Open-access Psicologia e Aborto Legal: Uma Aposta na Psicologia Social Comunitária e Feminista

Psychology and Legal Abortion: A Commitment to Community and Feminist Social Psychology

Psicología y Aborto Legal: Una Apuesta por la Psicología Social Comunitaria y Feminista

Resumo

A Psicologia, como ciência e profissão no Brasil, surge a partir dos paradigmas do Norte Global. Pautando-se por uma atuação clínica, privatista, subjetivista e elitista, manteve-se pouco implicada com as questões que afligem o povo brasileiro. Ao longo das décadas, passou a ser convocada para atuar dentro das políticas públicas, tendo certa centralidade em algumas delas, como é o caso das políticas para as mulheres vítimas de violência sexual no âmbito da saúde. Contudo, o processo formativo parece não acompanhar essa tendência, com os currículos de graduação ainda voltados para uma formação em que as psicólogas atuem apenas no espaço do consultório particular, o que leva a um descompasso e à possibilidade da realização de condutas inadequadas na esfera pública. Este artigo traz reflexões surgidas em pesquisa de mestrado que se propôs a conhecer as práticas e saberes de psicólogas dos serviços públicos de saúde de Belo Horizonte, com as mulheres vítimas de violência sexual que optam pelo aborto legal. Foram realizadas entrevistas narrativas com 10 psicólogas do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS/BH), contactadas por meio da metodologia bola de neve. Por meio das narrativas, conclui-se que existe certa dificuldade em exercer uma prática psicossocial e que as teorias clínicas tradicionais ainda são as mais utilizadas. Com base nos relatos sobre o que seria “psicossocial”, identificou-se que a Psicologia Social Comunitária encontra-se alinhada com os princípios do SUS, e sua utilização, associada à interseccionalidade, pode ser uma ferramenta valiosa para a atuação dessas mulheres.

Palavras-chave:
Psicologia Social Comunitária; Interseccionalidade; Políticas Públicas; Aborto Legal

Abstract

Psychology, as a science and profession in Brazil, emerged from the paradigms of the Global North. Guided by a clinical, privatist, subjective and elitist approach, it remained little involved in the issues that afflict the Brazilian people. Over the decades, psychologists began to be called upon to act within public policies, having a certain centrality in some of them, as is the case of policies for women victims of sexual violence in the health sector. However, the educational process seems not to follow this trend, with undergraduate curricula still focused on training psychologists to work only in private practices, producing a mismatch and possible inappropriate conduct in the public sphere. This article presents reflections arising from a master’s degree research on the practices and knowledge of psychologists working in public health services, in Belo Horizonte, with women victims of sexual violence who opt for legal abortion. A total of ten psychologists from the SUS/BH participated in narrative interviews, who were contacted through the snowball methodology. These narratives revealed a certain difficulty in conducting psychosocial practice and that traditional clinical theories are still the most widely used. Based on these reports on what “psychosocial” would be, community social psychology showed itself aligned with the SUS principles and its use, together with intersectionality, can be a valuable tool for working with these women.

Keywords:
Community Social Psychology; Intersectionality; Public Policies; Legal Abortion

Resumen

La Psicología como ciencia y profesión en Brasil surgió de los paradigmas del hemisferio Norte. Se guio por un enfoque clínico, privatista, subjetivo y elitista, y se mantuvo poco involucrada en los problemas que afligen a la población brasileña. Con el paso de las décadas, comenzó a ser llamada a actuar en el marco de las políticas públicas, ocupando, en algunas de ellas, cierta centralidad, como es el caso de las políticas para mujeres víctimas de violencia sexual en el sector salud. Sin embargo, el proceso educativo no parece seguir esta tendencia, con currículos de grado aún enfocados en una formación en la que los psicólogos trabajan únicamente en consultorios privados, lo que genera un desajuste y la posibilidad de conductas inapropiadas en el ámbito público. Este artículo presenta reflexiones derivadas de una investigación de maestría que tuvo como objetivo comprender las prácticas y el conocimiento de psicólogos de servicios públicos de salud en Belo Horizonte (Brasil), con mujeres víctimas de violencia sexual que optan por el aborto legal. Se realizaron entrevistas narrativas con 10 psicólogas del Sistema Único de Salud de Belo Horizonte (SUS/BH), contactadas mediante la metodología de bola de nieve. Con base en las narrativas, se concluyó que existe cierta dificultad para llevar a cabo la práctica psicosocial y que las teorías clínicas tradicionales siguen siendo las más utilizadas. A partir de estos informes sobre lo que sería “psicosocial”, se identificó que la psicología social comunitaria se alinea con los principios del SUS; y su uso, junto con la interseccionalidad, puede ser una herramienta valiosa para trabajar con estas mujeres.

Palabras clave:
Psicología Social Comunitaria; Interseccionalidad; Políticas Públicas; Aborto Legal

Introdução

A Psicologia é definida recorrentemente como uma profissão de escuta, ou, ainda, como profissão que promove uma escuta qualificada do sofrimento que afeta subjetivamente os sujeitos que acessam nossos serviços. Propomos neste texto uma reflexão crítica sobre aspectos que constituem essas afirmações tão comumente difundidas na nossa categoria profissional: afinal, o que significa promover uma escuta qualificada? Quais elementos qualificam a escuta? Diante de quais problemas e em quais cenários? Quem acessa os nossos serviços e por meio de quais modelos de atenção psicológica? Quais demandas esses sujeitos produzem?

Essas questões se direcionam aqui pelos tensionamentos registrados na literatura sobre a atuação de psicólogas em políticas públicas. Qual identidade profissional e expectativas construímos durante a graduação e como ela se projeta nos equipamentos de saúde, assistência social, segurança pública e educação? A imagem ainda cristalizada na mente das futuras psicólogas é de uma mulher, provavelmente branca, sentada em um consultório decorado de forma requintada, olhando para o paciente/cliente que pode estar sentado ou deitado no divã. O trabalho isolado e solitário, o trabalho da clínica particular. Essa idealização é resultante do histórico de nossa profissão ainda arraigada à clínica privada tradicional (Dimenstein, 1998; Gesser, 2013; Gonzaga, 2022a; Paiva & Yamamoto, 2010; Silva, 2022). Nossa formação concentra-se, sobretudo, em nos tornar “especialistas” dos processos internos, sendo orientada para a prática individual privatista, o atendimento individual, a aplicação de testes e a realização de psicodiagnósticos (Dimenstein, 1998; Gomes, 2023; Lima, 2005; Silva, 2022), ignorando o caráter transdisciplinar do fenômeno psicológico (Chaves, 2000) e a indissociabilidade entre relações de poder e subjetividade (Prado Filho & Martins, 2007).

Temos a hipótese de que isso acontece e se atualiza devido à herança colonial que permanece incrustada no ensino da Psicologia no Brasil, que está submetido ao modelo euronortecêntrico, de modo que são lecionadas teorias produzidas por homens brancos europeus, compreendidos como os “pais da Psicologia”, mas que desconsideram e zombam do conhecimento produzido pelos residentes do Sul Global, por pessoas negras, por indígenas e por mulheres (Santos & Oliveira, 2021). Dessa forma, a Psicologia tem reproduzido sistematicamente o racismo epistemológico (Grosfoguel, 2016) e tem ignorado a gritante distância entre quem faz e acessa Psicologia no Brasil e quem são os autores das teorias que aplicamos.

O que qualifica a escuta de uma profissional para histórias e sofrimentos que desconsideramos epistemológica e politicamente? O psíquico não é uma entidade deslocada da realidade, o sujeito é fruto de uma construção coletiva e histórica (Nuñez, 2019). No contexto latino-americano, em que as relações sociais e interpessoais se estabeleceram por meio de injustiças estruturais, conflitos violentos e satelitização das identidades nacionais (Martín-Baró, 1997), precisamos considerar as reverberações das poderosas ficções de gênero e raça na produção do sofrimento psicossocial que os sujeitos que escutamos, ou deveríamos escutar, nos revelam. Como escutar e acolher uma população que a nossa categoria não reconhece ou, ainda, ativamente ignora? O sujeito brasileiro é marcado pela colonialidade, pelas poderosas ficções de gênero e raça (Lugones, 2008) que delineiam materialmente modos de viver e sobreviver. Quando nos negamos a compreender essa realidade, nos submetendo ao conhecimento alheio, não somos capazes de cuidar do nosso povo (Santos & Oliveira, 2021).

Para as psicólogas, o desafio em relação à compreensão da realidade das maiorias populares no Brasil torna-se ainda maior quando são convocadas para o trabalho nas políticas públicas. Dada a complexidade desse ramo de atuação, o foco no psiquismo se torna insuficiente (Dimenstein, 1998; Lima, 2005). Neste trabalho, vamos nos dedicar a discutir o trabalho psicológico no âmbito da maior política pública do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), especificamente diante do acolhimento de vítimas de violência sexual. O SUS é o principal empregador de psicólogas no Brasil, segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2019), o que aponta para o descompasso entre aprender a trabalhar em uma clínica particular, mas, ao se graduar, acabar atuando em um dos diversos serviços de saúde que compõem o SUS. Estudar essa importante política, bem como o seu modo de funcionamento na graduação em Psicologia, não é uma regra, mas a resultante de ações isoladas de alguns docentes Brasil afora (Lima, Brito & Firmino, 2011; Oliveira, 2021).

Esse cenário de exceção permanece com poucas alterações, mesmo após a portaria interministerial do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Educação (MEC) estabelecer o Pró-Saúde em 2005, buscando aproximar as formações dos profissionais da saúde dos cotidianos dos serviços, por compreender que esse distanciamento é uma das principais dificuldades que o setor enfrenta (Ministério da Saúde, 2007). O programa objetiva reorientar a formação dessas categorias profissionais, diminuindo o excesso de “especialismos” e os aproximando de uma abordagem integral acerca dos processos de saúde e doença (Ministério da Saúde, 2007).

Outro esforço, mais recente, diz respeito à promulgação da nova diretriz curricular do MEC, em vigência desde 11 de outubro de 2023. Sobre a Psicologia, a diretriz estabelece a necessidade de a formação contemplar uma compreensão crítica da realidade brasileira, dos fenômenos históricos, sociais, culturais e econômicos, levando em consideração também a sua inserção na América Latina, além de reconhecer a importância das políticas públicas. No entanto, essas diretrizes ainda não são implementadas de modo efetivo, pois estão inseridas em um campo de disputas pelo poder, de modo que o docente pode contribuir e somar com essas orientações ou ir contra elas (Silva, 2022). Nesse contexto, algumas linhas teóricas serão mais privilegiadas do que outras, fazendo com que cada profissional precise fazer o “seu corre”, como foi levantado por algumas interlocutoras deste trabalho, sublinhando o caráter individualista da profissão.

O descontentamento com essa formação também foi identificado em levantamento feito pelo último Censo PSI (CFP, 2022), no qual as psicólogas apontam para a defasagem no curso de graduação, que não as torna aptas para trabalhar onde há ofertas de emprego. Muitas dessas ofertas, como o documento aborda, estão nas políticas públicas. O levantamento do CFP (2022) aponta que, apesar da maioria das psicólogas iniciarem a vida profissional no âmbito da Psicologia Clínica (43,9%), cerca de 21% atua concomitantemente no setor privado e no setor público.

Mas, afinal, como se instrumentalizar para trabalhar nas políticas públicas? Ou, mais especificamente, no SUS? Quais ferramentas teórico-metodológicas podem ser úteis no manejo do sofrimento psicossocial produzido a partir da violação de direitos básicos? Quais compromissos ético-políticos devemos assumir, como categoria profissional, diante das desigualdades que se materializam cotidianamente nos serviços de saúde nos quais nos inserimos? Não pretendemos aqui produzir respostas totais, genéricas e definitivas para essas perguntas; pelo contrário, apresentamos algumas possibilidades, possíveis caminhos a seguir, com base na experiência de uma pesquisa conduzida em meio a profissionais da Psicologia trabalhadoras do SUS na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, sobre suas práticas e fazeres com mulheres vítimas de violência sexual. Ainda que muitas vezes a violência seja erroneamente reduzida ao campo das políticas de segurança pública, observamos que ela é um persistente e alarmante problema de saúde coletiva (Dahlberg & Krug, 2006). Os índices de violência de gênero, nesse sentido, convocam profissionais de saúde a intervir e acolher situações produzidas nas entranhas das relações assimétricas de poder. Destacamos ainda que essa assimetria não concerne apenas ao gênero, mas está fundamentalmente imbricada também nas lógicas estruturais de classe, raça, território, geração e sexualidade.

Por isso, apostamos na Psicologia Social Feminista como uma perspectiva teórica que contribui para a leitura do sofrimento psicossocial produzido a partir das desigualdades e que, como afirmam Brandão e Cabral (2021), não deve ser reduzido à biologia, visto que os fenômenos estão estruturalmente implicados a partir dos pertencimentos de classe, raça, gênero, territorialidade, geração e existência ou inexistência de deficiências. De acordo com Lima e colaboradoras (2019, p. 66), “a Psicologia Feminista se apresenta intrinsecamente ligada às lutas sociais pela liberdade e defesa do reconhecimento, diversidade e pluralidade das subjetividades, posição esta inegociável no âmbito dos estudos críticos”. Nesse sentido, alinhamos às contribuições desse campo teórico com as contribuições do feminismo negro, especialmente a ferramenta teórico-metodológica da interseccionalidade que nos orienta a compreender tanto as elaborações produzidas por sobreviventes1 da violência sexual como as leituras construídas por profissionais da Psicologia por meio das marcas da colonialidade.

Interseccionalidade é a compreensão de que as estruturas de poder são afluentes do mesmo rio, retroalimentam-se com as águas oriundas da nascente, a colonialidade, e se ramificam ganhando contornos, profundidade, tons e elementos distintos, mas nunca exclusivos. Não se trata de uma redução às identidades, tampouco de uma generalização a partir das estruturas, mas de uma compreensão acerca de como ao entrecruzar os sujeitos, as estruturas sociais se conformam e se alinham demarcando posições políticas, vivências de sujeição e privilégio (Gonzaga, 2022b, p. 176).

A partir dessas premissas teóricas, objetivamos neste texto alinhar como a atuação da Psicologia nas políticas públicas de saúde pode ser aprimorada com base em uma revisão dos pressupostos canônicos que ainda hoje aparecem como perspectivas teóricas universais, apostando numa abordagem feminista e comunitária para promover acolhimento e garantia de direitos às sobreviventes de violência sexual que acessam o Sistema Único de Saúde.

Metodologia

A abordagem metodológica desta pesquisa reflete nosso compromisso com um fazer científico que se ancora na reflexividade feminista, buscando uma explicação mais rica e adequada da realidade, que se entende como localizada e se afastando da lógica epistemicida fomentada pela colonialidade (Adrião, 2015; Haraway, 1995; Lino, Castro & Mayorga, 2020). E, consequentemente, se distancia da concepção da neutralidade atribuída ao saber científico, como se este fosse descolado de sua realidade, dotado de uma onipotência sagrada (Haraway, 1995).

Esta pesquisa ocorreu na cidade de Belo Horizonte e contou com a participação de 10 psicólogas que atuam nos equipamentos de saúde pública, dos três níveis de atenção do município. O critério de inclusão foi que essas profissionais tivessem mais de seis meses de atuação na política, não necessariamente no serviço em que estavam inseridas no momento da entrevista. Para chegar até as interlocutoras, foi utilizada a técnica bola de neve, que consiste na construção de uma rede de indicações (Vinuto, 2014). A técnica tem sido utilizada, principalmente, em pesquisas que tratam de questões polêmicas e consideradas “tabus”. Foram acionadas algumas trabalhadoras da rede que conheciam uma das autoras. Ao explicar os objetivos do trabalho, essas mulheres indicaram o nome de psicólogas que poderiam ser convidadas pelas autoras. Inicialmente, foi feito contato pelo WhatsApp para apresentar a pesquisa. Em seguida, foram enviados por e-mail a carta-convite e o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), para a formalização do convite. Ao todo foram contactadas 16 psicólogas, porém o número total de entrevistadas foi 10. Os outros contatos não seguiram adiante devido a diversos fatores, como a falta de disponibilidade de tempo e horário, falta de interesse, ou por não se encaixarem nos critérios de inclusão para a participação. Os encontros aconteceram em locais e horários condizentes com a disponibilidade das interlocutoras, durante os meses de fevereiro e março de 2024.

Como meio de produção dos dados, utilizamos as entrevistas narrativas, que podem ser compreendidas como não estruturadas, em profundidade e que propõem uma interferência mínima do entrevistador, evitando uma pré-estruturação (Jovchelovitch & Bauer, 2003). As narrativas apostam em uma valorização do conhecimento do sujeito acerca de si e do mundo em que faz parte, entendendo que existem múltiplas interpretações da realidade, inclusive daqueles sujeitos historicamente subalternizados, como as mulheres, afastando-se da concepção unidimensional do fazer científico tradicional (Castro & Mayorga, 2019; Rocha-Coutinho, 2004). A intenção desta pesquisa era exatamente a de conhecer as muitas concepções acerca do trabalho das psicólogas com mulheres em situação de abortamento legal, a partir da seguinte pergunta disparadora: “Conte sobre um atendimento à mulher vítima de violência sexual, em que você avalia que o acolhimento foi bem-sucedido”. Os relatos foram gravados e posteriormente transcritos para a realização das análises.

Sobre as interlocutoras entrevistadas, é imprescindível salientar que o perfil dessas psicólogas tem muitas semelhanças com os achados do último Censo PSI (2022). Das dez entrevistadas, sete se autodeclararam brancas e apenas três se autodeclararam negras, correspondendo ao perfil da Psicologia brasileira, em que, em relação à autoidentificação racial, também prevalecem as autodeclaradas brancas (63,9%). Sobre a formação, a maioria delas, totalizando sete, se graduaram em instituições privadas, assim como apontado no Censo PSI (2022), segundo o qual a prevalência na formação de psicólogas que trabalham em políticas públicas é oriunda das instituições de ensino particulares.

Outro dado relevante é em relação aos concomitantes locais de trabalho das interlocutoras. Das 10 entrevistadas, oito trabalham também na clínica particular. Esse ponto ilustra o que é levantado no Censo PSI (2022), no qual se verificou que 21% da classe de psicólogas trabalha nos âmbitos público e privado concomitantemente, destacando como o trabalho no setor privado continua com um alto índice entre as psicólogas no Brasil.

Resultados e análises

Os limites das teorias diante do “social”: malabarismos teórico-metodológicos na atuação em políticas públicas

Nos chama atenção que a atuação das psicólogas entrevistadas nesta pesquisa parece ocorrer a partir de uma adequação artesanal cotidiana, visto que elas reconhecem que as teorias que aprenderam na formação universitária e que continuam utilizando como referencial teórico para sua atuação clínica, parecem ser insuficientes diante das questões colocadas no contexto das políticas públicas. Isso fica evidente nos relatos a seguir:

... e aí eu faço umas pontuações, assim, mais diretivas, assim, sabe. Que acho que é uma certa posição política também, assim, talvez pra além (risos), teorias psicológicas, assim, né? Eu me oriento pela psicanálise, mas, como eu tô no SUS, eu... eu tenho muita essa influência desse paradigma psicossocial, assim, sabe? Então, são coisas que eu pontuo, assim, sabe? [ênfase adicionada] De tipo, reforçar, né, que ela era uma, sabe, uma criança, que ela, como ela poderia ter se defendido enquanto uma criança, reforçar quem que é o abusador, quem não é, né? E são coisas que trazem algum alívio, assim (Adrienne2, 27 anos, branca, sem religião, lésbica, trabalhadora da unidade básica de saúde).

Oh, eu atuo, assim, na questão da abordagem, pela psicanálise. Mas é aquela coisa, né? Quando a gente tá no ambulatório, no SUS, a psicanálise a gente tá, né, no social, né, tem que levar muito em conta essas questões, né? [ênfase adicionada] Não tem como isolar, né, e só responsabilizar a pessoa, como se fosse um consultório ali, né, particular, de forma alguma, né. Então, é pela psicanálise, a abordagem, né? Agora, sobre a questão, né, da violência, sempre fazendo cursos, né, tentando estudar sobre isso, sabe? [ênfase adicionada] Nada específico, assim, né, eu nunca fiz uma pós sobre isso, né, mas sempre tento estudar, assim, sabe. Fazer cursos, né, apropriar das temáticas, assim, pra entender mesmo, né. É muito complexo, é muito ambivalente, né? [ênfase adicionada] (Gloria, 30 anos, branca, cristã, heterossexual, trabalhadora de um ambulatório de atendimento a vítimas de violência sexual e de unidade básica de saúde).

Você tem que ter um domínio não só das teorias da Psicologia, do contexto de violência, mas você tem que dominar todo um contexto social, né? Você tem que ver como que funciona essa família, como que funciona as questões sociais, o risco que essa família está correndo no território. [ênfase adicionada] Você tem que pensar abrangente, a nível judicial, que repercussão que isso pode dar, né, do ponto de vista médico. Você tem que ter vários saberes, não tão profundos, mas você tem que ter pra você saber também como direcionar seu trabalho (Isabel, 54 anos, branca, espiritualista, heterossexual, trabalhadora da maternidade).

Um aspecto que se destaca também nos três relatos acima é o significado que as palavras “social” e “psicossocial” parecem ter para as psicólogas. Elas destacam que, ao trabalhar no SUS, precisaram se dedicar às questões sociais, sendo impossível manter o uso apenas da ferramenta teórica escolhida, sendo que duas delas, Adrienne e Glória, citam a psicanálise. Mas, afinal, o que é esse “social” para as profissionais? O que significa trabalhar em um contexto social? Subentende-se aqui uma dicotomia entre os sujeitos que acessam a clínica, a quem se destina um aporte teórico-metodológico consolidado e reconhecido - no caso dessas interlocutoras, a psicanálise -, e os sujeitos que acessam às políticas públicas, atravessados por “questões sociais”, inseridos num certo contexto social, como elas nos dizem. Ora, pessoas de classe média também não têm suas elaborações psíquicas tecidas num contexto social? E, por outro lado, a pobreza, o racismo, a violência sexual não são questões que reverberam nos processos de subjetivação dos sujeitos que acessam políticas públicas?

Uma das marcas da colonialidade é seu interesse em solidificar a dualidade, demarcar a cisão entre mente e corpo, entre mecanismos internos e externos. Ao citarem a necessidade de se haver com aspectos sociais no trabalho em políticas públicas, as psicólogas parecem performar essa ideia de divisão entre sujeito e sociedade, clínica e social (Gonzaga, 2022b; Nuñez, 2019). A interlocutora Isabel explicita que apenas o domínio das teorias psicológicas não basta, sendo necessário se haver com essas outras questões sociais. Contudo, o social citado nos parece muito amplo e, consequentemente, vago, parecendo não dialogar com as teorias psicossociais estudadas na Psicologia. A Psicologia Social constitui-se em um campo vasto, com teorias que podem ser muito divergentes entre si. Silva (2019) aponta que as produções oriundas da Psicologia Social estadunidense, alinhadas às perspectivas cognitivas-comportamentais, serviram muito bem ao status quo, não propondo quaisquer mudanças efetivas para as problemáticas sociais. O mesmo ocorre no movimento de propor uma Psicologia Social na comunidade, que, como define Freitas (1996), consistia numa aposta de levar a práxis clínica para regiões periféricas, movimento de inspiração estadunidense que não apresentava crítica sobre a postura paternalista que expressava, tampouco um compromisso de leitura e reflexão sobre as desigualdades que marcam os sujeitos a quem essa atuação se direcionava.

Sendo assim, não basta apenas entender a necessidade de se reconhecer as questões sociais, por meio do vislumbre de que a pobreza e as condições materiais atravessam a subjetividade da população, sob o risco de cair na armadilha de prover uma prática “assistencialista”, em que a psicóloga se vê realizando um trabalho para “pessoas carentes”, reproduzindo o que tem sido visto quando a Psicologia atua em políticas públicas (Gesser, 2013; Paiva & Yamamoto, 2010). O social a ser considerado aparece como fragilidade, como falta, como algo que extrapola o psicológico, ao passo que não se diz sobre o social como aquilo que redireciona o paradigma de atuação da Psicologia, inclusive redefinindo não apenas o sujeito psicológico, mas o profissional de Psicologia em si (Montero, 2015).

Pelos relatos, as psicólogas não afirmam trabalhar a partir da fundamentação teórica da Psicologia Social, o que corrobora os achados em pesquisas acerca do trabalho de Psicologia em políticas públicas, que identificam que a maioria ainda se utiliza das abordagens consideradas “clássicas”, como a psicanálise e a Terapia Cognitiva-Comportamental (TCC), orientando-se por um viés da Psicologia Clínica, mesmo atuando nesses espaços institucionais (Gomes, 2023; Paiva & Yamamoto, 2010; Silva, 2022). Outro aspecto importante a se destacar é que as psicólogas negras são as que menos se utilizam do paradigma psicanalítico em seu trabalho nas políticas públicas, corroborando os achados produzidos na dissertação de mestrado de Gomes (2023). Em documento lançado pelo CFP em 1986, intitulado “Eu, Psicóloga, Mulher Negra”, nenhuma das entrevistadas se identificou como psicanalista, e a maioria dessas profissionais trabalhava em políticas públicas.

Como sinalizado neste trabalho, a maioria das interlocutoras entrevistadas se autodeclararam brancas e, entre aquelas que se denominam psicanalistas, nos relatos citados, todas se autodeclararam brancas. Não queremos dizer que psicanalistas não podem atuar nos espaços dessas políticas, ou que as psicólogas que seguem essa abordagem são mulheres ricas e privilegiadas, mas sim destacar a impossibilidade, e os riscos, de apenas transportar a prática realizada no consultório particular ainda como o local de trabalho mais comum para as psicólogas (CFP, 2022; Lhuilier & Roslindo, 2013), principalmente quando a profissional se utiliza dessas abordagens centradas no psiquismo, o que pode resultar em uma prática marcada pelo psicologismo individualizante (Dimenstein, 1998).

Outra questão pungente é: diante do reconhecimento de que a teoria que utilizam na clínica não atende às questões que são cotidianas nas políticas públicas, por que, além de “considerar o social”, não se investe no reconhecimento das ferramentas da Psicologia Social - e aqui destacamos ainda a Psicologia Social Comunitária e Feminista - para atender às demandas que se colocam nesse contexto? Até que ponto o rechaço às premissas da Psicologia Social Comunitária e Feminista não revelam o caráter classista, racista e misógino que ainda perdura na Psicologia brasileira? Essa interpelação não se dirige às interlocutoras desta pesquisa apenas, mas aos modos de organização curricular que ainda hoje hierarquizam quais os temas e campos essenciais para a formação e quais são aqueles considerados dispensáveis.

Um exemplo disso pode ser considerado a partir da constatação que em 1974 a reforma curricular do curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais criou a primeira disciplina de Psicologia Comunitária do país (Passos et al., 2009), que já não consta como obrigatória na grade curricular para quem estuda Psicologia nessa universidade. Se as ferramentas teórico-metodológicas não são ofertadas de modo consolidado nos cursos de graduação, como esperar que profissionais de Psicologia transcendam a ideia de uma Psicologia Social na comunidade, tal qual se fazia nas décadas de 1960 e 1970 (Freitas, 1996)? Isso fica evidente no relato da interlocutora Silvia ao analisar os impactos da ausência dessas ferramentas na sua formação:

Mas tem uma coisa que é só com a prática que a gente vai pegando. Ainda assim, a gente está sempre, é... precisando inventar e deparando com as angústias, com o mal-estar de estar diante do outro, do sofrimento do outro. [ênfase adicionada] Mas acho que podia ser mais... podia ter um... como diz, assim? Não sei se é uma disciplina, mas podia ter mais espaço, acho que na graduação, pra gente poder falar do mal-estar do profissional, assim. Eu acho que isso, não sei como é que isso tá hoje, né, mas eu acho que cabe, sabe? [ênfase adicionada] A gente poder discutir um pouquinho disso. Acho que é uma coisa que nos traz um ponto de pessoa, de humanidade, sabe? (Silvia, 28 anos, branca, católica, heterossexual, trabalhadora de unidade básica de saúde).

Coadunamos com Gesser (2013) quando a autora afirma que o maior desafio para a Psicologia no século XXI é construir metodologias para a atuação no âmbito das políticas públicas que tenham como base os aportes da Psicologia Social, o questionamento dos dispositivos normalizantes, o acolhimento da diversidade de modos de ser, a potencialização dos sujeitos e a inclusão das diferentes coletividades no controle das políticas públicas.

É preciso se reinventar cotidianamente: abertura para novos paradigmas, a Psicologia Social Comunitária em confluência com os princípios do SUS

Acreditamos ser importante destacar a capacidade desses profissionais em reconhecer que as suas abordagens teóricas escolhidas podem ser insuficientes para o trabalho nas políticas de saúde, buscando, dessa forma, se apropriar de outros paradigmas, parecendo deixar de lado o lugar confortável e cômodo do setting terapêutico tradicional, que busca por novas formas de intervenção em um cenário no qual se pensa sobre as desigualdades sociais brasileiras (Gomes, 2023; Paiva & Yamamoto, 2010). Como demonstram os relatos das interlocutoras Silvia e Audre:

... A gente nunca sabe, assim, exatamente. Às vezes pode dar certo, mas às vezes pode dar muito errado. Então acho que é colhendo o efeito do depois. [ênfase adicionada] Como é que essa mulher volta? O que ela escuta disso? A gente tenta sacar qual foi o efeito desse elogio, desse abraço, não sei. Às vezes você vai tentar abraçar e a mulher recua, não sei. Mas eu acho que o efeito é sempre no depois, né. Mas eu acho que também é algo que antecede, escutar o que aquela mulher está demandando naquele momento, assim [ênfase adicionada] (Silvia, 28 anos, branca, católica, heterossexual, trabalhadora de unidade básica de saúde).

A gente já tinha feito três buscas ativas procurando por ela. Ela mora na região Buritis, fica em situação de rua na região Buritis, em um prédio abandonado lá, que várias pessoas ocuparam, ela fica lá. E eu tive de licença semana passada. Mas, antes de sair de licença, eu sei que ela estava na nossa lista de buscas ativas, de procurar, porque ela estava sumida. Eu falei, gente, é a Sara3, que ela chama. Aí o sinal abriu, eu atravessei, parei o carro, e aí ela tinha atravessado a rua, caminhou, simplesmente chegou e deitou na calçada do lado de um cara que já estava deitado. Aí ele só virou assim, pá, deu um tapa na cara dela, com ela deitada, e falou alguma coisa. Eu estava dentro do carro nessa hora ainda, porque eu estava na dúvida se eu ia ou não. Aí eu liguei pra minha colega, que é a referência técnica dela. Falei: “como é que está a PTS da Sara?” Ela falou: “ó, Audre, a gente está procurando ela e não está achando, já foram feitas três buscas ativas”. Falei: “ela está aqui no Barreiro”, aí ela: “o quê?!”. “Ela está aqui no Barreiro”, e aí eu saí do carro, fui lá, chamei ela. Na hora que eu chamei, ela levantou, ficou em pé. “Ei, tia, tudo bem? Você vai me levar pra casa?” Falei: “pra casa não, eu posso te levar pro Cersam, você quer ir pra lá?”. “Quero.” [ênfase adicionada] ... (Audre, 50 anos, preta, wicca, bissexual, trabalhadora do centro de referência álcool e drogas).

Os relatos apresentados apontam para a necessidade da prática psicológica nesses espaços se dispor de outras ferramentas que extrapolem a escuta clínica psicológica realizada em consultório. Existem epistemologias dentro da Psicologia que já têm discutido essas questões, como é o caso da Psicologia Social Feminista, que busca pensar os sujeitos de forma complexa, sendo necessário encarar os aspectos negativos, como a pobreza e a desigualdade, os tempos fáceis e os difíceis, compreendendo que problemas complexos não serão solucionados de modo simples (Adrião & Fine, 2015).

Ao reafirmar o compromisso de buscar outras ferramentas de trabalho para a atuação nos equipamentos do SUS, as profissionais parecem se aproximar mais dos princípios e diretrizes para a atuação nesta política pública. Uma das suas mais importantes políticas transversais, a Política Nacional de Promoção da Saúde (2009), versa sobre a necessidade da construção de autonomia e corresponsabilidade dos sujeitos e coletividades em relação à sua saúde, buscando minimizar e extinguir discriminações de qualquer ordem; além de promover entre os trabalhadores da saúde a ideia de uma saúde ampliada, que consiste no conceito de clínica ampliada e compartilhada, ferramenta que deve ser utilizada na busca por uma integralidade em saúde:

É uma ferramenta teórica e prática cuja finalidade é contribuir para uma abordagem clínica do adoecimento e do sofrimento, que considere a singularidade do sujeito e a complexidade do processo saúde/doença. Permite o enfrentamento da fragmentação do conhecimento e das ações de saúde e seus respectivos danos e ineficácia (Política Nacional HumanizaSUS, 2009, p. 10).

Acreditamos que esses objetivos estão em consonância com o campo da Psicologia Social Comunitária, pois visa também a complexificação do sujeito, postulando uma prática profissional que proporcione o protagonismo e a autonomia dos usuários (Ministério da Saúde, 2009; Penido & Romagnoli, 2018). Uma das fundamentações mais importantes postuladas pela Psicologia Social Comunitária é a do quefazer da Psicologia, que deve promover a conscientização e a transformação social, auxiliando as pessoas a chegarem a um saber crítico sobre si e sobre a realidade em que estão inseridas (Martin-Baró, 1997). Dessa forma, a práxis da Psicologia Social Comunitária deve estar disposta a sair pelo território, transcendendo o espaço institucional, a clínica tradicional (Monteiro, 1994). E não é assim que também devemos trabalhar no SUS? Nesse local, o papel do profissional é deslocar-se do serviço para a comunidade, frisando a necessidade de sair do consultório, para a realização de ações locais territoriais; buscando a interdisciplinaridade, a interprofissionalidade e a intersetorialidade, que se pautem na educação em saúde, educação e participação popular, desenvolvendo a noção de território e promovendo a saúde, além de apoiar grupos, enfrentar situações de violência e rupturas sociais, trabalhando para a inclusão social e educação (Belo Horizonte, 2023; Brasil, 2010). Essas são algumas das práticas elencadas por meio dos documentos públicos que regem a atividade laboral das equipes multiprofissionais, nas quais se inclui a Psicologia, e que, a despeito de não terem sido acessadas na formação, as psicólogas que entrevistamos têm tentado adotar:

Foi... assim... foi meio que conjunto, foi através de um caso, assim, que chega, mas quando eu cheguei no território eu tentei buscar os dispositivos que poderia ser... que algo assim, do território mesmo, que algo assim... os dispositivos que aquele território tem, de cuidado, de segurança, e um deles foi mediação de conflitos. [ênfase adicionada] Então um dia a gente foi, inclusive, lá na sede da mediação, a mediação de conflitos junto com o Fica Vivo. E desde então a gente tem feito parcerias de discussão de casos, de encaminhamentos, de contrarreferência também. [ênfase adicionada] Então a gente tem tentado trabalhar junto, em muitos casos, inclusive. Porque, assim, são conflitos de todas as ordens, né? Mas especialmente nisso, de violência doméstica (Silvia, 28 anos, branca, católica, heterossexual, trabalhadora de unidade básica de saúde).

A construção do SUS como política surge em meio a movimentações populares que nos remetem a esta emancipação de sujeitos e coletivos almejada nas postulações latino-americanas da Psicologia Comunitária (Freitas, 1996; Martin-Baró, 1997; Montero, 2015). É a partir da Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, no furor da redemocratização do país, que a política é criada, tendo como um dos seus princípios fundamentais a participação social. Para assegurar esse princípio, foi promulgada a Lei nº 8.142, de 28 de setembro de 1992, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde. Dentre as formas dessa participação acontecer, destacamos a criação dos Conselhos de Saúde, que atuam em todas as instâncias, local, municipal, estadual e nacional, com caráter permanente e deliberativo, sendo responsável por formular e controlar a execução das políticas de saúde, sendo composto paritariamente por 50% de usuários e os outros 50% divididos entre trabalhadores, gestores, prestadores de serviços e representantes políticos (Brasil, 1992). Além de regulamentar as Conferências de Saúde, que ocorrem de 4 em 4 anos, em todas as esferas de governo, com o objetivo de avaliar a saúde e propor novas diretrizes (Brasil, 1992).

Ao analisarmos esse processo de construção do SUS, é possível identificar paralelos com a crise da Psicologia Social brasileira, afinal foi por meio das reflexões e dos debates acerca das necessidades de saúde da população brasileira que esta política pôde ser constituída. O princípio da participação torna-se imprescindível a partir do momento em que compreendemos que o SUS só é o que conhecemos hoje devido à ativa participação dos sujeitos diversos que compõem a população brasileira: população negra, povos indígenas, comunidade LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, mulheres mães, ou, ainda, nas palavras de Martín-Baró (1997), por meio das maiorias populares. Assim, delineia-se que o Sistema Único de Saúde se aproxima dos preceitos da Psicologia Social Comunitária, em que o sujeito é responsável por sua transformação e pelo meio que o circunda (Monteiro, 1984), e dialoga com o que nos indica a psicóloga guarani Geni Nuñez (2019) ao propor que uma práxis decolonial da Psicologia implica reconhecer que quem melhor sabe de si é a própria pessoa, admitindo que os saberes indígenas, originários, de mulheres e de pessoas LGBT devem ser respeitados, bem como que a manutenção da ideia de que sabemos mais sobre o outro do que ele próprio é um vício da colonização.

Construir um saber crítico sobre si mesmo e o mundo que nos cerca nos parece intrinsecamente relacionado ao processo de lançar mão do protagonismo, sendo capaz de compreender o que significa qualidade de vida, escolhendo cuidar de si mesmo e das coletividades, mudando a relação com a saúde e com a doença. Ao retomarmos a teoria e as práticas da Psicologia Social Comunitária, estamos nos alinhando aos princípios éticos e políticos que regem o sistema de saúde público brasileiro. Articulado aos preceitos da Psicologia Social Comunitária, é necessário estar atento aos atravessamentos que marcam a trajetória de vida das usuárias e dos usuários do SUS, não se preocupando apenas com a categoria classe, como acontecia anteriormente, mas também sendo capaz de realizar uma análise por meio dos marcadores de raça, gênero, território, etnia e sexualidade. Essas são lições valiosas que as feministas negras ensinaram/ensinam à Psicologia, pois são questões que complexificam os sujeitos e a interseccionalidade torna-se assim a ferramenta ideal para a leitura dessas opressões, que não podem ser negligenciadas (Mayorga, 2014; Gonzaga, 2022b).

A Psicologia nos serviços de aborto legal: entre o cuidado e a suspeição

Ao pensarmos sobre o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual em situação de abortamento legal, torna-se imprescindível que essa complexificação aconteça, nos auxiliando na desconstrução de imagens cristalizadas acerca das mulheres, compreendidas como sujeitos pouco confiáveis, voláteis e instáveis. Medrado e Lima (2020) apontam como a medicalização das mulheres se deu por meio de uma associação perniciosa entre os fenômenos do ciclo reprodutivo e a loucura. Nesse ínterim, a produção de imagens de controle que postulam a hiperssexualização de mulheres negras e indígenas, bem como a naturalização da violação desses corpos a partir das expropriações coloniais (Lugones, 2008), seguem ecoando no modo como psicólogas escutam relatos de estupro, principalmente quando há demanda por interrupção gestacional, como é possível identificar no relato a seguir:

... Não, porque foram situações que chegaram no bloco e depois eu não acompanhei no ambulatório. Mas... são situações, assim... não é só pelo discurso. Mas quando você faz uma análise do comportamento dessa mulher, a postura como ela tá, junto com o discurso, ficam algumas situações incongruentes. Vamos supor, se uma mulher que fala que sofreu uma violência e chega no hospital após violência, do ponto de vista psíquico bem-organizado, bem-esclarecido, tranquila, é... você não vê, não demonstra sofrimento [ênfase adicionada]. Ela já chega pedindo a medicação, ela sabe que ela tem que tomar uma medicação, ela não dá detalhes dessa violência, entendeu? Ou ela coloca “ah, eu tava num bar, o cara forçou pra sair”, mas você não vê algum sofrimento na situação, entendeu? Isso me faz questionar se realmente teve a violência ou não. Mas se ela traz enquanto violência, eu acompanho, entendeu? Eu só... fica a dúvida, fica comigo.... Então é muito frágil para eu afirmar se foi ou se não foi, mas que me deixa dúvidas, alguns atendimentos me deixam dúvidas. E é interessante que a maioria não volta para o ambulatório. São pacientes que eu anoto o nome e pergunto para minha colega se apareceu. São pessoas que não voltam. Então, assim, a gente fica com essa dúvida mesmo. E, cada dia que passa, as mulheres estão mais cientes de como que é o processo para o abortamento. Então, assim, se ela sabe, o dia que ela teve uma relação consensual, se ela sabe como que funciona o organismo dela, de administração. Ela pode inventar muito bem uma história, muito bem alinhavada, muito bem contextualizada, e que tudo bate. Pela lei, ok, tá certo, ela tem direito ao aborto. Você vai negar? Não, eu não vou negar um abortamento porque eu acho que você tá mentindo. Eu não tenho prova, então isso fica comigo. Se os dados estão batendo, aí que é o que eu falo [ênfase adicionada]. Isso vai depois bater na crença dela, ao longo dos anos, como que isso vai repercutir? Não sei, não sei, mas é que é um dado delicado do processo, é que muitas mulheres já sabem do fluxo. E a forma delas conseguirem um abortamento legal e de forma segura. Ficou claro? ... já teve casos que a gente conversou e a equipe não estava segura de ter sido uma violência [ênfase adicionada]. Mas, como todos os dados estavam batendo, e ela assinando um termo de que todas as informações que ela prestou foram verídicas, a gente segue a lei. Entendeu? Porque a gente não estava lá para falar se foi ou se não foi. A lei diz muito disso, é a palavra da mulher. Então, se ela está dizendo disso, quem sou eu para contestar? Então a equipe acolhe da mesma forma. Mesmo com essa suspeita de, olha, acho que não foi uma violência. Entendeu? Mas é acolhida da mesma forma, com todo, como qualquer outra mulher (Isabel, 54 anos, branca, espiritualista, heterossexual, trabalhadora da maternidade referência para aborto legal).

Esse trecho possui muitas camadas que merecem a nossa atenção. A psicóloga Isabel inicia dizendo sobre a realização de uma “análise comportamental” da mulher. O que seria essa análise? Como podemos definir a priori que a expressão de sofrimento após uma violência sexual se dê de determinadas formas se efetivamente desconhecemos a história daquela mulher? Desconhecemos quais violências antecederam em sua vida o fato que a levou até aquele serviço. Desconhecemos a desautorização que ela recebeu para expressar seu sofrimento por meio de sinais associados a um determinado tipo de feminilidade. O que buscamos, como psicólogas, com uma análise que busca atestar um regime de verdade que possa privar mulheres de um direito ainda de difícil acesso para todas? A fala sobre analisar nos remete a uma ideia da Psicologia como aquela responsável por extrair verdades ocultas, focada em intervenções estritamente psicodiagnósticas (Dimenstein, 1998; Gonzaga, 2022a). Condutas como essa nos afastam de um lugar de quem acolhe verdadeiramente o sofrimento, buscando meios de minimizá-lo, seja por uma escuta de fato acolhedora ou por ações intersetoriais que podem fortalecer essas mulheres (Gonzaga, 2022a; Gonçalves & Sposito, 2019).

Alardear a ideia de que mulheres constroem narrativas falsas para ter acesso ao abortamento, pois possuem informações o suficiente para tais elaborações, demonstra uma completa desinformação, visto que os estudos já realizados apontam que a situação é a contrária, em que o não acesso ocorre justamente pela falta de divulgação dos serviços de aborto legal, bem como sobre os critérios para acessá-lo, fazendo com que muitas mulheres e meninas sigam com gestações indesejadas, frutos de uma violência, ou se arrisquem com os procedimentos ofertados clandestinamente (Moreira et al., 2019; Silva, 2020; Silva et al., 2020). Sobre isso, o CFP (2025, p. 197) constata que:

A pesquisa realizada pelo CREPOP aponta que, vencida a primeira barreira institucional referente ao acesso à informação sobre a existência de um determinado serviço, os abortamentos permitidos nos casos em que a gravidez decorreu de uma violência sexual são os que apresentam as principais dificuldades e dúvidas quanto ao exercício profissional. A veracidade do relato foi o aspecto mais destacado.

Infelizmente, ainda é recorrente a postura de que são as sobreviventes de violência sexual que devem provar sua inocência, visto que são recebidas nos serviços de saúde como possíveis mentirosas, conforme aparece no relato da psicóloga entrevistada, na literatura especializada e nas Referências Técnicas em Direitos Sexuais e Reprodutivos produzidas por meio de uma pesquisa nacional elaborada pelo Conselho Federal de Psicologia com base no Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas - Crepop (CFP, 2025). Nesse cenário, a dúvida da equipe muitas vezes convoca a profissional da Psicologia ao lugar de quem atesta a veracidade dos relatos a partir de uma análise genérica de demonstrações afetivas que não deveriam ser universalizadas. Ainda que a psicóloga não seja responsável direta pela condução de cuidados físicos, alívio da dor e realização de procedimentos de esvaziamento uterino, a postura dessa profissional ao reforçar a suspeição pode implicar violências institucionais e omissão no cuidado, como relata uma das interlocutoras da pesquisa:

E quando a equipe desconfia que o aborto foi provocado, aí pronto, acabou. Nem remédio pra dor. Já vi essa situação, uma dipirona pra dor não foi prescrita, não. “Ué, você não queria? Então aguenta”. Igual falam na hora que a mulher tá parindo, aí, “Você não gemeu na hora de fazer, tem que gemer na hora de nascer também, né?”. Já presenciei isso tudo. Isso tudo existe. Não são todos, né? Não são todas as equipes, não são todos os médicos, mas tem uns que fazem a gente pensar: “meu Deus, por que escolheu essa profissão se é pra agir desse jeito”, né? (Audre, 50 anos, preta, wicca, bissexual, trabalhadora do centro de referência álcool e drogas).

Reforçarmos o questionamento de Audre ao nos interpelar: como podemos escolher diariamente a Psicologia e, ao mesmo tempo, nos utilizarmos dela para produzir violação de direitos? Reconhecemos como nossos aportes supostamente universais têm embasado posturas e leituras violentas? Reconhecemos que nossa suspeição teria efeitos de tortura se fossem direcionadas a pessoas que acessam consultórios particulares, em vez de serviços de saúde pública?

A interseccionalidade interpela os sujeitos sobre os quais as opressões se entrecruzam e também o sujeito que é pavimentado em posições de privilégio de onde se enxerga pouco ou nada sobre os atropelos, sufocamentos, violações que marcam a vida de pessoas negras e indígenas nesse país. Para enxergar melhor, é preciso ajustar nossas lentes, perceber nossos corpos e suas possibilidades de trânsito, materializar os elementos que constituem nossos modos de subjetivação no jogo cotidiano das inter-relações, em vez de pressupor que nossos posicionamentos são elementos estabelecidos. Quem faz psicologia? Movido por quais interesses? Por quais problemas? Em quais caminhos constroem suas conclusões? Quais os diálogos tecidos nessas produções? (Gonzaga, 2022b, p. 176).

Focar apenas diagnósticos que se autoproclamam neutros - mas na verdade escondem os resquícios da colonialidade que marcam as nossas subjetividades, colocando as mulheres, principalmente, em posições objetificadas e permitindo que as violências sejam reatualizadas (Nuñez, 2019; Gonzaga, 2022b) - impede a Psicologia de exercer a sua real potencialidade: a de fornecer emancipação em situações de opressão, a que busca oferecer uma escuta que leve em consideração essas violações (Gonçalves e Sposito, 2019; Gonzaga, 2022a; Martin-Baró, 1997). Essa atuação pode e deve ser estimulada a acontecer, como nos orienta a Resolução nº 8, de 7 de julho de 2020, do Conselho Federal de Psicologia, e como é possível identificar nos trechos a seguir, das interlocutoras Angela e Audre, duas psicólogas que parecem entender qual o papel da Psicologia diante dessas violências:

Eu acho que, tipo assim, tem essas coisas, né? A mulher faz o que quer, tá onde ela quiser, não tem isso tudo. Eu acho que é muito do caso a caso, tipo assim, tem gente que, mesmo sendo vítima de violência, tem uma crença religiosa, tem uma dificuldade de levar isso pra vida, de ter feito um aborto, né? Então eu acho que a psicologia entra nesse lugar de ser um suporte para a escolha da mulher [ênfase adicionada]. Você quer levar essa gestação para frente, vamos ter um suporte, porque é uma gestação que vem de uma violência, que não existe afeto, que não existe escolha de ser uma mãe, mas que às vezes ela quer levar adiante. Então você tem que fazer um suporte para que essa mãe consiga dar conta dessa gestação. Ou, se a mulher não quer, não quer ter essa criança com suporte pra isso também, porque, queira ou não queira, ter um suporte pra violência sexual e pra lidar o resto da vida com o fato de você, sei lá, ter feito um aborto, certo? Que pra mim não é uma questão, assim, acho que todo mundo tem uma escolha, mas nem pra todo mundo é assim [ênfase adicionada] (Angela, 43 anos, negra, pluri-religiosa, heterossexual, trabalhadora do centro de referência em saúde mental infanto-juvenil).

... O que que tem te levado a se sentir assim? Aí que a pessoa diz que realmente... e aí a gente vai medicar e liberar pra casa, e a pessoa vai voltar, muitas vezes, pro contexto da violência. Se você não faz algo a mais com isso, não escuta isso e dá o direcionamento correto, né? Às vezes você tá perpetuando a revitimização dessa pessoa. Então, patologização... no sentido, assim, olha, a pessoa precisa de uma escuta e de medicação, né? Tem uma fala dentro dos serviços da atenção primária, principalmente, que precisa de atendimento especializado. E não é, né? Precisa de uma escuta, uma escuta cuidadosa, uma escuta atenta [ênfase adicionada]. E às vezes a medicação não vai sanar, às vezes não, né, não é a medicação que vai sanar. Ela pode ali naquele momento dar uma apaziguada, mas não vai sanar. E às vezes é a escuta adequada, a responsabilização do abusador, o cuidado com esse corpo, às vezes tem que encaminhar para ambulatórios de violência sexual. É o que vai dar ali, minimamente, um resgate da humanidade, da dignidade de quem passa por essas situações [ênfase adicionada] (Lélia, 41 anos, branca, sem religião, heterossexual, trabalhadora do centro de referência em saúde mental álcool e drogas).

Angela aponta para o papel da Psicologia que não corrobora com o lugar normativo e prescritivo de adequar comportamentos à norma vigente (Silva, 2022; Gomes, 2023), compreendendo que devemos dar suporte e acolher a mulher independentemente de sua escolha. Para alguns, essa afirmação pode parecer bastante óbvia, mas não podemos esquecer que a relação entre psicólogas e atendidas no contexto de políticas públicas consiste em uma relação de poder, muitas vezes representada por assimetrias de classe e raça, e quem ocupa a posição com maior vantagem pode tentar impor ao outro a sua vontade, docilizando angústias com condutas que promovem culpabilização e sofrimento, não escutando de fato o que aquela mulher traz (Azeredo, 2016; Gonzaga, 2022a).

O ato de verdadeiramente escutar também perpassa por não permitirmos que as nossas supostas verdades tomem a frente naquele momento (Gonzaga, 2022b). O que pode ser melhor para as nossas próprias vidas não significa que será melhor para quem atendemos, mas sim o que as atendidas podem nos sinalizar. Para isso, como a interlocutora Lélia afirma em seu relato, é preciso uma escuta atenta e qualificada para não revitimizar, não patologizar. É preciso trazer para a prática a reflexão de Anzaldúa (2000) de que quem se adianta muito em dizer tem dificuldades em ouvir, e quando não se ouve não se sabe. Para nós, psicólogas, esse é um ensinamento precioso, pois não podemos apenas ter palavras, que muitas vezes são palavras deslocadas da realidade na qual nos inserimos.

Considerações finais

ele pôs a mão ela disse não
ele pôs a mão ela disse não põe a mão em mim
ele disse sim ela disse não não
ele foi mesmo assim
e a menina sangrou mulher
mas dessa vez a juventude foi roubada pela estupidez
a maldade desse mundo imundo ela conheceu a fundo
e uma semente foi gerada no seu útero fecundo
atraindo olhares no segundo mês a
barriga crescia veio a gravidez e todo
mundo se chocou com sua gravidez mas não
com a gravidade do que o seu tio fez
ninguém acreditava nela não
no desespero ela queria o aborto seu tio morto
tinha nojo de carregar esse feto no corpo mas
na igreja lhe diziam que o rei dos reis
não aprovava isso pois era contra suas leis
e a menina sangrou mulher e o filho nasceu
mas para um orfanato o seu filho ela deu
uma criança que gerou outra criança
julgada na vizinhança como péssima filha de Deus4

Como psicólogas pesquisadoras do campo da saúde sexual e da saúde reprodutiva, temos destacado que nossa categoria é parte das equipes que atuam nas políticas públicas dessa área, promovendo saúde e direitos. Neste texto, buscamos problematizar sobre quais perspectivas teóricas temos atuado e, principalmente, quais contribuições preciosas para essa atuação persistimos em desconsiderar desde a definição do que é obrigatório para se formar psicólogas. Pessoas que vivenciam a experiência de serem estupradas não são sujeitos descorporificados, tampouco que devem ser interpeladas pelo pressuposto de que se goza do lugar de vítima, como escutamos em determinados ciclos. A violência sexual revela o desejo de colonizar e anular o outro em sua autenticidade e na sua potencialidade humana. Somos um país, ou melhor, uma América Latina que conhece bem os efeitos dessas empreitadas.

Defendemos nestas linhas a potencialidade teórico-metodológica e política das contribuições da Psicologia Social Comunitária e Feminista que nos convoca a entender a singularidade de cada sobrevivente dessas violências, reconhecendo sempre as relações estruturais de poder que autorizam cotidianamente que alguns corpos-territórios sejam e continuem sendo sistematicamente invadidos. Invasões que se dão para além do estupro em si, que se perpetuam na vilanização de quem relata a violência, na adultização de meninas e adolescentes negras e periféricas, na negação dos casos de estupro marital, na ausência de acolhimento ao sofrimento psicossocial nas suas mais diversas formas de expressão. Martín-Baró (1997) nos afirma que a Psicologia não terá respostas para os dilemas e desigualdades que corroem a América Latina, mas de certo ela tem contribuições a dar para o povo que vive as mazelas desse contexto. Corroboramos essa premissa e apostamos que cabe à nossa categoria uma atuação comprometida com a defesa dos direitos humanos, entre os quais estão os direitos sexuais e os direitos reprodutivos, com a emancipação dos sujeitos e a potencialidade de autogestão de suas histórias (CFP, 2020; 2025; Gonzaga, 2022a).

Como ficou exposto nas análises tecidas aqui, isso implica negar veementemente a deturpação da nossa função nos serviços de aborto legal, negar que compete a nós a autoridade de investigar e atestar veracidade dos relatos, negar qualquer convocação a sermos agentes de inquisição em equipamentos que devem prover cuidado. Essa não é uma tarefa simples, até porque nos convoca a negar muitas das postulações coloniais, androcêntricas e racistas a partir das quais ainda somos formadas, mas nos incentiva a articular saberes coletivos, mobilizados por movimentos sociais e por epistemologias críticas, o que já vem sendo feito, como nos explicitam algumas das interlocutoras da pesquisa que trazemos para o diálogo nestas linhas. O que apresentamos aqui não são respostas definitivas, tampouco o início do caminho. Temos psicólogas, pesquisadoras, ativistas e estudantes produzindo cotidianamente e colaborando para a construção de novos parâmetros do que precisamos e devemos ofertar às pessoas que sobrevivem à invasão dos seus corpos. Compete a nós garantir que suas subjetividades também não sejam devassadas nos espaços onde deveriam ser acolhidas.

Retomamos Martín-Baró (1997) para afirmar que nossas escolhas teóricas versam sobre nossos posicionamentos políticos. Se iremos ou não assumir o compromisso de rever como produzimos escuta - ou silenciamento - nas políticas de saúde que acolhem sobreviventes de violência sexual é, sem dúvida, mais do que um desafio, é um compromisso histórico que implicará nos modos como muitas pessoas elaborarão e enunciarão sobre suas trajetórias. A violência sexual é uma realidade que nos compete. A violência institucional, por sua vez, deveria ser uma prática para nós abominável. Mas, para chegar nessa compreensão, precisamos nos interpelar: a Psicologia que praticamos reconhece a humanidade nas pessoas que acessam políticas públicas em razão de um estupro ou apenas naquelas que buscam e pagam por nossa escuta nos nossos consultórios?

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    » https://doi.org/10.20396/tematicas.v22i44.10977
  • 1
    O termo “sobreviventes de violência sexual” tem sido apontado pelos movimentos sociais com uma alternativa mais adequada, assim o utilizamos aqui em substituição ao termo “vítimas”, considerando que este último ancora as pessoas a um lugar passivo diante da violação.
  • 2
    Todos os nomes apresentados são fictícios em atenção ao direito à confidencialidade das interlocutoras desta pesquisa.
  • 3
    Nome fictício.
  • 4
    Trecho da canção “Uma menina”, de Negra Li.
  • Pesquisa financiada pela CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2025
  • Aceito
    08 Jul 2025
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