Resumo
O texto discute a evolução das concepções sobre deficiência e a necessidade de uma práxis psicológica anticapacitista. Critica o modelo biomédico, que reduz a deficiência a falhas corporais, e valoriza abordagens que consideram a deficiência como construção social, incluindo os modelos social e biopsicossocial. A trajetória histórica revela mudanças significativas na terminologia e no reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil, impulsionadas por marcos legais e mobilizações sociais. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) é destacada por adotar uma perspectiva que reconhece a interação entre impedimentos e barreiras sociais. A Psicologia, enquanto ciência e profissão, é convocada a superar práticas excludentes e a comprometer-se com a escuta qualificada, a justiça social e o reconhecimento da diversidade funcional. O texto destaca a importância de ações concretas, como a Resolução CFP n0 09/2024, que estabelece diretrizes para uma atuação ética e inclusiva, construída com protagonismo das próprias pessoas com deficiência. Reforça-se que o capacitismo deve ser enfrentado como uma forma de opressão estrutural e que a Psicologia deve assumir uma postura crítica e transformadora, pautada por uma epistemologia da diferença, acessibilidade plena e interseccionalidade. Não basta simplesmente não ser capacitista; é necessário construir ativamente uma Psicologia anticapacitista.
Palavras-chave:
Psicologia Anticapacitista; Direitos Humanos; Acessibilidade; Modelo Biopsicossocial
Abstract
This study discusses the evolution of conceptions about disability and the need for an anti-ableist psychological praxis. It critiques the biomedical model that reduces disability to bodily impairments and highlights alternative approaches that understand disability as a social construct, such as the social and biopsychosocial models. Its historical trajectory shows significant changes in terminology and in the recognition of the rights of persons with disabilities in Brazil driven by legal milestones and social movements. This study emphasizes the Brazilian Law for the Inclusion of Persons with Disabilities to adopt a perspective that acknowledges the interaction between impairments and social barriers. Psychology, as a science and profession, should overcome exclusionary practices and commit itself to qualified listening, social justice, and the recognition of functional diversity. This study highlights concrete actions such as CFP Resolution no. 09/2024, which establishes ethical and inclusive guidelines stemming from the active participation of persons with disabilities. Ableism configures a structural form of oppression, and psychology must take a critical and transformative stance guided by an epistemology of difference, full accessibility, and intersectionality. It is insufficient to avoid ableism; psychology must be actively anti-ableist.
Keywords:
Anti-Ableist Psychology; Human Rights; Accessibility; Biopsychosocial Model
Resumen
Este texto analiza la evolución de las concepciones sobre la discapacidad y la necesidad de una praxis psicológica anticapacitista. Se critica el modelo biomédico, que reduce la discapacidad a fallas corporales, y se valoran enfoques alternativos que la entienden como una construcción social, como los modelos social y biopsicosocial. La trayectoria histórica muestra cambios significativos en la terminología y en el reconocimiento de los derechos de las personas con discapacidad en Brasil, que son impulsados por marcos legales y movilizaciones sociales. Se destaca la Ley Brasileña de Inclusión (LBI) por adoptar una perspectiva que reconoce la interacción entre impedimentos y barreras sociales. La Psicología como ciencia y profesión es convocada a superar prácticas excluyentes y a comprometerse con la escucha cualificada, la justicia social y el reconocimiento de la diversidad funcional. Este destaca acciones concretas como la Resolución CFP 09/2024, que establece directrices éticas e inclusivas construidas con el protagonismo de personas con discapacidad. El capacitismo se identifica como una forma de opresión estructural, y la Psicología debe adoptar una postura crítica y transformadora, guiada por una epistemología de la diferencia, accesibilidad plena e interseccionalidad. No basta con no ser capacitista, es necesario construir activamente una Psicología anticapacitista.
Palabras clave:
Psicología Anticapacitista; Derechos Humanos; Accesibilidad; Modelo Biopsicosocial
Introdução: A crítica ao imaginário social
A humanidade criou, ao longo do tempo, diversas narrativas acerca da deficiência, muitas das quais a concebendo como uma condição à parte, descolada da diversidade humana. Esse entendimento de que a deficiência está atrelada a um corpo anormal contrasta com a concepção da deficiência como uma das inúmeras possibilidades do devir humano. Nesse sentido, opor-se à dita anormalidade da deficiência não implica na negação das demandas desses corpos, mas é, antes de tudo, defender a deficiência como uma variação de ser e estar no mundo. É, nas palavras de Diniz (2007), uma afirmação ética que desafia nossos padrões de normal e patológico.
Entretanto, historicamente, na área da saúde, a deficiência é compreendida como um produto de um corpo com falhas, lesões, falta e insuficiência. Por conta da não familiarização ou formação qualificada, até hoje profissionais de saúde, bem como a sociedade como um todo, possuem a compreensão biomédica de que a deficiência é sinônimo de enfermidade. Nessa perspectiva, a deficiência é resumida a um problema individual que precisa ser medicalizado para ajustar-se aos ditames de uma sociedade baseada na produtividade e na utilidade dos corpos e mentes (Guerra, 2021).
No que diz respeito à Psicologia como ciência e profissão, em sentido ético e qualificado, é necessário incentivar reflexões que abordem a questão da deficiência de forma interdisciplinar e multifacetada nos demais eixos que a Psicologia atua, independentemente do seu recorte teórico, mas sempre considerando as particularidades biológicas, psicológicas e sociais. O fazer psicológico está em processo de ampliação, e isso exige implicação também no campo acadêmico, na formação profissional e no cotidiano do exercício da Psicologia. Uma atuação verdadeiramente qualificada depende de escuta ativa, reconhecimento das diversidades, das barreiras vivenciadas e engajamento com a justiça social.
Segundo Mota e Bousquat (2021), o modelo médico da deficiência compreende os problemas como inerentes ao corpo do indivíduo, tratados como tragédias pessoais resultantes de doenças ou traumas. Sustenta-se na Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (ICIDH) da Organização Mundial da Saúde ([OMS], 1980), que distingue três dimensões: impairment (deficiência), disability (incapacidade) e handicap (desvantagem). Nesse modelo, a ênfase está na cura ou reabilitação, com pouca atenção à interação entre o indivíduo e seu meio social.
Esse entendimento reduz a deficiência ao campo biomédico, concedendo centralidade ao saber médico e às intervenções clínicas como solução. Como apontam os autores, esse enfoque é problemático para políticas públicas, pois ignora as barreiras sociais e ambientais, afastando-se de uma abordagem que contemple os direitos, a inclusão e a diversidade funcional das pessoas com deficiência.
Os autores Mota e Bousquat (2021), também refletem sobre o modelo social, que desloca o foco da deficiência do corpo para o ambiente social. Eles entendem que as barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência não decorrem apenas de suas condições físicas ou mentais, mas também da estrutura social excludente que não se adapta às suas necessidades. Originado nos movimentos sociais do Reino Unido, esse modelo defende que a deficiência é uma construção social e que a inclusão exige mudanças institucionais, legais e culturais.
Esses mesmos autores comentam o modelo biopsicossocial, proposto pela OMS em 2001, com a publicação da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Esse modelo visa integrar elementos dos modelos médico e social, reconhecendo que a deficiência resulta da interação entre fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais.
Nesse modelo, a incapacidade não é vista apenas como uma falha do corpo, mas como um fenômeno complexo que depende do contexto. Os autores ressaltam que, embora a CIF represente um avanço, ainda há desafios em sua aplicação prática, como a dificuldade em capturar a dinamicidade da experiência da deficiência e a tendência a priorizar aspectos clínicos em detrimento dos sociais.
Percebemos, aqui, a necessidade de considerar as articulações históricas e sociais sobre as demandas que envolvem a questão da deficiência, observando como esse processo histórico traz elementos centrais que mostram o porquê e como foi evoluindo o próprio conceito, bem como as nomenclaturas utilizadas para se referir à deficiência. A partir disso, na tentativa de visualizarmos as mudanças e com base no artigo de Álvaro dos Santos Maciel (2020), apresentamos na Tabela 1 a evolução das nomenclaturas utilizadas para se referir às pessoas com deficiência no Brasil, destacando os significados e contextos sociais de cada termo:
Como pode-se observar, no século XX houve um salto grande caminhando para uma evolução mais humanizada. Esse retorno foi obtido principalmente por conta das atuações de movimentos sociais e instituições que participaram de marcos importantes para consolidar o direito da pessoa com deficiência, como vemos na Tabela 2.
Com efeito, todas essas mobilizações são necessárias e importantes como resgate e reconhecimento da luta e dos desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência, em consonância com os princípios dos direitos humanos. Nesse sentido, destaca-se o Artigo 2o da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), que define:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (Lei no 13.146, 2015).
Esse artigo da Lei Brasileira de Inclusão é particularmente relevante por adotar uma perspectiva biopsicossocial, reconhecendo que a deficiência não se limita a aspectos biológicos ou psicológicos, mas envolve também fatores socioambientais, pessoais e culturais. Assim, ele nos provoca a refletir sobre como as barreiras impostas pelo ambiente no qual a pessoa com deficiência está inserida impactam diretamente a autonomia, a cidadania e o exercício do direito das pessoas com deficiências, pois essas não conseguem usufruir os mesmos direitos que as pessoas sem deficiência, caso não eliminemos ou extinguamos as barreiras que existem na interação entre elas e o ambiente.
Neste ínterim, podemos efetivamente trabalhar a percepção de que o problema não é a deficiência em si, mas a forma como a condição da deficiência, enquanto parte do desenvolvimento humano, é um indivíduo cuja exclusão é um comportamento enraizado e multifacetado. Embora a diversidade humana seja um fato, ela não deve ser apenas naturalizada, mas compreendida como parte de uma estrutura social que determina quem é incluído ou excluído das relações humanas.
Como afirma Sawaia “a exclusão é uma consequência, uma reação do sistema para manter determinada ordem social. Portanto, a reivindicação por inclusão da diversidade é necessariamente indicativa de que há uma ordem normativa estabelecida” (citado por Silva, 2022, p. 4).
A urgência de um novo olhar: da generalização à individualidade
Para superar a concepção de deficiência como algo trivial e homogêneo, é preciso refletir sobre a experiência contemporânea das pessoas com deficiência e repensar o que é a deficiência como fenômeno existencial. Como destacam Skliar e Souza (2020):
. . . não é a pessoa que está em uma cadeira de rodas, ou que usa um aparelho auditivo, ou que não aprende segundo o ritmo e a forma como a norma espera, senão os processos sociais, históricos, econômicos e culturais que regulam e controlam a forma acerca de como são pensados e inventados os corpos e mentes dos outros. Para explicá-lo mais detalhadamente: a deficiência não é uma questão biológica, e sim uma retórica social, histórica e cultural. A deficiência não é um problema . . . de suas famílias ou dos especialistas, mas está relacionada à própria ideia de normalidade e à sua historicidade (citados por Silva, 2022, p. 5).
O sofrimento psíquico que muitas pessoas com deficiência enfrentam não decorre da condição corporal ou sensorial em si, mas da forma como a sociedade reage a essa condição: com estigmas, exclusões e barreiras físicas, comunicacionais e atitudinais. Ou seja, o sofrimento é gerado pelo modo como a diferença é tratada socialmente, e não por ela mesma.
É o que menciona Ribas (1985, p. 43) ao afirmar que:
Ninguém sofre com uma deficiência, mas sim com o estigma. A criança que nasce com deficiência não conhece outra realidade além da sua. É a sociedade que, ao apresentar valores padronizados baseados em um ideal corporal, cria o estigma e impõe um lugar social de menor valor.
No bojo dessa discussão, é importante ampliar o escopo e inserir neste campo complexo a interseccionalidade, compreendida como operador teórico que apura as interrelações de poder que atravessam as relações sociais de populações diversas. Nesse sentido, não há como debater a deficiência sem considerar categorias como raça, gênero, classe, orientação sexual, etnia, faixa etária e nacionalidade. A consideração dessas dimensões revela que a vivência da deficiência é, por si só, diversa, e precisa ser considerada nesta pluriversalidade.
A partir da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), especialmente do artigo 2o, compreendemos que a deficiência não é uma característica pessoal isolada, mas o resultado da interação entre pessoas com impedimentos e barreiras sociais e atitudinais. Essa virada de compreensão exige da Psicologia um novo posicionamento ético e técnico.
Pluralidade e singularidade: do imaginário à prática psicológica
Transcender a concepção da deficiência como característica generalizável é um desafio. A Psicologia, como ciência e profissão, precisa avançar no reconhecimento da pluriversidade dos modos de ser e existir das pessoas com deficiência. Cada sujeito lida de forma singular com sua condição, e isso requer um fazer psicológico atento às subjetividades, trajetórias e contextos. Quando ignorada, essa dimensão pode levar a Psicologia a atuar de forma capacitista, promovendo práticas que reforçam exclusões.
Tradicionalmente, a deficiência era vista sob uma ótica biológica, como se fosse apenas uma condição do corpo ou da mente, no sentido de algo “natural” e isolado do contexto social. Essa compreensão, conhecida como modelo médico, entende a deficiência como um problema individual que precisa ser tratado ou corrigido. Definitivamente enraizada, essa ideia ignora o fato de que as barreiras sociais, culturais, atitudinais e arquitetônicas colocam a deficiência em uma perspectiva segundo a qual o corpo é o impedimento e a sociedade não precisa se adaptar. Por outro lado, o modelo social entende que a deficiência não está na pessoa, mas na interação entre ela e um ambiente que não acolhe suas individualidades e necessidades. Assim, a deficiência passa a ser vista como uma questão de direitos humanos e justiça social, e não apenas de saúde (Silva, 2022).
A exclusão social e o sofrimento psíquico passam a ser respostas à forma como a sociedade se constrói sob a ótica da corponormatividade, na qual corpo e comportamento fora desse padrão normativo são vistos como ilegítimos. Logo, aqueles que possuem corpo e comportamento adequados à esse padrão são detentores de um poder social que exclui, reflete, perpetua e contribui para segregações.
No campo da Psicologia, houve avanços positivos que mostram como a Psicologia tem contribuído para o enfrentamento do capacitismo, da violação de direitos e da invisibilização. Contudo, é necessário ir além de iniciativas pontuais: urge uma mudança de paradigma.
Um marco histórico: a construção coletiva da Resolução CFP no 09/2024
A Resolução no 09/2024 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), construída com a participação direta de pessoas com deficiência, representa um marco histórico e simbólico. Mais do que uma norma técnica, ela se afirma como um ato político e ético na consolidação de uma Psicologia anticapacitista e comprometida com a promoção de direitos.
A presença ativa de pessoas com deficiência no Sistema Conselhos e na elaboração de documentos oficiais legitima saberes e vivências historicamente marginalizados, conferindo visibilidade e autoridade a essas experiências. Essa construção normativa inaugura caminhos concretos para um exercício profissional ético e qualificado, alicerçado em uma perspectiva social inclusiva, que defende os direitos humanos e rompe com lógicas que ainda sustentam o estigma e a exclusão.
Ela também ressalta a urgência de uma transformação cultural e a atuação crítica do profissional da Psicologia como agente de mudança (seja a partir de sua identidade enquanto PcD, seja como aliado na luta por justiça social e equidade). Tal posicionamento se torna ainda mais relevante quando reconhecemos que o campo acadêmico permanece, em muitos aspectos, excludente.
É justamente nesse espaço que pode - e deve - ser fomentado o diálogo com estudantes sobre práticas acessíveis, inclusivas e críticas (principalmente no sentido de ofertar um espaço com estratégias afirmativas para esses estudantes exercerem, desde o começo, seu protagonismo enquanto pessoa com deficiência.
O compromisso com uma Psicologia ética para as PcDs está intrinsecamente ligado ao exercício de seus direitos. A evolução legal que reconhece, por exemplo, a deficiência psicossocial, obriga a Psicologia a se reposicionar também diante da luta antimanicomial e da crítica à medicalização excessiva. Não se pode falar em cuidado psicológico sem considerar os determinantes sociais da saúde, especialmente quando se trata de populações historicamente marginalizadas.
Vale destacar, especialmente diante da evolução das legislações que reconhecem as deficiências psicossociais e sua profunda articulação com a luta antimanicomial e os direitos humanos, e dentro de um contexto marcado pela exclusão cultural acadêmica, bem como pela urgência de transformações institucionais, que repensar o processo formativo da Psicologia torna-se essencial para consolidar práticas éticas e qualificadas junto às pessoas com deficiência.
Isso implica um deslocamento fundamental na forma de compreender a deficiência e a prática psicológica tradicional: criticar a medicalização da deficiência e o modelo biomédico tradicional, de forma a questionar a lógica que reduz a deficiência a um problema exclusivamente do corpo ou da mente da pessoa, como algo a ser corrigido, tratado ou normalizado. Essa abordagem desconsidera o contexto em que a pessoa vive, produz invisibilidade social e legitima intervenções que, muitas vezes, ignoram a vontade e a experiência da própria pessoa.
Ao contrário disso, é necessário adotar uma perspectiva integrada, multidisciplinar e humanizada, baseada nos determinantes sociais da saúde, que reconhece que as condições de vida, acesso a direitos, redes de apoio, relações sociais, o ambiente físico e as políticas públicas são tão (ou talvez mais) determinantes para o bem-estar quanto qualquer diagnóstico clínico.
Trata-se de reconhecer a história da Psicologia e comprometer-se com uma tarefa ética e política de desnaturalizar os padrões de normalidade, escutar os atravessamentos sociais e atuar como instrumento de transformação, em vez de manutenção da exclusão, recolocando a deficiência no campo da injustiça social e não no da patologia.
Nessa direção, entende-se a necessidade de discutir a pluriversidade dentro dos grupos de diferentes deficiências, criando condições concretas para que essas pessoas tenham voz e autonomia, possibilitando, então, que sejam compreendidas as necessidades de acessibilidade de cada pessoa com deficiência de forma única. É imprescindível compreender e respeitar as particularidades de como cada pessoa vivencia as barreiras previstas nos espaços da sociedade. Isso significa não somente se abrir para a discussão da pluriversidade entre os grupos de PcDs, mas abrir, nos espaços, voz para as pessoas com deficiências explorarem as possibilidades e estratégias de um assunto no qual são peritas: suas vivências.
Cabe aqui, num lembrete, resgatar que, em um primeiro momento, a acessibilidade era vista, principalmente, como uma questão de mobilidade e arquitetônica, evoluindo para uma compreensão que amplia e reconhece que a inclusão não se limita ao espaço físico, mas envolve também o acesso a informações, tecnologias e modos de interação digital.
Nessa perspectiva, vale a pena resumir brevemente os tipos de dimensões de acessibilidade de acordo com Sassaki (2009) e as possíveis formas de infração de direitos humanos:
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Arquitetônica, relacionada à eliminação de obstáculos físicos nos espaços;
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Comunicacional, voltada à remoção de barreiras nas interações e nos fluxos de informação entre as pessoas;
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Metodológica, que envolve a adaptação de práticas, estratégias e abordagens nos contextos de educação, lazer, trabalho etc.;
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Instrumental, centrada no acesso a recursos, utensílios e tecnologias que promovam autonomia;
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Programática, que exige a revisão de políticas, regulamentos e normativas excludentes;
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Atitudinal, comprometida com a superação de estigmas, preconceitos e estereótipos que ainda marcam as relações sociais com pessoas com deficiência.
Sob a ótica dos direitos humanos, é necessário questionar se, ao ignorar uma ou mais dessas dimensões, não estaríamos, na prática, negando às pessoas com deficiências o direito de existir plenamente na sociedade, tal como sujeitos de direitos, participação e dignidade. Destaca-se, então, que a acessibilidade passa a ser compreendida como algo não opcional, mas sim como direito básico interligado ao acesso aos outros direitos básicos, como saúde, educação e trabalho.
No campo da Psicologia, essa compreensão adquire potência política ao reconhecer, em consonância com os debates internacionais, a deficiência como uma construção social atravessada por múltiplos marcadores, tais como etnia, gênero, orientação afetiva-sexual, identidade de gênero e geração. A interseccionalidade torna-se, portanto, um princípio ético e epistemológico indispensável para que a prática psicológica não apenas compreenda a complexidade das vivências das pessoas com deficiência congênitas, mas também aquelas adquiridas ao longo da vida, e atue no enfrentamento das opressões que se entrecruzam.
Percebe-se, assim, que quando falamos de uma infringência interseccional de direitos humanos, estamos dizendo que não há uma única forma de exclusão, mas sim um entrelaçamento de opressões que se intensificam mutuamente. Cabe reforçar que, quando um profissional de Psicologia infringe um direito humano de forma interseccional, o impacto disso para a Psicologia não se limita a um erro técnico ou individual, mas à própria legitimidade da Psicologia como prática de cuidado e justiça social.
Assim, evidencia-se a potência do trabalho coletivo realizado com o protagonismo de pessoas com deficiência e seus aliados, nos grupos responsáveis pela construção da Resolução CFP no 09/2025 (que estabelece diretrizes para o atendimento psicológico à população surda e reconhece a pluriversidade identitária, linguística e cultural da comunidade surda) e a Nota Técnica CFP No 18/2025, bem como da Resolução CFP n. 7/2025 (que foi construída com base no modelo social da deficiência e estabelece normas para o exercício profissional de psicólogas/os no atendimento às pessoas com deficiência e no enfrentamento ao capacitismo) e a Nota Técnica CFP No 12/2025. Esses documentos são imprescindíveis e subsídios teóricos e práticos para a atuação profissional ética e qualificada.
A presença ativa de pessoas com deficiência nos espaços de decisão, como o Sistema Conselhos, é mais do que simbólica: é uma afirmação radical de participação, representatividade e justiça. Quando pessoas com deficiência integram grupos de trabalho, comissões e processos normativos, como vimos na elaboração das Resoluções do CFP, o que se pretende promover não é (e não pode ser) apenas inclusão formal, mas uma transformação profunda na forma como o conhecimento é produzido e validado a partir da Psicologia como ciência e profissão.
As contribuições construídas com conselheiros(as) e ad hocs com deficiências, exemplificam um início de compromisso ético e político, ao reconhecer o capacitismo como uma forma de opressão sistêmica e se aliar à luta por equidade, que contribui para a transformação das práticas institucionais, e validar saberes historicamente silenciados.
Trata-se de uma atuação que, além de regulamentar o fazer profissional, assume o desafio de redesenhar o próprio campo do cuidado, a partir de uma escuta implicada e de uma epistemologia da diferença (reconhecendo que a produção de práticas éticas e inclusivas exige a valorização dos saberes situados e o enfrentamento das lógicas normativas que historicamente silenciaram determinadas existências).
Essa atuação rompe com os contornos tradicionais da Psicologia e se insere de forma contundente no campo das disputas simbólicas e estruturais, assumindo uma postura crítica diante das múltiplas formas de exclusão que atravessam os corpos, narrativas e subjetividades das pessoas com deficiência. Ao fazê-lo, reforça-se o papel do profissional de Psicologia (seja a partir de sua própria vivência como pessoa com deficiência, seja como pessoa aliada) que se dá como agente comprometido com a transformação dessas realidades e com a construção de práticas éticas, inclusivas e anticapacitistas.
Portanto, tal iniciativa não apenas representa uma conquista normativa, mas inaugura uma nova trajetória para a Psicologia: um primeiro passo rumo a uma longa e necessária maratona: diversa, ética e profundamente transformadora. Isso porque não basta à Psicologia não ser capacitista, é preciso, antes de mais nada, ser uma Psicologia anticapacitista.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
08 Jul 2025 -
Aceito
09 Jul 2025
