Open-access “E sobre as Lésbicas?”: A Resolução CFP nº 01/1999 entre Silêncios, Disputas e Políticas de Cuidado

“What About Lesbians?”: CFP Resolution 01/1999 between Silences, Disputes and Care Policies

“¿Y las Lesbianas?”: Resolución CFP 01/1999 entre Silencios, Disputas y Políticas de Cuidados

Resumo

Este ensaio questiona o lugar das lesbianidades nos debates propostos pela Resolução CFP nº 01/1999. Para isso, pontua a construção histórica e política da Resolução, a contribuição dos movimentos sociais LGBTQIA+ e a ainda incipiente presença do recorte das lesbianidades nas políticas públicas no Brasil. O texto tem como objetivo refletir sobre a importância da escuta ativa e da articulação com os movimentos sociais para o aprimoramento do exercício profissional e das políticas públicas voltadas às mulheres lésbicas. A partir de revisão bibliográfica e reflexão crítica, discute o papel da Psicologia como campo privilegiado e capilarizado, capaz de atuar em diversas políticas públicas e na clínica, espaços potentes para a escuta e elaboração das subjetividades dissidentes. Destaca que marcos normativos como a Resolução CFP nº 01/1999 são fundamentais, mas que a despatologização é um processo contínuo que deve atravessar a formação e a prática profissional. Conclui-se que a inclusão das lesbianidades nas políticas públicas, na formação em Psicologia e no debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos é essencial para o enfrentamento das práticas heteronormativas e para a construção de uma Psicologia socialmente comprometida.

Palavras-chave:
Psicologia; Lesbianidade; Políticas públicas; Direitos humanos

Abstract

This essay questions the place of lesbianities in the debates prompted by CFP Resolution Nº. 01/1999. For this, it outlines the historical and political construction of the Resolution, the contribution of LGBTQIA+ social movements, and the still incipient presence of lesbian perspectives in public policies in Brazil. This essay aims to reflect on the importance of active listening and articulation with social movements to improve professional practice and public policies aimed at lesbian women. Based on a literature review and critical reflection, this essay discusses the role of Psychology as a privileged and far-reaching field that can operate within multiple public policies and in clinical settings - spaces that are powerful for listening to and elaborating dissident subjectivities. It emphasizes that normative frameworks such as CFP Resolution Nº. 01/1999 are fundamental, but that depathologization configures a continuous process that must guide professional training and practice. It concludes that the inclusion of lesbianities in public policies in Psychology education and in the debate on sexual and reproductive rights is essential to oppose heteronormative practices and build a socially committed psychology.

Keywords:
Psychology; Lesbianity; Public policies; Human rights

Resumen

Este ensayo cuestiona el lugar de las lesbianidades en los debates propuestos por la Resolución CFP 01/1999. Para ello, presenta la construcción histórica y política de la Resolución, la contribución de los movimientos sociales LGBTQIA+ y la todavía incipiente presencia del enfoque lésbico en las políticas públicas en Brasil. El objetivo de este texto es reflexionar sobre la importancia de la escucha activa y de la articulación con los movimientos sociales para mejorar el ejercicio profesional y las políticas públicas dirigidas a las mujeres lesbianas. A partir de una revisión bibliográfica y una reflexión crítica, discute el papel de la Psicología como un campo privilegiado y de amplia presencia, capaz de actuar en diversas políticas públicas y en la clínica, espacios potentes para la escucha y la elaboración de subjetividades disidentes. Se destaca que los marcos normativos como la Resolución CFP 01/1999 son fundamentales, aunque la despatologización es un proceso continuo que debe atravesar la formación y la práctica profesional. Se concluye que la inclusión de las lesbianidades en las políticas públicas, en la formación en Psicología y en el debate sobre los derechos sexuales y reproductivos es esencial para enfrentar las prácticas heteronormativas y construir una Psicología socialmente comprometida.

Palabras clave:
Psicología; Lesbianidad; Políticas públicas; Derechos humanos

O que uma lésbica leva no segundo encontro? A resposta à anedota pode variar entre a escova de dente, a chave do apartamento e o caminhão de mudanças. A literatura científica no campo das humanidades sobre lesbianidades vai indicar que, aparentemente, quando não estamos estabelecendo parcerias afetivas em coabitação (ou enquanto isso acontece) estamos também lidando com as dinâmicas cisheteronormativas que regem as vivências em sociedade. Por sermos mulheres em sociedades misóginas, por precisarmos afirmar a legitimidade de nossos desejos e exercícios sexuais, dificultada socialmente (muitas vezes, mas nem sempre) pela ausência imaginada de um pênis em cena, por lidar com violências sociais, intrafamiliares, conjugais, insuficiências nas políticas públicas de saúde, dinâmicas da maternidade e a busca pelo bem viver.

As narrativas de mulheres lésbicas negras e/ou não brancas, assim como daquelas que não performam feminilidade, seja por singularidades de gênero, seja por marcações de classe, foram fundamentais para discutirmos publicamente as violências específicas sofridas por mulheres lésbicas. A invisibilidade das nossas demandas e dos registros históricos de nossas sociabilidades, não apagam ou nos protegem dos custos de uma dissidência de gênero, da ousadia de se afetar romântica e sexualmente por outra mulher. Quando essas diferenças são nomeadas, elas concretizam o intercruzamento entre lesbianidade e aspectos raciais, regionais, das corporalidades, geracionais e dos posicionamentos políticos, por exemplo, indicando como essas trajetórias, suas possibilidades de existir e resistir podem ser heterogêneas.

As autoras desta publicação são psicólogas lésbicas e/ou bissexuais. Pertencemos a uma categoria profissional estimada em mais de 550 mil pessoas, composta por cerca de 90% de mulheres, provavelmente, muitas delas, também lésbicas. Fazemos a psicologia brasileira, como ciência e profissão, a partir dessa posição de sujeitas e esse marcador que nos une, foi considerado uma anormalidade durante boa parte da história da Psicologia como disciplina.

A sexualidade, enquanto categoria científica e discursiva, constitui uma invenção relativamente recente no pensamento ocidental. Michel Foucault (1976/1988), ao analisar os regimes de saber e poder, destaca que a sexualidade passou a ser tematizada como objeto de saber a partir do século XIX, momento em que se intensifica a consolidação de campos como a Medicina, a Psiquiatria e a Psicologia. Esse processo resultou na medicalização e patologização de condutas sexuais, especialmente aquelas que escapavam à norma heterossexual. A homossexualidade, por exemplo, deixou de ser apenas uma prática para tornar-se uma identidade diagnosticável, atravessada por categorias como perversão, degeneração e desvio.

A Psicanálise freudiana também teve papel central nesse deslocamento epistemológico. Ao posicionar a sexualidade como elemento estruturante da subjetividade, Freud (1905/2004) amplia o entendimento da vida sexual para além de sua função reprodutiva, situando-a no campo do desejo e do prazer. Esse novo olhar, no entanto, não se descolou das normatividades vigentes, variações da heterossexualidade foram muitas vezes lidas como marcas de falhas no desenvolvimento psicossexual, consolidando-se como patologias que deveriam ser tratadas ou corrigidas.

A Psicologia e a Psiquiatria, ao se debruçarem sobre a sexualidade, não apenas contribuíram para seu enquadramento como objeto de conhecimento científico, mas também ampliaram os dispositivos de controle sobre os corpos e desejos. Processos que inscreveram a sexualidade como campo privilegiado de regulação e moralização dos corpos, da vida psíquica e social. Como apontam Aragusuku e Lee (2015):

Em seu diferencial, os saberes psicológicos e psiquiátricos amplificaram as técnicas de controle ao transformarem a sexualidade em um campo de constante vigia e normatização, evocando noções como saúde sexual, normalidade, perversão, desvio; construindo assim uma esfera da vida humana que diz sobre a verdadeira essência emocional e subjetiva das pessoas (p. 137).

No campo das políticas públicas, particularmente na saúde, a população LGBTQIA+ foi historicamente tratada como grupo de risco ou alvo de campanhas sanitárias. Essas estratégias, centradas no controle e na contenção de condutas desviantes, reforçavam uma abordagem biomédica da sexualidade, pautada em paradigmas de normalidade e risco. Com o avanço das mobilizações sociais e o fortalecimento dos movimentos LGBTQIA+ a partir da segunda metade do século XX, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, essas populações passam a reivindicar não apenas reconhecimento simbólico, mas políticas públicas efetivas e acesso a direitos civis (Bento, 2006; Louro, 2001).

É nesse contexto que se consolidam, também no campo da Psicologia, algumas abordagens críticas, que buscam tensionar os limites da produção de conhecimento científico e suas implicações políticas. Inspiradas por reflexões dos feminismos, dos movimentos negros e das teorias pós-coloniais, essas perspectivas denunciam os efeitos normativos dos discursos psicológicos sobre gênero e sexualidade, propondo análises que consideram as interseções entre classe, raça, colonialidade e heteronormatividade (Bento, 2006, Louro, 2001).

Importante destacar que muitas das formulações que influenciaram essas proposições questionadoras foram elaboradas por teóricas lésbicas que, a partir de suas vivências e deslocamentos epistemológicos, propuseram novas formas de compreender a sexualidade e o gênero. Gayle Rubin (1984) problematizou as hierarquias morais que organizam as práticas sexuais e propôs o conceito de sistema sexo/gênero. Adrienne Rich (1980) introduziu a noção de heterossexualidade compulsória, enquanto Teresa de Lauretis (1987) elaborava sobre as tecnologias de gênero e Judith Butler (1990/2003) questionava as categorias fixas de identidade e atentava para o caráter performativo do gênero. Todas contribuíram e disputaram os sentidos de uma outra forma de pensar as dissidências, de se apropriar do “queer”, ampliando e promovendo uma ruptura com os modelos essencialistas. Abrindo caminhos para outras produções críticas no âmbito da psicologia, mais sensíveis ao que não se conforma nas experiências subjetivas.

Este ensaio apresenta reflexões sobre lesbianidades e a Resolução CFP nº 01/1999 que estabeleceu um posicionamento não só político, mas também normativo da Psicologia brasileira em relação à despatologização das homossexualidades, 26 anos após a sua publicação. O documento encorpou um caminho de regulamentações subsequentes que firmaram o compromisso com o reconhecimento da pluralidade, legitimidade e defesa das diferentes manifestações e vivências de gênero e das sexualidades, como a Resolução CFP nº 01/2018 que estabelece normas para atendimento a pessoas travestis, transexuais e transmasculinas, incorporando identidade de gênero; a Resolução CFP nº 08/2022 que estabelece normas de atuação para profissionais da psicologia em relação às bissexualidades e outras orientações não monossexuais; e a Resolução CFP nº 16/2024 que estabelece diretrizes para o trabalho de psicólogas e psicólogos junto a pessoas intersexo, seus familiares e responsáveis, por exemplo.

Nesse percurso, faremos um voo panorâmico sobre movimentos e ativismos que atuaram para a construção dessa primeira normativa, em um campo que abarca controvérsias e disputas. Questionaremos também como as políticas públicas relacionadas a essas vivências refletem esse contexto. Estamos alinhadas à afirmação de Butler (2024) de que as coalizões não exigem amor mútuo, mas sim um entendimento compartilhado de que forças opressivas podem ser neutralizadas por ações juntas, em meio às diferenças, sem a ilusão de respostas únicas e definitivas.

Desse modo, abordar as lesbianidades a partir da Psicologia neste texto é também firmar o combate a toda forma de racismo, transfobia e demais formas de exclusão, cujo objetivo, ou efeito, é a normatização e padronização de uma única experiência/corporalidade de mulheridade e/ou lesbianidade que desconsidera a variabilidade e entrecruzamento de outros marcadores que conformam as vivências lésbicas. Pois entendemos que a reafirmação ou reificação de uma materialidade biológica como determinante sobre o sexo/gênero, assim como uma estética e performatividade de gênero padronizadas, não garantem proteção contra violências e os processos normativos que nos constituem e regulam.

Colocar o fantasma de “gênero” em circulação também é uma forma encontrada pelos poderes existentes - Estados, igrejas, movimentos políticos - para atemorizar as pessoas, de modo que elas retornem a suas fileiras, aceitem a censura e externalizem seu medo e ódio contra comunidades vulneráveis. Esses poderes não só recorrem aos medos reais de muitas pessoas da classe trabalhadora quanto ao próprio futuro profissional ou à sacralidade de sua vida familiar como incitam esses medos, convenientemente insistindo, por assim dizer, que as pessoas identifiquem no “gênero” a verdadeira causa de seus sentimentos de ansiedade e apreensão em relação ao mundo (Butler, 2024, p. 12).

Corroboramos Butler (2024) no entendimento de que, nacional e internacionalmente, assistimos e participamos de uma disputa, muitas vezes desigual, em termos de ferramentas e lógicas, que tentam identificar em minorias sexuais e de gênero o verdadeiro perigo social, atuando para privá-las de direitos, empatia e liberdade. E junto com o medo, aumenta-se a autonomia dos Estados para hierarquizar e negar cidadania entre os sujeitos. O que torna ainda mais valioso pensar coletivamente sobre documentos e posicionamentos institucionais que versem sobre a legitimidade dessas vivências.

Movimentos sociais e os diálogos com a Psicologia

Quando pensamos na história da Resolução CFP nº 01/1999, é preciso retomar a história da Psicologia enquanto ciência e profissão no Brasil. Inicialmente, destaca-se o papel do tema religioso nessa formação: os estudos sobre a produção psicológica de matriz católica no período colonial e imperial e a criação dos primeiros cursos de graduação em Psicologia em faculdades católicas. Antes mesmo da regulamentação da profissão pela Lei nº 4.119/1962, já existiam cursos como o da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio - março de 1953), seguidos pela PUC-RS (agosto de 1953), PUC-Minas (1959) e Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP - 1961), precedendo até a oferta em universidades públicas (Degani-Carneiro & Jacó-Vilela, 2012).

Na segunda metade do século XX, com a regulamentação, observou-se o avanço da psicologização da vida cotidiana associada ao missionarismo norte-americano, o que impulsionou a expansão das práticas psicológicas em meio acadêmico e popular, motivando também outras vertentes religiosas a buscar interfaces entre suas crenças e a Psicologia. Degani-Carneiro e Jacó-Vilela (2012) registram que surgiram instituições protestantes reunindo psicólogos(as) e psiquiatras, como o Centro Acadêmico de Debates e Estudos de Psicanálise (Cadep), em 1965, e o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), em 1976.

Um marco na despatologização das sexualidades dissidentes (homossexualidades, lesbianidades e bissexualidades à época) ocorreu em fevereiro de 1985, quando o Conselho Federal de Medicina, atendendo às demandas sociais, retirou o “homossexualismo” como doença. Internacionalmente, essa despatologização só se consolidou em 1990, com a mudança na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (Organização das Nações Unidas [ONU], 2013).

Ainda em 1976, nos Estados Unidos, foi fundada a Exodus International, maior organização mundial de “ex-gays” e, no Brasil, o CPPC. O ativismo LGBT no Brasil tem registrado início por volta de 1978, com o grupo Somos em São Paulo e o jornal Lampião da Esquina no Rio de Janeiro. A regionalização sudeste desses movimentos evidencia a precariedade dos registros, um fenômeno que invisibiliza outras possíveis iniciativas históricas de resistência menos documentadas. Após o surgimento desses coletivos, a comunidade LGBTQIA+ começou a integrar-se em articulações com demais movimentos sociais - trabalhadores/as, estudantes, feministas, negros - na luta contra o regime militar. O primeiro grupo lésbico formal surgiu em 1979: o Grupo Lésbico Feminista (GALF), em São Paulo (Facchini, 2002; Ferraz, 2021).

O Seminário Nacional de Lésbicas, hoje conhecido como SENALESBI, foi iniciado em 1996, no Rio de Janeiro, quando se instituiu o dia 29 de agosto como Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Desde então, ocorreram doze edições, com itinerários em Salvador/BA (1997), Betim/MG (1998), Aquiraz/CE (2001), São Paulo/SP (2003), Recife/PE (2006), Porto Velho/RO (2010), Porto Alegre/RS (2014), já sob a nova sigla SENALESBI em Teresina/PI (2016), Salvador/BA (2018), Recife/PE (2023) e Curitiba, em maio de 2025, consolidando-se como espaço político central de articulação e deliberação política de lésbicas e mulheres bissexuais no Brasil, desafiando padrões culturais estabelecidos e promovendo o enfrentamento à heteronormatividade.

Em 1988, a Exodus instalou-se no Brasil e, no fim da década de 1990, intensificaram-se os confrontos entre esse grupo e os movimentos civis. Em 1998, o III Encontro Cristão sobre Homossexualismo (Exodus Brasil) em Viçosa/MG motivou denúncias da Articulação Brasileira de gays, lésbicas e transexuais (ABGLT) junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), à Secretaria Nacional de Direitos Humanos e ao CFP, expondo tensões entre setores religiosos conservadores e defensores dos direitos LGBTQIA+ (Degani-Carneiro & Jacó-Vilela, 2012; Oliveira, 2011).

Em 1999, o CFP aprovou a Resolução CFP nº 01/1999, que seria o seu documento mais conhecido e combatido na sociedade civil. Fruto desse contexto conflituoso, que reconhece o caráter histórico e socialmente construído das práticas sexuais e proíbe a patologização da homossexualidade, seja por meio da atividade clínica, ou pela participação em serviços e eventos que promovessem as “terapias de conversão”. As proibições dos artigos 3º e 4º foram fortemente atacadas por grupos conservadores que rejeitavam práticas não heteronormativas (Resolução CFP nº 01/99, 1999).

Os movimentos sociais tiveram papel decisivo na elaboração da Resolução. É notório que o controle social e participação de corpos dissidentes se façam ouvir e demandem o acesso a direitos que estão previstos em nossa Constituição de 1988 e outras legislações adjacentes, que surgem exatamente para que se cumpra o que já está previsto pela Constituição, nomeada como Constituição cidadã.

Quando da sua publicação, houve um movimento de diálogo entre o CFP e a categoria, o que ramificou o debate pelo país por meio dos Conselhos Regionais de Psicologia. O CFP e os CRPs atuaram como instâncias de mediação entre a Psicologia e a sociedade, legitimando a demanda por direitos - assegurados pela Constituição de 1988 - e garantindo a qualidade dos serviços psicológicos e um posicionamento contundente da psicologia brasileira no campo dos Direitos Humanos.

Políticas públicas para mulheres lésbicas

As políticas públicas têm papel fundamental na organização da vida em sociedade, sob responsabilidade do Estado, visam garantir direitos como saúde, educação, segurança, habitação, entre outros, e resultam de demandas sociais. Os movimentos de mulheres lésbicas vêm há muito tempo exigindo inclusão e visibilidade de suas especificidades para as políticas públicas. A seguir apresentamos pontualmente recortes em políticas públicas voltadas para mulheres lésbicas, a partir de duas perspectivas: orientação sexual e gênero.

Para abranger mulheres lésbicas nas políticas públicas, é fundamental considerar tanto o gênero, reconhecendo sua existência dentro do universo de mulheres, quanto à orientação sexual, entendendo que sua experiência diverge da heteronormatividade, demandando também inclusão nas políticas para a população LGBTQIA+. A partir disso podemos compreender que deve existir uma interseccionalidade dentro das políticas públicas para que mulheres lésbicas possam ter acesso digno aos seus direitos.

O conceito de interseccionalidade, proposto em 1989 por Kimberlé Crenshaw em torno dos debates raciais, descreve que a noção de que desigualdades sociais são também produzidas pela inter-relação dos marcadores sociais da diferença (Collins & Bilge, 2020), considerando um entrelaçamento dos marcadores sociais. Dessa forma, elencamos políticas públicas que se interligam com os debates dessas mulheres lésbicas buscando a pluralidade de resistir e existir na garantia de seus direitos.

Ainda em 2002, houve a publicação da segunda versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 2). Das 518 ações a serem realizadas, cinco tratavam orientação sexual como uma dimensão da garantia do direito à liberdade, opinião e expressão, e dez eram relativas à garantia do direito à igualdade de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais. Mello, Brito e Maroja (2012) evidenciam que o prefácio do PNDH 2 foi um marco para a população LGBTQIA+, constando que os direitos dos homossexuais passaram a integrar a pauta das políticas públicas do Governo Federal. Este programa tinha o objetivo de fortalecer a promoção e proteção dos direitos humanos no país, porém essas ações não falavam das especificidades que cada segmento LGBT precisa.

Em 2004, houve o lançamento da Política Nacional de Saúde Integral de Mulheres. Nesta primeira versão, as mulheres ainda eram nomeadas como homossexuais, conforme extrato do documento:

A Política de Atenção à Saúde da Mulher deverá atingir as mulheres em todos os ciclos de vida, resguardadas as especificidades das diferentes faixas etárias e dos distintos grupos populacionais (mulheres negras, indígenas, residentes em áreas urbanas e rurais, residentes em locais de difícil acesso, em situação de risco, presidiárias, de orientação homossexual [ênfase adicionada], com deficiência, dentre outras) (Ministério da Saúde, 2004a, p. 63).

Denominar mulheres que se relacionam com mulheres apenas como homossexuais, demarca a invisibilidade das violências enfrentadas pela dificuldade de acesso às políticas públicas, apagando suas vivências e experiências. Também em 2004, surge o programa Brasil sem Homofobia, sendo a primeira política pública direcionada especificamente à promoção e defesa dos direitos das pessoas LGBT na América Latina (Ministério da Saúde, 2004b).

Pesquisa realizada sobre o Disque Defesa Homossexual (DDH), da Secretaria de Segurança do Estado Rio de Janeiro, revelou que os primeiros 18 meses de existência do serviço (junho/1999 a dezembro/2000) apontam para o fato de as mulheres homossexuais serem mais vitimadas na esfera doméstica (22,4%), confirmando a percepção de organizações lésbicas sobre o fato de as mulheres homossexuais serem duplamente alvo de atitudes de violência e discriminação: por serem mulheres e por serem lésbicas, e que, nesses casos, a violência é ainda mais grave, já que se concentra no âmbito familiar (Ministério da Saúde, 2004b, p. 18).

As ações do Programa Brasil sem Homofobia (PBSH) buscavam garantir a construção da transversalidade de gênero nas políticas governamentais (Ministério da Saúde, 2004b), assegurando a importância da interseccionalidade entre as políticas públicas para as ações governamentais. Em 2006, a Rede Feminista de Saúde lança o Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas: Promoção da Equidade e da Integralidade, com foco na saúde das mulheres lésbicas, que sistematiza trilhas percorridas através de muitas angústias, apreensões e lutas.

A Rede Feminista de Saúde reafirma que a atenção devida à saúde das lésbicas ainda necessita de muitos aportes científicos que exigem dedicação e definição política de mais estudos e aspira que o Dossiê possa ser inspiração para pesquisas sobre o tema, pois, como bem destacam as autoras, o produto final é alicerce para “uma reflexão acerca da invisibilidade da sexualidade feminina, em especial, da sexualidade não heterossexual entre mulheres” (Facchini & Barbosa, 2006, p. 4).

Em 2011, o Governo Federal realiza o lançamento da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais com objetivo de promover a saúde integral de LGBTs, eliminando a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuindo para a redução das desigualdades e a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo (Ministério da Saúde, 2013a). A Política Nacional de Saúde Integral de LGBT deu maior visibilidade à população LGBT, abrindo espaço a outros setores da saúde para o diálogo e a construção de ações intra e intersetoriais, o que foi muito positivo para o segmento de mulheres lésbicas e bissexuais que a muito reivindicavam uma interseccionalidade nas políticas públicas.

A cartilha Mulheres Lésbicas e Bissexuais Direitos, Saúde e Participação Social, foi lançada em 2013 pelo Ministério da Saúde, com objetivo de destacar a importância da participação social na construção das políticas públicas, em especial, da saúde, considerando as especificidades de mulheres lésbicas e bissexuais (Ministério da Saúde, 2013b).

Em 2014, houve a oficina Atenção à Saúde Integral de Mulheres Lésbicas e Bissexuais em Brasília, atividade que integra as ações para a Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais promovidas pela Secretaria de Política para Mulheres (SPM) e pelo Ministério da Saúde, com orientações para profissionais de saúde a respeito da atenção à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais (Ministério da Saúde, 2014).

No âmbito legislativo, uma das bandeiras de luta das mulheres lésbicas e bissexuais é pelo fim da violência contra as mulheres. A Lei nº 11.340, sancionada em 2006, conhecida como a Lei Maria da Penha, garante rigor nas punições das agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar, e também protege as mulheres lésbicas e os relacionamentos entre mulheres. Outra conquista foi em 2019, com a Lei de Criminalização da LGBTfobia, debatida pelo Supremo Tribunal Federal, que determinou que a homotransfobia se equipare à Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989), até que o Legislativo crie uma lei sobre a matéria.

Em suma, o movimento social de mulheres lésbicas desempenhou e desempenha um papel central na luta por direitos e por visibilidade. A continuidade dessa luta, aliada ao compromisso do Estado e da sociedade, é fundamental para construir um futuro mais justo e igualitário para as mulheres lésbicas. Esses processos são irrisórios diante das demandas da vida concreta e outros âmbitos das políticas públicas no contemporâneo, que ainda exigem ações prioritárias para a promoção da equidade e da dignidade de mulheres lésbicas no Brasil.

A institucionalização de instrumentos como o Lesbocenso, incorporando-os às bases de dados oficiais, por exemplo, é medida fundamental para que políticas públicas possam ser embasadas em evidências robustas. Além disso, políticas econômicas afirmativas devem contemplar mulheres lésbicas em suas especificidades, promovendo acesso ao trabalho, à moradia e à renda. E no campo jurídico, avançar na caracterização e tipificação do lesbocídio e da lesbofobia, garantindo instrumentos legais adequados para prevenir e punir a violência. Garantir dignidade e direitos humanos para mulheres lésbicas é um processo em andamento.

Resolução 01/99, saúde mental e lesbianidades

Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, zona norte de São Paulo, também conhecido como Cemitério dos Perus, inaugurado em 1971, na gestão Paulo Maluf. Quando fazemos esta menção, talvez a memória de algumas pessoas seja tomada por uma sensação de estranhamento de algo familiar. Neste cemitério, foi localizada a vala clandestina aberta em setembro de 1990, em que foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos. Nesse mesmo espaço, símbolo de um tempo de violência e resistência, o pai de Luana Barbosa dos Reis foi enterrado em 1981 como indigente, após ser assassinado com 3 tiros, aos 34 anos de idade, mesma idade que Luana tinha quando faleceu, no dia 13 de abril de 2016.

Luana, acompanhada do seu filho de 14 anos, foi abordada por três policiais e agredida de maneira severa. No dia 8 de abril de 2016, mesmo insistindo pelo direito de revista de uma policial feminina, levantando a blusa e mostrando que tinha seios, permaneceu sendo constrangida e agredida. Mulher, negra, periférica, sapatão, desfeminilizada, pertencente a uma família de retirantes, teve passagem pela antiga FEBEM dos 15 aos 17 anos e depois também pelo sistema prisional. Tinha sonhos, planos e queria entrar na universidade. Sete anos antes, junho de 2009, Luana concedeu uma entrevista por ter sido premiada em um concurso dentro de uma penitenciária pelo seu desenho:

Dá uma sensação tão boa de expor, de saber que sou alguém, que sirvo para fazer algo, não só de ruim, mas de bom também. O teatro é uma arte também. E eu me sinto livre. Livre de tudo. Até de algo ruim que possa vir na minha cabeça, que já aconteceu na minha vida, naquele momento eu sei que posso superar tudo isso e viver uma vida normal (Rahal, Fingermann, Cardoso, Vieira, & Garcia, 2009, p. 91).

O concurso se chamou “O Direito do Olhar”, direito retirado de maneira violenta e abrupta de Luana e de muitas outras mulheres lésbicas/sapatão desfeminilizadas, ou seja, aquelas que não performam a feminilidade. Segundo Lugones (2008), a invenção das categorias, formas de hierarquizar corpos, controlar e mensurar saúde e doença permeiam nosso cotidiano quando pensamos que diversas mulheres ao colocarem o pé para fora de casa têm que ficar hipervigilantes com as possíveis investidas dos mecanismos de controles sociais que nos cercam.

Assassinatos violentos como de Luana, Ana Carolina, Ana Mickaelly são confirmações dos dados coletados pelo dossiê do lesbocidio no Brasil: a pesquisa aponta que 54 mulheres lésbicas foram mortas em 2017, o que representa um aumento de 237% em relação ao primeiro ano da série, iniciada em 2014 (Peres, 2018). Apesar desse crescimento, o Dossiê ressalta que os casos noticiados de assassinatos de lésbicas ainda estão distantes da realidade, o que revela a insuficiência de dados oficiais e de políticas públicas para reconhecer e prevenir a violência contra mulheres lésbicas.

O lesbocenso publicado pela Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e Associação Lésbica Feminista de Brasília - Coturno de Vênus (Tagliamento, Brunetto, & Almeida, 2022), que é o primeiro mapeamento de vivências lésbicas no Brasil, revela que 78% das mulheres lésbicas entrevistadas já sofreram algum tipo de lesbofobia, com 29% das agressões ocorrendo dentro do núcleo familiar. Somente 9% buscaram a polícia ou o judiciário para denunciar, o que reflete a predominância de um silenciamento. No campo da saúde, 72% das entrevistadas relataram constrangimento ao revelar sua orientação sexual em atendimentos médicos e 25% sofreram lesbofobia durante consultas ginecológicas.

A partir das violências identificadas, destaca-se a Resolução CFP nº 08/2020, que estabelece normas para o exercício profissional da psicologia em relação às violências de gênero, em seu artigo 3º:

A psicóloga e o psicólogo deverão acolher e cooperar com ações protetivas à mulher, seja ela cisgênero, transexual ou travesti, e à pessoa com expressões não binárias de gênero, dentre outras, considerados os aspectos de raça, etnia, orientação sexual, deficiência, quando elas tiverem direitos violados.

Portanto, mulheres lésbicas enfrentam preconceitos e discriminações devido a vulnerabilidades sociais interligadas: serem mulheres e serem lésbicas. Essa dupla condição pode intensificar o sofrimento e o risco de adoecimento físico e mental, bem como outras intersecções como mulheres negras, com deficiência, indígenas, idosas, quilombolas, de terreiro, ribeirinhas e transexuais.

Melo (2020) argumenta que a violência contra pessoas LGBTQIA+, como homens gays, mulheres lésbicas e pessoas transvestigêneres, está profundamente relacionada à percepção de que essas identidades ameaçam a masculinidade hegemônica, baseada na heterossexualidade compulsória. No caso específico das mulheres lésbicas, práticas como o estupro corretivo revelam uma tentativa de afirmar a dominação masculina, pressupondo que sua orientação sexual ou identidade de gênero resultaria da ausência de relações sexuais com homens.

Na conduta ética da atuação da Psicologia, a Resolução CFP nº 01/1999 estabelece diretrizes para a atuação de psicólogas em relação à orientação sexual, proibindo a patologização das homossexualidades; seja por meio da atividade clínica ou pela participação em serviços e eventos que promovem as “práticas de conversão”.

Ao longo de sua existência, essa Resolução tem sido alvo constante de ataques e questionamentos em diversas esferas políticas, como o Legislativo, Judiciário e o próprio Sistema de Conselhos. Simultaneamente, tem sido a resolução que mais tem mobilizado a defesa de grupos, entidades e movimentos sociais, por meio de uma linguagem política de resistência contra a patologização e estigmatização das homossexualidades.

E como essa resolução está relacionada com as mulheres lésbicas? No contexto da saúde mental, orienta-se que as psicólogas devem acolher o sofrimento psíquico e a complexidade dessas vivências e experiências para que possam compreender que este sofrimento nem sempre será decorrente da sua orientação sexual ou expressão de gênero, mas sim da lesbofobia estrutural relacionada a fatores políticos, religiosos e socioculturais.

A Resolução 01/99 considera que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão e que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, devendo ser compreendida na sua totalidade, nesse sentido, viver a lesbianidade não deve ser entendido como perversão, distúrbio ou doença, isso inclui questionar e/ou justificar as vivências lésbicas a sofrimentos na infância, abandono paterno, violência sexual, relacionamentos românticos ruins e busca do amor materno. Segundo Gloria (2021), muitas psicólogas e muitos psicólogos associam a lesbianidade a uma falta de amadurecimento sexual, instigando que a mulher lésbica precisaria experimentar um relacionamento sexual com um homem para confirmar sua lesbianidade.

De acordo com Gloria (2021), é importante ressaltar que mulheres lésbicas não desejam ser homens e deduzir isso devido a sua sexualidade é pejorativo. Esse tipo de pensamento é patologizante e ultrapassado, por isso os psicólogos não devem colaborar com ele, pois essa atitude lesbofóbica contribui com a ideia de que duas mulheres não devem estar juntas e, se estiverem, é devido a alguma se identificar com o sexo oposto.

Destacamos aqui, além da Resolução nº 01/99, as referências técnicas produzidas pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), uma iniciativa do Sistema Conselhos de Psicologia (CFP e CRPs) criada em 2006 para promover a qualificação da atuação profissional de psicólogas e psicólogos que atuam nas diversas políticas públicas.

O livro Tentativa de aniquilamento das subjetividades LBTIs afirma que a função da Psicologia, enquanto ciência e profissão, não está distante do compromisso ético e político com a dignidade de vida de qualquer pessoa, sendo necessário denunciar as negligências sociais e contribuir para o enfrentamento as práticas que aniquilem subjetividades (CFP, 2019).

A Resolução nº 01/99 é relevante, assim como as referências técnicas desenvolvidas pelo CREPOP. Neste caso, apresentamos três novas referências técnicas que dialogam com a diversidade das vivências lésbicas: Referências Técnicas para atuação de psicólogas, psicólogos e psicólogues em políticas públicas para população LGBTQIA+, Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) no atendimento às mulheres em situação de violência e Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) em políticas públicas de direitos sexuais e direitos reprodutivos.

Considerações Finais

Ao longo deste ensaio, argumentamos como a Resolução CFP nº 01/1999 representa um marco normativo fundamental na história da Psicologia brasileira. Sua relevância é maior do que o seu uso como ferramenta jurídica de proibição das “terapias de reversão sexual”. Ela opera como horizonte ético que pauta o exercício profissional comprometido com os direitos humanos, a pluralidade de existências e o enfrentamento da patologização das dissidências sexuais. No entanto, como vem sendo discutido na literatura acadêmica (Butler, 1990/2003; Prado, 2013) a normatividade de gênero e das sexualidades é mantida por dispositivos (mais ou menos) sutis e persistentes, que atravessam as instituições sociais, inclusive aquelas que têm por missão cuidar e escutar. Por isso, mais do que um ato, a despatologização das homossexualidades deve ser compreendida como um processo histórico e político em constante disputa, que demanda vigilância, formação crítica e compromisso contínuo.

Nesse contexto, buscar e demarcar as lesbianidades nas políticas públicas e nas práticas psicológicas é reconhecer que os saberes e fazeres não se constroem de forma neutra e homogênea, nem quando falamos das dissidências de forma geral. A escuta das mulheres lésbicas e de seus movimentos sociais tem sido fundamental para tensionar o silêncio institucional e acadêmico sobre nossas vivências. As experiências de mulheres lésbicas, marcadas por apagamentos, violências e resistência, desafiam os modos hegemônicos de produção do conhecimento e demandam respostas éticas, políticas e técnicas da Psicologia.

A Psicologia, enquanto campo profissional, ocupa uma posição complexa e privilegiada: possui capilaridade nos mais diversos territórios e políticas públicas, da saúde à assistência, da educação à justiça. Está presente nas escolas, nos hospitais, nos serviços sociais, nos centros de referência, nos abrigos e nas comunidades. É uma profissão que se exerce em rede, com poder de escuta e de mediação de conflitos, muitas vezes, tendo como principal instrumento o diálogo, o encontro com o outro. É nesse contexto que se faz urgente reconhecer que a Psicologia não apenas escuta lésbicas: ela também é feita por profissionais lésbicas, cujas trajetórias pessoais e profissionais atravessam, e são atravessadas, pelas normas e pelos preconceitos que tentam limitar o campo dos afetos e das sexualidades possíveis.

No espaço clínico, essa questão ganha uma dimensão ainda mais potente. A clínica psicológica, em suas múltiplas abordagens, é espaço de análise, reelaboração e reinvenção das subjetividades. Como afirmam as diferentes teorias queer, pensar a sexualidade fora dos marcos da heteronormatividade implica desestabilizar os regimes de verdade sobre o desejo, o corpo e a identidade. A clínica, nesse sentido, pode e deve ser um lugar de acolhimento da diferença, de fomento à autonomia e à experimentação de outras formas de viver, amar e desejar. Ao reconhecer as lesbianidades em sua pluralidade - mulheres cis, trans, negras, indígenas, periféricas, com deficiência - a Psicologia se fortalece enquanto prática de cuidado e de liberdade.

É preciso, portanto, reconhecer que a Resolução CFP nº 01/1999 abriu espaço não apenas para combater práticas discriminatórias, mas para reposicionar a Psicologia brasileira no campo das disputas simbólicas e políticas sobre a sexualidade. Essa normativa pode ser uma convocatória para que mulheres lésbicas sejam incluídas, não apenas nos debates sobre diversidade sexual, mas também na formulação de políticas sobre violência de gênero, direitos sexuais e reprodutivos, formação profissional e educação em direitos humanos. Trata-se de uma abertura que precisa ser reafirmada e ampliada constantemente, pois a exclusão das lesbianidades não ocorre apenas pela ausência, mas também pela negligência e pela normatização de um modelo de mulher heterossexual, feminina, branca e materna como universal e genérica.

Por isso, defender a presença do debate sobre lesbianidades na formação em Psicologia é defender o direito ao conhecimento situado, plural e antinormativo. A formação inicial e a formação continuada de profissionais da saúde precisam incorporar, de maneira estruturante, conteúdos sobre gênero, sexualidade, orientação afetiva-sexual, relações de poder e produção de subjetividades na contemporaneidade. Isso é especialmente importante diante de temas que convocam a Psicologia a falar, que envolvem novas formas de socialização, como o uso de telas por crianças e adolescentes, por exemplo. Esses espaços virtuais podem ser, ao mesmo tempo, ferramentas de construção de redes de apoio e pertencimento, mas também campos de reprodução de discursos lesbofóbicos, machistas e violentos, caso não sejam mediados criticamente por educadores, profissionais da saúde e famílias.

Por fim, é necessário reforçar que a despatologização não se resume à revogação de códigos diagnósticos ou à publicação de resoluções. Como processo político, ela implica reorientar o olhar profissional, os métodos de trabalho, as relações com os sujeitos atendidos e os modos de produção de conhecimento. Implica, como nos ensina Butler (1990/2003), questionar o que pode ser considerado vida vivível, o que merece reconhecimento e o que é relegado à abjeção. A ética profissional da Psicologia precisa, nesse sentido, ser continuamente tensionada pelas vozes dissidentes, entre elas as vozes lésbicas, para que continue sendo instrumento de liberdade e não de controle.

Assim, manter o debate sobre lesbianidades vivo e presente na formação, na prática e na política é um ato de resistência. É também um compromisso com a democracia, com o pluralismo e com a radicalidade de uma Psicologia que quer ser transformadora, crítica e situada. Como ensinam os movimentos de mulheres lésbicas no Brasil, enquanto houver silenciamento, haverá luta. E é nessa luta que a Psicologia deve estar, com escuta, afeto e responsabilidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2025
  • Aceito
    01 Jul 2025
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