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O Compromisso Social da Psicologia e a Possibilidade de uma Profissão Abrangente

The Social Commitment of Psychology and the Possibility of a Comprehensive Profession

El Compromiso Social de la Psicología y la Posibilidad de una Profesión Amplia

Resumo

As origens da Psicologia brasileira se relacionam ao projeto de modernização do país, com que ela contribuiu por meio de uma concepção universal de sujeito e de processos de classificação e categorização, pouco atentos às necessidades da realidade social. No processo de redemocratização do país, condições históricas possibilitaram uma ruptura com essa perspectiva, operada pelo Projeto do Compromisso Social. Este texto apresenta uma reflexão sobre o caminho de construção dessa ruptura e de um projeto ético-político comprometido com a realidade brasileira. Analisa o percurso impulsionado na virada do século XX para o século XXI por meio da atuação de entidades da profissão, notadamente os Conselhos de Psicologia, em articulação com importantes mudanças na atuação das psicólogas. Tal percurso permitiu uma revisão crítica da Psicologia, sendo apresentado em cinco eixos: produção de sujeitos democráticos e defesa da democracia; construção de resistência à alienação e combate ao pensamento colonizado; perspectiva de serviços profissionais comprometidos com a garantia de direitos; aprimoramento da qualidade da prática profissional das psicólogas; e expansão das fronteiras da psicologia. Em cada um, são apresentadas ações, estratégias e projetos que levaram à ampliação e ao reconhecimento social da Psicologia, organizada, democrática, ousada e acessivelmente à maioria da população. Ao mesmo tempo, apresenta desafios para a continuidade desse projeto na realidade atual, apostando que, com 60 anos de regulamentação, a Psicologia é capaz de enfrentar novas questões que se colocam no país por meio da atuação das profissionais que levam adiante o projeto de compromisso social.

Palavras-chave:
Psicologia; Compromisso Social; Direitos Sociais; Democracia; Pensamento Crítico

Abstract

Psychology in Brazil is born alongside the country’s modernization project, to which the science contributed by establishing a universal conceptualization of the individual and classification and categorization processes, hardly attentive to social reality. The historical conditions set forth by the country’s re-democratization allowed a breaking from this perspective, operated by the Social Commitment Project. This paper reflects on the paths that led to this transformation and the ensuing ethical-political project committed to Brazil’s reality. It analyzes the trajectory started in the turn of 20th to the 21st century, led by professional entities, namely the Psychology Councils, along with important changes in the psychologist’s work. Such trajectory allowed for a critical review of Psychology in five axes: 1) production of democratic individuals and the defense of democracy; 2) construction of resistance against alienation and the fight against a colonized thought; 3) perspectives of professional services committed to ensuring rights; 4) enhanced quality of the psychologist’s professional practice; 5) the broadening of the scope of psychology. For each axis, the text presents actions, strategies, and projects that led to the organized and democratic growth and social acknowledgment of Psychology, becoming accessible to most of the population. But it also points out the challenges for this project’s current continuity, believing that with 60 years of regulation, Psychology is capable of facing new issues arising in the country by means of professionals who carry on the social commitment project.

Keywords:
Psychology; Social Commitment; Social Rights; Democracy; Critical Thinking

Resumen

Los orígenes de la Psicología brasileña están relacionados con el proyecto de modernización del país al que contribuyó a través de una concepción universal del sujeto y de procesos de clasificación y categorización poco atentos a las necesidades de la realidad social. En el proceso de redemocratización del país, las condiciones históricas permitieron romper con esta perspectiva, operada por el Proyecto de Compromiso Social. Este texto presenta una reflexión sobre el camino de construcción de esa ruptura y de un proyecto ético-político comprometido con la realidad brasileña. Se analiza la ruta promovida en la transición del siglo XX al siglo XXI, por medio de la acción de entidades de la profesión, en particular los Consejos de Psicología, en articulación con cambios importantes en la actuación de las psicólogas. Este camino permitió una revisión crítica de la Psicología y se presenta en cinco ejes: producción de sujetos democráticos y defensa de la democracia; construcción de resistencia a la alienación y combate al pensamiento colonizado; perspectiva de servicios profesionales comprometidos con la garantía de derechos; mejora de la calidad de la práctica profesional de las psicólogas; y ampliación de las fronteras de la psicología. El texto plantea desafíos para la continuidad de este proyecto en la realidad actual, apostando que con 60 años de regulación la Psicología esté en condiciones de hacer frente a las nuevas cuestiones que se presentan en el país gracias al trabajo de las profesionales que llevan adelante el proyecto de compromiso social.

Palabras clave:
Psicología; Compromiso Social; Derechos Sociales; Democracia; Pensamiento Crítico

. . . o que define uma atuação abrangente é o quanto essa atuação reflete o potencial de utilidade e de contribuição da profissão à sociedade

(Carvalho, 1988Carvalho, A. M. A. (1988). Atuação psicológica: Uma análise das atividades desempenhadas pelos psicólogos. In A. V. B. Bastos, P. I. C. Gomide (Orgs.), Quem é o psicólogo brasileiro? (pp. 217-235). Edicon., p. 235).

A preocupação com a inserção da psicologia na sociedade brasileira estava posta já em 1988, quando Carvalho analisou os dados da pesquisa sobre as atividades profissionais das psicólogas, realizada pelo Conselho Federal de Psicologia e intitulada, em sua publicação, Quem é o psicólogo brasileiro? Este texto, que marca as comemorações dos 60 anos da regulamentação da profissão, se propõe como uma reflexão sobre o caminho que apresentou uma ruptura com aspectos que caracterizaram, até aquele momento, a profissão no Brasil, possibilitando a configuração e desenvolvimento do projeto do compromisso social.

A trajetória tem seu início oficial em 27 de agosto de 1962, quando a profissão é oficialmente reconhecida pela Lei nº 4.119. Tal reconhecimento, neste momento de comemoração de 60 anos, merece que nos perguntemos quais foram as condições históricas e os interesses que permitiram que uma atividade profissional até então com pouco desenvolvimento e diversidade, número pequeno de profissionais, sem uma identidade que agregasse esse conjunto e permitisse sua apresentação à sociedade brasileira, obtivesse seu reconhecimento legal.

Dentre os aspectos que podem ser apresentados para justificar essa importante conquista, há o fato de que o Brasil estava vivendo o desenvolvimento do projeto da elite de modernização do país. Desde o governo de Getúlio Vargas, o Brasil vinha se transformando de um país agrário e rural em um país urbano e industrializado. Por se tratar de um projeto de mudança, buscou-se apoio em todas as áreas do conhecimento que apresentassem uma tecnologia moderna para a solução de algum dos problemas sociais decorrentes do projeto de modernização.

A nascente industrialização necessitava de instrumentos de apoio para selecionar seus trabalhadores, escolhendo, com base em uma ferramenta tecnológica, os mais aptos para o trabalho. Além disso, a oferta de tecnologias científicas para as escolas, com vistas à melhora do desempenho e à classificação das crianças, na condição de futuros trabalhadores, representava outro campo de demanda e expansão da presença dos conhecimentos e práticas da Psicologia. Por fim, é preciso reconhecer que já havia em desenvolvimento no país uma política higienista, campo em que a Psicologia também se expandiu, subsidiando os processos de classificação e produção de diagnósticos psicopatológicos. Constata-se, assim, que a psicologia era exercida como atividade voltada à seleção, diferenciação e categorização das pessoas (Antunes, 2001Antunes, M. A. M. (2001). A psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua constituição. Unimarco/Educ.).

A classificação dos sujeitos parece ter sido fundamental para a inserção no zeitgeist daquele momento. Silva, Bock, Antunes, & Ferreira (2021Silva, M. V. O., Bock, A. M. B., Antunes, M. A. M., & Ferreira, M. R. (2021). Sobre psicologia e o reconhecimento de sujeitos válidos na vida social. In M. R. Ferreira, A. M. B. Bock, M. G. M. Gonçalves (Orgs.), Estamos sob ataque! Tecnologias de comunicação na disputa das subjetividades. Instituto Silvia Lane.) apontaram que foi exatamente esse papel da psicologia no reconhecimento dos sujeitos válidos a dimensão fundamental do interesse da sociedade pelo desenvolvimento do conhecimento psicológico. Os primeiros anos da profissão foram marcados principalmente por esse viés, calcado em uma perspectiva universal de sujeito que o descolava da realidade social e implicava pouca atenção a essa realidade (Bock, 1999Bock, A. M. B. (1999). Aventuras do Barão de Münchhausen na psicologia. Educ/Cortez.). Ao mesmo tempo, a categoria de psicólogas se constituiu de maneira fragmentada, com pouca presença pública, sem organização suficiente para a participação política.

Nas décadas seguintes, novas condições históricas se apresentaram e possibilitaram o surgimento e desenvolvimento de um novo projeto profissional, o Projeto do Compromisso Social. Tais condições, notadamente explicitadas, no Brasil, na resistência à ditadura militar e na recusa da dominação do pensamento estadunidense na Psicologia, podem ser localizadas nos anos 1970, consolidando-se nos anos de redemocratização do país, em meados de 1980 e ampliando-se nos anos 1990 (Santos, 2017Santos, L. N. (2017). O compromisso social da psicologia: Um estudo sobre o desenvolvimento de um projeto crítico. (Tese de Doutorado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). A psicologia passa, no final do século XX, por um processo importante de revisão crítica para a consolidação de um projeto ético-político que respondesse à realidade histórica latino-americana em geral, e brasileira em particular (Santos, 2017Santos, L. N. (2017). O compromisso social da psicologia: Um estudo sobre o desenvolvimento de um projeto crítico. (Tese de Doutorado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.).

A publicação de Silvia Lane em 1984Lane, S. T. M. (1984). A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In S. T. M. Lane, W. Codo (Orgs.), Psicologia social: O homem em movimento (pp. 10-19). Brasiliense., Uma nova concepção de homem para a psicologia, pode ser considerada, nesse processo, como um manifesto das novas possibilidades e alternativas para a psicologia brasileira. Ao afirmar que “Toda a psicologia é social” (Lane, 1984Lane, S. T. M. (1984). A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In S. T. M. Lane, W. Codo (Orgs.), Psicologia social: O homem em movimento (pp. 10-19). Brasiliense., p. 19), Lane apontava para a necessidade da superação das visões patologizantes e absolutizadoras da psicologia, passando a compreender o humano em sua rede de relações e na sua inserção em uma determinada sociedade, com seu modo de produção e sua cultura.

No âmbito das entidades, muitas iniciativas foram desenvolvidas nessa nova perspectiva, especialmente nas gestões do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a partir de 1996, fortalecendo a implementação do Projeto do Compromisso Social.

Neste texto, aspectos desse processo serão apresentados em torno de cinco eixos, procurando-se evidenciar algumas marcas históricas que permitem compreender o significado do Projeto do Compromisso Social para a ampliação e o reconhecimento social da profissão.

Produção de sujeitos democráticos: a defesa da democracia

A defesa da democracia é hoje uma certeza entre profissionais da Psicologia e das gestões de suas entidades. Com raras exceções, trata-se de uma tese defendida de forma inescapável. Mas não foi sempre assim, basta lembrar que na década de 1970 os Conselhos de Psicologia concederam título de psicólogo honorário ao sanguinário ditador E. G. Médici, assim como ao E. Geisel, e nunca questionaram a repressão do Estado ditatorial. Contudo, no golpe de 2016 foi diferente, houve forte resistência das entidades da Psicologia aos projetos dos golpistas, o que transpareceu na defesa das políticas públicas por eles atacadas. Esse exemplo revela uma das marcas do processo referido acima, a ruptura com concepções autoritárias e a ampliação constante do exercício de experiências democráticas.

A perspectiva de defesa da democracia, constituição de estruturas e relações democráticas e de produção de sujeitos democráticos estava presente na organização das psicólogas como categoria, em seu papel de sujeitos responsáveis por organizar a presença da Psicologia na sociedade. Trata-se de um processo de democratização das entidades de Psicologia, notadamente a Autarquia Conselhos, que tomou como tarefa enfrentar os limites institucionais definidos por concepções antidemocráticas. Isso se deu, inicialmente, por meio da discussão da Lei nº 5.766/71, que criou os Conselhos de Psicologia.

Essa lei, aprovada em plena ditadura, carregava formas pouco democráticas de escolha das gestões e de relação entre as instâncias deliberativas dos Conselhos de Psicologia, não previa qualquer participação da categoria profissional nas deliberações da entidade e sua atuação era marcada por um espírito corporativista que impedia à entidade se abrir para os movimentos sociais e outras entidades, da psicologia ou não.

Várias iniciativas permitiram o enfrentamento desses limites: a realização de um Congresso Unificado de entidades do âmbito profissional e sindical, em 1989, para debater a organização profissional da área; a convocação, em 1993, pelo CFP, de um Processo Constituinte da Psicologia, que indicou reformulações na Lei nº 5.766/71; a criação do dispositivo Consulta Nacional, para viabilizar uma das decisões do processo Constituinte, de realização da escolha dos dirigentes do CFP por meio de eleição direta e organização dos candidatos em chapas, superando a perspectiva personalista presente até então nas entidades e permitindo o surgimento de vários movimentos no âmbito da Psicologia, o que merece destaque no plano da produção de sujeitos democráticos; a criação, em 1997, por iniciativa do CFP, do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), em cumprimento a também uma decisão do Congresso Constituinte. Inicialmente composto por cinco entidades de âmbito nacional1 1 A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia -Anpepp; a Sociedade Brasileira de Psicologia - SBP; a Federação Nacional dos Psicólogos -Fenapsi; a Coordenação Nacional dos Estudantes de Psicologia - Conep; e o Conselho Federal de Psicologia - CFP. , o FENPB atualmente reúne 23 entidades nacionais. Destaca-se também o desenvolvimento de um método democrático de participação e deliberação no âmbito dos Conselhos de Psicologia, com vários elementos, sendo os principais o Congresso Nacional da Psicologia (CNP), em que a categoria decide diretrizes que devem orientar a atuação da entidade nos três anos seguintes; a reestruturação da Assembleia de Política, Administração e Finanças (Apaf), em que decisões que oficialmente são de atribuição do CFP passaram a ser debatidas e deliberadas com a participação de todos os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs), ampliando a representatividade de questões acumuladas a partir de diferentes realidades em que se inserem as psicólogas; e a criação de canais de reconhecimento e participação das psicólogas com sua expertise, valorizando a categoria no âmbito das entidades.

O compromisso com uma perspectiva democrática na gestão das entidades da Psicologia possibilitou às profissionais da área experiências essenciais à condição de sujeitos democráticos, exercício fundamental para que, a partir de sua atuação, pudessem estender esses efeitos, instituindo processos e práticas comprometidas com a democracia, ampliando a tantos outros a possibilidade de constituir-se, também, como sujeitos democráticos.

Dentre esses aspectos, o surgimento de vários movimentos políticos na categoria, como expressão da organização possibilitada pelo método democrático desenvolvido, é algo que deve ser apontado. A fragmentação, isolamento e dificuldade de participação nos espaços públicos que marcou a profissão até os anos 1980 foram se alterando com as experiências referidas até aqui.

Esse processo de ruptura com concepções autoritárias e de empenho em produzir democracia no cotidiano das relações, no reconhecimento de sujeitos, e na organização de entidades produziu resultados importantes. Essa experiência ecoou na renovação de valores para a profissão e desde 2020 a bandeira Psicologia rima com democracia tem sido um mote importante, revelador do posicionamento público da categoria diante dos desafios impostos pela crise social, política e sanitária que acomete o país. Pode-se reafirmar que houve uma mudança significativa de posicionamento da categoria organizada e a democracia é hoje um valor que se defende coletivamente.

Entretanto, os desafios se renovam. A análise do processo de produção de sujeitos democráticos permite apontar o que se faz urgente neste momento. Os anos mais recentes da história do Brasil, em que as condições de desigualdade social e violação de direitos se agravam, mostram que a democracia não está garantida. Experiências recentes evidenciam a fragilidade dos sujeitos democráticos, seja em sua expressão, seja no reconhecimento do outro como também um sujeito. Expressões cotidianas de racismo, sexismo, perseguição religiosa, desrespeito à orientação sexual e identidade de gênero, naturalização da pobreza e da fome, demonstram que a perspectiva democrática não está entranhada nas relações sociais. Ao contrário disso, cresce o espaço das manifestações autoritárias e reacionárias.

Mais do que nunca, o compromisso da Psicologia com a construção de sujeitos democráticos se faz necessário. O processo histórico da profissão revela a importância de manter, ampliar e aprofundar essa construção. Isso requer fidelidade e aprofundamento do método democrático na gestão das entidades. Mas também nas práticas profissionais e na intervenção profissional.

Construção de resistência à alienação e o combate ao pensamento colonizado

A exigência de desenvolver caminhos para a construção de uma Psicologia Crítica precisa ser reconhecida como algo que perpassa quase toda a história dessa ciência. Mal acabava de ser reconhecida como área científica, as proposições do russo Lev Vigotski, do húngaro Georges Politzer e, no Brasil, de Manoel Bomfim (1868-1932) postulavam um compromisso com o pensamento crítico ainda pouco reconhecido ou enfatizado (Antunes, 2001Antunes, M. A. M. (2001). A psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua constituição. Unimarco/Educ.; Bock & Furtado, 2006Bock, A. M. B., Furtado, O. (2006). A psicologia no Brasil e suas relações com o marxismo. In A. M. Jacó-Vilela, A. A. L. Ferreira, F. T. Portugal (Orgs.), História da psicologia: Rumos e percursos (pp. 503-513). NAU.). Outros autores e autoras, como Ulisses Pernambucano e Helena Antipoff, poderiam ser citados como contribuições importantes que demonstravam um subterrâneo da psicologia, em que se expressava o incômodo com visões colonizadas e se apontava para visões críticas.

Essas contribuições compõem o embrião da ideia de que a psicologia no Brasil deveria considerar a realidade social em que a subjetividade se constitui. Esse princípio basilar levou a uma valorização de estudos que consideravam, em suas análises, o contexto de vida dos sujeitos estudados. “. . . é a clareza de que não se pode conhecer qualquer comportamento humano isolando-o ou fragmentando-o, como se este existisse em si e por si” (Lane, 1984Lane, S. T. M. (1984). A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In S. T. M. Lane, W. Codo (Orgs.), Psicologia social: O homem em movimento (pp. 10-19). Brasiliense., p. 19). É Lane (1984)Lane, S. T. M. (1984). A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In S. T. M. Lane, W. Codo (Orgs.), Psicologia social: O homem em movimento (pp. 10-19). Brasiliense. que insistirá na ideia de “. . . recuperar o indivíduo na intersecção de sua história com a história de sua sociedade . . .” (p. 13). Essa trajetória crítica não se instalou sem resistências.

No desenvolvimento da psicologia, a partir dos anos 1990, ganhou força a compreensão de que era necessário fazer a crítica contundente ao pensamento colonizado que marcava - e ainda marca - a psicologia brasileira. As noções abstratas, universais e naturalizadas do humano e do fenômeno psicológico permitiram a instalação cômoda e quase automática de um pensamento estrangeiro, referenciando teorias e práticas da psicologia existentes no contexto externo. As teorias utilizadas como base eram, praticamente, todas construídas em países do norte global e a psicologia brasileira importava esses conhecimentos, por vezes financiando sua busca na Europa ou nos Estados Unidos e, sem qualquer crítica ou adaptação, os utilizava para “compreender” os sofrimentos dos humanos nascidos em condições de vida precarizadas, em um país marcado pelo racismo e pela desigualdade social. Essa utilização “automática” se tornou possível porque foi embasada em uma visão universal do humano. As condições sociais não eram consideradas como fundamentais e constitutivas do humano.

A imagem utilizada nos primeiros anos do Projeto do Compromisso Social foi a de que a Psicologia havia sido transplantada, sem ser aclimatada, para o Brasil e América Latina. Ao se encontrar com o conhecimento encontrado pronto, profissionais brasileiros pareciam realizar um tríplice movimento: adesão (que consistia na adoção integral das ideias de um determinado autor), identificação (chegando a um nível de se sentir pessoalmente ofendido frente a críticas ao seu autor preferido) e missionarismo (assumiam a tarefa de difundir o pensamento de seu autor preferido) (Ferreira, 2009Ferreira, M. R. (2009). Inventamos ou erramos: Sobre a necessidade de combater o colonialismo cultural e promover uma psicologia brasileira e latino-americana. In A. M. B. Bock, O compromisso social da psicologia (pp. 255-274). Cortez.).

Essa posição a-histórica, liberal e positivista levou a psicologia a uma trajetória que a distanciou da observação e consideração das condições de vida da maioria da população. O advento do Projeto do Compromisso Social reuniu muitas tradições críticas gestadas ao longo do século XX e abriu espaço para uma visão ampliada de profissão.

Nesse âmbito, os anos de 1996 a 2006 foram fundamentais para inaugurar espaços que permitiriam a crítica ao pensamento colonizado. Quatro iniciativas podem ser aqui citadas. A primeira delas é a construção da Biblioteca Virtual da Psicologia (BVS-Psi), que se tornou a maior biblioteca de acesso gratuito em psicologia do mundo. Diferentes objetivos foram estabelecidos para a criação da Biblioteca como ferramenta de combate ao pensamento colonizado: conhecer para poder reconhecer e valorizar o conhecimento produzido no país; conectar o fazer profissional com a produção realizada no Brasil; estabelecer linhas de desenvolvimento de pensamento no âmbito da ciência e da profissão. A segunda iniciativa foi a criação dos Congressos Norte e Nordeste de Psicologia (CNNP), que, realizada por Conselhos de Psicologia e Universidades, teve a primeira edição realizada em 1999, em Salvador. Apontava-se um novo espaço para os debates no campo e ampliava-se o acesso e a participação das brasileiras que viviam e trabalhavam nessas regiões, ampliando a divulgação das produções ali realizadas. A terceira iniciativa foi a criação da União Latino-americana de Entidades de Psicologia (Ulapsi). Novo eixo, novo cenário, outros profissionais e outras referências estavam possibilitados pela criação de um espaço de articulação entre as entidades de psicologia dos países latino-americanos. Encontros, congressos, realizações de eventos e intercâmbios entre os países, que permitiam a circulação de um pensamento crítico que indicava a necessidade dessa troca, foram situando o Brasil na América Latina. Por fim, a produção do reconhecimento e valorização da memória da psicologia que permitiu a organização das informações e sua publicação como história. A comunidade profissional da psicologia até então não tinha nenhuma memória comum como referência. Pouco conhecia da produção acadêmica sobre o tema e se sentia pouco relacionada aos processos de constituição da profissão e aos atores que operaram sua construção. Voltada para o futuro, não entendia a recuperação crítica do passado como necessidade. Foram produzidas dezenas de livros e vídeos postos à disposição das psicólogas e estudantes que permitiram desencadear essa recuperação.

Essas tarefas executadas no âmbito do projeto do compromisso social apresentavam uma característica importante: permitiram acolher a diversidade, valorizando toda a produção da psicologia e compreendendo as diferenças, como leituras capazes de considerar as conjunturas, as culturas, os hábitos, valores, referências, relações distintas que marcavam os espaços em que as subjetividades se constituem. A psicologia percebia que, para aproveitar de forma crítica e adequada as produções realizadas em outros espaços de cultura, deveria se pautar em aspectos epistemológicos que garantissem o reconhecimento da realidade aqui vivida. A psicologia no Brasil deve ser brasileira.

Agregar à profissão a perspectiva de serviços comprometidos com a garantia de direitos

Cerca de dez anos depois de reconhecida a profissão, já na década de 70 do século XX, Silvia Leser de Mello (1975Mello, S. L. (1975). Psicologia e profissão em São Paulo. Ática.) identificou (ou melhor, denunciou) que a Psicologia estaria acessível a, no máximo, 4% dos brasileiros. Quer dizer, apontar que a profissão tinha um recorte elitista nunca foi um discurso panfletário, mas sim uma assertiva baseada em dados de pesquisa. Coloca-se, assim, mais uma necessidade de ruptura: a profissão fechada em si mesma, com intervenções pontuais ou subsidiárias de outras áreas (Antunes, 2001Antunes, M. A. M. (2001). A psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua constituição. Unimarco/Educ.; Gonçalves, 2010Gonçalves, M. G. M. (2010). Psicologia, subjetividade e políticas públicas. Cortez.), deveria assumir um projeto que incluísse definição de propósitos claros em relação à sociedade; um projeto que marcasse posição em relação à superação desse caráter restrito de intervenção.

Já nesse momento, década de 1970, a leitura crítica do lugar social da profissão impunha o mote de atuar para atender as necessidades da maioria da população. E experiências importantes foram sendo produzidas, em contraponto a concepções hegemônicas de atuação, buscando chegar às necessidades sociais mais urgentes. Grande parte dessas inovações surgiram junto à Psicologia Comunitária (Lane, 1996Lane, S. T. M. (1996). Histórico e fundamentos da psicologia comunitária no Brasil. In R. H. F. Campos (Org.), Psicologia social comunitária: Da solidariedade à autonomia (pp. 17-34). Vozes.) e serviram de referência para se propor intervenções no campo das políticas públicas após 1988, quando a Constituição afirmou direitos sociais e a necessidade de o Estado desenvolver políticas para garanti-los.

Na década de 1990, a inauguração do projeto do Compromisso Social se baseou em dois reconhecimentos: a) o da urgência de que a atenção da Psicologia se ampliasse para a nação; e b) o de que existia no Brasil um grande número de profissionais que já estavam realizando essa ampliação, apesar de nem sempre serem reconhecidos ou chancelados nem pela Autarquia Conselhos, nem pela academia, isto é, pelos pesquisadores da área.

Mas o processo de democratização avançava e a Psicologia foi se colocando cada vez mais em novos espaços de atuação, fosse porque já estava, de alguma forma, comprometida com eles (áreas da saúde e educação, por exemplo), fosse porque a democratização e a ampliação da noção de direitos impunham demandas à área (por exemplo na atuação junto à proteção integral de crianças e adolescente; ou em relação a situações de violência de gênero; ou nas políticas em relação a drogas, entre outras experiências).

Em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, se introduziu na psicologia a ideia de que a profissão tinha um compromisso inalienável com a defesa dos Direitos Humanos. Naquele momento essa vinculação foi recebida como uma novidade, ainda que nos dias atuais pareça tão natural a profissionais e pesquisadores. Inicialmente, uma comissão de direitos humanos foi montada a nível nacional, no CFP. Em seguida, todos os conselhos de psicologia criaram uma comissão de Direitos Humanos e, posteriormente, essas comissões foram reconhecidas como permanentes, tornando-se obrigatória sua constituição. Outras entidades, como a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (Abep), se dedicaram a formular referências para a formação em psicologia relacionadas ao compromisso com os Direitos Humanos.

As entidades estabeleceram Prêmios de Direitos Humanos, publicações, debates e passaram a abraçar movimentos que estivessem inspirados na valorização dos direitos, como foi o caso da Luta Antimanicomial. As iniciativas contra o racismo (por exemplo, na Campanha Nacional de Direitos Humanos do CFP que teve como tema Preconceito Racial humilha e humilhação social faz sofrer) e contra a desigualdade social passaram a estar na pauta da psicologia: nas entidades, nas universidades e na ação profissional.

Note-se que a vinculação entre o crescimento da atenção a Direitos Humanos e a expansão da presença da Psicologia nas Políticas Públicas tem uma definição orgânica. Direitos Humanos seriam a espinha dorsal do conjunto dos padrões de intervenção do Estado. Ainda que os fazeres pudessem se diversificar de modo contínuo por meio da formulação de novas formas de elaborar e operar Políticas Públicas para atender às necessidades da população brasileira, a referência para todas as práticas seguiria sendo seu diálogo permanente com as teses dos Direitos Humanos. E ainda, a Psicologia deveria ser capaz de participar do reconhecimento da insuficiência dos Direitos Humanos já reconhecidos e da busca pela sua expansão.

Nesse processo, então, vai se configurando uma perspectiva ampla de atuação, mas conectada a um projeto ético-político, ligada a serviços em políticas públicas voltadas à garantia de direitos. Dessa maneira, se configura uma nova inserção da psicologia no campo social. Os Direitos Humanos como referência básica; os direitos sociais como sua expressão em diferentes âmbitos da vida; as políticas públicas sociais como oferta de serviços e atendimentos voltados à garantia de direitos; e as psicólogas atuando em múltiplas frentes, mas com essa perspectiva.

A certeza dessa direção do projeto - defesa de Direitos Humanos e de políticas públicas de garantia de direitos - orienta o caminho a ser seguido. A Psicologia esteve presente em diferentes formas nesse processo e ainda está. A Psicologia foi construindo um compromisso cada vez mais explícito de atuação nas políticas públicas. Esse é o principal balizador para a continuidade do processo: não ao desmonte, reconstrução e inovação, baseadas na experiência acumulada nesse período.

Aprimorar a qualidade da prática profissional das psicólogas

Todas as ações e iniciativas do desenvolvimento do pensamento crítico encontraram uma categoria disposta ao novo compromisso da psicologia com a sociedade brasileira, mas, muitas vezes, sentindo seu despreparo para essas novas incursões. Passava a haver uma demanda por qualificação profissional. As profissionais buscaram cursos de formação, muitas vezes, em outras áreas do saber; as entidades tomaram como importante preocupação a formação e o FENPB tomou a temática como central, passando a interferir nos processos e debates do currículo e das diretrizes curriculares; a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia foi criada para se tornar o espaço organizador desses debates e porta-voz privilegiado da questão da formação; o Conselho de Psicologia se debruçou sobre a prática profissional, convidando atores com tradição e reconhecimento em determinados temas do exercício profissional para que se pudesse avançar na construção de referências e orientações técnicas para a qualificação da prática profissional.

Nesse último aspecto, são várias as iniciativas que devem ser relembradas. Por exemplo, as resoluções de documentos escritos (Resoluções CFP nº 03/2001; 17/2002; 07/2003 e 06/2019), que surgiam a partir da constatação de que a maioria dos processos éticos mantinha relação com a falta de qualidade de documentos produzidos pelas profissionais da psicologia. Outras resoluções que demarcaram e orientaram a profissão foram debatidas e aprovadas, como a resolução (CFP nº 01/99) que proibiu as profissionais de, em sua prática e manifestações, considerarem a homossexualidade como patologia e indicarem cura. A resolução que reconheceu as especialidades em psicologia e instituiu título de especialista (Resolução CFP nº 14/2000, revogada e depois atualizada por várias resoluções até a que está hoje em vigor, CFP nº 13/2007), permitindo um reconhecimento da qualificação profissional já existente. A criação do Crepop - Centro de Referências Técnicas de Psicologia e Políticas Públicas, pelo CFP, que, a partir de experiências práticas de profissionais em determinados campos da profissão e da colaboração de especialistas, passou a construir e oferecer, amplamente, referências que contribuem com a formação, com os gestores empregadores de psicólogas e com as próprias profissionais que ousam se instalar em campos inovadores ou pouco desenvolvidos, enquanto conjunto de instrumentos do fazer profissional. Outra iniciativa importante foi a atualização do Código de Ética da Psicologia (Resolução CFP nº 010/05). As novas práticas, em especial nas políticas públicas, reivindicaram mudanças, considerando que o código anterior impedia ou dificultava sua atuação profissional, na medida em que não a refletia ou não considerava as demandas emergentes no campo. A qualificação dos testes psicológicos pela instalação do Satepsi - Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Resolução CFP nº 002/2003) foi um passo de extrema importância na qualificação de instrumentos de grande uso e reconhecimento na psicologia que, até então, estavam sob a responsabilidade das editoras de testes.

A intervenção na construção das Diretrizes Curriculares para a formação em Psicologia foi, sem dúvida, um movimento que reuniu as preocupações e contribuições das várias entidades em relação à qualificação da formação e nas propostas do movimento, em que se explicitou o posicionamento pelo compromisso social da psicologia. No texto do Parecer que aprova as diretrizes, em 2001, (Parecer nº: CNE/CES 1.314/2001) pode-se encontrar essa expressão.

A BVS-Psi deve ser também incluída entre as iniciativas que buscaram a qualificação profissional na psicologia. Uma biblioteca sem precedentes, que reuniu as contribuições de pesquisadores e profissionais do Brasil e da América Latina, dando acesso a materiais de qualificação que, até então, ficavam pouco disponíveis porque eram restritos a bibliotecas físicas nas Universidades. Além disso, a BVS-Psi reuniu a ciência e a profissão quando decidiu incluir em seus arquivos contribuições sobre as experiências profissionais inovadoras.

Congressos, eventos e debates passaram a ser rotina na psicologia, permitindo troca entre profissionais, a circulação pública das questões emergentes na profissão e a solução democrática para todas elas.

Todo esse conjunto de iniciativas foi decisivo para a consolidação da presença do projeto do compromisso social da psicologia, pois permitia que se avançasse do lugar do jargão, politicamente correto, para o desenvolvimento e amadurecimento da profissão, no sentido de uma inserção mais qualificada na sociedade, da ampliação da possibilidade de responder a demandas sociais por meio do trabalho em psicologia, da compreensão e melhor entendimento da contribuição especializada do campo da psicologia, enfim, efetivava-se a construção do projeto do compromisso social e dava-se a ele concretude e reconhecimento.

Carvalho (1988Carvalho, A. M. A. (1988). Atuação psicológica: Uma análise das atividades desempenhadas pelos psicólogos. In A. V. B. Bastos, P. I. C. Gomide (Orgs.), Quem é o psicólogo brasileiro? (pp. 217-235). Edicon.), ao analisar a caracterização da atuação profissional em termos de atividades desenvolvidas, aponta que a

. . . diversificação de atividades se apresenta restrita do ponto de vista quantitativo; provavelmente -mas não necessariamente - isto implica que a diversidade de situações, de contextos, de questões com que o psicólogo está lidando também é restrita.. . . o que define uma atuação abrangente não é, necessariamente , a utilização de uma grande diversidade de técnicas ou o desempenho de uma grande diversidade de atividades; . . . mas cuja atuação seja abrangente do ponto de vista de alcançar uma parcela relevante da população, ou de situações em que é potencialmente útil (p. 234).

Carvalho (1988Carvalho, A. M. A. (1988). Atuação psicológica: Uma análise das atividades desempenhadas pelos psicólogos. In A. V. B. Bastos, P. I. C. Gomide (Orgs.), Quem é o psicólogo brasileiro? (pp. 217-235). Edicon.), baseada nos dados da pesquisa (Quem é o psicólogo brasileiro?) conclui que, apesar de haver potencial, a profissão estava longe de “apresentar uma atuação abrangente” (p. 235). Esse é o aspecto da ruptura: a abrangência conquistada pela psicologia. Mas o que se quer destacar neste item é que essa abrangência foi conseguida pelas mãos das psicólogas. A democratização das entidades, o incentivo e a responsabilização de um conjunto amplo de profissionais pelo futuro da profissão, e o uso de espaços de debate envolvendo a categoria profissional tornaram-se método e essa estratégia foi e é responsável pela qualidade das conquistas. A qualificação da profissão foi algo reivindicado, mas não foi esperado que “outros” fizessem a tarefa; ao contrário, as profissionais, por meio de seu trabalho e de suas entidades, tomaram para si os desafios.

O caminho para o desenvolvimento de uma profissão crítica está dado, cabendo às profissionais da década atual manter seu envolvimento e responsabilização para com sua profissão, garantindo os canais de participação, ocupando-os com a clareza da direção que deve ser dada à psicologia brasileira.

Expansão das fronteiras da psicologia

Já citamos as contribuições de Carvalho (1988Carvalho, A. M. A. (1988). Atuação psicológica: Uma análise das atividades desempenhadas pelos psicólogos. In A. V. B. Bastos, P. I. C. Gomide (Orgs.), Quem é o psicólogo brasileiro? (pp. 217-235). Edicon.) na direção de caracterizar a estreiteza da psicologia, nos seus 25 anos de regulamentação no Brasil. Três grandes áreas marcavam a formação e a profissão: clínica, educacional e trabalho. Os instrumentos eram os mesmos utilizados em vários espaços de atuação que não apresentavam diversidade; os objetivos e a natureza das tarefas eram também pouco diversificados; a clientela atendida pelas profissionais se resumiam àqueles com poder aquisitivo, que buscavam as psicoterapias em consultórios particulares e àqueles que, nas empresas ou instituições, eram encaminhados para psicodiagnóstico. A psicologia, efetivamente, não respondia às demandas e exigências da sociedade brasileira.

É, sem dúvida, o projeto do compromisso social que muda esse cenário. São iniciativas da ciência e profissão psicológica que criaram a psicologia social comunitária e colocaram estudantes universitários em estágios inovadores, atendendo uma população historicamente excluída; são lutas por emprego nos serviços públicos de saúde que vão conquistar espaços na saúde mental, inicialmente, na cidade de São Paulo, para um conjunto de profissionais oriundos dos cursos de psicologia que, na segunda metade dos anos 70, se multiplicavam, entregando enorme contingente de psicólogas à sociedade. São também questionamentos sobre a concepção de humano e as bases teórico-metodológicas da psicologia, com tradição estadunidense e europeia, que permitem um novo cenário, uma nova formação e novas questões para a psicologia. As semanas de psicologia nas universidades, naquele período, eram marcadas por questões do tipo: que psicólogo queremos ser? A serviço de quem queremos estar? Os anos de ditadura militar levaram a sociedade brasileira a perceber que existiam pelo menos dois lados em conflito de interesses no Brasil. A luta dos trabalhadores (em especial os metalúrgicos, mas de vários e diversificados setores) permitiram novas tarefas para toda a sociedade: lutar pela democracia e pelos direitos.

Se estabeleciam alguns eixos para a transformação teórica e metodológica da psicologia. Lane e Guedes realizaram, em 1982, viagem histórica pela América Latina (Sawaia, 2002Sawaia, B. (2002). Coleção pioneiros da psicologia brasileira: Vol. 8. Silvia Lane.. Imago.), permitindo que a psicologia brasileira se desse conta de que era (re)produzida em um país com determinada conjuntura que se assemelhava a outros países do mesmo continente, incentivando, assim, a perspectiva latino-americana na psicologia brasileira, sintetizado por Lane (1984)Lane, S. T. M. (1984). A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In S. T. M. Lane, W. Codo (Orgs.), Psicologia social: O homem em movimento (pp. 10-19). Brasiliense. em um verdadeiro manifesto por uma nova concepção de humano para a psicologia.

A ruptura vai se dando a partir de muitas contribuições, e é no ano 2000 que se perceberá que ela se dava também nas práticas profissionais. A realização da I Mostra de Práticas em Psicologia: Psicologia e Compromisso Social realizada pelo Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia - FENPB e por iniciativa do CFP, reuniu milhares de trabalhos e de autores(as) que se sentiram convocados a apresentar suas práticas profissionais que, até aquele momento, não recebiam o devido reconhecimento das entidades e da academia. A partir daquele ano, a psicologia não seria mais a mesma, pois reconhecia o processo de ampliação de suas fronteiras, que permitia incluir populações a serem atendidas que até então não tinham acesso a seus serviços, e incluir instrumentos e fazeres originais constituídos, na maioria das vezes, a partir dos conhecimentos da psicologia, adquiridos nas universidades, mas no diálogo intenso e comprometido com as necessidades apontadas por diversos e diferentes grupos sociais. Antunes (2012Antunes, M. A. M. (2012). A psicologia no Brasil: Um ensaio sobre suas contradições. Psicologia: ciência e profissão, 32(spe), 44-65. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500005
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) classifica esse novo período como de ampliação dos campos de atuação e compromisso social. Não era somente uma diversidade de fazeres e de instrumentos que entrava na psicologia, era o reconhecimento de que aquelas práticas eram do âmbito da psicologia. E elas, por sua vez, carregaram para dentro da psicologia questões sociais, urgências, problemas que até então não pertenciam ao campo. E a psicologia olhava a sociedade e reconhecia suas questões como de sua responsabilidade.

Era o fim da estreiteza da profissão; era o começo da história de uma profissão com uma amplitude capaz de permitir responder a muitas demandas sociais. Ela estava conquistando abrangência. Não havia nada que marcasse a vida que pudesse ser estranho à psicologia. O surgimento de um tema ou um problema permitia a organização de um novo campo ou sua atualização. Assim foi com a psicologia das emergências e desastres, do esporte, jurídica etc., enfim, os campos foram se diversificando.

Os congressos das entidades começaram a parecer pequenos e o FENPB investiu então na criação do Congresso Brasileiro Psicologia Ciência e Profissão (CBP). As entidades nacionais mantinham seus congressos, mas reuniam-se todas, de quatro em quatro anos, para realizar o “congressão”. A psicologia tinha um espaço em que cabia inteira e os debates puderam reunir a ciência e a profissão.

O modo de apresentar ou classificar a psicologia pelas áreas foi se tornando difícil e inócuo. Novas classificações dos fazeres profissionais foram estabelecidas, como aquela que passou a ser utilizada no Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e Profissão. Vale notar: todo o direcionamento do Projeto do Compromisso Social foi marcado pela perspectiva de pensar a profissão a partir da própria profissão. Foi assim que surgiu a ideia de classificar os fazeres das psicólogas a partir dos processos de trabalho2 2 Foram estabelecidos quinze processos, a saber: acolhimento; acompanhamento; avaliação; comunicação; culturais; educativos; formativos; formativos de psicólogos; grupais; mobilização social; organizativos; orientação e aconselhamento; planejamento e gestão pública; terapêuticos; e investigativos. em que estão inseridas.

Destacou-se aqui o aspecto do acolhimento à diversidade e sua valorização, considerando que é dele que surgem as reais possibilidades de ampliar as fronteiras da profissão. O reconhecimento de práticas que se inauguram no cotidiano profissional, a partir dos desafios e das questões que a realidade coloca para a profissão, torna-se fundamental para que a psicologia esteja sempre em movimento, atenta às demandas que vão surgindo e se constituindo.

Considerações finais

Os anos da virada da psicologia foram marcados principalmente pela ousadia. Não havia receio de inaugurar, propor, fazer, interferir, negociar, reivindicar. Essa segurança estava dada pelo respaldo de uma categoria que crescia no tamanho e no reconhecimento e pelo método de convocar para o debate e para as realizações toda a categoria profissional.

A psicologia era outra, caminhava para sua ampliação e reconhecimento social. Estava na sociedade brasileira de forma organizada, democrática, ousada, reconhecendo seu valor e a importância de estar acessível à maioria da população. A psicologia, hoje com 60 anos de regulamentação, é outra, capaz de enfrentar novas questões que vão se colocando em nossa sociedade: a fome, a pandemia, o racismo, a desigualdade social, e as plataformas que utilizam inteligência artificial e manipulam subjetividades são exemplos de problemas atuais (mas não novos) que desafiam a psicologia. E ela tem se apresentado para enfrentar as questões.

Afirma Martín-Baró (1996Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27. https://doi.org/10.1590/S1413-294X1997000100002
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) que

O trabalho profissional do psicólogo deve ser definido em função das circunstâncias concretas da população a que deve atender . . . ainda que o psicólogo não seja chamado para resolver tais problemas, ele deve contribuir, a partir de sua especificidade, para buscar uma resposta (p. 7).

A ampliação e o reconhecimento social da Psicologia são metas que se tornaram históricas para a ciência e para a profissão. A capacidade da psicologia de se colocar na sociedade brasileira e contribuir, com seu conhecimento e suas práticas, para a transformação das condições de vida; para a garantia da democracia; para o fim do racismo e da desigualdade social; e para a resistência aos instrumentos e formas de dominação são algumas das tarefas que o projeto do compromisso social desenvolve pelas mãos de um enorme conjunto de profissionais que constitui, hoje, a psicologia brasileira.

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  • 1
    A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia -Anpepp; a Sociedade Brasileira de Psicologia - SBP; a Federação Nacional dos Psicólogos -Fenapsi; a Coordenação Nacional dos Estudantes de Psicologia - Conep; e o Conselho Federal de Psicologia - CFP.
  • 2
    Foram estabelecidos quinze processos, a saber: acolhimento; acompanhamento; avaliação; comunicação; culturais; educativos; formativos; formativos de psicólogos; grupais; mobilização social; organizativos; orientação e aconselhamento; planejamento e gestão pública; terapêuticos; e investigativos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2022
  • Aceito
    26 Abr 2022
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