culturais, foi produzido e reproduzido através de mecanismos específicos e assumiu diferentes formas em diferentes situações. O racismo antinegro, o racismo anti-irlandês, o racismo antissemita, o racismo antiárabe, diferentes variedades de orientalismos: todos têm suas características distintivas (Brah, 2006, p. 344).
Quando Kimberlé Crenshaw (1989) publicou o artigo entitulado “Desmarginalizando a intersecção entre raça e sexo: uma crítica feminista negra à doutrina antidiscriminação, teoria feminista e política antirracista”, um grande marco nos estudos interseccionais, justamente, esta foi uma de suas preocupações: ao caminharem em separado, os estudos raciais e de gênero perdiam aspectos fundamentais dos fenômenos sobre os quais se propunham a intervir.
Ainda que a interseccionalidade como conceito tenha se popularizado a partir da obra de Crenshaw, cabe destacar que, distantes do norte global, outras importantes intelectuais e militantes elaboraram contribuições muito pertinentes para este campo. Apenas no Brasil, poderíamos citar como registros que a precederam A mulher negra no mercado de trabalho, de Beatriz Nascimento (1976), “A categoria político-cultural da Amefricanidade” de Lélia Gonzalez (1988) ou as contribuições de Sueli Carneiro que, ainda em 1989, participou da fundação da Geledés - Instituto da Mulher Negra. Os debates levantados por essas autoras demarcam as importantes discussões sobre diferenças que ocorriam também no terreno da política brasileira e das lutas sociais no país.
O Brasil, nesse período, ainda em seus anos de chumbo6, governado por sucessivos ditadores, perseguia, torturava e assassinava seus opositores, além de proibir quaisquer manifestações públicas contrária aos regimes, razão pela qual proibiu a comemoração do Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras e outras manifestações públicas. Documentos da Comissão da Verdade revelaram as formas de tortura contra comunistas, feministas, militantes do movimento negro e qualquer “desertor” do regime. Em um desses relatórios (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, s.d.), narra-se como se deu a perseguição a Solano Trindade, comunista e fundador do Teatro Experimental do Negro nos anos 1930, preso em 1944 pela ditadura do Estado Novo e, décadas mais tarde, já no regime militar, o assassinato de Solano Francisco, seu filho:
Isso já foi em 1964/1965. Em 64, a polícia foi lá em casa buscando Francisco Solano Filho, meu irmão. Encontraram ele empinando pipa. Estavam à procura dos outros 10 do grupo dos 11 do Brizola. Meu irmão disse que eles teriam que procurá-los. Diz que um rapaz disse a ele: “Você vai ter que servir o exército não vai? Lá a gente conversa.” Em 1965, mamãe recebeu uma ligação, e ao confirmar que ele tinha ido ao Exército, um sujeito disse do outro lado: “ele já foi e já morreu”. Ela exigiu o corpo, que eles entregaram com um tiro no peito, levaram um livro, dicionário de inglês e 10 cruzeiros. Eram as armas que ele tinha. Minha mãe não quis mexer nessa história, mas depois não podia nem ver homem fardado pela frente que tinha medo (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, s.d).
Os relatórios da Comissão da Verdade sistematizaram entrevistas, matérias de jornais, pesquisas acadêmicas, relatórios policiais, entre outros tantos documentos fundamentais para compreender as conexões entre determinados processos históricos e em que condições, 50 anos atrás, os movimentos sociais se organizavam. Foi um momento de ferrenhas articulações de resistência, muitas das quais culminaram em unificações (como o Movimento Negro Unificado) e, outras tantas, resultaram de rupturas (como a Ação Libertadora Nacional, de Carlos Marighella), levando a um conjunto de intelectuais e militantes a dedicaram-se à compreensão da complexa formação social brasileira com o intuito de elaborarem estratégias de ação coletivas ou, em outras palavras, formas de caminhar lado a lado.
Fato é que não seria possível abordar sobre como escutar a diferença sem demarcar alguns dos processos históricos responsáveis por silenciá-las e aniquilá-las. Ademais, não foi de outra forma, senão a partir da tomada de posição da categoria frente às demandas oriundas de movimentos sociais nesta época que tornou possível escrever novos capítulos na história da Psicologia brasileira e mundial, marcadas até então hegemonicamente pelos manicômios, pelas terapias de reversibilidade, pelo eugenismo, entre outras formas que cumpriram muito bem o papel de aprofundar o racismo, a misoginia, a exploração e outras formas de violência. Como denota Lacerda Jr. (2013), a propósito, ao analisar o desenvolvimento da profissão no mesmo período, ainda que o golpe militar tenha fortalecido a proliferação de práticas conservadoras e capitalistas, “a psicologia brasileira não foi espaço de mera reprodução, apropriação ou produção de teorias que sustentaram ideologicamente o capitalismo dependente, mas espaço de crítica” (p. 225).
Ainda assim, frequentemente, demarcar as diferenças foi e tem sido uma razão para discriminar, perseguir e exterminar, mesmo no terreno da Psicologia. Escutar a diferença com o objetivo de construir territórios comuns, afetivos, solidários e prazerosos é um desafio em andamento. O que percebemos, inicialmente trabalhando com migrantes, é que as fronteiras que nos dividem não se circunscrevem em limites geográficos: de certa forma, a sensação de ser estrangeiro se generalizou na sociedade e, muitas vezes, o encontro com o outro que é diferente de mim torna-se uma ameaça.
“Terapia não é um espelho, é um encontro”
Foi em um encontro de primeira escuta individual que esta frase surgiu, como uma explicação resumida de como compreendemos nosso trabalho. Com alguma frequência, somos procurados por pessoas que gostariam de ser atendidas por terapeutas com características iguais às suas (no que tange à sexualidade, ao gênero, à experiência da maternidade etc.) e que “desconfiam” de quem não as possui. Entendemos que este sentimento é legítimo e pode estar associado a traumas, exclusões, situações de violência, e que, portanto, encontrar no outro alguma semelhança pode provocar uma sensação de maior conforto ou, ainda, de que sua dor será melhor compreendida. É muito interessante quando esses acolhimentos acontecem, sobretudo quando se realiza um suporte que fortalece a autonomia e estimula a quem procurou essa escuta a poder se relacionar novamente com o mundo em sua diversidade. Entendemos que todo acolhimento pode abrir portas e a construção de outras relações: diversas, com pessoas diversas. O que gostaríamos de colocar em análise é por que algumas dessas experiências se pretendem absolutas, em detrimento de outras.
Em uma outra ocasião, fomos perguntados se atendemos “TDAH”. Foi uma pergunta curiosa, para a qual respondemos que atendemos pessoas - que têm um nome, uma história, que são de algum lugar, que buscam algo e que podem ou não ter um psicodiagnóstico. Será que há uma técnica pura que faça um sofrimento e/ou um diagnóstico tão comum nos últimos anos ser “curado”? Quais são os critérios que têm colocado determinadas abordagens à frente de outras para realizar um tratamento? Afinal, o questionamento do que é e o que se faz com os rótulos de ser ou não ser “um TDAH, um depressivo ou um ansioso” não deveria fazer parte de qualquer processo terapêutico? Para além das definições técnicas - que inclusive podem ser bastante questionadas -, como essa pessoa vive esses diagnósticos, e o que mais ela tem a dizer, para além desses títulos tomados de forma tão rígida? Criticamos de maneira contundente algumas práticas das ciências da saúde, como na medicina ou na enfermagem, em que, muitas vezes, os pacientes são tratados pelos números do leito e/ou nomes de suas enfermidades, quando estamos nós, psicólogas e psicólogos, reproduzindo o mesmo paradigma.
Temos percebido o quanto os psicodiagnósticos têm servido para definir pessoas e para encaixá-las em comportamentos previsíveis e passíveis de tratamento, inclusive medicamentoso. Há, hoje, práticas e abordagens psicológicas que, ao tomarem ciência de um psicodiagnóstico, passam a tratá-lo com base em uma identidade comum e se fecham para a escuta das diferenças que permeiam sua trajetória, reduzindo, assim, a experiência singular da pessoa que acaba de chegar em seu consultório a um conjunto de sintomas. Frases tornaram-se comuns na clínica psi e também se transformam em brincadeiras nas redes sociais, tamanha a difusão e naturalização de determinadas psicopatologias, como: “isso é meu TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade)”, “foi por causa da minha TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada)”, “meu hiperfoco é...”, ou ainda “eu sou bipolar”, entre tantas outras.
Ao tratar um diagnóstico como uma identidade, irrefutável e inflexível, acabamos por reduzir a experiência humana. É como se o transtorno fosse uma espécie de carteira de identidade ou um passaporte com muitos carimbos que abre portas de tratamento e, em alguma medida, de alívio. Sim, porque se temos uma angústia e ela é aparentemente resolvida com um diagnóstico, imediatamente ela é “curada” e se individualiza a questão, já que ele é endereçado a uma pessoa específica. Ao mesmo tempo em que se tende a desresponsabilizar a pessoa por seus comportamentos e escolhas (já que é característica da “minha doença”, ou seja, não tenho escapatória), contraditoriamente ela pode sentir-se sobrecarregada porque terá de tratar individual e isoladamente a questão (adequando o seu próprio comportamento, comprando o seu próprio medicamento, lidando com o seu próprio pensamento). Quando organizamos uma vida inteira em torno de um psicodiagnóstico, deixamos em segundo plano aspectos contextuais ou socioculturais que, por dizerem respeito a uma coletividade, aparentemente não podem ser tratados em psicoterapia.
Diante de uma exacerbação de diagnósticos baseados nos sintomas de hiperatividade e de falta de atenção, ao invés de vincular os sintomas a indivíduos, por que não analisamos os processos históricos que têm nos levado ao uso exagerado de redes sociais e ao sedentarismo? Por que não colocar em questão a falta de descanso e demais condições de trabalho? Ou as formas de lazer que hiperestimulam o uso de celulares e outras telas?
Pensando a partir desse prisma, a falta de atenção e a hiperatividade podem ser lidas como sintomas que trazem sofrimento coletivo à população como um todo, e não em casos particulares. A mudança de perspectiva é radical, pois o tratamento deixa de ser direcionado a um indivíduo e coloca em questão modos de vida, que não são experienciados de maneira individual, mas sim compartilhados nas relações que temos uns com os outros. Por esse caminho, poderíamos desenvolver práticas coletivas ou políticas relacionais que superem os psicodiagnósticos, em vez de perpetuá-los.
Não estamos aqui querendo diminuir ou estigmatizar pessoas e estudos que aprofundam determinados tipos de sofrimento humano. Eles são de extrema importância para o desenvolvimento da nossa profissão e o avanço das formas de cuidado. Nós mesmos, começamos pela particularidade da migração. A pergunta que nos fazemos é: quais são os limites práticos desse especialismo ou particularismo exacerbado e como superá-los?
Ainda, por que parece que atualmente nós só estamos conseguindo nos juntar com pares quase impecavelmente parecidos, como um espelho? Será que a reprodução das bolhas algorítmicas das redes sociais nos tirou a capacidade de confiar e conviver com o diferente? Qual a relação desse sentimento com os processos históricos que se desenvolveram no capitalismo, como o nazismo e o fascismo? Audre Lorde, já na década de 1990, alertava: “Precisamos reaprender a prática de que diferenças não são necessariamente ameaçadoras” (Lorde, 2019, p. 98).
Na constituição própria da Navegantes Clínica Psi, encontramo-nos pelas nossas semelhanças e também pelas diferenças. Somos duas mulheres e um homem, duas brasileiras - de regiões distintas do país - e um mexicano. Dois vivem no México, uma voltou para o Brasil. Raça e sexualidades diversas. Dentro da Psicologia, temos o grande guarda-chuva da Psicologia Social que nos une, mas dentro dela temos linhas distintas: histórico-cultural; esquizoanálise; psicanálise social. No meio de tanta diferença, o que nos faz navegar juntos? E quais são os limites desse caminhar, o que pode permitir-nos reafirmar nossas diferenças como potências em vez de negá-las?
Fazer este relato/artigo, por exemplo, é um desafio. Nem sempre os referenciais teóricos são idênticos ou convergentes. Isso não quer dizer que não seja um trabalho coeso e coerente, só quer dizer que ele é atravessado por linhas que se cruzam e se afastam, divergem, embolam-se e transmutam-se em uma outra coisa que não seria possível sem o contato, sem o encontro.
A rejeição institucionalizada da diferença é uma necessidade absoluta numa economia centrada no lucro que precisa de outsiders ocupando o papel de pessoas descartáveis. Como integrantes de tal economia, todos fomos programados para responder às diferenças humanas que há entre nós com medo e aversão, e a lidar com elas de três maneiras: ignorar e, se não for possível, copiar quando consideramos dominante ou destruir quando considerarmos subalternas. Mas não temos critérios para tratar as diferenças humanas em pé de igualdade. Como consequência, elas têm sido confundidas ou utilizadas de maneira equivocada, a serviço da separação e da confusão (Lorde, 2019, p. 144).
Trabalho em grupo: uma ousadia?
A princípio poderia-se dizer que não: reunir-se em grupo não é uma ousadia e agrupar-se é a coisa mais comum do comportamento humano. Porém, é inegável que são tempos em que o individualismo se impõe, em que cada vez é mais difícil se encontrar ou sustentar vínculos. Como inserir a este contexto componentes da clínica grupal? Como criar um dispositivo que possa acompanhar pessoas nesta situação de forma que na sua concepção e operação coloque-se em jogo um teoria, uma prática e uma técnica?
Na primeira reunião do grupo de migrantes, uma das participantes perguntou qual era nossa técnica de trabalho. Essa pergunta segue interpelando-nos porque colocou desde o princípio a centralidade da tensão entre atuação x técnica para o trabalho clínico ou, em outras palavras, da tensão entre aquilo que tem a ver com a atuação do especialista - com o vínculo, com as trocas - e a chamada “técnica”, em suas distintas facetas: de intervenção, de estudo, de manipulação, de registro. Como se as duas coisas não estivessem relacionadas: a técnica e a teoria, a técnica e a prática dela mesma. Depois de alguns grupos de trabalho com migrantes, poderíamos afirmar que o enquadre de trabalho e o objetivo comum de refletir sobre a migração desde diferentes miradas e dispositivos são os principais organizadores do devir grupo, isto é, são a técnica em si.
Tomando por base o grupo em questão de migrantes, ao final, os aspectos técnicos do dispositivo são os que possibilitam o trabalho: um programa de dez sessões, com duas horas cada uma, realizadas em formato virtual; um enquadramento de trabalho e as metodologias, com cada encontro sendo dedicado a um tema específico, pensado para refletir diferentes aspectos sobre a migração brasileira. Em cada sessão, exploramos um campo de possibilidades, de curiosidades, de suposições, de preconceitos. Como cada grupo se revela como uma nova fonte, elegemos temas disparadores que possibilitem a troca. Na última edição, a título de exemplo, os temas foram: nem tudo cabe na mala; lugares seguros; o coração está na barriga; o que é da viagem e o que é nosso; saudade; intercâmbio cultural; tem amigos nesse outro lugar?; álbum de fotos; o conto da sua viagem; e encerramento/reflexões finais.
A proposta de trabalho consistiu em dinâmicas que possibilitaram a reflexão de distintos sentidos; desde o diálogo horizontal, apoiados pelos temas disparadores, pudemos compartilhar fotos, vídeos, mapas, escritos, comer juntos e ensinar receitas, falar de costumes, anedotas, surpresas, dificuldades, gostos adquiridos, plantas, livros. Igualmente, partilhamos dúvidas, medos, dicas, macetes, recomendações. Esse intercâmbio de distintos hábitos, truques ou estratégias remete-nos a costumes muito antigos7 da humanidade e também são muito concretos, muito inteligíveis para quem participa do encontro. Ao conhecer a experiência do outro e estranhá-la, em alguma medida, pode-se estranhar a si mesmo e passar a perceber a própria experiência de forma distinta, entre outros tantos fenômenos possíveis apenas quando convivemos em grupos. Aliás, é importante destacar que nós, psicoterapeutas, fizemos parte de todas as dinâmicas propostas ao grupo, ou seja, não ficamos apenas na tarefa de coordená-las.
O grupo terapêutico para migrantes terminou sua segunda edição em junho de 2025, enquanto escrevemos este artigo. A convocatória foi muito similar à primeira, apesar desta ter tido uma quantidade maior de pessoas nas primeiras sessões, chegando a contar com oito participantes. Ambos os grupos mantiveram uma média de três participantes, além da equipe da Navegantes. Terminada cada uma das edições, foi possível conformar um grupo mais implicado com objetivo de dar seguimento aos encontros de alguma maneira. Essa demanda foi acolhida em um Grupo de Trabalho para produzir uma Fanzine, que foi batizada pelo grupo de Convés8.
Neste momento, estamos preparando a terceira edição da Convés. A Fanzine vem sendo uma possibilidade de estender o vínculo com um coletivo maior de pessoas que participaram nos grupos anteriormente mencionados e que buscaram permanecer encontrando-se. Encontrar-se para elaborar um trabalho em comum na Convés e abri-lo para outros usuários da clínica transformou este espaço em um dispositivo de expressão e socialização. Mais do que servir como uma estratégia de memória coletiva dos trabalhos realizados, o que temos desenvolvido é um espaço de criação e invenção em que podemos aproximar arte e clínica. Trata-se também de um material de comunicação, já que apresentá-lo a colegas de outros lugares possibilita a geração de informação sobre as estratégias de intervenção que temos realizado.
As metodologias de trabalho que usamos na Navegantes, baseada nas referências anteriormente citadas dos movimentos da antipsiquiatria e da psicologia social, permitiram-nos colocar em prática um dispositivo onde o terapêutico passa pela palavra circulando, construindo identificações, diferenças e ressonâncias a partir das experiências ou reflexões postas no grupo por todas as pessoas que formam as sessões, incluindo nós mesmos. O exercício, além disso, tem nos permitido colocar em prática a proposta de trabalho de Françoise Davoine, que em vários de seus trabalhos, ao abordar a relação que se dá entre terapeuta e paciente (que a psicanálise chama de transferência), ressalta a importância de que no tratamento do sofrimento psíquico (a maior parte de seu trabalho é realizado com pacientes diagnosticados com esquizofrenia), coloque-se também ao centro a história do analista9.
Propostas como estas desafiam as ideias sobre qual seria o verdadeiro papel dos especialistas ou aqueles que mantêm esse lugar no campo psi. Quem é aquele que pode produzir alívio em um dispositivo clínico? Os insights de um(a) paciente, sua disposição? As palavras de um(a) terapeuta, seu conhecimento das teorias e técnicas de intervenção? Todos esses elementos são importantes, mas desde o nosso ponto de vista, podem ser efetivos somente se a princípio produzem um encontro autêntico entre iguais, em que mediante a palavra e o contato é possível se reconhecer e construir soluções conjuntamente.
Por último, é importante dois destaques em relação ao trabalho terapêutico em grupo: ele não se opõe e nem desacredita o trabalho individual. Acreditamos que todas as pessoas deveriam ter acesso à terapia, se assim desejam, e a um espaço no qual possam, de maneira privada, decidir e pensar o que considerem necessário e recebam atenção adequada e qualificada. Nossa proposta é que o grupo opera com o dispositivo individual, não contra ele, e é nesse sentido que vamos desenhando outros grupos nos quais podemos acompanhar as diferentes demandas que vão surgindo, como: formação para psicólogos, supervisão de casos clínicos, seminários, acompanhamento institucional, entre outros.
Por outro lado e um tanto derivado do anterior, o grupo não é o fim em si mesmo. Temos nítido, a partir das ciências sociais, que o grupo se torna uma espécie de amostra, um reflexo de outra coisa e ao mesmo tempo contém em si a possibilidade de criar outras possibilidades de relacionar-nos. Assim como as(os) participantes das reuniões ou aqueles que entram em uma consulta individual referem-se sempre a outras redes e a outros grupos dos quais procedem ou fazem parte, os grupos nos remetem, inevitavelmente, às complexas redes de relações que conformam a sociedade e que são, em última instância, nosso campo primordial de estudo.
Considerações Finais
Ao narrar a experiência da Navegantes Clínicas Psi, colocamos em questão nossa própria prática clínica, os caminhos que a sustentam e as controvérsias que a tensionam. Nosso relato foi, na verdade, uma tentativa de praticar aqui e agora um encontro entre as diferenças que nos constituem e, com isso, discutir a temática que nos reúne neste dossiê, qual seja, das interseccionalidades.
De maneira geral, o que apresentamos de forma ensaística ao longo do texto trata-se de uma defesa dos grupos como espaço inevitável para conhecer as diferenças ou, simplesmente, encontrar-nos. No entanto, agrupar-se através de dispositivos clínicos tem sido um desafio na era da psicologização da vida, em que vigoram abordagens hiper individualizantes e identitárias. Na falta do encontro com o outro, o que resta é tratar a si próprio.
Distantes uns dos outros, prevalece não apenas a solidão, mas também a ansiedade, a irritação, a sobrecarga, um cansaço inesgotável e uma profunda falta de desejo de existir. Quando nos encontramos uns com os outros, abrimos algumas possibilidades alternativas. De fato, encontrar com o outro (que é diferente de mim) não é fantástico: é real e, por sê-lo, pode exigir-nos algum trabalho.
No decorrer do artigo está presente também a pergunta sobre o lugar do especialista ou da/do terapeuta e suas respectivas técnicas para desenvolver o trabalho terapêutico. Narramos como se organizou o grupo de migrantes com a intenção de problematizar estes lugares tão cristalizados historicamente. Indo além dos aspectos técnicos, nosso trabalho clínico inclui necessariamente a participação direta de cada um dos integrantes da equipe, que contribuíram com experiências sobre suas vidas e sobre suas próprias experiências com o fenômeno da migração.
Vale dizer que nós, profissionais da psicologia, também somos duramente afetados pela carência de redes e grupos. Em nossos dois encontros no Rio de Janeiro intitulados “Agrupar-se e Outras Ousadias Clínicas” (que ocorreram em janeiro e maio de 2025), cujo público alvo principal eram psicólogas(os), ouvimos algumas vezes que as e os profissionais também se sentem isoladas(os), sozinhas(os), em suas próprias clínicas. Nosso intuito com o encontro foi receber notícias da prática desses/as profissionais e a partir daí criar redes, contar e recontar histórias, estar juntos. Para nós, inventar sempre novos grupos é como “adiar o fim do mundo”, como nos ensina Krenak (2020). Afinal, entendemos que agrupar-nos é um ato radical na sociedade das subjetividades privatizadas.
Referências
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1
No original: “En el grupo original, primitivo, cavernario, era muy evidente la necesidad de estar reunidos para sobrevivir como especie. Hacer frente a las inclemencias del tiempo, producir herramientas, ropas, lenguajes, organizarse para cazar un mamut, fueron actividades que el grupo humano desarrolló para adaptarse y dominar paulatinamente a una naturaleza que en muchas dimensiones le es originalmente hostil. El ser humano aprendió a vivir en grupo para asegurar su subsistencia. En la actualidad, todo eso resulta aparentemente innecesario, atravesamos una época en la que el sujeto es imaginado como alguien que no requiere de los demás y su perturbadora presencia para hacer lo que se proponga. Parece más difícil reconocer la necesidad y el valor del otro. Sin embargo, el grupo nos da algo más que carne, calor y cobijo; hay algo de estar con otros que resulta ineludible para poder vivir”.
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2
Expressão comum no México e em outros países de língua espanhola para designar grupos de jovens que possuíam identidades comuns, como turmas, tribos ou gangues.
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3
Aqui podemos pensar no trabalho de Carles Feixa (1999), De jóvenes, bandas y tribus, sobre o fenômeno das pandillas (idem as bandas) na América Latina nos anos 1990, ponta de lança para uma série de estudos e investigações que, mais tarde, seriam identificadas como juvenólogos. O estudo do antropólogo mexicano Afredo Nateras (2015), Vivo por mi madre, muero por mi barrio, sobre as bandas “Maras” na América Central. Destacamos também os trabalhos comunitários do antropólogo Rogélio Araújo, que desde sua experiência na abordagem de adicções tem observado certos padrões culturais que denomina “Cultura filicida”, caracterizando-se como uma pauta cultural o sacrifício da descendência associada ao consumo de substâncias psicoativas. Estas experiências podem ser vistas em suas obras como Barrios terapêuticos (2002) e La cultura filicida (2003).
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4
Expressão da língua espanhola que equivale a “tomar café da manhã”.
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5
A autora Marianna fez parte do corpo de especialistas que elaborou o documento.
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6
Na verdade, em um país forjado pelo assalto, pelo extermínio e pela escravização, imbricado em um passado-presente colonial, atualmente dilacerado também pela brutal exploração do capital, poderíamos afirmar que todos os anos têm sido de chumbo, não é?
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7
No escrito Ensayo sobre el don (1925), o antropólogo Marcell Mauss, a partir dos seus estudos sobre os trocas de presentes dos Maoris, propôs que nesse intercâmbio cada coisa doada ao interior de uma comunidade contém um “hau”, um espírito - geralmente associado às forças naturais, como a floresta, os climas ou os animais -, que estaría buscando constantemente voltar à sua origem em cada troca feita.
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8
Para ter acesso aos números da fanzine, entre no perfil do Instagram da Navegantes Clínica Psi (@psico_navegantes) e clique nos links de acesso na página inicial; ou envie um e-mail para psic.navegantes@gmail.com.
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9
A proposta de Davoine, que parte de muitas referências da literatura de ficção, reivindica o importante papel da narrativa no tratamento de traumas, levando-a afirmar que contar histórias é a forma mais antiga de terapia com a qual contam as pessoas. Para aprofundar-se a respeito, sugerimos a leitura de suas obras: Historia y trauma. La locura de las guerras (2011), editado por el Fondo de Cultura Económica, ou alguns de seus seminários, como os que estão em La transferencia como interferencia (2021), publicado no México por Ediciones Nandela.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
30 Jun 2025 -
Aceito
30 Jun 2025
