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Temporalidade no Estabelecimento do Vínculo Parento-Filial em Adoções Malsucedidas

Temporality in Establishing the Parent-Child Bond in Unsuccessful Adoptions

Temporalidad en el Establecimiento del Vínculo Padre-Hijo en Adopciones Fallidas

Resumo

Este estudo é parte de uma ampla investigação sobre a vivência do processo de adoção malsucedida de crianças e adolescentes sob a perspectiva dos adotantes. Foi realizada uma pesquisa qualitativa, com base em entrevistas semiestruturadas com 11 sujeitos independentes, nove mulheres e dois homens, moradores de diferentes estados do Brasil, que vivenciaram adoções malsucedidas. Buscamos analisar as percepções dos adotantes relacionadas à temporalidade no estabelecimento do vínculo parento-filial nessas adoções. A temporalidade da gestação simbólica foi vivenciada pelos participantes de diferentes formas, podendo ser afetada pela lentidão no processo administrativo e/ou por fantasias e idealizações referentes à origem da criança/adolescente. Tanto a demora quanto a tentativa de agilização do processo de adoção são fatores que podem gerar ansiedade na experiência da gestação simbólica e que não serão amparados no tempo cronológico, afetando o estabelecimento do vínculo parento-filial. Ressaltamos a relevância do cuidado nos períodos iniciais de construção do vínculo parento-filial, considerando a temporalidade particular de cada caso e a história pregressa da criança/adolescente, aspecto que influencia o sucesso do processo de adoção.

Palavras-chave:
Adoção malsucedida; Adoção tardia; Vínculo parento-filial; Devolução; Temporalidade

Abstract

This study is part of a broad investigation about the experience of the unsuccessful adoption process of children and adolescents from the perspective of the adopters. Qualitative research was carried out, based on semi-structured interviews with 11 independent subjects, nine women and two men, living in different states of Brazil, who experienced unsuccessful adoptions. We seek to analyze the perceptions of adopters related to the temporality in establishing the parent-child bond in these adoptions. The temporality of the symbolic gestation was experienced by the participants in different ways, which can be affected by the slowness of the administrative process and/or by fantasies and idealizations regarding the origin of the child/adolescent. Both the delay and the attempt to speed up the adoption process are factors that can generate anxiety in the experience of symbolic gestation and that will not be supported in chronological time, affecting the establishment of the parent-child bond. The relevance of care stands out in the initial periods of parent-child bond construction considering the particular temporality of each case and the child’s/adolescent’s past history, aspect that influences the success of the adoption process.

Keywords:
Unsuccessful adoption; Late adoption; Parent-child bond; Adoption disruption; Temporality

Resumen

Este estudio es parte de una extensa investigación sobre la experiencia del proceso fallido de adopción de niños y adolescentes desde la perspectiva de los adoptantes. Se realizó una investigación cualitativa a partir de entrevistas semiestructuradas con 11 sujetos independientes, nueve mujeres y dos hombres, residentes en diferentes estados de Brasil, que experimentaron adopciones fallidas. En este trabajo se analizan las percepciones de los adoptantes relacionadas con la temporalidad en el establecimiento del vínculo padre-hijo en adopciones fallidas. La temporalidad del embarazo simbólico fue vivida por los participantes de diferentes formas, las cuales pueden verse afectadas por la lentitud del proceso administrativo y por fantasías e idealizaciones sobre el origen del niño/adolescente. Tanto la demora como el intento de agilizar el proceso de adopción pueden generar ansiedad por la vivencia del embarazo simbólico y que no serán sustentados en el tiempo cronológico, lo que afecta establecer este vínculo. Se enfatiza la relevancia del cuidado en los períodos iniciales de construcción del vínculo considerando la temporalidad particular de cada caso y la historia pasada del niño/adolescente, un aspecto que influye en el éxito del proceso de adopción.

Palabras clave:
Adopción fallida; Adopción tardía; Vínculo padre-hijo; Devolución; Temporalidad

Introdução

Podemos definir a adoção como o encontro que irá prover uma família para uma criança e um filho para pais, sem que estejam ligados pela via biológica. As relações parentais na família adotiva são baseadas nas intersecções do afeto muito mais do que na herança genética (Levinzon, 2006Levinzon, G. K. (2006). A adoção na clínica psicanalítica: o trabalho com os pais adotivos. Mudanças: Psicologia da saúde, 14(1), 24-31. https://doi.org/10.15603/2176-1019/mud.v14n1p24-31
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). A parentalidade está para além dos vínculos de sangue, uma vez que se tornar mãe/pai é um processo complexo e que não diz respeito à demarcação biológica de mulher e homem, mas ao lugar que pode vir a ser ocupado pelo filho no desejo dos pais (Oliveira, Souto, & Silva, 2017Oliveira, P. A. B. A., Souto, J. B., & Silva, E. G., Júnior. (2017). Adoção e psicanálise: A escuta do desejo de filiação. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(4), 909-922. https://doi.org/10.1590/1982-3703003672016
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).

Todo filho precisa ser adotado, o que significa dizer que para ser inscrito no lugar de filiação, é preciso da inscrição também no desejo. Por isso, em todo processo de construção da parentalidade a criança deverá ser imaginada e desejada por esses pais, como descrito por Freud (1914/ 1996b)Freud, S. (1996b). Sobre o narcisismo: Uma introdução. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 44-64). Imago. (Trabalho original publicado em 1914). O autor escreve em seu texto Sobre o narcisismo que o amor parental representa nada menos do que o retorno e reprodução do narcisismo dos pais há muito tempo perdido. Trata-se de resgatar seu próprio narcisismo infantil a partir da valorização afetiva da criança.

A inscrição dos filhos no desejo dos pais necessariamente é atravessada por questões narcísicas e está presente em todas as formas de construção da parentalidade. Destacamos que nas adoções essa inscrição leva em consideração diferentes tempos. A temporalidade da construção do vínculo parento-filial nas adoções deve ser pensada como uma gestação simbólica que, frequentemente, durará bem mais do que nove meses e é influenciada por aspectos administrativos importantes, além de afetações psíquicas que permeiam a construção da parentalidade (Silva, 2018Silva, M. P. O. (2018). Adoção: Tempo de espera e mudança de perfil dos habilitados. In G. K. Levinzon, & A. D. Lisondo. (Orgs.), Adoção: Desafios da contemporaneidade (pp. 117-136). Blucher.).

Partimos do pressuposto de que a gestação simbólica e emocional é o que qualifica o desejo por vivenciar a parentalidade. Nesse sentido, Souza e Casanova (2014Souza, H. P., & Casanova, R. P. S. (2014). Adoção e a preparação dos pretendentes: Roteiro para o trabalho nos grupos preparatórios. Juruá.) destacam que adotar seria um desafio que traz consigo dificuldades, alegrias e limitações. Aceitar o filho que não veio por meio da gestação biológica exige paciência, dedicação e renúncia, uma vez que será a partir da convivência que os desafios irão emergir. Cabe assinalar que muitos desses desafios estão presentes tanto na parentalidade construída por meio da adoção, quanto pela via biológica.

Costa e Rossetti-Ferreira (2007Costa, N. R. A., & Rossetti-Ferreira, M. C. (2007). Tornar-se pai e mãe em um processo de adoção tardia. Psicologia: Reflexão e Crítica, 20(3), 425-434. https://doi.org/10.1590/S0102-79722007000300010
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) destacam o estágio de convivência como um momento de grande fragilidade do processo de adoção. Nesse período, os vínculos estão sendo construídos, o que aumentaria as possibilidades de desistência por parte dos adotantes. Os autores ressaltam a importância de um trabalho no período pós-adoção, uma vez que o estágio de convivência apresenta particularidades, principalmente no caso de adoção tardia, quando a criança/adolescente já tem posicionamento mais ativo nas relações e traz consigo uma bagagem de experiências anteriores. Assim, faz-se necessária constante articulação entre as necessidades e os desejos tanto das crianças/adolescentes quanto dos pais.

Na adoção, o investimento narcísico se apresenta envolvido por especificidades que recaem, dentre outras, na dupla rede de referência parental. De um lado estariam os pais biológicos, enquanto do outro estariam os pais adotivos. Dessa forma, o filho adotivo se encontra diante de uma dupla lealdade em que existe um elo, apesar de rompido, com a família de origem e também um elo construído com a mãe adotiva (Machado, Féres-Carneiro, Magalhães, & Mello, 2019Machado, R. N., Féres-Carneiro, T., Magalhães, A., & Mello, R. (2019). O mito de origem em famílias adotivas. Psicologia USP, 30, 1-10. https://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e160102
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).

Entra em cena o mito do “romance familiar” (Freud, 1909/1996aFreud, S. (1996a). Romances familiares. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9, pp. 215-222). Imago. (Trabalho original publicado em 1909)), que acontece de forma particular no âmbito da adoção. De modo geral, esse mito representa uma fantasia pré-consciente construída pela criança ao descobrir que seus pais não ocupam o lugar idealizado que outrora ocuparam. Dentre as fantasias possíveis, é comum a criança pensar em si como filho adotado para amenizar a frustração imposta pelos pais da realidade. Assim, é possível imaginar uma família capaz de satisfazer narcisicamente suas necessidades, com pais dotados de qualidades e prestígios.

Esse mito teria um efeito peculiar na realidade nos filhos adotados, seguindo caminhos mais complexos que levam a imaginar que existem pais verdadeiros em oposição aos falsos. Juridicamente, a adoção substitui a filiação biológica, resolvendo a questão em seu aspecto legal. Contudo, psiquicamente esse processo se dá de forma mais complexa. Na construção do novo vínculo, a criança/adolescente terá que elaborar o duplo pertencimento familiar. Essa elaboração demanda que a criança/adolescente aceite os pais adotivos como pais comuns e falhos, da mesma forma que os pais do passado mítico (Combier & Binkowski, 2017Combier, C. V., & Binkowski, G. (2017). Adoção e mito: Os destinos do “mito familiar” na cena da família contemporânea. Estudo a partir de um caso clínico de adoção na França atual. Ágora, 20(1), 159-172. https://doi.org/10.1590/S1516-14982017001009
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).

Do lado dos pais, teremos o romance familiar narcísico de cada um deles. Estão diante da existência da dupla representação parental e, muitas vezes, recaem numa clivagem que separa os pais bons dos que seriam os pais maus, aqueles que os abandonaram. A presença tanto imaginária quanto concreta da história de origem dos filhos que chegam pela via da adoção traz a incógnita sobre a hereditariedade. Esse seria um terreno fértil para fantasias dos pais adotivos que podem impedir a construção de uma história singular que ressignifique o passado com a família de origem (Oliveira et al., 2017Oliveira, P. A. B. A., Souto, J. B., & Silva, E. G., Júnior. (2017). Adoção e psicanálise: A escuta do desejo de filiação. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(4), 909-922. https://doi.org/10.1590/1982-3703003672016
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).

Essas implicações dos vínculos precedentes também devem ser problematizadas a partir de uma perspectiva das normativas sociais construídas na direção de um modelo de família de origem patriarcal. De acordo com Teixeira Filho (2010Teixeira Filho, F. S. (2010). Os segredos da adoção e o imperativo da matriz bioparental. Revista Estudos Feministas, 18(1), 241-262. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2010000100015
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), a matriz bioparental nos faria supor que o que é natural e aceitável no âmbito da filiação está diretamente ligado aos laços de sangue. Assim, pensar a parentalidade adotiva necessariamente significa transpor as normatizações impostas pelo discurso bioparental e ir além do binômio “filho biológico” e “filho adotivo”.

Os casos de adoções bem-sucedidas evidenciam a possibilidade de desnaturalização dos referenciais bioparentais impostos em nossa sociedade (Zanardo, Teixeira Filho, & Ribeiro, 2014Zanardo, L. B., Teixeira Filho, F. S., & Ribeiro, E. M. C. (2014). Os efeitos da matriz bioparental nos processos de adoção de crianças e adolescentes. Revista de Psicologia da UNESP, 13(1), 60-85.). Ao se apropriarem da constituição familiar a partir da adoção, entendendo parentalidade adotiva como uma construção possível, são criadas redes de pertencimento e identificações que dão sentido à vivência parental e ratificam que ser mãe/pai extrapola a concepção genética. Para pensarmos a chegada da criança/adolescente na família adotiva, é preciso considerar a temporalidade da construção do vínculo parento-filial, bem como as interferências dessa dupla rede de referências tanto para adotantes, quanto para a criança/adolescente.

A Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. (2009, 3 de agosto). Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente. Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm
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, conhecida como Lei Nacional de Adoção, tem como principal proposta aperfeiçoar o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069, 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990, 13 de julho). Dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
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) para que o convívio familiar, direito de toda criança/adolescente, seja garantido. Ao entrar em cena, a Lei Nacional de Adoção busca maior ênfase na importância da reinserção na família, sendo o prazo máximo de dois anos para que a reinserção aconteça, salvo os casos em que o bem-estar das crianças/adolescentes seja permanecer na instituição (Silva & Arpini, 2013Silva, M. L., & Arpini, D. M. (2013). A nova lei nacional de adoção: Desafios para a reinserção familiar. Psicologia em Estudo, 18(1), 125-135. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722013000100013
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). Apenas quando as tentativas de reinserção foram esgotadas é que a criança entra para o Sistema Nacional de Adoção (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2018Conselho Nacional de Justiça. (2018). Justiça em números 2018: Ano-base 2017.).

Diante desse contexto, mostra-se necessária a discussão sobre a preparação da criança que entra para o Sistema Nacional de Adoção. Ao entrar para esse sistema, não significa que necessariamente houve abandono ou passagem traumática pela família de origem. Muitas vezes, o que se observa é a incapacidade de cuidar diante da vulnerabilidade das famílias que vivem à margem da sociedade. Além disso, é recorrente que famílias em vulnerabilidade social muitas vezes utilizem o serviço de acolhimento como recurso auxiliar no desenvolvimento dos filhos para conseguir prover acesso a direitos fundamentais e serviços essenciais, devido à ausência ou falhas nas políticas públicas (Bernardi, 2014Bernardi, D. C. F. (2014). Escuta de crianças e adolescentes acolhidos: O que é para eles a adoção. In C. Ladvocat, & S. Diuana (Eds.), Guia de adoção: No jurídico, no social, no psicológico e na família (pp. 149-157). Roca.).

Não é incomum que crianças convivam com suas famílias em circunstâncias precárias por alguns anos até que sejam acolhidas em instituição. Estamos diante do desamparo do Estado, que não garante a legislação que preconiza que mães sejam acolhidas para garantir a subsistência e o desenvolvimento de autonomia, permitindo que cuidem dos seus bebês. Para Kehdy (2019Kehdy, R. (2019). Quando não há aldeia para criar uma criança. Revista Cult, (251), 31-33.), muitas mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade social vivenciam um paradoxo por parte dos técnicos que acompanham a gestação. Por um lado, existem aqueles agentes sociais que irão buscar a construção do laço dessa mãe com seu bebê, sobretudo pautados na prerrogativa do ECA que prioriza o convívio familiar. Por outro, é recorrente que, no momento do parto, perspectivas moralizantes venham à tona por meio do discurso de que essa mãe seria incapaz de cuidar do filho, tendo seu direito de exercer a parentalidade questionado. Esse seria o principal motivo, levantado por Kehdy (2019)Kehdy, R. (2019). Quando não há aldeia para criar uma criança. Revista Cult, (251), 31-33., para que mulheres em situação de rua não procurem acompanhamento no pré e no pós-natal.

Buscaremos, a partir disso, pensar o luto pela família de origem não como uma necessidade imposta, mas refletir sobre o direito de toda criança conviver e se desenvolver em família, seja por adoção ou extensa, como espaço potencial para ressignificações, desde que haja cuidado, atenção e afeto. Nas adoções, a disponibilidade dos pais adotivos é fundamental para reparar o que possa ter sido vivenciado como traumático na relação parental de origem (Sampaio, Dantas, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2019Sampaio, D. S.; Dantas, C. R.; Magalhães, A. S., & Féres-Carneiro, T. (2019). Tornar-se mãe: Construindo o vínculo parento-filial na adoção tardia. Estudos & Pesquisas em Psicologia, 19(3), 735-752.). Contudo, é crucial que possa haver espaço para a história com a família de origem. Em grande parte dos casos, essa família não se enquadrou em um modelo imposto socialmente como o único capaz de prover cuidados, mas, por muito tempo, pode ter sido tudo o que a criança/adolescente conhecia.

Nessa perspectiva, Souza e Casanova (2014Souza, H. P., & Casanova, R. P. S. (2014). Adoção e a preparação dos pretendentes: Roteiro para o trabalho nos grupos preparatórios. Juruá.) salientam que desde o momento em que forem acolhidas, deve ser informado à criança/adolescente sua situação em comunicação clara e aberta. Abordar o tema da história prévia dos filhos é também assumir o paradoxo que existe entre falar sobre a origem e entrar em contato com o não saber inevitável da própria história (Machado et al., 2019Machado, R. N., Féres-Carneiro, T., Magalhães, A., & Mello, R. (2019). O mito de origem em famílias adotivas. Psicologia USP, 30, 1-10. https://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e160102
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). Mas só assim é possível abrir espaço para elaboração de lutos e experiências emocionais positivas.

É essencial a manutenção desses laços precedentes, que muitas vezes aparecem como motivo para que a criança não queira ser adotada. A discussão sobre essa indisponibilidade da criança que atravessa também a indisponibilidade e despreparo dos adotantes precisa ser pensada dentro de um processo carregado de particularidades e que teria uma temporalidade própria para cada caso.

A temporalidade dessa gestação simbólica pode ser vivenciada de diferentes formas nas experiências de quem adota, e será atravessada pelas fantasias narcísicas tanto dos pais quanto dos filhos. Além disso, o tempo administrativo do processo de adoção pode aumentar o sentimento de ansiedade diante dessa temporalidade tão singular. Este trabalho se propõe a discutir os reflexos dos vínculos familiares precedentes da criança/adolescente na temporalidade do estabelecimento do vínculo em adoções malsucedidas. Partimos da compreensão de que a adoção malsucedida diz respeito à interrupção do processo de adoção, que ocorre ainda no período de aproximação ou estágio de convivência, culminando no retorno da criança/adolescente à instituição de acolhimento (Lino, 2020Lino, M. V. (2020). Crias de um [não] lugar: Histórias de criança e adolescentes devolvidos por famílias substitutas. CRV.).

Método

Participantes

Foram entrevistados 11 sujeitos independentes, nove mulheres e dois homens, moradores de diferentes estados do Brasil, cinco do Rio de Janeiro, dois do Rio Grande do Sul, um de Minas Gerais, um de São Paulo, um do Ceará e um do Maranhão, que passaram por tentativas de adoção malsucedidas. Com relação à configuração familiar, seis participantes configuravam adoção monoparental; quatro, adoção heteroparental; e um, adoção homoparental. Todos com escolaridade superior e com idade variando entre 34 e 59 anos. Optou-se por entrevistar sujeitos independentes, ou seja, somente um dos membros do casal de pais/mães adotantes, tendo em vista que as entrevistas com ambos os membros do casal parental (sujeitos interdependentes) implicariam outra proposta metodológica de análise (focada na psicodinâmica do casal parental), o que extrapolaria os objetivos deste estudo.

O tempo de convivência com a criança variou entre um mês e dois anos e quatro meses. As crianças/adolescentes foram acolhidas pelas famílias com idades que variaram entre 4 e 15 anos, configurando as chamadas adoções tardias. A maioria estava com a guarda provisória e/ou no estágio de convivência com a criança/adolescente. Apenas um sujeito relatou a desistência ainda no período de aproximação.

Dentre os motivos relatados para a não concretização da adoção, nove foram relacionados ao comportamento da criança/adolescente e duas participantes da pesquisa foram desabilitadas durante o estágio de convivência sem que houvesse desejo para a desistência. Na apresentação dos resultados, foram atribuídas nomeações fictícias. Na Tabela 1 constam os dados dos participantes.

Tabela 1
Dados dos participantes.

Instrumento

Como instrumento de investigação, realizou-se uma entrevista individual com roteiro semiestruturado, contendo questões abertas, composta pelos seguintes eixos temáticos: Vivência da parentalidade adotiva; Intensificação dos conflitos na relação; Luto pelo filho imaginado; Rupturas do vínculo parento-filial nas adoções.

Procedimentos

Após aprovação do projeto de pesquisa pela Câmara de Ética em Pesquisa da universidade em que foi desenvolvido (número de protocolo 07/2019), os participantes foram recrutados a partir do contato com psicólogos(as) que atuam direta ou indiretamente com o tema da adoção, bem como por contatos informais em diferentes redes sociais da pesquisadora. As entrevistas foram realizadas presencialmente com os cinco participantes do estado do Rio de Janeiro e a distância, via Skype, com os demais. Foram gravadas em áudio, com a devida autorização dos participantes, mediante a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e tiveram duração média de uma hora e meia.

O material foi transcrito e submetido ao método de análise de conteúdo, na sua vertente categorial temática, com a finalidade de investigar, a partir do material discursivo, as significações atribuídas pelos entrevistados aos fenômenos (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.). Por meio da técnica categorial, foram destacadas categorias temáticas, organizadas a partir da semelhança entre os elementos contidos no material coletado. Para tal, procedeu-se uma “leitura flutuante”, agrupando-se dados significativos, identificando-os e relacionando-os, até se destacarem as categorias de análise. O ponto de saturação considerou a repetição dos temas que levaram às categorias, não emergindo, portanto, novas informações e podendo ser interrompido o ciclo de recolha e análise de dados.

Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla, cujo objetivo geral foi investigar a vivência do processo de devolução de crianças/adolescentes na perspectiva dos pais adotantes. Dessa investigação, emergiram sete categorias das narrativas dos participantes. Para atingir o objetivo de analisar as percepções dos adotantes relacionadas à temporalidade no estabelecimento do vínculo parento-filial em adoções malsucedidas, serão discutidas as categorias Temporalidade na construção do vínculo e Vínculos familiares precedentes. A temporalidade na construção do vínculo se mostrou diretamente permeada pelo histórico da criança/adolescente, sobretudo no que tange aos vínculos precedentes. Dessa forma, ambas as categorias se integram na discussão deste trabalho. As demais categorias foram discutidas em outros trabalhos.

Resultados e discussão

Temporalidade na construção do vínculo parento-filial

Esta categoria reflete a questão do tempo cronológico e do tempo subjetivo para a construção do vínculo parento-filial na adoção e se divide nas subcategorias Tempo administrativo e Tempo psíquico. Existem especificidades do tempo administrativo que estão interligadas à maneira como os operadores do direito conduzem o processo de adoção. Além disso, especificidades relacionadas às fantasias que emergem junto ao tempo psíquico no processo subjetivo de se tornar mãe/pai também se articulam à temporalidade da construção do vínculo nas adoções. Tempo administrativo e tempo psíquico acontecem de forma integrada, a divisão em duas subcategorias servirá para destacar especificidades da temporalidade na construção do vínculo parento-filial, ao mesmo tempo que se faz fundamental destacar o caráter dinâmico e indissociado dessas subcategorias.

Tempo administrativo

Um dos aspectos que emergiu nas falas dos participantes foi a observação sobre a demora e rapidez no processo administrativo da adoção. Esse resultado dicotômico se refere às particularidades de cada caso e teve relação com questões institucionais que envolvem o processo e a ação dos operadores do direito. Verificamos que tanto a demora na concretização do processo quanto a tentativa de agilizá-lo impactaram a construção do vínculo parento-filial, gerando ansiedade e sentimento de desamparo.

O tempo alongado foi percebido pelos participantes como causador de ansiedade, o que é observado nas falas a seguir:

Realmente a ansiedade atrapalha muito, né? Ao mesmo tempo, é muito difícil você não ficar ansioso, porque como eu te disse o processo é muito demorado. Então assim, a gente tem muitos altos e baixos emocionais no processo, né? Tipo, uma hora você tá: nossa, vai dar certo, tenha paciência! Daqui a pouco você tá: putz, cara, nada acontece! (Eduarda).

E é muito demorado o processo! Primeiro você vai participar das reuniões todas, aí você faz um curso pra saber se você, é . . . Primeiro você vai tirar todas as certidões, pra saber se você tem alguma pendência com a justiça, enfim (Neuza).

A literatura vem discutindo que o tempo prolongado de espera pela adoção é, principalmente, devido à escolha do perfil dos candidatos à adoção (Albuquerque, Souza, & Silva, 2019Albuquerque, L. A. F. P., Souza, A. X., & Silva, J. (2019). Representações sociais elaboradas por postulantes sobre adoção convencional e adoção tardia. Revista de Psicologia da IMED, 11(2), 15-33. https://doi.org/10.18256/2175-5027.2019.v11i2.2950
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; Fariello, 2017Fariello, L. (17 maio 2017). Adoção tardia: Tribunais dão visibilidade a criança e adolescente. Portal Eletrônico CNJ. https://www.cnj.jus.br/adocao-tardia-tribunais-dao-visibilidade-a-crianca-e-adolescente/
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). A maioria prefere bebês, brancos e do sexo feminino, características que destoam da realidade das crianças que estão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Os autores apontam que se a idade não fosse um fator tão restrito no momento da escolha do perfil do filho adotivo, essa espera seria bem menor.

O perfil das crianças disponíveis para adoção é, em sua maioria, de crianças mais velhas, configurando a adoção tardia. De modo geral, esse perfil de criança desejada pelos pretendentes à adoção diverge do que é encontrado na realidade das instituições de acolhimento no Brasil. Dessa forma, o número de pretendentes acaba sendo muito maior do que o número de crianças e adolescentes disponíveis para adoção, e o resultado disso é a permanência prolongada nos abrigos (Levinzon, 2018Levinzon, G. K. (2018). Adoção e falso self: O dilema do “bom adotado”. In G. K. Levinzon, & A. D. Lisondo (Orgs.), Adoção: Desafios da contemporaneidade (pp. 49-70). Blucher.).

Cabe ressaltar que, além das restrições na escolha do perfil por parte dos pretendentes, o tempo prolongado do processo administrativo nos processos de adoção se deve a outros fatores relevantes. Dentre eles, o número insuficiente de técnicos nas comarcas; o risco de busca de crianças para viverem em situações análogas à escravidão; o tráfico de crianças e de órgãos; e o risco de pedofilia, realidades que infelizmente não podem ser descartadas pela equipe técnica, levando à necessidade de uma avaliação criteriosa dos pretendentes à adoção.

Contudo, as falas dos entrevistados apontaram para outro fator importante que se relaciona à percepção subjetiva desse tempo de espera, em geral vivido como um tempo carregado de ansiedades. Todos os participantes da pesquisa foram adotantes de crianças maiores. Por esse motivo, a questão da idade não foi um fator crucial para o prolongamento do processo, evidenciando que essa queixa pela demora estaria muito mais relacionada à aspectos ansiogênicos do que à parte administrativa imposta pela Justiça.

Após a tramitação para habilitação, o pretendente é inserido no Cadastro Nacional de Adoção e, aqui, inicia-se a espera pela chegada do filho. Trata-se de uma gestação simbólica, que poderá durar mais do que nove meses. Conforme destaca Silva (2018Silva, M. P. O. (2018). Adoção: Tempo de espera e mudança de perfil dos habilitados. In G. K. Levinzon, & A. D. Lisondo. (Orgs.), Adoção: Desafios da contemporaneidade (pp. 117-136). Blucher.), essa espera pode ser vivenciada como uma gravidez, com a ressalva de que não se sabe ao certo quanto tempo ela durará. O que se sabe é que o tempo varia de acordo com o perfil escolhido pelo pretendente. Além disso, o tempo de espera também será afetado pela existência ou não de políticas públicas de proteção à infância no município, uma vez que isso implicará a quantidade de crianças acolhidas.

O período de gestação simbólica será permeado por fantasias e idealizações que são naturais a todo processo de construção da parentalidade, mas que, devido à especificidade do período alongado - além dos nove meses -, a ansiedade pela chegada pode favorecer distorções entre o filho imaginado e o filho da realidade, podendo ser um fator de risco para a construção do vínculo parento-filial (Bicca & Grzybowski, 2014Bicca, A., & Grzybowski, L. S. (2014). Adoção tardia: Percepções dos adotantes em relação aos períodos iniciais de adaptação. Contextos Clínicos, 7(2), 155-167. https://doi.org/10.4013/ctc.2014.72.04
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).

Alguns entrevistados destacaram em suas falas a percepção de estarem sendo pressionados a tomarem a decisão pela adoção e a insistência por parte da equipe técnica para que o processo pudesse ser agilizado, como foi o caso de Eduarda, que durante um processo de aproximação, já havia optado por desistir, mas se sentiu pressionada a dar continuidade:

Aí assim, né, é nessa hora que a gente fica com receio, né? E eu acabei aceitando porque eu falei: cara, se eu insistir e falar que eu não quero, que eu não quero, sei lá, vai que isso prejudica o meu processo. Vai que acham que eu não tô pronta pra adoção, que eu não tô preparada, sei lá! (Eduarda).

Nesse momento, Eduarda já havia desistido da adoção, mas se viu diante de fantasias, experimentando uma pressão que ela entendia como vinda da equipe técnica. Contudo, não podemos deixar de considerar todas as pressões internas carregadas de culpa diante da responsabilidade que é imposta com a desistência. É importante destacar que a percepção por parte dos pretendentes de que a equipe técnica estaria tentando agilizar o processo pode ser um indicativo da falha na comunicação. A ansiedade que ronda o processo de adoção pode criar dificuldades na compreensão das informações que chegam aos futuros pais. As falas de Catarina e Clara exemplificam isso:

A gente teve essa dificuldade de comunicação com elas [equipe técnica], sabe? Nós tivemos muita dificuldade de comunicação. Mas eu acho que elas não estavam tão próximas, tão abertas pra isso. Então assim: como vocês vão ter tudo tranquilo se vocês têm quatro crianças? [Catarina se referindo ao questionamento feito pela equipe técnica]. Tá, mas pra ter quatro crianças tem que ser um pandemônio? Porque eles são muito bonzinhos, eles são calmos, são tranquilos, eles estão felizes, né? E isso nos dificultou bastante (Catarina).

Eu entrei em desespero e procurei várias pessoas na minha família, assim, que quisesse acolher então ela, que entrasse com o pedido de guarda dela pra que a promotora entendesse que a minha família tava ali querendo cuidar, querendo ajudar. A gente só tava entendendo que não era bom pra eles ficarem juntos naquele momento e, inclusive, ela usou isso contra mim depois, dizendo que eu levei terceiros, que eu tava querendo passar a menina como se ela fosse um cachorro, né? Tem esse termo no meu processo de adoção, né? Que nós tratamos as crianças como cachorros e estávamos doando eles para terceiros. Sendo que tudo isso foi tentado ser discutido com o fórum e eles nunca ouviram a gente (Clara).

Em ambos os casos, não houve desistência na adoção, mas durante o estágio de convivência a equipe decidiu que os casais não teriam condições para adotar. No caso de Catarina, ao longo de toda entrevista, ela demonstrou sua indignação por tentar se fazer entender e sempre sentir que a equipe técnica estava assumindo postura de perseguição. O mesmo comportamento foi percebido por Clara.

Candidatos mal preparados podem dificultar o processo de construção do vínculo parento-filial (Alvarenga & Bittencourt, 2013Alvarenga, L. L., & Bittencourt, M. I. G. F. (2013). A delicada construção de um vínculo de filiação: O papel do psicólogo em processos de adoção. Pensando famílias, 17(1), 41-53.). Contudo, talvez não seja apenas a falta de informação, mas efeitos do modo como essa informação chega aos pretendentes que pode afetar a comunicação e, consequentemente, o bom andamento do processo. É preciso considerar o que é possível de ser recebido enquanto informação e de ser elaborado nesse momento de grandes mobilizações. Essa é uma dificuldade que pode gerar sentimentos de fracasso para todos os envolvidos.

Por isso, mesmo tendo acesso concreto a algumas informações durante o período de habilitação, a limitação entre a informação que chega e a que é possível de ser elaborada pode produzir mecanismos de cisão, ou seja, até que ponto seria possível assimilar toda a informação daquilo que pode não ir bem ou não ocorrer conforme o esperado? Essa questão será evidenciada apenas durante o estágio de convivência, quando o encontro com o filho da realidade começa a ser delineado. Por isso, não basta apenas investir no preparo dos adotantes, mas acompanhar diretamente o período de pós-adoção, quando os conflitos poderão ser intensificados. Cabe destacar que as equipes técnicas não contam com a estrutura necessária para esse acompanhamento de modo contínuo. Por esse motivo, as parcerias feitas com os Grupos de Apoio à Adoção são fundamentais no pós-adoção.

Outro aspecto importante relacionado com a temporalidade administrativa a ser salientado é a morosidade na destituição do poder familiar, como ilustra a fala a seguir:

Tanto é que quando elas vieram, elas não estavam destituídas. Demorou um bom tempo para sair a destituição. E aí, a gente não teve esse processo de aproximação também, talvez, acho que foi um erro do fórum (Patrícia).

A demora na destituição do poder familiar acaba sendo mais um dos empecilhos nas adoções de crianças maiores (Machado, Ferreira, & Seron, 2015Machado, L. V., Ferreira, R. R., & Seron, P. C. (2015). Adoção de crianças maiores: Sobre aspectos legais e construção do vínculo afetivo. Estudos interdisciplinares em Psicologia, 6(1), 65-81. https://doi.org/10.5433/2236-6407.2015v6n1p65
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). Em alguns estados do Brasil, como é o caso do Rio de Janeiro, o processo de adoção transcorre concomitantemente ao processo de destituição do poder familiar, tornando-se um fator agravante para o estabelecimento do vínculo parento-filial, uma vez que mantém a possibilidade de retorno da criança/adolescente para a família de origem como um fantasma no imaginário dos pais adotantes.

Temporalidade psíquica

A ansiedade dos pretendentes vai além da parte administrativa do processo de adoção, na medida em que também pode ser revelada durante o estágio de convivência na busca por serem reconhecidos como pais por seus filhos, desconsiderando a temporalidade subjetiva para o estabelecimento do vínculo. Essa ansiedade pode ser ilustrada a partir das falas a seguir:

Eu fui dando prazo, eu fui segurando ao máximo pra ver se ela chegasse pra mim, me olhasse nos olhos e me dissesse assim: eu te amo mãe. Eu tava esperando essa oportunidade. Eu tava esperando que isso acontecesse, mas não aconteceu. Então foi isso (Lucia).

Não foi uma decisão que eu tomei: ah, tô com raiva, decidi! Não, fui aguardando, fui vendo se melhorava, fui conversando explicitamente com eles sobre o que estava acontecendo, demonstrava que não tava satisfeito, tava triste, tava me deixando desmotivado pra dar continuidade. E eles sempre se mostravam muito apáticos, né? Não revidavam, não respondiam e não tinham comportamento de retorno, né? Até em grau de afetividade também era uma coisa que eu tinha muito pouco de retorno deles, né? (Pedro).

Garrafa (2019Garrafa, T. (2019). Os pais chegam antes. Revista Cult, (251), 27-29.), ao abordar o tema da angústia que seria inerente à construção da parentalidade, assinala que os pais têm papel fundamental ao designarem à criança um lugar na cadeia transgeracional. Por isso, no que tange à temporalidade do estabelecimento desse vínculo, os pais viriam primeiro e a resposta da criança a tal designação surgirá em um segundo momento. Para a autora, adoções malsucedidas podem ocorrer justamente quando os pais invertem essa temporalidade do estabelecimento do vínculo e o reconhecimento dos pais por parte dos filhos é colocado em primeiro plano e como condição para exercer a parentalidade. Acrescenta, ainda, que a posição de mãe/pai necessita dessa disponibilidade para correr riscos, incluindo aqui a quebra das expectativas.

Nos casos de adoções malsucedidas, muitos dos pais colocam como queixa principal o não reconhecimento por parte dos filhos (Souza, 2012Souza, H. P. (2012). Adoção tardia: Devolução ou desistência de um filho? A necessária preparação para adoção. Juruá.). Esse fator pode ser indicativo de motivação para adoção carregada de fantasias com excessivas idealizações, falta de preparo e busca por enquadrar a criança/adolescente na sua rotina desconsiderando a alteridade, o passado dessa criança/adolescente em busca do reconhecimento e agradecimento (Oliveira et al., 2017Oliveira, P. A. B. A., Souto, J. B., & Silva, E. G., Júnior. (2017). Adoção e psicanálise: A escuta do desejo de filiação. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(4), 909-922. https://doi.org/10.1590/1982-3703003672016
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).

A tentativa de agilizar o processo de adoção, além de ter impacto no tempo administrativo, afetará o tempo psíquico, uma vez que a temporalidade singular para a gestação simbólica estará atravessada por fantasias ao longo do estabelecimento do vínculo que necessitam de tempo para elaboração. Muitas vezes essa tentativa de agilizar o processo foi percebida pelos entrevistados como resultante das ansiedades da equipe técnica, como pode ser observado nas falas a seguir:

Porque normalmente as pessoas não querem criança mais velha. Então, quando aparece, acho que eles tentaram empurrar logo de vez pra falar, vamos tirar da frente pra poder, né? E aí, o que aconteceu? Elas dormiram em casa o último final de semana, eu devolvi elas no domingo à noite, e, quando foi na segunda-feira, o fórum me ligou dizendo que o documento já estava pronto pra eu ir buscar elas pra vir pra casa (Patrícia).

A gente acabou não tendo aquele momento inicial de conhecer de fato as crianças, de sermos acolhidos por um técnico da Vara da Infância, de conhecer as crianças dentro do abrigo. Então, todas essas etapas acabaram sendo puladas. No momento foi maravilhoso, porque assim a gente compreendeu: nossa, que bom, né? O juiz então aceitou que, por a gente ser distante, deu essa chance pra gente. Só que, na verdade, isso depois foi catastrófico, né? Porque a gente acabou não tendo um acompanhamento técnico (Clara).

As adoções consideradas difíceis - como adoção de crianças maiores, inter-raciais, de grupo de irmãos, crianças com algum tipo de deficiência, entre outras - colocam os profissionais diante do dilema de agilizar o processo e garantir uma família para essas crianças antes que o tempo se esgote, ou enfrentar as etapas administrativas cuidadosamente de forma mais lenta, garantindo o bom desfecho da adoção.

Quanto maior a idade na escolha do perfil, mais curto se torna o tempo de espera. Nesse sentido, a discussão realizada por Silva (2018Silva, M. P. O. (2018). Adoção: Tempo de espera e mudança de perfil dos habilitados. In G. K. Levinzon, & A. D. Lisondo. (Orgs.), Adoção: Desafios da contemporaneidade (pp. 117-136). Blucher.) sobre o assunto levanta um ponto importante. A autora assinala que os trabalhos feitos na direção de conscientização dos pretendentes para a adoção de crianças maiores têm surtido efeito, já que as restrições feitas pelos pretendentes vêm diminuindo, fruto do trabalho dos Grupos de Apoio à Adoção em conjunto com as autoridades do Judiciário, do Ministério Público e da Sociedade Civil. Todavia, o número de famílias que desistem da adoção durante o período de convivência também vem aumentando consideravelmente.

Passado e presente se misturam na tentativa de uma nova construção para ambos os lados no processo de adoção. Reflexos da história psíquica estão presentes em pais e filhos ao longo desse processo (Alvarenga & Bittencourt, 2013Alvarenga, L. L., & Bittencourt, M. I. G. F. (2013). A delicada construção de um vínculo de filiação: O papel do psicólogo em processos de adoção. Pensando famílias, 17(1), 41-53.). Nesse sentido, seja na demora ou na agilização, o espectro de especificidades relativo aos modos como essa temporalidade é percebida pelos pais adotantes é atravessado por questões da história pregressa das crianças/adolescentes. Esse ponto se relaciona diretamente com a próxima categoria de análise, que discute os vínculos familiares precedentes das crianças/adolescentes.

Vínculos familiares precedentes

Nos relatos dos participantes da pesquisa, o histórico da criança, bem como a bagagem de vivências emergiram como fatores que tiveram algum peso para a desistência da adoção. Em alguns casos, esse histórico apareceu como um fantasma do “sangue ruim” e das possíveis repetições de comportamentos remetidos à genética.

Não dava, não tinha condição. Aquela confiança que ela teve já tinha acabado, né? Medo de acontecer uma tragédia dentro de casa, comecei a imaginar o histórico da mãe dela, pensei se ela tinha herdado algo desse tipo. . . . Então eu imaginei isso, que, sei lá, se ela realmente tiver herdado alguma coisa da mãe dela ela pode ser capaz de fazer qualquer coisa, mesmo tendo sete anos de idade (Fernando).

No âmbito da parentalidade adotiva, existe a crença de que filhos, cedo ou tarde, trarão problemas justamente pela condição imposta pela adoção (Weber, 2007Weber, L. N. D. (2007). Filhos adotivos, pais adotados: Depoimentos e histórias de escolhas. Gráfica Capital.). Essa forma de pensar parece estar fundamentada no medo do desconhecido que viria acompanhado por fantasias sobre o que poderia vir como herança dos genitores. Ainda segundo Weber (2007)Weber, L. N. D. (2007). Filhos adotivos, pais adotados: Depoimentos e histórias de escolhas. Gráfica Capital., creditar um comportamento inadequado à herança genética faz parte de um posicionamento cômodo, uma vez que a família adotiva não precisaria, com isso, se responsabilizar pela participação e/ou contribuição para tal comportamento.

A relação do filho adotivo com a “criança problema” norteada pela crença nos laços consanguíneos precisa ser problematizada também a partir de um viés de construção social. Existe um discurso que oferece legitimidade e valorização à constituição familiar a partir dos laços de sangue, negligenciando a forma afetiva de construção da parentalidade (Teixeira Filho, 2010Teixeira Filho, F. S. (2010). Os segredos da adoção e o imperativo da matriz bioparental. Revista Estudos Feministas, 18(1), 241-262. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2010000100015
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). Isso nos reporta ao imperativo parental que se liga a uma necessidade de transmissão genética que garanta a continuidade da existência a partir da revivescência de seu próprio narcisismo (Freud, 1914/1996bFreud, S. (1996b). Sobre o narcisismo: Uma introdução. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 44-64). Imago. (Trabalho original publicado em 1914)).

Todo filho precisa ser adotado, ou seja, tanto o filho biológico quanto o adotivo necessitam de inscrição no desejo dos pais (Dolto, 1998Dolto, F. (1998). Destinos de crianças: Adoção, família, trabalho social. Martins Fontes.). Com isso, indo mais além e retomando Schettini Filho (1999Schettini Filho, L. (1999). Adoção: Origem, segredo e revelação. Bagaço.), faz-se necessário rever o binômio “filho biológico e filho adotado”. Para o autor, todos os filhos se encaixariam nas duas modalidades, uma vez que o biológico é a maneira pela qual iniciamos nossa existência física e adotivo porque é a única maneira legítima de se tornar filho na inscrição do desejo do outro.

Por isso, podemos pensar as falas registradas como o encontro desses pais com o estranho, que no sentido do que foi proposto por Freud (1919/1996c)Freud, S. (1996c). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 137-162). Imago. (Trabalho original publicado em 1919), Unheimlich se aproxima de tudo o que deveria permanecer oculto, mas vem à tona. O estranho não é aquilo que se desconhece, ao contrário, Unheimlich seria algo familiar, algo que deveria ter permanecido no desconhecimento, mas que se revelou. Dessa forma, podemos articular as falas dos entrevistados com a incompatibilidade de conviver com duas histórias distintas: a da criança com os genitores e da criança com os pais adotivos (Queiroz, 2004Queiroz, E. F. (2004). O “estranho” filho adotivo. Uma leitura clínica do Unheimlich na adoção. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(4), 100-111. https://doi.org/10.1590/1415-47142004004007
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).

O desconhecimento da história pregressa da criança também foi citado como um fator de interferência. Lidar com o estranho que vem junto com o filho que chega apareceu como complicador para o estabelecimento do vínculo, conforme o relato de Patrícia: “O fórum, ele não aprofunda muito a história, né? Então, é o básico do básico, e muita coisa que a gente ficou sabendo foi quando a Luana veio”.

O desconhecimento da história pregressa da criança/adolescente muitas vezes se dá pela impossibilidade de acessar essas informações, uma vez que a criança/adolescente pode ter passado por diferentes abrigos e muitas vezes esses registros se perdem, além de haver diferentes técnicos responsáveis pelo caso. Ademais, muitas vezes, dada a precariedade da situação, o acesso à família biológica para levantamento de algumas informações importantes também se mostra limitado.

Esse descompasso entre o filho ideal e o da realidade pode fazer surgir fantasmas que irão atravessar a relação com os filhos. Alguns desses fantasmas seriam a herança genética; a ameaça de perda do amor do filho a partir da busca pelos pais de origem; e a garantia de que os genitores não irão reivindicar o poder familiar (Bicca & Grzybowski, 2014Bicca, A., & Grzybowski, L. S. (2014). Adoção tardia: Percepções dos adotantes em relação aos períodos iniciais de adaptação. Contextos Clínicos, 7(2), 155-167. https://doi.org/10.4013/ctc.2014.72.04
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; Queiroz, 2004Queiroz, E. F. (2004). O “estranho” filho adotivo. Uma leitura clínica do Unheimlich na adoção. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(4), 100-111. https://doi.org/10.1590/1415-47142004004007
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).

Outro aspecto presente nas falas dos entrevistados diz respeito à presença tanto imaginária quanto concreta da família biológica. Esse fator emergiu como complicador no momento do estabelecimento do vínculo para os participantes da pesquisa. Algumas crianças mantinham contato com a família biológica, outras conviveram com ela por anos e estavam recém-acolhidas em instituição:

Eu acho que isso também foi um ponto negativo nesse processo, porque não teve tempo de conhecer, de se conhecer. Nem dela conhecer a gente, nem a gente conhecer ela, né? E aí, foi no dia a dia mesmo. Só que aí, foi passando e aí ela foi mostrando realmente que ela não queria, então assim, ela veio pra minha casa com o celular, ela tinha contato com a família biológica pelo celular (Patrícia).

Ele tava lá há um ano [no abrigo]. Ele passou dez anos com a família biológica. . . . No caso do Lucas, especificamente, eu sentia que ele tinha um vínculo muito grande ainda com a família biológica e eu acho que isso também atrapalhou um pouco . . . O processo talvez tenha sido assim, não tenha sido feito esse desvínculo com a família biológica, com a própria casa de acolhimento. Talvez não tenha sido muito bem processado isso com ele. Talvez tenha sido rápido demais mesmo (Heloísa).

As condições que envolvem o rompimento com a família de origem não necessariamente passam pelo viés traumático ou do abandono intencional. Contudo, esse rompimento trará consigo consequências psíquicas justamente por representar a ruptura com o primeiro objeto de amor, sendo experienciado no âmbito psíquico como fantasma do abandono (Speck, Queiroz, & Martin-Mattera, 2018Speck, S., Queiroz, E. F., & Martin-Mattera, P. (2018). Desafios da clínica da adoção: Devolução de crianças. Estudos de Psicanálise, (49), 181-186.). Assim, é preciso considerar que no momento que a criança é inserida na família adotiva, o retorno fantasmático da família de origem pode ser projetado na família adotiva indicando a condensação das duas imagos parentais, incidindo sobre o duplo pertencimento no vínculo adotivo (Combier & Binkowski, 2017Combier, C. V., & Binkowski, G. (2017). Adoção e mito: Os destinos do “mito familiar” na cena da família contemporânea. Estudo a partir de um caso clínico de adoção na França atual. Ágora, 20(1), 159-172. https://doi.org/10.1590/S1516-14982017001009
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).

A dificuldade de se confrontar com as origens dos filhos pode, em alguns momentos, fazer emergir certa disputa com a “família verdadeira”, como podemos ver ilustrado nas falas de Lucia e Eduarda:

Por que você aceitou vir pro Rio de Janeiro comigo, ser minha filha e agora você está dizendo que não gosta de mim? “Por que eu pensei que fosse ser feliz”. O que é felicidade pra você? “Felicidade é a minha mãe biológica, a minha família biológica”, Aí eu falei pra ela: mas a sua família biológica ficou lá [município da família de origem] a sua mãe. Eu achei até que fui dura com ela, mas é a realidade, a sua mãe não quis você, mas eu quero você! (Lucia).

Eu ainda falei: Vitor, olha só, para! Eu não vou fazer as coisas do jeito que você quer. Ainda falei assim: para de pedir coisa demais pra sua vó. A sua avó, porque eu ouvi ela comentando sobre aluguel social, cara, a sua vó vive com dificuldade, você acabou de fazer aniversário, ela te deu um monte de coisa e você fica pedindo pra ela te dar tudo que você quer. Para de pedir pra sua vó! “Ah, para de falar da minha vó, você não sabe nada da minha vó!” Sei que foi assim, um bate-boca (Eduarda).

No âmbito da adoção, existem fantasias e mitos em ambos os lados. Para a criança/adolescente, o romance familiar (Freud, 1909/1996aFreud, S. (1996a). Romances familiares. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9, pp. 215-222). Imago. (Trabalho original publicado em 1909)) se atualiza na realidade de novos pais que podem ocupar um lugar idealizado. Faz-se referência à parentalidade dupla na realidade e não apenas na ficção. Para os pais adotivos, esse processo trará à tona o romance familiar narcísico. Eles se encontram diante da dupla existência de referências parentais para o filho: a biológica e a adotiva. Para tentar organizar a clivagem das imagos parentais, se apoiam na fantasia de pertencerem do lado dos “bons pais”, enquanto a família biológica representaria os “maus pais” (Combier & Binkowski, 2017Combier, C. V., & Binkowski, G. (2017). Adoção e mito: Os destinos do “mito familiar” na cena da família contemporânea. Estudo a partir de um caso clínico de adoção na França atual. Ágora, 20(1), 159-172. https://doi.org/10.1590/S1516-14982017001009
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).

Outra fala recorrente dos entrevistados foi de que a criança/adolescente não queria ser adotado:

Eu não sei se ela não estava aceitando a adoção, ela não queria ser adotada, ela não queria romper o vínculo com os irmãos, que estavam também, tinham dois irmãos que estavam na casa lar, mas que ela, embora sempre falasse, né? Olha Lara, depois vai poder manter contato com eles sem problemas, a gente vai conversando, né? Mas ela assim, ela não, ela era assim digamos um espírito muito orgulhoso também, né? (Marina).

Ele, apesar desses problemas todos, ele nunca quis ser adotado, ele fala isso. Eles nunca me esconderam isso, desde o início eles falavam: olha, ele tem uma resistência muito grande em ser adotado. Mas enfim, a gente tem a esperança de que ele tendo um apadrinhamento, que ele vá convivendo, que de repente ele mude de ideia (Eduarda).

Alguns autores irão abordar a importância da elaboração do luto da criança/adolescente da família de origem para que possa se vincular à família adotiva (Menezes & Dias, 2018Menezes, K. L., & Dias, C. M. S. B. (2018). Preparação da criança institucionalizada para adoção [Apresentação de trabalho]. 7º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa, Fortaleza, Ceará, Brasil.; Paiva, 2014Paiva, L. D. (2014). Escuta e preparação da criança para construção de uma nova família na adoção internacional. InC. Ladvocat , & S. Diuana (Orgs.), Guia de adoção: No jurídico, no social, no psicológico e na família (pp. 331-441). Guanabara Koogan.; Speck et al., 2018Speck, S., Queiroz, E. F., & Martin-Mattera, P. (2018). Desafios da clínica da adoção: Devolução de crianças. Estudos de Psicanálise, (49), 181-186.). A elaboração do luto relativo aos vínculos com a família de origem não é um processo nem um pouco simples. Além disso, após o convívio nas instituições de acolhimento, vínculos também são formados, evidenciando outras elaborações de luto necessárias.

As falas dos entrevistados evidenciaram o sentimento de inadotabilidade como um dos fatores para a devolução. Geralmente, esse sentimento surge a partir do mau comportamento da criança/adolescente, sendo a principal justificativa para quem desiste da adoção (Ghirardi, 2015Ghirardi, M. L. A. M. (2015). Devolução de crianças adotadas: Um estudo psicanalítico. Primavera Editorial.; Levinzon, 2018Levinzon, G. K. (2018). Adoção e falso self: O dilema do “bom adotado”. In G. K. Levinzon, & A. D. Lisondo (Orgs.), Adoção: Desafios da contemporaneidade (pp. 49-70). Blucher.). O mau comportamento, na maioria dos casos de devolução, será compreendido pelo adotante como um “não querer ser adotado”.

Menezes e Dias (2018Menezes, K. L., & Dias, C. M. S. B. (2018). Preparação da criança institucionalizada para adoção [Apresentação de trabalho]. 7º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa, Fortaleza, Ceará, Brasil.) apontam que adotar psiquicamente é poder demonstrar disponibilidade e continência para as reparações necessárias. Essas reparações se darão no processo de estabelecimento do vínculo parento-filial. Nas falas dos entrevistados foi possível observar que em alguns casos, a criança/adolescente tinha comportamentos que eram entendidos pelo adotante somente como ataques, sem reconhecimento da demanda de reparação por parte da criança/adolescente, como nas falas a seguir:

Aí ela foi pra nossa casa em maio, assim, finalzinho de maio, quando foi mais ou menos em agosto ela já começou a ter umas reações agressivas, né? Ela já tava na escola, procuramos logo em seguida uma escola e tudo. Aí ela começou com uma agressividade, quando era contrariada não aceitava não. Quando era contrariada começava a quebrar as coisas no chão (Isabel).

Aí tinha dias que ela tinha crises, quando eu ficava ali insistindo, ela tinha crises, começava a gritar, que nem uma louca! E gritava e gritava e saia correndo, ia lá pro banheiro (Lucia).

Os movimentos de agressividade podem fazer parte do processo de estabelecimento do vínculo parento-filial nas adoções de crianças maiores. Trata-se de uma fase importante, em que os pais não devem se deixar ferir em sua capacidade parental. É fundamental que eles consigam suportar a hostilidade, oferecendo contenção e possibilitando que reparações sejam feitas a partir da construção do sentimento de que os vínculos permanecerão e que não serão dissolvidos ou rompidos devido aos ataques produzidos pela criança/adolescente (Otuka, Scorsolini-Comin, & Santos, 2012Otuka, L. K, Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2012). Adoção suficientemente boa: Experiência de um casal com filhos biológicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28(1), 55-63. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722012000100007
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).

No caso de Lucia, quando a comunicação da desistência foi feita à Bruna, a reação da adolescente, relatada por Lucia, sugere sua necessidade por suporte e contenção, além de indicar que ainda haveria espaço para novas construções de vínculo. Lucia fez o comunicado da volta da adolescente para o abrigo após decidir pela devolução e comprar as passagens para o estado de origem da menina:

Ela ia fazer quinze anos no final de maio, isso foi no início de maio. Ela falou assim: ah, então podemos voltar depois do meu aniversário? Não, não dá pra adiar as passagens aéreas não. Já estão compradas, vamos embora logo. Já é pra resolver logo isso. Não tem como adiar mais. Ponto (Lucia).

De modo diferente, a fala de Heloísa demonstra o quanto Lucas ainda estava vinculado à família de origem. Importante destacar que, neste caso, ele conviveu durante dez anos com a família biológica e estava institucionalizado há um ano:

Mas aí eu falei assim: nossa, Lucas, eu tô tão feliz que deu tudo certo, o juiz autorizou. A gente vai pro Rio de Janeiro! Isso era uma quinta-feira e nós voltaríamos pro Rio na segunda. E aí ele virou pra mim e falou assim: “ah, eu não quero que dê tudo certo não! Porque assim eu posso voltar pra casa”. Casa é a casa de acolhimento, ele sempre chamou de casa. Casa de acolhimento ele chama de casa . . . Mas desde o início já foi assim, quando ele chegou lá em casa eu senti que ele ficou assim, não sei se a palavra é essa: decepcionado. Eu acho que talvez não tenha sido aquilo que ele tenha esperado, eu não sei. Questão de casa, de lugar (Heloísa).

Heloísa interpreta a “volta para casa” como retorno ao abrigo, mas podemos pensar sobre o quanto as vivências familiares ainda estavam muito fortes para ele e o quanto esse um ano vivendo institucionalizado teria sido insuficiente para elaborar tantas transformações.

A preparação da criança/adolescente não irá garantir plenas elaborações das vivências familiares anteriores, sobretudo no que tange à adoção de crianças maiores. Este é um trabalho árduo que será feito, ou não, ao longo da vida (Paiva, 2014Paiva, L. D. (2014). Escuta e preparação da criança para construção de uma nova família na adoção internacional. InC. Ladvocat , & S. Diuana (Orgs.), Guia de adoção: No jurídico, no social, no psicológico e na família (pp. 331-441). Guanabara Koogan.). Por isso, acolher a temporalidade singular de cada caso, bem como a historicidade que vem junto de cada criança/adolescente é um fator crucial para pensarmos o bom andamento dos processos de adoção.

Considerações finais

A adoção representa o encontro de dois sofrimentos: da criança que, por algum motivo, teve seu convívio com a família de origem rompido e de pais que buscam construir a parentalidade pela via adotiva e não biológica. É um processo cuja temporalidade permeia não apenas o cronológico, mas também o subjetivo.

Os sujeitos são confrontados com a necessidade do cuidado no momento do estabelecimento do vínculo parento-filial nas adoções, sobretudo quando se trata de crianças maiores. Adotar requer espaço para uma gestação simbólica, com um pré-natal que deve ser minucioso e cuidadoso para que tanto a demora nessa espera quanto a tentativa de agilizar a chegada do filho não se tornem fatores de risco para a desistência durante o estágio de convivência.

Muitas vezes, a parte administrativa inerente ao processo de adoção pode gerar muita ansiedade nos pretendentes. Esse efeito convoca os futuros pais a terem paciência diante da gestação simbólica na adoção. Todavia, após a chegada do filho, outra temporalidade se instaura, a do estabelecimento do vínculo parento-filial. Pais e filhos se veem às voltas com aspectos narcísicos, idealizações, fantasias e expectativas que podem interferir nesse processo tão delicado de adoção mútua.

Este estudo evidenciou a necessidade de se pensar os laços adotivos para além do jurídico. A inclusão no Cadastro Nacional de Adoção significa que, juridicamente, as tentativas de reinserção na família biológica foram esgotadas. Contudo, ao trazermos a noção de que os laços estariam para além do jurídico, queremos dizer que não é possível garantir que o vínculo tenha sido rompido afetivamente. Aspectos relacionados às experiências anteriores do filho emergem como temor frente ao estranho, diferente e desconhecido da história pregressa da criança/adolescente. Existe uma família anterior que pode não se enquadrar no ideal esperado, mas que por algum tempo pode ter sido o principal referencial da criança/adolescente.

Este estudo apresentou resultados que apontam para a necessidade de evitar intervenções que sigam a noção estigmatizante das famílias marginalizadas como incapazes de cuidar de seus filhos. Pensar a respeito da garantia de toda criança/adolescente em ter uma família requer cuidado no que tange à ressignificação da história pregressa da criança/adolescente, abrindo espaço para que essa história possa existir sem que seja atacada e estigmatizada, sendo assimilada no estabelecimento do vínculo parento-filial adotivo.

A reflexão sobre o preparo das crianças se torna um tema urgente a ser discutido. O limiar entre o desejo de ser adotado e não acaba sendo bastante tênue. É necessário diferenciar o movimento natural de testagem da criança/adolescente no período de estabelecimento do vínculo e a indisponibilidade, tanto interna quanto externa, de se vincular à nova família.

Por fim, destacamos a importância de novos estudos que abarquem a preparação tanto de candidatos quanto das crianças/adolescentes disponíveis. Cabe destacar que essa preparação deve considerar a capacidade do receptor de assimilar a informação, ou seja, nem sempre o que é dito pela equipe técnica é passível de ser assimilado e, muitas vezes, pode ser vivenciada mais como transmissão de informações do que como preparo psicológico concernente às particularidades do estabelecimento do vínculo parento-filial adotivo. Por isso a importância de repetir e acompanhar a experiência nas diferentes etapas do processo, considerando a temporalidade de cada caso. Estamos lidando com o desejo do outro e, por esse motivo, enquadrar ou padronizar os caminhos que esse desejo percorre pode ser um erro nos processos de adoção. É importante que, diante de todas as especificidades que essa construção impõe, seja dada relevância para os aspectos psíquicos que envolvem essa preparação, marcada por experiências pessoais diversas para ambos os lados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2021
  • Aceito
    29 Out 2021
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