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A Covid-19 Como um Analisador do Sofrimento de Enfermeiras: Um Ensaio Teórico

Covid-19 as a Suffering Analyzer for Female Nurses: A Theoretical Essay

El Covid-19 como Analizador de Sufrimiento de Enfermeras: Un Ensayo Teórico

Resumo

Este ensaio propõe que a Covid-19 pode operar como um analisador, dentro da perspectiva da análise institucional, iluminando um determinado modo de organização social que promove profundas desigualdades e ameaça a vida em diversos níveis e revelando as condições sociais, institucionais e políticas de produção de sofrimento no corpo profissional de Enfermagem. A pandemia desvelou um conjunto de marcas relacionadas à profissão, agravadas pela crise sanitária, reforçando a naturalização das relações de cuidado atribuídas ao feminino, bem como um conjunto de clivagens e hierarquias internas à profissão a partir da sinergia de marcadores da diferença, como gênero, cor/raça, classe e geração. Além disso, este trabalho mostra a presença de uma necropolítica nas respostas à pandemia que banaliza a vida e permite morrer determinados grupos sociais. A ideia de “profissionais de linha de frente” é criticada em suas metáforas bélicas, mas tomada como figura de linguagem em sua potência para afirmar que existem corpos que, pelas marcas sociais e históricas e pela interdependência do cuidado, são mais presentes e exigidos e, portanto, mais vulneráveis à doença e ao sofrimento dela decorrente.

Palavras-chave:
Covid-19; Analisador; Enfermagem; Gênero; Sofrimento

Abstract

The essay proposes that Covid-19 can operate as an analyzer, within the perspective of institutional analysis, illuminating a certain mode of social organization that promotes profound inequalities and threatens life at various levels, revealing the social, institutional and political conditions for the production of suffering in the professional nursing body. The pandemic would unveil a set of marks related to the profession, aggravated by the sanitary crisis, reinforcing the naturalization of the care relations attributed to the feminine, as well as a set of cleavages and internal hierarchies to the profession from the synergy of markers of difference as gender, color/race, class and generation. The work shows the presence of necropolitics in responses to the pandemic, which trivializes life and allows certain social groups to die. The idea of “front-line professionals” is criticized in its war metaphors, but taken as a figure of speech in its potency to affirm that there are bodies that by social and historical marks, and by the interdependence of care, are more present and demanded, and therefore more vulnerable to disease and the resulting suffering.

Keywords:
Covid-19; Analyzer; Nursing; Gender; Suffering

Resumen

El ensayo propone que el Covid-19 puede funcionar como analizador, desde la perspectiva del análisis institucional, revelando las condiciones sociales, institucionales y políticas de producción de sufrimiento de enfermeras. La pandemia revela algunas marcas relacionadas con la profesión, agravadas por la crisis de salud, reforzando la naturalización de la atribución del cuidado a lo femenino y un conjunto de jerarquías internas de la profesión. El trabajo también muestra la presencia de una necropolítica en las respuestas a la pandemia. La idea de “profesionales de primera línea” es criticada, pero tomada como una figura del lenguaje en su potencia para afirmar que hay cuerpos que, por las marcas sociales e históricas y por la interdependencia del cuidado, están más presentes y demandados, y por lo tanto más vulnerables a la enfermedad.

Palabras clave:
Covid-19; Analizador; Enfermería; Género; Sufrimiento

Introdução

Máscara, álcool-gel, plataformas de comunicação à distância, quarentena e distanciamento social são algumas das diversas palavras que passaram a fazer parte do nosso cotidiano a partir da pandemia do novo coronavírus que eclodiu no Brasil em meados de março de 2020. Os noticiários e matérias jornalísticas dos principais veículos de comunicação fizeram grandes esforços para informar a população sobre o chamado “novo coronavírus”, Sars-coV-2, o vírus causador da síndrome respiratória denominada Covid-19.

Especialistas de diversas áreas, como infectologistas, sanitaristas, estatísticos, economistas, sociólogos, filósofos e psicólogos, foram convidados para debater em diversas mídias sobre os efeitos da pandemia em toda conjuntura social. Além da profusão de conhecimentos em meios científicos, a nova doença também promoveu uma explosão discursiva em circuitos não especializados, mostrando que saúde e enfermidade não são somente assuntos de cientistas e sanitaristas (Leal, 2020Leal, B. (30 mar. 2020). O que um historiador de saúde tem a dizer sobre a pandemia do novo coronavírus? Café História. https://www.cafehistoria.com.br/um-historiador-da-saude-fala-sobre-novo-coronavirus/
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).

A Covid-19, a exemplo de outras pandemias, como a de HIV/aids (Cunha, 2014Cunha, C. C. (2014). Modos de fazer sujeitos na política de AIDS: A gestão de jovens vivendo com HIV/AIDS. Século XXI: Revista de Ciências Sociais, 4(2), 91-132. https://doi.org/10.5902/2236672517039
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), mobilizou não somente uma explosão discursiva, mas também diversos mecanismos de controle social, operando dispositivos para a manutenção da vida individual e coletiva - em alguns casos, reforçando estigmas -, a partir de tecnologias de governo, o biopoder (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Martins Fontes.), produzindo novas sensibilidades, racionalidades e corporeidades em função de riscos reais ou imaginados.

Tendo em vista este cenário, este ensaio lança mão do conceito de analisador dentro do referencial da análise institucional para olhar, a partir do advento da pandemia de Covid-19, de um modo diferenciado a situação de sofrimento psíquico de profissionais da enfermagem, especificamente das mulheres. Essa perspectiva busca, por um lado, iluminar diversas dimensões relacionadas à saúde mental de enfermeiras, já reveladas no exercício de uma profissão eminentemente feminina e ligada ao cuidado, e, por outro, apontar novos elementos para a compreensão dos fenômenos individuais e coletivos que compõem o que chamamos de “sofrimento psíquico” deste segmento e suas possíveis correlações com os marcadores sociais da diferença, além de gênero, cor/raça, classe e geração.

Inspirados por Larrosa (2003Larrosa, J. (2003). O ensaio e a escrita acadêmica. Educação e Realidade, 28(2), 101-115. ), tomamos o ensaio como um modo disruptivo de produzir liberdades e sensibilidades na e da escrita, que tensionam as regras de pureza e de objetividade que imperam na academia. Na esteira das reflexões do autor, consideramos que escrever remete a um posicionamento ético, estético e político, em uma relação dialógica entre escritor e leitor. Trata-se de uma escrita que visa considerar o leitor e suas necessidades cognitivas, sensitivas e afetivas. Uma ciência que se faz no encontro com a arte de viver (Zanella, 2012Zanella, A. V. (2012). Escrever. In T. M. G. Fonseca, M. L. Nascimento, & C. Maraschin (Orgs.), Pesquisar na diferença: Um abecedário (pp. 87-89). Sulina.).

Assim, partindo da ideia de que a escrita não está descolada das condições concretas de vida, afirmamos o nosso compromisso intelectual com a comunidade, o mundo fora da academia (Oliveira, Rocha, Moreira, & Hüning, 2019Oliveira, E. C. S., Rocha, K. A., Moreira, L. E., & Hüning, S. M. (2019). “Meu lugar é no cascalho”: Políticas de escrita e resistências. Fractal: Revista de Psicologia, 31(esp), 179-184. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29043
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). Seguindo os rastros indicados por Donna Haraway (1995Haraway, D. (1995). Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5(1), 7-41.), nos colocamos a favor de políticas e epistemologias assumidas em sua parcialidade, situadas em suas condições específicas de produção, ou seja, de saberes localizados. Dizer isso significa assumir caminhos que foram tomados a partir do nosso encontro com narrativas de pessoas de nosso círculo social e afetivo que exercem esse ofício e práticas escritas da literatura das ciências humanas, sociais e da saúde sobre a condição de ser enfermeira e, ao mesmo tempo, parte de uma determinada classe social e cor/raça. Não só isso, a profissional exercita o seu labor nos sistemas públicos de saúde já precarizados, com sobrecarga laboral, condições inapropriadas de trabalho, invisibilidade social e salários inadequados (Gandra, Silva, Passos, & Schreck, 2021Gandra, E. C., Silva, K. L., Passos, H. R., & Schreck, R. S. C. (2021). Enfermagem brasileira e a pandemia de covid-19: Desigualdades em evidência. Escola Anna Nery, 25(esp), 1-7. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2021-0058
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), sendo cada vez mais exigida em seus serviços pela pandemia. É apenas seguindo esses caminhos que podemos colocar no texto que mundo estamos produzindo quando fazemos ciência, a partir desse posicionamento ético, político e metodológico.

Seguindo uma afetação coletiva dos autores e autoras do ensaio em torno da questão do cuidado de quem cuida e da inexorável interdependência do cuidado, optamos por priorizar, neste trabalho, versões e formas de narrar o universo do sofrimento psíquico de profissionais de enfermagem, especialmente de enfermeiras, que partem de uma visão não psicologizante, situada social, ética e politicamente, e que respeitam a vida das pessoas, cujos corpos alocados na “linha de frente” dos serviços de saúde se fazem em um conjunto de relações com outros humanos e objetos (Martin, Spink, & Pereira, 2018Martin, D., Spink, M. J., & Pereira, P. P. G. (2018). Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado: Uma entrevista com Annemarie Mol. Interface, 22(64), 295-305, https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0171
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), cuidando, resistindo e pondo em marcha sonhos e desejos pessoais e profissionais.

Escolhemos a enfermagem por ser uma profissão cujas marcas de gênero naturalizam as relações de cuidado. Trata-se de uma atuação em saúde que se coloca em contato direto, corporal e permanentemente, com os pacientes, e isso, aliado às situações de precarização no/do trabalho em saúde, gera uma grande sobrecarga no exercício profissional (Lombardi & Campos, 2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
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) e sofrimento1 1 Apoiamo-nos no trabalho de Victora (2011) para compreender o sofrimento como um processo complexo e multifacetado. A autora defende a dimensão social do sofrimento pela indissociabilidade das dimensões físicas, psicológicas, morais e sociais do mal-estar. Na direção defendida pela autora, que parte da contribuição da Antropologia, nos interessa, considerando o comprometimento com os sujeitos, sua história e situação social, entender “como o sofrimento é produzido e reconhecido e quais as implicações éticas e políticas dos diferentes tipos de reconhecimento” (Victora, 2011, p. 3). . Consideramos que, com a pandemia da Covid-19, esses aspectos podem ser agravados e precisam ser visibilizados, debatidos e problematizados pela perspectiva das Ciências Sociais, Humanas e da Saúde de maneira articulada.

Posto isso, o ensaio está dividido em quatro partes. Na primeira, discorremos sobre o conceito de analisador dentro do quadro teórico e metodológico da Análise Institucional. Na segunda parte, debatemos acerca do cuidado e do cuidar do/no corpo de enfermagem. Na terceira parte, discutimos sobre a situação de saúde mental do corpo de enfermagem, destacando os atravessamentos postos pela Covid-19 e elencando os principais aspectos associados ao sofrimento psíquico neste grupo profissional, com um olhar especial à situação das mulheres, contextualizadas socialmente. Na quarta parte, recuperamos o conceito de analisador para desvelar aspectos invisibilizados e potentes na discussão sobre o sofrimento psíquico de enfermeiras. Nas considerações finais, propomos algumas reflexões que poderão servir como inspiração para futuros trabalhos.

O conceito de analisador na análise institucional

A pandemia da Covid-19 é um fenômeno que extrapola o campo das ciências da natureza e que engloba múltiplos fatores referentes às materialidades e discursividades, desde a máscara e o álcool em gel, que passaram a fazer parte de nossa rotina, até as narrativas nas quais estamos mergulhados e que nos inscrevem subjetivamente nesse contexto. Em um evento de forte impacto como este, que parou economias e agravou crises políticas e sociais no mundo inteiro, as questões de saúde tendem a ser pensadas como reflexos de uma organização social capitalista, colonialista e patriarcal, que produz profundas desigualdades sociais e ameaça vida em diversos níveis e sentidos (Santos, 2020Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Almedina.).

Esta pandemia teve força suficiente para fazer emergir as questões mais cruciais presentes em nossa sociedade2 2 Para Baremblitt (1996, p. 29), a sociedade seria “um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens; entidades abstratas, por mais que possam estar registradas em escritos ou tradições”. , convocando as instituições que a compõem a falarem sobre o assunto, reconfigurando toda uma rede de relações sociais. Surgiu disso um possível analisador, conceito tão caro ao movimento institucionalista: a Covid-19!

Rodrigues (2006Rodrigues, H. C. B. (2006). “Sejamos realistas, tentemos o impossível”: Desacomodando a psicologia através da análise institucional. In A. M. Jacó-Vilela, A. A. L. Ferreira, & F. Portugal (Orgs.), História da psicologia: Rumos e percursos (pp. 515-564). Nau.), em trabalho minucioso, distingue, no movimento institucionalista, a vertente socioanalítica, com René Lourau e Georges Lapassade, e a vertente esquizoanalítica, com Gilles Deleuze e Félix Guattari. Apesar de sutis diferenciações e alguns distanciamentos teóricos entre as vertentes da Análise Institucional, o que as une é o caráter de desnaturalização das práticas, consideradas como produções que se dão em um contexto social-histórico-político-cultural-econômico e passíveis de transformações. As relações sociais não são “assim mesmo”, como se costuma dizer no senso comum; elas estão assim porque assim as fizemos e, portanto, podemos refazê-las, reinventá-las de outros modos, apresentando-as de outras formas.

E, para isto, como veremos, o conceito de analisador3 3 Baremblitt (1996) explana as modalidades. Poderíamos considerar a Covid-19 como um analisador natural, espontâneo. é ferramenta indispensável nestas operações. Lourau (1993Lourau, R. (1993). René Lourau na UERJ: Análise institucional e práticas de pesquisa. Universidade do Estado do Rio de Janeiro., p. 35) define analisador como: “Aqueles acontecimentos que podem agitar a assembleia geral socioanalítica, permitindo fazer surgir, com mais força uma análise; que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição ‘invisível’; a esse tipo de acontecimentos chamamos ANALISADORES”.

Percebe-se, por diversos ambientes nos quais nos deslocamos, que a Covid-19 agita, altera a rotina e os espaços, causa divisões em múltiplas opiniões e faz aparecer os conflitos. Quem não se viu dividido sobre o assunto, assumindo opiniões e posições distintas a cada momento?

Mas é a partir da perspectiva de Guattari (1992Guattari, F. (1992). Caosmose: Um novo paradigma estético. Editora 34.) que gostaríamos de pensar a Covid-19 como um analisador da situação do corpo de enfermagem, em sua grande maioria composto por mulheres. Vale ressaltar que esse é um dos grupos mais expostos à pandemia: mais vulnerável por conta da sinergia de marcadores sociais da diferença, como gênero, classe, cor/raça e geração, além das condições precárias dos serviços públicos de saúde, conforme discutiremos adiante.

Rossi e Passos (2014Rossi, A., & Passos, E. (2014). Análise institucional: Revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS, 5(1), 156-181.) nos esclarecem que Guattari forja o conceito de analisador a partir dos seus estudos de química, trabalhando com a ideia de ser este o elemento químico que provoca quebra, ruptura, separação e explicitação sobre os demais elementos de um composto químico, possibilitando, com isto, distingui-los com nitidez em um trabalho de análise.

Da mesma forma que a química teve que começar a depurar misturas complexas para delas extrair matérias atômicas e moleculares homogêneas e, a partir delas, compor uma gama infinita de entidades químicas que não existiam anteriormente, a ‘extração’ e a ‘separação’ de subjetividades estéticas ou de objetos parciais, no sentido psicanalítico, tornam possíveis uma imensa complexificação da subjetividade, harmonias, polifonias, contrapontos, ritmos e orquestrações existenciais inéditos e inusitados (Guattari, 1992Guattari, F. (1992). Caosmose: Um novo paradigma estético. Editora 34., pp. 30-31).

A partir desse olhar, somos convidados a pensar que a Covid-19 - enquanto acontecimento que nos atravessa - pode ser considerada um possível analisador, ou seja, quando os efeitos provocados pela pandemia na conjuntura social são problematizados4 4 Utilizamos o conceito de problematização no sentido dado por Foucault (1990, pp. 9-16), que evidencia “os jogos de verdade entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência; que evidencia as condições nas quais o ser humano pensa sobre si e o mundo no qual vive, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”. , postos em discussão, esse movimento traz consigo a potência de explicitar a realidade multifacetada por nós produzida: diferenciação de classes, construção de gêneros, divisões do trabalho, hierarquizações, relações de poder e de exploração, entre outros.

Para Guattari (1992Guattari, F. (1992). Caosmose: Um novo paradigma estético. Editora 34.) a interpretação como intervenção simbólica pode ser realizada por qualquer membro do grupo, ou qualquer elemento verificado em campo pode vir a explicitar com clareza a dinâmica institucional e possibilitar um entendimento sobre esta. Deste modo, o próprio grupo5 5 Para um melhor esclarecimento sobre grupos ver Guattari (1992). O autor faz uma distinção entre grupo sujeitado e grupo sujeito: o primeiro se limita às intervenções do fora e às hierarquizações impostas, curva-se sobre si mesmo; o segundo assume uma postura crítica, formula e enuncia algo sobre seus impasses e se abre para além do próprio grupo, acolhendo sua finitude. , imerso em uma trama de discursos e materialidades6 6 Utilizamos aqui “discursos” e “materialidades” com o intuito de ressaltar que todo e qualquer grupo comporta em si diversos elementos heterogêneos, mas que se inter-relacionam estreitamente, podendo o próprio grupo servir de analisador, ou seja, fazer ver e fazer falar. Segundo Baremblitt (1996, p. 70): “qualquer materialidade pode ser suporte de um analisador, ou seja, um analisador não é necessariamente um discurso”. Com essa afirmação não pretendemos, contudo, criar uma oposição entre materialidade e discurso. Conforme Foucault (1985) nos ensinou com o conceito de dispositivo da sexualidade, aspectos arquitetônicos “dizem” sobre diversas moralidades e discursos empreendidos em torno do sexo e as discursividades, sobretudo as produzidas por especialistas, criam realidades e corpos na relação saber-poder. , comporta em si o potencial para formular algo, enunciar algo sobre seus conflitos e, assim, encontrar um auto entendimento. Substitui-se o analista (especialista) pelo conceito de analisador e, assim, “qualquer sujeito ou grupo, em qualquer momento ou lugar, pode produzir um efeito de verdade, pode servir de ‘analisador’, para empregar um termo forjado por Guattari” (Vidal, 1986Vidal, P. V. (1986). O conceito de grupo na obra de Guattari e Deleuze. In G. Baremblitt (Org.), Grupos: Teoria e técnica (pp. 43-57). Graal., p. 46).

A pandemia tem aberto passagem a muitas reflexões e opiniões sobre a expansão do vírus e os efeitos produzidos pela doença em toda a sociedade, aspectos que se dão a partir das nossas próprias vivências com este fenômeno que avança e não se restringe ao domínio de especialistas, conforme apontamos anteriormente.

Neste sentido, a pandemia também tem nos mostrado a relação entre as esferas macro e micropolíticas. O cuidado de cada um consigo, na preservação da saúde e da vida, impacta diretamente no cuidado com todos. E, cuidar de quem cuida - o corpo de enfermagem, por exemplo - é também cuidar de toda uma coletividade.

O cuidado e o cuidar do corpo de enfermagem

Para a consecução deste trabalho, entendemos como necessária a problematização e a conceituação do que é o cuidado. Segundo Borges (2020Borges, M. J. R. (2020). O vírus e o invisível: A desigualdade de gênero e o trabalho de cuidado. Revista do TRT 3ª Região, ed. spe., 265-310., p. 271), cuidado “... é construir um ambiente propício para que os indivíduos e suas comunidades possam se desenvolver em todas as suas potencialidades para que possam exercitar uma liberdade emancipatória. Há uma dimensão ética do cuidar”. Nesta mesma direção, Borgeaud-Garciandía (2018Borgeaud-Garciandía, N. (2018). El trabajo de cuidado. Fundación Medifé.) destaca que:

. . . o cuidar não se define por uma visão romântica e puramente afetiva de cuidado, mas sim que o cuidar trata-se de entrar em contato com si mesmo, sua própria tolerância e fadiga, intrínseco a este processo o lidar com diversas resistências dos beneficiários desse cuidado, como o usuário de um serviço de saúde, familiares/amigos deste, com instituições, com a organização que é feita do trabalho, e tratar de superá-la (Borgeaud-Garciandía, 2018Borgeaud-Garciandía, N. (2018). El trabajo de cuidado. Fundación Medifé., p. 20, tradução nossa).

Ainda segundo Borgeaud-Garciandía (2018Borgeaud-Garciandía, N. (2018). El trabajo de cuidado. Fundación Medifé.), o cuidar é uma atividade de grande complexidade que no seu exercício mescla saberes materiais, técnicos, corporais, relacionais, cognitivos e afetivos e que nos remete a entrar em contato com a nossa condição humana de vulnerabilidade, finitude e interdependência de cuidados com relação ao outro. Algo que, a depender dos sujeitos que exercem ou são investidos de cuidado, ou do contexto, pode ser caracterizado como demasiadamente conflitante e ameaçador às nossas necessidades mais primitivas, sobretudo no contexto sociocultural do sistema capitalista no qual estamos inseridos e que nos impõe, a partir de diversas formações discursivas, a necessidade de sermos sujeitos produtivos economicamente e autônomos, introjetando em nós uma falsa ideia de onipotência e independência que não corresponde à realidade da vida humana.

Com a entrada das mulheres cuidadoras nas teorias acerca do cuidado, nos estudos da deficiência, por exemplo, começa a surgir o pensamento de que, enquanto seres humanos, somos todos interdependentes uns dos outros ao longo de nossa existência. A partir disso, podemos entender a sobrevalorização da independência como uma crueldade. A interdependência é um princípio que leva em consideração a necessidade de ajuda, os tipos de subjetividades existentes e os limites corporais de cada pessoa e de cada atuação profissional. Sobre o cuidado e sua relação com a condição humana de interdependência, Mello e Nuernberg (2012Mello, A. G., & Nuernberg, A. H. (2012). Gênero e deficiência: Interseções e perspectivas. Estudos Feministas, 20(3), 635- 655. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000300003
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, p. 643) nos trazem:

Há, pois, uma proposição ética que se desdobra dessas reflexões: uma ética feminista do cuidado que transcende à questão da deficiência, que nos alerta a respeito de nossa condição de interdependência e que reconhece o valor do cuidado como uma necessidade humana, implicando uma mudança política fundamental em torno de fronteiras sociais e ideológicas para que sejam compatíveis com a noção de justiça e de direitos humanos.

Junto aos questionamentos dessas mulheres, somos levados à conclusão de que nós mesmos somos interdependentes uns dos outros ao longo da vida. Entender os sujeitos como interdependentes é necessário, porque cria um mundo em que as conexões são relevantes para uma maneira de ser. Os movimentos alcançados a partir dessa versão de mundo podem variar muito e ser completamente diferentes do que é esperado como comum.

A dependência do outro, seja de profissionais de enfermagem ou quaisquer outros sujeitos, é parte da existência humana. Dessa forma, começamos a pensar o cuidado como responsabilidade de toda sociedade e do Estado, retirando o cuidado do lugar do “feminino” e deslocando a questão do cuidado para os direitos humanos.

Em contraponto a esta falácia da onipotência e autonomia do sujeito moderno inserido no sistema capitalista, Borges (2020Borges, M. J. R. (2020). O vírus e o invisível: A desigualdade de gênero e o trabalho de cuidado. Revista do TRT 3ª Região, ed. spe., 265-310., pp. 272-273) traz uma outra conceituação importante a respeito do cuidar ao afirmar que “cuidar é um verbo coletivo”, tanto no sentido de “vulnerabilidade compartilhada” quanto na nossa relação de interdependência, como na necessidade de socialização de responsabilidades. Borges também oferece destaque ao fato de que o cuidar, como antes salientado, é um dever do Estado, que possui “uma responsabilidade fundamental” em prestar auxílio a tudo aquilo que seja imprescindível à sustentação da vida humana em sociedade, como a saúde pública, a assistência social, o meio ambiente e a educação.

A efetividade dessa responsabilidade fundamental do Estado pode ser observada por meio da implementação das políticas públicas, as quais se conferem não somente como ações políticas, mas também ações de cuidado dirigidas ao corpo social para prover de recursos igualitários todos os sujeitos, independentemente de credo, identidade racial, gênero e classe social, conforme aponta a nossa Constituição da República Federativa do Brasil (1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (5 out. 1988). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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)7 7 Vale destacar que a Constituição Federal de 1988 definiu, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Para atingir este objetivo foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Lei nº 8.080/1990. .

O que ocorre de fato é que, na materialização da vida cotidiana na sociedade brasileira, marcada por uma formação cultural patriarcal, racista, sexista, classista e capitalista (Akotirene, 2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. Pólen.), o funcionamento deste social é marcado por desigualdades e opressões sistemáticas. A provisão dos recursos que cabem ao Estado é distribuída de forma desigual, hierárquica e valorativa de grupos societários, sobretudo considerando o contexto atual de crise política e social devido aos desmontes progressivos de políticas públicas de educação, saúde e trabalho, configurando necropolíticas (Mbembe, 2018Mbembe, A. (2018). Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. N- 1 Edições. )8 8 De acordo com Mbembe (2016), necropolítica pode ser definida como o uso do poder político e social, especialmente pelo Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer. Lançamos mão do conceito de necropolítica neste trabalho não só para problematizar as diferentes vulnerabilidades no cenário da pandemia, mas também para evidenciar a suspensão de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal e a naturalização sistemática de desassistências do Poder Público a grupos populacionais racializados, generificados, pauperizados e socialmente estigmatizados. do nosso cotidiano, que já se encontravam em curso antes mesmo da instalação da pandemia do novo coronavírus.

O contexto necropolítico agudizado pela pandemia é descrito pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2020Mbembe, A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 Edições. , p. 1) como “tempos sem garantia e sem promessa . . . tempos caracterizados por uma distribuição desigual da vulnerabilidade”, ou seja, como tempos de uma manifestação explícita de uma necropolítica. Como demonstra o ensaio de Oliveira et al. (2020Oliveira, R. G., Cunha, A. P., Gadelha, A. G. S., Carpio, C. G., Oliveira, R. B., & Corrêa, R. M. (2020). Desigualdades raciais e a morte como horizonte: Considerações sobre a covid-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública , 36(9), 1-14. https://doi.org/10.1590/0102-311x00150120
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), a incidência e a mortalidade por Covid-19 em países com grandes desigualdades sociais, a exemplo do Brasil, se diferenciam em termos populacionais.

Neste contexto de desigualdades/opressões/vulnerabilidades sistemáticas, o Sistema Único de Saúde (SUS), que já vinha sofrendo com os desmontes progressivos e ataques pelas pautas neoliberais - mais evidentemente manifestas a partir da PEC 55 de 2016, que restringe por 20 anos os recursos financeiros destinados à saúde -, torna-se ainda mais frágil, impactando tanto os usuários que dele dependem quanto os profissionais de saúde que nele atuam e sofrem os efeitos da precarização do trabalho no sistema público de saúde.

No cenário pandêmico, os profissionais de saúde são vistos como aqueles que vivem “um contexto de guerra, de fogo cruzado” no combate à Covid-19, encarando a “luta” pela sobrevivência dos usuários e de sua própria sobrevivência/integralidade física e psíquica (Lucca, 2020Lucca, S. R. (2020). Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado. Cadernos de Saúde Pública, 36(9), 1-3. https://doi.org/10.1590/0102-311x00237120
https://doi.org/10.1590/0102-311x0023712...
). Os profissionais de enfermagem são descritos como aqueles que se encontram no “front de batalha” do exercício do cuidado.

Nota-se que a ideia de “guerras” e “inimigos” também foi mobilizada na pandemia de HIV/AIDS. Conforme discute Bastos (2002Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção: As respostas à Sida. Imprensa de Ciências Sociais.), “guerra” nesses casos não é uma inocente e casual metáfora, pois ela constrói representações, como a ideia de corpo defensivo, que direcionam a construção de conhecimentos e de políticas. Na pandemia de HIV/AIDS, por exemplo, a linguagem militar passou a compreender as interações do organismo com o meio que o circunda, reforçando a ideia de um “outro” perigoso, criando muitas vezes mais estigma para grupos já estigmatizados (Czeresnia, 1997Czeresnia, D. (1997). Do contágio à transmissão: Ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico. Fiocruz.).

Ainda que façamos uma crítica a estas metáforas bélicas, manteremos a expressão “profissionais de linha de frente” como uma figura de linguagem que se mostra potente para afirmar que existem corpos que, pelas marcas sociais, pela interdependência e pelo histórico do cuidado, são mais presentes, exigidos e, portanto, mais vulneráveis à pandemia. Mas afinal quem são estes? Qual o perfil da categoria profissional da enfermagem no Brasil?

Lombardi e Campos (2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
https://periodicos.ufpb.br/index.php/abe...
) discutem o perfil sociorracial da enfermagem no Brasil, apontando uma discussão para a feminização da profissão nas categoriais profissionais ligadas ao care, em específico a enfermagem, em que, segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), responsável pelos auxiliares, técnicos e profissionais do Ensino Superior em Enfermagem, cerca de 86% dos trabalhadores da categoria são mulheres, contra 14,4% de homens (Fundação Oswaldo Cruz [FIOCRUZ] & Cofen, 2015Fundação Oswaldo Cruz, & Conselho Federal de Enfermagem. (2015). Pesquisa perfil da enfermagem no Brasil. Cofen. http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/index.html#:~:text=A%20Pesquisa%20Perfil%20da%20Enfermagem,Enfermagem%20em%20atua%C3%A7%C3%A3o%20no%20Brasil
http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem...
).

Em dados divulgados pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2015Relação Anual de Informações Sociais. (2015). Ministério da Economia. http://pdet.mte.gov.br/rais/rais-2015
http://pdet.mte.gov.br/rais/rais-2015...
) do Ministério do Trabalho, entre os técnicos e auxiliares de enfermagem, 40% são negros e 32,8% não negros; entre os profissionais de enfermagem do Ensino Superior, 58,4% dos enfermeiros se autodeclaram brancos e 32,5% negros, e com relação a sexo e raça, 61,6% são mulheres brancas e 29,6% são mulheres negras. Lombardi e Campos (2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
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), ao discutirem o perfil sociorracial da categoria, além de problematizarem a feminização do trabalho do care, apontam para uma política de branqueamento da categoria desde os primórdios da profissionalização da enfermagem e para uma clivagem interna dentro da enfermagem, no que tange à segmentação e hierarquização de tarefas no cuidado exercido pela categoria.

Trabalhos considerados inferiores, tenderão a ser ocupados por mulheres e negros e, portanto, ofertarão salários mais baixos. E o trabalho de cuidado com o outro tem sido considerado de pouca relevância pela sociedade, sendo associado à caridade, à pouca qualificação, à esfera doméstica. Na enfermagem, essa dupla concepção desvalorizadora está presente (Lombardi & Campos, 2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
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, p. 42).

Ainda, há divisão técnica interna na segmentação das tarefas a serem exercidas:

Se há uma inegável homogeneidade feminina em termos de composição dos quadros, há também uma heterogeneidade em relação ao tipo de mulher e ao tipo de trabalho que cada uma desempenha nesse vasto universo laboral. Entre cuidar de feridas e fluidos humanos, instrumentar numa cirurgia ou administrar o material e os medicamentos de uma unidade hospitalar, por exemplo, há muita diferença. Da mesma maneira, há diferença entre ser uma enfermeira chefe e uma auxiliar de enfermagem (Lombardi & Campos, 2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
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, p. 32).

Lombardi e Campos (2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
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) salientam, ainda, que esta elitização e branqueamento da categoria se perpetua até os dias atuais, visto que houve um projeto ideológico de difusão do modelo da “enfermeira padrão” relacionado às mulheres brancas e de classe social mais favorecidas. As profissionais negras majoritariamente se situam na posição de técnicas e auxiliares de enfermagem, realizando trabalhos de cuidado direto com o corpo do paciente - no cuidado de feridas, na higienização e na alimentação - e outros trabalhos subordinados às profissionais brancas com Ensino Superior na categoria, que se situam em posições de coordenação da equipe de enfermagem, atividades de supervisão e administração de medicamentos.

Os autores, além de problematizarem o perfil sociorracial da enfermagem no Brasil, alicerçam essa discussão em torno da divisão sexual do trabalho, que as autoras Hirata e Kergoat (2007Hirata, H., & Kergoat, D. (2007). Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, 37(132), 595-609. https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005
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) conceituam como uma divisão de base sexista alicerçada no patriarcado, no qual homens exercem os trabalhos reconhecidos como úteis (Pinto, 2015Pinto, E. A. (2015). Etnicidade, gênero e educação: Trajetória de vida de Laudelina de Campos Mello. Anita Garibaldi.) e as mulheres os trabalhos precarizados, dentre eles as atividades de cuidado, tanto no ambiente doméstico - trabalho remunerado e não remunerado - quanto no ambiente externo, por exemplo, as atividades de cuidado na assistência à saúde, que sofrem um processo de feminização alicerçado na construção social dos papéis de gênero.

Além disso, caminhando na mesma discussão de Lombardi e Campos (2018Lombardi, M. R., & Campos, V. P. (2018). A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, 17(1), 28-46. https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162#:~:text=A%20escolha%20pela%20enfermagem%20se,pe%C3%A7as%20que%20fundamentaram%20nossas%20an%C3%A1lise.
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) e a que desejamos abordar neste ensaio, faz-se crucial ampliar o conceito de divisão sexual do trabalho para divisão sociossexual e racial do trabalho, uma vez que não há como realizar uma discussão interseccional a respeito desta temática e não se considerar a impregnação do racismo estrutural na nossa sociedade, incluso o campo do trabalho do cuidado em saúde (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. Pólen. ; Passos, 2017Passos, R. G. (2017). “De escravas a cuidadoras”: Invisibilidade e subalternidade das mulheres negras na política de saúde mental brasileira. O Social em Questão, 20(38), 77-94.; Passos & Nogueira, 2018Passos, R. G., & Nogueira, C. M. (2018). O fenômeno da terceirização e a divisão sociossexual do trabalho. Revista Katálysis, 21(3), 484-503. https://doi.org/10.1590/1982-02592018v21n3p484
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).

A situação de saúde mental do corpo de enfermagem e os atravessamentos provocados pela Covid-19

O sofrimento psíquico já foi entendido como um castigo dos deuses para com os mortais/seres humanos na Grécia pré-socrática. Também já foi compreendido como acometimento das paixões, em que a pessoa acometida padece de algo cuja origem é desconhecida. Hoje, o sofrimento psíquico é reconhecido por ser transversal nas várias dimensões do ser humano, em torno de características biopsicossociais (Ceccareli, 2005Ceccareli, P. (2005). O sofrimento psíquico na perspectiva da psicopatologia fundamental. Psicologia em Estudo, 10(3), 471-477. https://doi.org/10.1590/S1413-73722005000300015
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; Peixoto & Borges, 2011Peixoto, M. J., & Borges, E. (2011). O sofrimento no contexto da doença. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, (6), 33-39.; Pessotti, 1995Pessotti, I. (1995). A loucura e as épocas. Rio de Janeiro: Editora 34.).

Etimologicamente, sofrimento vem da palavra latina subferre, que significa sob ferros, submetido à força ou acorrentado, denotando a dor que se deve suportar (Peixoto & Borges, 2011Peixoto, M. J., & Borges, E. (2011). O sofrimento no contexto da doença. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, (6), 33-39.). Classicamente, o sofrimento é classificado em físico, quando atribuído ao corpo, e mental, quando à mente; contudo, o sujeito em suas relações, com sua integralidade, experimentará o sofrer no seu Eu existencial (Gameiro, 1999Gameiro, M. H. (1999). Sofrimento na doença. Quarteto.; Peixoto & Borges, 2011Peixoto, M. J., & Borges, E. (2011). O sofrimento no contexto da doença. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, (6), 33-39.). Ribeiro, Cunha e Alvim (2016Ribeiro, M. G., Cunha, C. F., Alvim, C. G. (2016). Trancamentos de matrícula no curso de Medicina da UFMG: Sintomas de sofrimento psíquico. Revista Brasileira de Educação Médica, 40(4), 583-590. https://doi.org/10.1590/1981-52712015v40n4e00282015
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) explicam que o sofrimento psíquico é causado a partir do desconforto emocional para com questões subjetivas do sujeito.

Na realidade brasileira, existe uma relação entre saúde mental e trabalho no campo da enfermagem, cujo cuidado é caracterizado como feminino. Para as enfermeiras, esse cuidado começa em casa, continua no trabalho e volta para casa com elas ao final do plantão, perpassando pelo social quando as enfermeiras são solicitadas por vizinhos e conhecidos, como se a função “enfermeira” estivesse disponível a todo momento.

O trabalho das enfermeiras envolve esferas psicoafetivas, esforços mentais, concentração, atenção e longa exposição ao ritmo intenso de trabalho, driblando, muitas vezes, a escassez de recursos, equipamentos, medicamentos e, principalmente, de reconhecimento. O volume elevado de trabalho pressiona o ritmo laboral, fazendo com que as profissionais de enfermagem possam desenvolver suas atividades sem uma maior reflexão, fenômeno identificado como “tarefismo” (Fernandes, Ferreira, Albergaria, & Conceição, 2002Fernandes, J. D., Ferreira, S. L., Albergaria, A. K., & Conceição, F. M. (2002). Saúde mental e trabalho feminino: Imagens e representações das enfermeiras. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 10(2), 199-206. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692002000200012
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; Souza & Lisboa, 2005Souza, N. V. D. O., & Lisboa, M. T. L. (2005). Ritmo de trabalho: Fator de resgate psíquico da enfermeira. Escola Anna Nery , 9(2), 229-236. ).

Nota-se uma escassez de publicações sobre o corpo de enfermagem que relacionem diretamente a condição de gênero ao sofrimento psíquico, aspecto que pareceu se modificar com a pandemia.

Após a chegada da Covid-19, houve um aumento dos problemas que têm impactado a saúde física e mental dos profissionais da saúde, desencadeando sintomas psicossomáticos, como perda do sono, ansiedade, depressão e até mesmo medo e insegurança de serem acometidos pelo vírus e transmitirem aos familiares (Teixeira et al., 2020Teixeira, C. F. S., Soares, C. M., Souza, E. A., Lisboa, E. S., Pinto, I. C. M., Andrade, L. R., & Espiridião, M. A. (2020). A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25(9), 3465-3474. https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.19562020
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). As considerações de Ferrán e Barrientos-Trigo (2021Ferrán, M. B., & Barrientos-Trigo, S. (2021). Cuidar al que cuida: El impacto emocional de la epidemia de coronavirus en las enfermeras y otros profesionales de la salud. Enfermería Clínica, 31(1), 535-539. https://doi.org/10.1016/j.enfcli.2020.05.006
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) vão ao encontro dessas informações, uma vez que destacam que tais fatores representam um risco para a saúde psicoemocional dos profissionais de saúde, causando estresse e comprometendo a qualidade de vida desses trabalhadores. Em pesquisa realizada sobre as experiências laborais vivenciadas em unidades de pronto atendimento durante a pandemia, os resultados destacaram que são as enfermeiras que estão à frente para que as ações e mudanças de fato sejam implementadas (Bordignon, Vargas, Schoeller, & Santos, 2020Bordignon, J. S., Vargas, C. P., Schoeller, S. D., & Santos, E. K. A. (2020). Vivências e autonomia de enfermeiras de uma Unidade de Pronto Atendimento em tempo de pandemia. Enfermagem em foco, 11(1), 205-210. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2020.v11.n1.ESP.3724
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).

É inevitável que esses profissionais atuantes da linha de frente fiquem mais vulneráveis às questões emocionais, pois lidam com a sensação de impotência, fracasso e estresse pela sobrecarga de trabalho e com a questão da incerteza sobre um vírus sobre o qual ainda não existem muitos estudos sobre como lidar e tratá-lo. Além disso, ainda há o medo de contrair e transmitir o vírus, e a dificuldade de lidar com a perda dos pacientes que, por vezes, podem ser colegas de trabalho (Xiang et al., 2020Xiang, Y., Jin, Y., Wang, Y., Zhang, Q., Zhang, L., & Cheung, T. (2020). Tribute to health workers in China: A group of respectable population during the outbreak of the covid-19. International Journal of Biological Sciences , 16(10), 1739-1740. https://doi.org/10.7150/ijbs.45135
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).

Segundo informações apresentadas pelo Cofen e pela Fiocruz (2015), as mulheres constituem 84,7% da força de trabalho na enfermagem - auxiliares, técnicas e enfermeiras de nível superior - e são a principal categoria profissional na linha de frente do combate à Covid-19 nas unidades assistenciais do SUS. Neste sentido, tal categoria tem sofrido os inúmeros efeitos degradantes desse contexto, dentre eles as condições insalubres de trabalho e organização, o pouco tempo de descanso e a necessidade de trabalhar em mais de um emprego. Vale ressaltar que o efeito na saúde dessas profissionais é a sobrecarga psíquica e emocional decorrente do contexto atual de trabalho e, por vezes, também do trabalho doméstico nos seus lares (Cofen, 2020Conselho Federal de Enfermagem. (2 mai. 2020). A luta contra o coronavírus tem o rosto das mulheres. Cofen. http://www.cofen.gov.br/a-luta-contra-o-coronavirus-tem-o-rosto-de-mulheres_79476.html
http://www.cofen.gov.br/a-luta-contra-o-...
). Araújo-dos-Santos et al. (2018Araújo-dos-Santos, T., Silva-Santos, H., Silva, M. N., Coelho, A. C. C., Pires, C. G. S., & Melo, C. M. M. (2018). Precarização do trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem nos hospitais públicos. Revista da Escola de Enfermagem da USP, (52), 1-8. https://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017050503411
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) corroboram essa premissa ao evidenciarem a precarização no trabalho do serviço público de saúde e como essas questões influenciam a atuação de enfermeiras, técnicas e auxiliares.

Nesse direcionamento, Ferreira, Mai, Périco e Micheletti (2020Ferreira, S. R. S., Mai, S., Périco, L. A. D., & Micheletti, V. C. D. (2020). O processo de trabalho da enfermeira, na atenção primária, frente à pandemia da COVID-19. In S. S. S. Teodósio & S. S. Leandro (Orgs.), Enfermagem na atenção básica no contexto da covid-19 (pp. 18-25). ABEn.) apresentaram um estudo reflexivo sobre a organização do processo laboral das enfermeiras na Atenção Primária à Saúde (APS) frente à pandemia e destacaram a necessidade de reinvenção no trabalho dessas profissionais, que constantemente precisam reorganizar a própria rotina para dar a atenção à saúde da população. As enfermeiras assumem um papel de liderança de modo a prevenir o risco de contágio do vírus e são responsáveis por inúmeras atribuições, dentre elas a reorganização dos planos de cuidado para os pacientes sintomáticos respiratórios e para os que estão sob suspeita da Covid-19 (Ferreira et al., 2020Ferreira, S. R. S., Mai, S., Périco, L. A. D., & Micheletti, V. C. D. (2020). O processo de trabalho da enfermeira, na atenção primária, frente à pandemia da COVID-19. In S. S. S. Teodósio & S. S. Leandro (Orgs.), Enfermagem na atenção básica no contexto da covid-19 (pp. 18-25). ABEn.).

Tendo isto em vista e considerando a relevância do trabalho desenvolvido por mulheres enfermeiras durante a pandemia, é importante estabelecer relações entre o sofrimento psíquico e a sintomatologia a ele associado com as condições materiais para a execução do trabalho de enfermeiras envolvidas no enfrentamento direto da pandemia de Covid-19, não dissociando os sofrimentos apresentados pelas profissionais em sua experiência singular de atuação - organização e dinâmica específicas dos processos laborais em saúde no contexto pandêmico.

Teixeira et al. (2020Teixeira, C. F. S., Soares, C. M., Souza, E. A., Lisboa, E. S., Pinto, I. C. M., Andrade, L. R., & Espiridião, M. A. (2020). A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25(9), 3465-3474. https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.19562020
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) desenvolveram um estudo de revisão bibliográfica em que apresentam a relação entre sintomas ansiosos e depressivos, quadros de insônia, irritabilidade e medo ao esforço emocional e exaustão física apresentada por profissionais de enfermagem ao acompanharem, no contexto hospitalar, o número crescente e significativo de pessoas testadas positivo para Covid-19. Em alguns casos, os(as) profissionais exercem cuidados com colegas de trabalho, realidade que, como apontado pelos autores, incrementa a vivência de sofrimento psicológico.

Considerando a atuação das profissionais de enfermagem em instituições hospitalares, Teixeira et al. (2020Teixeira, C. F. S., Soares, C. M., Souza, E. A., Lisboa, E. S., Pinto, I. C. M., Andrade, L. R., & Espiridião, M. A. (2020). A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25(9), 3465-3474. https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.19562020
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) afirmam que as enfermeiras precisam manejar angústias e medos em seu cotidiano de trabalho referentes à insuficiência de insumos, como os ventiladores para respiração artificial e ao receio em assumir protocolos clínicos ainda não comprovadamente eficazes no atendimento de pacientes. No que diz respeito ao suporte e à atenção à saúde da trabalhadora, deparam-se com a escassez e a limitação de serviços de apoio em saúde mental e atenção psicossocial para acolher demandas de cuidado com ofertas de orientação, escuta qualificada e suporte adequado.

Sabe-se que há esse limite de disponibilidade psíquica no trabalho da enfermagem e que uma pandemia pode adoecer e disparar crises que já estariam controladas (Li et al., 2020Li, W., Yang, Y., Liu, Z., Zhao, Y., Zhang, Q., Zhang, L., Cheung, T., & Xiang, Y. (2020). Progression of mental health services during the covid-19 outbreak in China. International Journal of Biological Sciences, 16(10), 1732-1738. https://doi.org/10.7150/ijbs.45120
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). A recomendação que existe é que os profissionais que apresentam sinais de depressão, ansiedade ou de desgaste, detectados por si ou por outros, devem receber intervenções imediatas para minimizar o risco de comorbidade de espectro psiquiátrico.

A inexistência ou escasso acesso à rede de atenção e cuidados psicossociais ou de políticas públicas que tipifiquem normativas e estabeleçam linhas de cuidado contribuem para o sofrimento psíquico das profissionais de enfermagem. Buscando minimizar esses efeitos, o Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes) da Fiocruz produziu uma cartilha voltada à saúde mental do(a) trabalhador(a) da linha de frente no enfrentamento da Covid-19 (Ministério da Saúde, 2020Ministério da Saúde. (2020). Orientações aos trabalhadores dos serviços de saúde. Fiocruz https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/06/cartilha_trabalhadores_saude.pdf
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), na qual estão presentes indicações que ressaltam a importância de estabelecer condutas e comportamentos de autocuidado.

A cartilha também orienta sobre a importância da manutenção de espaços coletivos que fomentem trocas dialógicas entre as(os) trabalhadoras(es). Para tanto, incentiva a realização de reuniões diárias, salvaguardando-se os protocolos de biossegurança, objetivando promover o apoio mútuo, a solidariedade e o reconhecimento entre os pares, constituindo-se, dessa maneira, como importante estratégia no cuidado em saúde mental. Ainda, assevera que as instituições devem garantir serviços que considerem as demandas de cuidado das(os) trabalhadoras(es), não restringindo as intervenções e a prescrição de terapias medicamentosas, ações essas unicamente embasadas no paradigma biomédico. Ao contrário, sugerem que sejam disponibilizados plantões de orientação psicológica e o uso de tecnologias de informação para assegurar atendimentos na modalidade remota.

Torna-se importante, na discussão sobre a prevenção, proteção e promoção da saúde mental das profissionais de enfermagem, produzir tensionamentos nas produções técnicas que estabelecem e normatizam estratégias de atenção em saúde mental. Teixeira et al. (2020Teixeira, C. F. S., Soares, C. M., Souza, E. A., Lisboa, E. S., Pinto, I. C. M., Andrade, L. R., & Espiridião, M. A. (2020). A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25(9), 3465-3474. https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.19562020
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) afirmam que utilizar a categoria profissionais de saúde sem operacionalizar os marcadores sociais da diferença, como gênero, classe e raça, é desconsiderar que esses marcadores compõem as trajetórias singulares das trabalhadoras de saúde. Os autores demarcam a importância de considerar a divisão social e técnica do trabalho, as disparidades, as desigualdades sociais e as violências de gênero, classe e raça que subjetivam e marcam os corpos das trabalhadoras de saúde, assim como os diferentes valores e sentidos socialmente atribuídos às profissões de saúde. Negligenciar a presença de hierarquias e relações de poder que perpassam e fundam as diversas profissões de saúde é desconsiderar distintas e diversas dinâmicas históricas e institucionais intimamente relacionadas com as condições que contribuem para a fragilização e o adoecimento dos sujeitos em suas relações laborais.

A enfermeira Amy Gaylor, na revista Nursing for Women’s Health, traz uma reflexão ainda mais detalhada sobre esse olhar generalizado, sem marcador de diferenças dentro da categoria englobante “profissionais de saúde”. Ela explicita que existe uma diferença dentro da própria enfermagem, no momento de pandemia, e que nem todas estão na linha de frente, o que acaba trazendo uma culpa, uma ponderação de que talvez poderiam estar ajudando mais. Dentro dessa reflexão, ela ainda ressalta que todas sofrem, porém, não é uma disputa e que esse momento de crise pode ajudar a criar mais empatia e entendimento, além de aumentar a gratidão, pois todos saímos dessa luta com cicatrizes (Gaylor, 2020Gaylor, A. (2020). Let’s be gentle with ourselves and each other. Nursing for Women’s Health, 24(4), 307-308. https://doi.org/10.1016/j.nwh.2020.05.004
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).

A Covid-19 como um analisador: aspectos invisibilizados e potentes na discussão sobre o sofrimento psíquico de enfermeiras

A partir das considerações de Rossi e Passos (2014Rossi, A., & Passos, E. (2014). Análise institucional: Revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS, 5(1), 156-181.), vemos que o conceito de analisador forjado por Guattari é inseparável do conceito de transversalidade9 9 Para os autores, Guattari amplia os conceitos de transferência e contratransferência institucionais para o conceito de transversalidade. Recomendamos, para um aprofundamento sobre o assunto, a leitura de Vidal (1986). , fazendo-se necessário abordar este conceito para que possamos entender como o analisador comporta um potencial de transformação da dinâmica institucional, por meio do lugar que os diversos indivíduos ocupam nesta dinâmica.

Entre as verticalidades, que seriam as hierarquias, a estrutura piramidal, os chefes e subchefes e os organogramas presentes nas organizações, e as horizontalidades, que seriam os pares, dos grupos que se formam nos espaços institucionais estaria uma linha transversal que se movimenta e atravessa, tanto as verticalidades quanto as horizontalidades. Esta última tem a potência de redefinir os papéis desempenhados por cada indivíduo, considerando que, em uma atuação, os papéis desempenhados por cada membro dentro de uma organização se interpenetram - por exemplo, uma pessoa pode ser gerente em uma organização, mas também compor o quadro de trabalhadores assalariados, independente da categoria profissional (grupo dos trabalhadores).

Essa linha transversal ganha velocidade e movimento, “arrastando” consigo as verticalidades e as horizontalidades por meio dos analisadores, ou seja, a partir da problematização das inúmeras situações vivenciadas e dos eventos ocorridos, postos em discussão nos espaços coletivos, o analisador - elemento que, como vimos, comporta a capacidade de explicitar os impasses e conflitos eventualmente verificados na dinâmica institucional - viabiliza a redefinição dos papéis desempenhados por cada membro do grupo e um reposicionamento do lugar que cada um ocupa dentro da estrutura institucional, tanto na ordem hierárquica em que se encontram (verticalidades) quanto nas relações com seus pares, nos grupos formados no espaço institucional (horizontalidades).

A modificação no coeficiente de transversalidade10 10 O autor utiliza a imagem das viseiras dos cavalos para pensar este conceito: apertando as viseiras, compromete-se o campo de visão e os indivíduos se rebatem sobre si mesmos e entre si; ao afrouxá-las, a visão torna-se mais nítida e os indivíduos se organizam melhor no espaço (Guattari, 1987). deve intervir ao nível de uma redefinição estrutural do papel de cada um e de uma reorientação do conjunto. Enquanto as pessoas permanecem paralisadas em torno de si mesmas, elas não enxergam nada além de si mesmas (Guattari, 1987Guattari, F. (1987). Revolução molecular: Pulsações políticas do desejo. Brasiliense., p. 96).

Deste modo, na perspectiva esquizoanalítica, transversalizar significa proporcionar um maior nível comunicacional entre diversas instâncias - indivíduos, grupos, organizações, coletivos e instituições -, bem como poder traçar desvios em relação aos papéis e estruturas enrijecidas que possibilitem deslocamentos e reposicionamentos em novas composições e práticas.

A transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos diferentes sentidos (Guattari, 1987Guattari, F. (1987). Revolução molecular: Pulsações políticas do desejo. Brasiliense., p. 96).

A condição de vulnerabilidade em que se encontram muitos profissionais de enfermagem em relação aos efeitos provocados nos serviços de saúde com a pandemia Covid-19 convoca a todos nós para o debate sobre a precarização dos serviços de saúde e transversaliza - isto é, traz consigo - o contexto social-histórico-político-econômico-cultural no qual esta categoria profissional é formada em nosso país, ampliando a comunicação entre todos os atores sociais inseridos neste contexto e nos responsabilizando por ele.

Como já discutimos, a enfermagem é majoritariamente composta por mulheres. Diversos processos históricos possibilitaram a profissionalização da enfermagem, sua feminização e os sentidos conferidos à prática. A enfermagem é um trabalho identificado com certa concepção - historicamente datada - do feminino como dócil, ingênuo, bondoso e caridoso. O feminino, nesse sentido, identifica-se com uma concepção essencialista, sendo o cuidado um dom atribuído pelo divino à mulher. A pergunta válida para as mulheres estaria direcionada à preocupação em exercer o cuidado em favor de seu lar, filhos e marido. Assim, o cuidado concebido pelas enfermeiras na relação com os doentes é atravessado por esses valores, socialmente produzidos e pautados em relações autoritárias, fato que não pode ser ignorado nas discussões sobre identidade profissional (Moreira, 1999Moreira, M. C. N. (1999). Imagens no espelho de vênus: Mulher, enfermagem, modernidade. Revista Latino-Americana de Enfermagem , 7(1), 55-65. https://doi.org/10.1590/S0104-11691999000100008
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), sobretudo quando intenciona-se, em contexto pandêmico, debater sobre o cuidado em saúde mental de enfermeiras.

Assim, a Covid-19 permite uma inflexão em relação a estas naturalizações historicamente construídas e à invisibilidade do sofrimento psíquico das enfermeiras. As inúmeras mortes provocadas pela doença entre os profissionais de enfermagem, em sua grande maioria mulheres, nos mostra que este trabalho no Brasil se evidencia em corpos generificados, racializados e situados social e economicamente.

Ao promover uma explosão discursiva em torno da saúde mental de todas as pessoas, de algumas em particular, como as enfermeiras, a Covid-19 demonstrou um potencial de transversalizar, ainda que até o momento só tenha revelado algo latente, o sofrimento psíquico agravado deste segmento.

Neste sentido, o nosso trabalho pretendeu abrir passagem para que sejam traçados estudos para além das estruturas enrijecidas e das práticas cristalizadas institucionalmente quando se trata de pensar o corpo de enfermagem, o lugar das mulheres e as questões de saúde mental.

Apostamos na potência revelada pela pandemia em relação à profunda conectividade entre todos nós nos cuidados com a saúde. O modo como nos movemos impacta os demais. Trata-se de uma aposta na interdependência do cuidado, na sua dimensão demasiadamente humana e coletiva. Consideramos que a interdependência deve necessariamente se conectar com a ampliação do coeficiente de transversalidade para se efetivar. Como nos ensina Annemarie Mol (2008Mol, A. (2008). The logic of care: Health and the problem of patient choice. Routledge., p. 19), cuidar é uma questão de “sintonizar com, respeitando, nutrindo e ainda desfrutando corpos mortais”.

Considerações finais

O contexto de crise social, política e sanitária agudizado pela pandemia do novo coronavírus permitiu uma certa visibilidade aos trabalhadores de saúde, em específico aos profissionais de enfermagem, com um reconhecimento da importância social da categoria em seus vários âmbitos de atuação nos serviços de saúde, nos diversos níveis da atenção: da unidade básica, passando pela ambulatorial, até a hospitalar e/ou atenção especializada.

Dentre as maiores vítimas da pandemia estão os profissionais de enfermagem, que, em sua grande maioria, são pessoas do sexo feminino, grupo mais vulnerável pela sinergia dos marcadores sociais da diferença, como gênero, cor/raça e classe.

Os efeitos da somatória das diversas crises que o Brasil apresenta na área da saúde, incrementada pela crise sanitária causada pela Covid-19, mostra que a crise pandêmica impacta de forma muito distinta os diferentes grupos sociais no país, evidenciando, como já afirmamos, uma necropolítica que faz viver e deixa morrer pessoas de modo diferenciado (Mbembe, 2018Mbembe, A. (2018). Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. N- 1 Edições. )11 11 Na aula final do curso “Em defesa da sociedade”, de 1976, Foucault (1999) lançou a ideia do racismo de Estado como uma das táticas do biopoder e da biopolítica. Entre o poder de “fazer viver e deixar morrer”, o racismo de Estado determinaria as condições de aceitabilidade para quem vive e quem morre. Mbembe (2016) foi além e mostrou como o biopoder é insuficiente para entender as relações de inimizade e perseguição contemporâneas, defendendo que há uma necropolítica em curso para produzir os “mundos de morte” (Diniz & Carino, 2019). .

Além disso, ainda é possível perceber que a ciência não assume determinados olhares e escolhas, a exemplo da quase ausência de estudos voltados especificamente para a condição de mulheres enfermeiras em sofrimento psíquico, uma vez que se trata de uma profissão eminentemente feminina. A Covid-19 não somente fomentou esse recorte, como também incrementou o número de estudos e revelou essas lacunas.

Acreditamos que é preciso fazer pesquisa em saúde de maneira atenta para as especificidades de quem cuida, produzindo uma ciência de saberes situados e, neste sentido, mais cuidadosos.

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    https://www.reciis.icict.fiocruz.br/inde...
    ) para compreender o sofrimento como um processo complexo e multifacetado. A autora defende a dimensão social do sofrimento pela indissociabilidade das dimensões físicas, psicológicas, morais e sociais do mal-estar. Na direção defendida pela autora, que parte da contribuição da Antropologia, nos interessa, considerando o comprometimento com os sujeitos, sua história e situação social, entender “como o sofrimento é produzido e reconhecido e quais as implicações éticas e políticas dos diferentes tipos de reconhecimento” (Victora, 2011Victora, C. (2011). Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da antropologia. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, 5(4), 3-13. https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/764/1406
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    , p. 3).
  • 2
    Para Baremblitt (1996Baremblitt, G. (1996). Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática. Rosa dos Tempos., p. 29), a sociedade seria “um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens; entidades abstratas, por mais que possam estar registradas em escritos ou tradições”.
  • 3
    Baremblitt (1996Baremblitt, G. (1996). Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática. Rosa dos Tempos.) explana as modalidades. Poderíamos considerar a Covid-19 como um analisador natural, espontâneo.
  • 4
    Utilizamos o conceito de problematização no sentido dado por Foucault (1990Foucault, M. (1990). História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Graal., pp. 9-16), que evidencia “os jogos de verdade entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência; que evidencia as condições nas quais o ser humano pensa sobre si e o mundo no qual vive, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”.
  • 5
    Para um melhor esclarecimento sobre grupos ver Guattari (1992Guattari, F. (1992). Caosmose: Um novo paradigma estético. Editora 34.). O autor faz uma distinção entre grupo sujeitado e grupo sujeito: o primeiro se limita às intervenções do fora e às hierarquizações impostas, curva-se sobre si mesmo; o segundo assume uma postura crítica, formula e enuncia algo sobre seus impasses e se abre para além do próprio grupo, acolhendo sua finitude.
  • 6
    Utilizamos aqui “discursos” e “materialidades” com o intuito de ressaltar que todo e qualquer grupo comporta em si diversos elementos heterogêneos, mas que se inter-relacionam estreitamente, podendo o próprio grupo servir de analisador, ou seja, fazer ver e fazer falar. Segundo Baremblitt (1996Baremblitt, G. (1996). Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática. Rosa dos Tempos., p. 70): “qualquer materialidade pode ser suporte de um analisador, ou seja, um analisador não é necessariamente um discurso”. Com essa afirmação não pretendemos, contudo, criar uma oposição entre materialidade e discurso. Conforme Foucault (1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade I: A vontade de saber. Graal.) nos ensinou com o conceito de dispositivo da sexualidade, aspectos arquitetônicos “dizem” sobre diversas moralidades e discursos empreendidos em torno do sexo e as discursividades, sobretudo as produzidas por especialistas, criam realidades e corpos na relação saber-poder.
  • 7
    Vale destacar que a Constituição Federal de 1988 definiu, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Para atingir este objetivo foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Lei nº 8.080/1990.
  • 8
    De acordo com Mbembe (2016Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151.), necropolítica pode ser definida como o uso do poder político e social, especialmente pelo Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer. Lançamos mão do conceito de necropolítica neste trabalho não só para problematizar as diferentes vulnerabilidades no cenário da pandemia, mas também para evidenciar a suspensão de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal e a naturalização sistemática de desassistências do Poder Público a grupos populacionais racializados, generificados, pauperizados e socialmente estigmatizados.
  • 9
    Para os autores, Guattari amplia os conceitos de transferência e contratransferência institucionais para o conceito de transversalidade. Recomendamos, para um aprofundamento sobre o assunto, a leitura de Vidal (1986Vidal, P. V. (1986). O conceito de grupo na obra de Guattari e Deleuze. In G. Baremblitt (Org.), Grupos: Teoria e técnica (pp. 43-57). Graal.).
  • 10
    O autor utiliza a imagem das viseiras dos cavalos para pensar este conceito: apertando as viseiras, compromete-se o campo de visão e os indivíduos se rebatem sobre si mesmos e entre si; ao afrouxá-las, a visão torna-se mais nítida e os indivíduos se organizam melhor no espaço (Guattari, 1987Guattari, F. (1987). Revolução molecular: Pulsações políticas do desejo. Brasiliense.).
  • 11
    Na aula final do curso “Em defesa da sociedade”, de 1976, Foucault (1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Martins Fontes.) lançou a ideia do racismo de Estado como uma das táticas do biopoder e da biopolítica. Entre o poder de “fazer viver e deixar morrer”, o racismo de Estado determinaria as condições de aceitabilidade para quem vive e quem morre. Mbembe (2016Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151.) foi além e mostrou como o biopoder é insuficiente para entender as relações de inimizade e perseguição contemporâneas, defendendo que há uma necropolítica em curso para produzir os “mundos de morte” (Diniz & Carino, 2019Diniz, D., Carino, G. (16 jul. 2019). A necropolítica como regime de governo. El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/09/opinion/1562688743_395031.html
    https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2021
  • Aceito
    10 Jan 2022
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