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Menor: o grande excluído

Menor: o grande excluído

Marlene Guirado

Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e atual presidente do CRP-06

A palavra Menor tem lugar e sentido no discurso social, quer seja ele jurídico, popular, administrativo, científico, intelectual ou poético.

Na linguagem jurídica, Menor é aquele que, não tendo ainda completado 18 ou 21 anos de idade, é considerado incapacitado para determinados atos sociais.

Na linguagem comum, por sua vez, este termo se particulariza, referindo-se à pobreza, ao abandono, ao cuidado assistencial e à infração. Representa a criança que, proveniente de família de nível socioeconômico baixo, vive em situação de abandono, marginalidade e/ou sob cuidado dos serviços públicos. Uma faixa etária, uma condição econômica e social e uma conduta delinquente atribuem sentido a esta palavra. Não é qualquer criança que é referida como menor: "É uma determinada criança que recebe este cognome, que veste esta identidade. Parece que, no interior das relações entre os diferentes grupos e classes de uma sociedade, faz-se num acordo surdo, a circunscrição de uma "infância menor", que, em última instância, é percebida - e acaba por se constituir -como uma ameaça à sobrevivência física e simbólica dos que não são Menores.

A mesma concepção se traduz na linguagem das instituições de Assistência e Promoção Social, de Secretarias, Ministérios e entidades caritativas. A criança é, nos órgãos oficiais, invariavelmente, um Menor. E, como Menor, é definida "carente", "abandonada" ou "infratora". É a parcela da população ora considerada vítima afetiva e socialmente carente, ora considerada culpada por se mostrar um renitente e teimoso empecilho ao bom andamento da instituição que a "atende". É culpada por ser uma vítima que é rebelde, não se submete à rotina das casas em que se encontra, não assimila os benefícios e cuidados que lhe são oferecidos, enfim, não responde, como se esperaria que o fizesse, à "ajuda que recebe".

Abrindo outro feixe de significados para o termo Menor, estão aqueles que, da posição de pesquisadores e estudiosos de questões sociais, procuram resgatar as relações fundantes: resgatam o interjogo da dominação econômica, social, ideológica e, sempre institucional, que engendra a existência concreta de uma parte da infância em condição de abandono bem como as representações sociais dessa existência.

O Menor é, ainda, "cantado em prosa e verso". Na música e na poesia ele é o Guri e o Pivete: um personagem ambíguo, que funde necessidade de sobrevivência e violência, quer na posição de quem ataca, quer na posição de quem é atacado; mas, inegavelmente, um personagem que desperta simpatia e afeto.

São, portanto, muitos os discursos sobre o Menor. Fala-se sobre ele e dele.

Entre afirmações sobre a ameaça e o perigo que representa, e afirmações sobre sua condição de representante de uma determinada ordem social, a criança em abandono - o Menor - é sempre lembrada, referida, mencionada. Ela tem um lugar no pensamento social, quer seja ele alienado/justificador, quer seja ele crítico questionador, quer seja ele poético.

Esse lugar, entretanto, é, via de regra, o lugar do referido, do relatado, do anunciado/denunciado, do mencionado. Não costuma ser o lugar de quem refere, relata, anuncia/denuncia, menciona. É o lugar de objeto, não de sujeito, no discurso.

É claro que há uma diferença conforme o que se fala. Um discurso que se pretende crítico, porque explicita contradição no fazer e no pensar a relação com esta parcela da população, tem um alcance social diferente daquele que legitima, apenas. Porém, tanto em um, quanto em outro caso, no momento em que o falar sobre, toma o lugar do discurso próprio, estabelece-se uma relação de apropriação. Parece não mais considerar-se que quando eu falo, faço-o do meu ponto de vista, ou seja, da perspectiva que me permite o lugar que ocupo na relação; esta fala não abarca, não substitui e nem é a mesma, daquele que ocupa o(s) outro(s) pólo(s) da relação.

No caso da infância e, mais especificamente da infância em abandono e/ou infratora, a atribuição de caráter de totalidade a um discurso parcial, configura-se numa história até certo ponto singular. A apropriação do discurso se dá no interior da longa e complexa estratégia de práticas de conservação das crianças, nas formações sociais capitalistas.

É característico da época moderna considerar a infância como uma "idade" ou "fase" da vida. Durante muito tempo, pelos altos índices de mortalidade infantil e pela estruturação política, econômica e cultural das sociedades, a criança parecia não ser reconhecida como integrante da humanidade. Se conseguisse atingir 7 anos, já era considerada adulto e passava a fazer parte da comunidade. Quando na sociedade moderna voltou-se a atenção para a criança e para a sua conservação, constituiram-se estratégias diferentes quer se tratasse da criança de família burguesa, da de família popular ou da criança delinquente.

Nas camadas burguesas, o cuidado com a infância se fez articulado ao processo de transformação da família numa unidade intimista, entre quatro paredes, com participantes muito claramente definidos, unidos pelos laços do afeto e do contrato social. A medicina, expandindo também seu âmbito de ação contribuiu muito para isso, por meio da prática do médico de família: fez da mulher — mãe e esposa — a extensão do braço médico e permitiu-lhe um estatuto diferente na relação com o homem-marido. As práticas pedagógicas e de higiene são revistas e se instaura a preocupação em liberar a criança, seu corpo, seu pensamento.

Nas camadas populares, o caminho foi (e tem sido) diferente. As famílias — aqui, de vida mais comunitária e promíscua aos olhos do Estado e da burguesia — são alvo de regramento e controle por parte dos órgãos administrativos. O esforço social em demonstrar a importância do casamento, da disciplina no trabalho, da vida caseira bem como o esforço em estabelecer padrões de higiene e organização do espaço no interior das habitações, verificaram-se por meio de recursos jurídicos e técnicos. Assim, além de leis como as de salário-família, criaram-se postos de atendimento de saúde, o que permitiu a profissionais de medicina, educação e psiquiatria, ao lado de homens de Estado e da Lei, administrarem recursos e com eles, a forma, de vida das classes populares. A infância, neste segmento da população, é, portanto, "conservada" numa estratégia diferente da infância burguesa e com o objetivo da contenção e do controle, não mais da liberação. Um projeto mais policial do que psicopedagógico, portanto; muito embora, o atendimento psicológico, educativo e sanitário tenham sido o instrumento. Estiveram, entretanto, sempre inseridos numa Política Assistencial.

A criança-infratora mereceu um terceiro tipo de atendimento e, assim, sua constituição e conservação inseriram-se numa estratégia que guarda algumas diferenças em relação às anteriores. Para cuidar dos delitos infantis foram criados os Tribunais de Menor (início do século XX). E, as medidas invariavelmente tomadas eram as de reclusão em instituições patronais e reeducativas ou de vigilância em ambiente aberto. Aqui, a Justiça e a Administração confluem numa assistência técnico-jurídico-policial. São os educadores, sanitaristas, assistentes sociais (profissões que ganham grande impulso), que fazem a vigilância e a reeducação (na mais completa intersecção das duas práticas) e o fazem como uma extensão do braço do Juiz, responsável em última instância pela criança "indiciada".

Assim, é no interjogo de determinadas práticas sociais que se institui a infância como uma fase da vida e que se delimita uma região desta infância, cujo atendimento e cuidado é território judiciário e administrativo. Esta região é a Criança-Menor.

Nesse processo fica reconhecido o direito e o dever de assistir/ julgar/ administrar bem como o direito e o dever de ser assistido/ julgado/ administrado, como atribuições de grupos distintos e complementares. A nível do discurso fica definido o lugar de quem fala e de quem é falado, de quem refere e de quem é referido; definem-se sujeitos e objetos.

Para que nosso raciocínio neste texto não se feche no determinismo linear da dominação, é importante que se denote a contradição intrínseca a este conjunto de relações sociais e discursivas.

Constituída na rede assistencial, a Criança-Menor é, como procuramos fundamentar, pensada como quem recebe, porque não dispõe de recursos e, enquanto recebe, subordina-se e admite sua incapacidade para organizar satisfatoriamente os recursos disponíveis; seu lugar enquanto assistido é, portanto, negativo: significa falta, carência. Contudo, pela própria natureza controladora dessa assistência, pode-se depreender uma inversão de sentido: o lugar-menor possui, contraditoriamente, positividade; uma positividade garantida pela infração ou pela ameaça de infração que representa. Quando a criança incomoda, porque mendigando nas ruas, "perambulando", assaltando ou "trombando", ela adquire na marginalidade, uma identidade, uma presença enquanto grupo social. Como marginal à sociedade constituída, legalizada, ela marca existência numa relação.

É, portanto, na perturbadora categoria de participação/ exclusão que a criança das classes populares se institue Menor. E, se nosso discurso (sobre) e nossa prática (em favor de) perpetuam o esforço de exclusão, pela prática e pelo discurso do abandono e da infração, a criança-menor insiste em sua participação.

Vale, enfim, comentar o fato de uma vez mais — e agora, numa revista como esta do Conselho Federal de Psicologia — repetir-se alguém, que discursa sobre o "menor". Cremos, entretanto, que do interior da contradição, este meta-discurso se justifica. Seu propósito é o de trazer uma postura, sem pretender com isto impedir ou anular seu contraponto que é o discurso da criança. Propõe-se, ainda, a contribuir para que se (re)pense nossa prática profissional enquanto psicólogo, sempre que esta prática se define na relação com esta criança.

  • DONZELOT, J. - A policia das famílias -RJ: Graal, 1981.
  • ÁRIES, P. - História Social da criança e da família - RJ: Zahar, 1978.
  • GUIRADO, M. A criança e a Febem - SP: Perspectiva, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2012
  • Data do Fascículo
    1984
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