Open-access Métodos Quantitativos Críticos: Reflexões e Propostas para uma Psicologia Justa e Interseccional

Critical Quantitative Methods: Reflections and Proposals for a Just and Intersectional Psychology

Métodos Cuantitativos Críticos: Reflexiones y Propuestas para una Psicología Justa e Interseccional

Resumo

Este artigo revisita os métodos quantitativos aplicados à Psicologia a partir de três abordagens teóricas críticas que propõem o redirecionamento da pesquisa para o compromisso com a justiça social, o antirracismo e a interseccionalidade. São discutidas: (1) a Teoria Crítica das Raças (Critical Race Theory - QuantCrit), com ênfase na centralidade do racismo estrutural e nas críticas à neutralidade dos dados e dos pesquisadores; (2) o movimento dos Métodos Quantitativos Críticos (Critical Quantitative Methods - CritQuant), que propõe práticas de mensuração sensíveis às desigualdades sociais; e (3) o modelo de validade orientada à justiça e ao antirracismo (Validity for Justice and Antiracism), que reposiciona a validade como uma construção política e situada. Ao final, é apresentado o uso do modelo MIMIC (Multiple Indicators, Multiple Causes) como exemplo de aplicação prática dessas perspectivas críticas, demonstrando como variáveis estruturais, como raça/cor, gênero e classe social podem ser incorporadas na modelagem estatística para evidenciar os efeitos das desigualdades e interseccionalidades na mensuração psicológica e, assim, produzir conhecimento e dar base para ações comprometidas com a transformação social. A proposta busca incentivar uma reflexão crítica sobre a produção de dados quantitativos em Psicologia, promovendo práticas de pesquisa e fundamentos para intervenções mais sensíveis ao contexto, eticamente orientadas e comprometidas com a justiça social.

Palavras-chave:
Justiça Social; Validade; Psicometria; Avaliação Psicológica; Modelo MIMIC

Abstract

This study revisits quantitative methods in psychology by the lens of three critical theoretical approaches that propose redirecting research toward a commitment to social justice, anti-racism, and intersectionality. It discusses the following: (1) critical race theory, emphasizing the centrality of structural racism and critiques of the presumed neutrality of data and researchers; (2) the critical quantitative methods movement, which defends measurement practices that are sensitive to social inequalities; and (3) the validity for justice and antiracism framework, which repositions validity as a political and situated construct. Finally, it describes the use of the multiple indicators, multiple causes as an example of the practical application of these critical perspectives, showing how statistical modeling can incorporate structural variables such as race/ethnicity, gender, and social class to show the effects of inequalities and intersectionalities in psychological measurement, generating knowledge and supporting actions committed to social transformation. This proposal aims to foster critical reflection on the production of quantitative data in psychology, promoting more context-sensitive and ethically grounded research practices and intervention frameworks that commit themselves to social justice.

Keywords:
Social Justice; Validity; Psychometrics; Psychological Assessment; MIMIC Model

Resumen

Este artículo revisita los métodos cuantitativos aplicados a la Psicología a la luz de tres enfoques teóricos críticos que proponen reorientar la investigación hacia el compromiso con la justicia social, el antirracismo y la interseccionalidad. Se discuten (1) la teoría crítica de la raza (Critical Race Theory - QuantCrit), con énfasis en la centralidad del racismo estructural y en las críticas a la supuesta neutralidad de los datos y de los investigadores; (2) el movimiento de métodos cuantitativos críticos (Critical Quantitative Methods - CritQuant), que propone prácticas de medición sensibles a las desigualdades sociales; y (3) el modelo de validez orientado a la justicia y al antirracismo (Validity for Justice and Antiracism), que replantea la validez como una construcción política y situada. Al final, se presenta el uso del modelo MIMIC (Multiple Indicators, Multiple Causes) como ejemplo de aplicación práctica de estas perspectivas críticas al mostrar cómo variables estructurales como la raza/color de piel, el género y la clase social pueden ser incorporadas en la modelización estadística para evidenciar los efectos de las desigualdades y de las interseccionalidades en la medición psicológica, y así generar conocimiento que sirva de base para acciones comprometidas con la transformación social. Esta propuesta pretende fomentar una reflexión crítica sobre la producción de datos cuantitativos en Psicología al promover prácticas de investigación y fundamentos para intervenciones que sean más sensibles al contexto, éticamente orientadas y comprometidas con la justicia social.

Palabras clave:
Justicia Social; Validez; Psicometría; Evaluación Psicológica; Modelo MIMIC

A psicometria, enquanto campo científico dedicado à mensuração de construtos psicológicos, possui uma história complexa e marcada por contradições. Desde seus primórdios, esteve intimamente ligada aos movimentos eugenistas e às ideologias que buscavam justificar hierarquias sociais com base em supostas diferenças biológicas ou cognitivas entre grupos (Gillborn et al., 2018; Zuberi, 2001). Pioneiros da estatística, como Francis Galton, Karl Pearson e Ronald Fisher, desenvolveram métodos quantitativos não apenas para avançar o conhecimento científico, mas também para validar teorias de superioridade racial e exclusão social (Diemer, Frisby, Marchand, & Bardelli, 2024).

Em 1883, Francis Galton propôs o termo eugenia para designar estudos voltados à transmissão de características físicas e mentais, com a intenção de promover o que acreditava ser o aperfeiçoamento da espécie (Batista, 2022). Seu legado é, ao mesmo tempo, pioneiro e controverso, uma vez que foi precursor da mensuração psicológica e da estatística aplicada às ciências humanas (Silva, 2011), mas também se envolveu na defesa de propostas eticamente problemáticas, centradas no controle populacional e na valorização de traços considerados “mais aptos” ou “evoluídos” (Galton, 1908).

Karl Pearson, influenciado por Galton, desenvolveu ferramentas estatísticas fundamentais para as ciências biológicas, psicológicas e sociais (Piovani, 2013), aplicando-as em investigações de padrões hereditários e processos evolutivos que hoje devem ser revisitados sob uma perspectiva crítica, especialmente considerando as limitações e preconceitos intrínsecos à época (Degani-Carneiro, 2022). De modo semelhante, Ronald Fisher, apesar de suas contribuições essenciais para a estatística, como a análise de variância e o método da máxima verossimilhança, também sustentou explicitamente ideias eugênicas que reforçavam hierarquias raciais e sociais, ignorando as críticas éticas e epistemológicas contemporâneas. Fisher, assim como seus antecessores, utilizou a matemática como ferramenta para sustentar concepções de superioridade biológica, o que contribuiu para a legitimação científica de políticas excludentes e violências institucionais (Bodmer et al., 2021).

Essas raízes históricas deixaram aspectos que ainda permeiam a prática contemporânea da avaliação psicológica, muitas vezes reproduzindo desigualdades ao ignorar contextos socioculturais e privilegiar padrões eurocêntricos (Randall, Poe, Oliveri, & Slomp, 2024; Ryff, 2022). A invisibilidade de marcadores sociais produz distorções nos resultados obtidos, na construção dos instrumentos e na definição dos construtos avaliados.

Considerando que as opressões se manifestam de forma multifacetada, este artigo também adota o referencial da interseccionalidade, reconhecendo que raça, gênero, classe, deficiência e outras categorias sociais se entrecruzam na produção de desigualdades e afetam diretamente os processos de mensuração psicológica (Collins, 2021). Para além das discussões sobre justiça racial, amplia-se o debate para uma Psicologia quantitativa crítica, interseccional e comprometida com a justiça social em múltiplas dimensões.

O presente artigo busca contribuir com a discussão sobre essa lacuna, explorando exemplos práticos de métodos quantitativos, como os modelos MIMIC (Multiple Indicator and Multiple Causes). Essa abordagem tem se mostrado promissora por possibilitar a incorporação de uma perspectiva interseccional na investigação de possíveis vieses nas respostas a itens de testes psicológicos e nas comparações entre diferentes grupos sociais. Conforme proposto por Diemer et al. (2024), o uso de modelos MIMIC permite testar em que medida variáveis estruturais, como raça/cor, gênero, classe social, entre outras, influenciam a interpretação dos itens dos testes psicológicos, bem como a estimativa dos escores latentes, permitindo identificar desigualdades sistemáticas nas mensurações. Essa abordagem ganha relevância no campo da avaliação psicológica e da pesquisa quantitativa em Psicologia, considerando a importância crescente de reunir evidências de que os instrumentos de medida não reforcem vieses sociais. Avançar nessa direção representa um passo importante para a promoção de maior equidade nas práticas científicas e profissionais (Diemer et al., 2024).

Instrumentos construídos com base em amostras predominantemente brancas, ocidentais e de classe média foram utilizados como padrão ouro, ignorando variações culturais e contextuais que poderiam influenciar suas propriedades psicométricas ao longo da história dos métodos quantitativos aplicados à Psicologia (Castillo & Strunk, 2025; Villalobos & Cabrera, 2025). Essa prática pode comprometer a validade dos construtos avaliados e contribuir, ainda que de forma não intencional, para interpretações que atribuem diferenças de desempenho a características individuais, sem considerar adequadamente os contextos e barreiras sociais que também influenciam esses resultados (Garcia, López, & Vélez, 2018).

Nesse cenário, a justiça social emerge como um compromisso ético para a psicometria. Segundo Young (2008), justiça social envolve a redistribuição equitativa de recursos, oportunidades e poder, visando desmantelar estruturas de opressão. Na avaliação psicológica, isso exige questionar como raça, gênero, classe e outras dimensões identitárias influenciam os resultados dos testes, sua construção e interpretação (Randall, 2021).

Abordagens críticas, como o Quantitative Critical Approach (QuantCrit) e a Critical Race Theory (CRT), desafiam a noção de neutralidade dos métodos quantitativos, destacando porque escolhas metodológicas, desde a definição de construtos até a análise de dados, são atos intrinsecamente políticos (Gillborn et al., 2018). Essas perspectivas defendem, por exemplo, a desagregação de dados por marcadores sociais, a revisão de itens que reforçam estereótipos e a inclusão de populações minorizadas em todas as etapas da pesquisa, da concepção à divulgação dos resultados (Castillo & Gillborn, 2022).

Quantitative Critical Approach (QuantCrit)

O Quantitative Critical Approach (QuantCrit), representa um movimento epistemológico que busca reorientar o uso dos métodos quantitativos a partir de compromissos explícitos com a justiça racial, com a equidade e a descolonização do conhecimento. Trata-se de uma extensão da Critical Race Theory (CRT) aos métodos estatísticos, ao aplicar seus princípios fundamentais ao campo da mensuração. Assim, o QuantCrit oferece uma estrutura útil para decisões metodológicas orientadas por uma perspectiva antirracista, ao reconhecer que a produção e a interpretação de dados estão imersas em relações de poder e, portanto, não podem ser consideradas neutras ou isentas de valores (Diemer et al., 2024; Gillborn et al., 2018).

Entre seus princípios fundamentais, destacam-se: (1) a compreensão de que o racismo não é uma anomalia, mas um componente estrutural, comum e ordinário; (2) o reconhecimento da opressão como eixo central dos sistemas econômicos, políticos e educacionais; (3) a rejeição da neutralidade dos números, dado seu uso histórico em projetos eugenistas e racistas; (4) o exame crítico do uso de categorias construídas em torno da raça; (5) a defesa da participação ativa de pessoas não brancas em todas as etapas da pesquisa, desde a definição de construtos até a análise dos resultados; e (6) o alinhamento das decisões metodológicas a objetivos de justiça social (Delgado & Stefancic, 2017; Gillborn et al., 2018; Randall, 2021).

Nesse sentido, a QuantCrit rejeita a noção dominante dos métodos estatísticos tradicionais como procedimentos supostamente objetivos e universais, descolados de contextos históricos e de posicionamento dos próprios pesquisadores. Pelo contrário, argumenta-se que não existe mensuração livre de valores e que os dados quantitativos não têm status ontológico superior aos dados qualitativos (Russell, 2023; Zuberi & Bonilla-Silva, 2008). Isso implica reconhecer que pressupostos políticos, raciais e epistêmicos podem estar presentes nas ferramentas de mensuração, abrangendo desde os instrumentos e modelos estatísticos utilizados até a composição das amostras e as interpretações geradas a partir dos dados.

A partir dessa perspectiva, o QuantCrit propõe uma postura de ambivalência crítica frente ao uso de números: não se trata de rejeitá-los, mas de evitar sua interpretação como verdades objetivas. Em vez de “falar por meio dos dados”, os pesquisadores devem “falar sobre eles”, trazendo à tona os valores, vieses e suposições que atravessam sua construção e aplicação, especialmente aqueles relacionados a projetos racistas, sexistas e eugenistas historicamente associados à psicometria. Em outras palavras, essa abordagem frequentemente expande a conceituação da interseccionalidade ao aplicar uma lente crítica à análise quantitativa (Gillborn et al., 2018; Randall, Poe, Oliveri, & Slomp, 2024).

Na prática, o QuantCrit orienta o trabalho empírico em três níveis: (1) definição e validação de construtos, promovendo reformulações que não centralizem epistemologias brancas ou normas eurocêntricas, mas que incorporem conhecimentos e vivências de grupos historicamente marginalizados (Randall, 2021); (2) análise crítica dos dados, superando a confiança exclusiva em variáveis ditas objetivas e situando os resultados em contextos sociais, políticos e históricos mais amplos; e (3) interpretação dos achados, comprometida com uma epistemologia antirracista que adota lentes baseadas em potencialidades e recursos, e não em déficits (Castillo & Gillborn, 2022; Gillborn et al., 2018). Assim, o QuantCrit permite que os métodos quantitativos sejam utilizados não apenas para mapear desigualdades, mas também como instrumentos para transformá-las.

Critical Quantitative Methods (CritQuant)

Assim como o QuantCrit, outras abordagens orientadas pela equidade e pela justiça social vêm desafiando os usos tradicionais das metodologias quantitativas (Gillborn et al., 2018; Randall, 2021; Tabron & Thomas, 2023; Wofford & Winkler, 2022). Embora compartilhem objetivos, como a crítica ao racismo estrutural e à suposta neutralidade dos dados, diferenciam-se em seus princípios. Entre elas, destaca-se o Critical Quantitative Methods (CritQuant), que parte da premissa de que as análises quantitativas podem se ancorar em modelos investigativos comprometidos com a transformação social. Ou seja, em vez de rejeitar os métodos estatísticos, o CritQuant busca ressignificá-los de maneira crítica, transformando-os em ferramentas eficazes para questionar e enfrentar diferentes formas de racismo presentes na pesquisa e na mensuração (Diemer et al., 2024; Knowles & Hawkman, 2020).

Esse panorama evidencia a maleabilidade do CritQuant, que não se configura como uma subcategoria do QuantCrit, mas como um campo em expansão, capaz de integrar diferentes tradições críticas ao uso dos métodos quantitativos. Um exemplo desse movimento está representado no estudo de Tabron e Thomas (2023), que, por meio de uma revisão de escopo, os autores identificaram 63 artigos que mobilizaram teorias críticas em pesquisas quantitativas entre 2007 e 2021 - dos quais 40 foram classificados como CritQuant. Esses estudos combinam análises empíricas e discussões conceituais voltadas à reformulação crítica da mensuração, da modelagem estatística e da interpretação dos resultados em contextos educacionais e sociais.

A consolidação do CritQuant como campo emergente também se expressa no esforço para regulamentar seus princípios básicos. Diemer et al. (2024) propuseram cinco pilares fundamentais para guiar pesquisas nessa abordagem (Figura 1).

Figura 1
Cinco pilares para engrenagem do CritQuant.

O primeiro princípio é a fundamentação teórica, que exige domínio tanto de teorias críticas quanto de métodos quantitativos ao longo de todo o processo de pesquisa, reconhecendo que a técnica é tão importante quanto o marco teórico que a orienta. Nesse sentido, é fundamental que o pesquisador compreenda o funcionamento da metodologia quantitativa para poder criticar, descontruir, reformular e reaplicar de formas equitativas. O segundo princípio são metas orientadas para a equidade, que têm como objetivo não apenas descrever desigualdades, mas transformar práticas de pesquisa e avaliação para promover justiça. Portanto, este avanço é visto principalmente de forma prática, introduzindo novas aplicações de teorias críticas e abordagens quantitativas (Diemer et al., 2024).

O terceiro pilar é a paridade epistemológica, que rejeita a hierarquização entre métodos qualitativos e quantitativos, valorizando abordagens mistas que capturem a complexidade das experiências humanas. O quarto pilar é a subjetividade, que reconhece que a pesquisa é um ato político e que os dados não são neutros, mas sim produtos de contextos históricos e sociais específicos. Esta é uma ruptura significativa com a perspectiva positivista ou pós-positivista, que enfatiza a existência de uma única verdade mensurável. Por fim, o quinto princípio diz respeito à autorreflexão, que incentiva os pesquisadores a examinar como suas posicionalidades (raça, gênero, classe etc.) influenciam desde a formulação das perguntas de pesquisa até a interpretação dos resultados. Este princípio é ilustrado pelo uso de declarações de posicionamento do pesquisador, que são um reconhecimento autorreflexivo de como as identidades sociais, perspectivas e compromissos dos pesquisadores influenciaram o processo de pesquisa, desde a conceituação até a interpretação dos dados (Diemer et al., 2024).

Esses princípios desafiam a ideia de que rigor técnico e justiça social são dimensões separadas da pesquisa empírica. Pelo contrário, o CritQuant sustenta que a qualidade de uma investigação estatística também deve ser avaliada com base em seus impactos sociais e políticos. No campo da psicometria, isso implica adotar uma concepção ampliada de validade, na qual as consequências sociais do uso de um teste, especialmente para grupos minorizados, ocupam papel necessário na sua avaliação. Nesse sentido, as chamadas evidências de validade baseadas nas consequências do teste, também conhecidas por alguns autores como “validade consequencial”, são cada vez mais reconhecidas como tão importantes quanto as propriedades técnicas tradicionais, como a análise da estrutura interna (Diemer et al., 2024).

Validade Orientada à Justiça e ao Antirracismo

A partir do exposto, sabe-se que a neutralidade de cor é uma falácia, visto que a adesão da área de mensuração à neutralidade (ou ausência de racismo) sustenta lógicas de supremacia branca e continua a prejudicar ativamente e diretamente grupos minorizados. Desse modo, a neutralidade de cor não leva à justiça, mas perpetua o racismo ao servir como uma forma de valorização da brancura.

Randall (2021) discute no artigo “Color-Neutral Is Not a Thing: Redefining Construct Definition and Representation through a Justice-Oriented Critical Antiracist Lens” que visões convencionais exigem um foco restrito no construto subjacente proposto, eliminando qualquer contexto adicional, considerado apenas como variância irrelevante para o construto. Portanto, essa “limpeza” ignora contextos políticos, raciais, culturais e sociopolíticos de itens de avaliação para atender apenas a padrões da indústria.

A tentativa de isolar uma habilidade específica, o construto, pode parecer justa, visto que é mascarada pela intenção de deixar o teste mais puro e preciso, entretanto, pode reforçar desigualdades. Afinal, a busca pela pureza não é neutra, e é comumente baseada em uma normativa padrão, que advém de costumes dominantes e, ao não questionar, privilegiam determinados grupos e, consequentemente, o construto é sub-representado.

A partir disso, Randall (2021) propõe a necessidade de uma lente antirracista e orientada para justiça, a qual nomeia como abordagem antirracista na avaliação psicológica. Ela exige um confronto explícito do racismo nas práticas de avaliação e um esforço para desfazer os sistemas de opressão. Tal abordagem envolve o questionamento crítico sobre as estruturas e suposições dos desenvolvedores de testes e processos de avaliação, sendo explícita quanto à sua política e intenção de reconstruir arranjos hierárquicos de poder racial.

Dessa forma, a jornada em direção à justiça no campo da psicometria é anterior e deve começar com a abordagem antirracista para definição e representação de construtos, visto que a definição do construto é aspecto central para desenvolvimento de teorias, testes e busca por evidências de validade. Nesse sentido, as formas de saber e compreender associadas a indivíduos minorizados devem ser reconhecidas como relevantes para o construto. A partir disso, Randall (2021) propõe um guia de perguntas que se inter-relacionam para guiar a reflexão sobre uma avaliação mais justa, nomeada como 6Ps: propósito, posicionalidade, pessoas/lugares, poder, processos e produtos/consequências (Figura 2).

Figura 2
Heurística para (re)definição do construto antirracista orientada para justiça.

Propósito refere-se ao compromisso explícito com a justiça em todas as etapas que compõe o processo de avaliação, começando pela definição do construto. Posicionalidade indica que os indivíduos devem refletir sobre suas próprias identidades raciais, experiências anteriores, valores e suposições acerca das partes interessadas. Pessoas/lugares consideram os contextos socioculturais e raciais das comunidades que serão avaliadas, além de incluir membros das comunidades para compartilhar suas vozes. Poder configura-se como a necessidade de interrogar quem está sendo privilegiado ou prejudicado pela definição do construto-alvo avaliado, buscar ativamente romper com o desequilíbrio de poder e garantir que o fenômeno avaliado seja explicitamente antirracista. Processos diz respeito à avaliação de quem está presente - e ausente - na definição do construto, ou seja, considerar novas perspectivas e tecnologias, envolvendo partes interessadas marginalizadas em todas as etapas e abrangendo a complexidade da linguagem, cultura e saberes. Por fim, Produtos considera as consequências antecipadas e não intencionais na definição do construto, garantindo que essa definição promova oportunidades equitativas e que seja válida em diferentes contextos sociais, culturais e raciais (Randall, 2021).

Os 6Ps representam um guia para que psicometristas e demais profissionais da avaliação psicológica revisem e reconstruam modelos, de maneira a enfraquecer e atuar ativamente contra o racismo e a supremacia branca em suas práticas, movendo-se de uma suposta neutralidade de cor, para uma abordagem politizada. Em suma, a redefinição e representação de construtos a partir de uma lente antirracista orientada para justiça presume uma ruptura fundamental com as práticas convencionais de avaliação, que, mesmo involuntariamente, perpetuam o racismo e a hegemonia branca. Em vez de buscar uma ilusória neutralidade, o campo deve se tornar consciente acerca da raça e ativamente antirracista em sua estrutura de avaliação psicométrica.

Interseccionalidade e Mensuração Psicológica

A partir da concepção de que a neutralidade metodológica pode reforçar estruturas de poder, torna-se necessária a compreensão de que os fenômenos não ocorrem de maneira isolada, mas estão relacionados. É nesse contexto que a interseccionalidade se apresenta como um referencial teórico, metodológico e ético indispensável à psicometria crítica.

A interseccionalidade envolve a compreensão de que os sistemas de opressão não operam de forma isolada, mas são interdependentes, coproduzem-se e reforçam-se mutuamente, estruturando desigualdades complexas e multifacetadas (Collins, 2021; Collins & Bilge, 2016; Kyrillos, 2024). Essa perspectiva, que emerge das epistemologias feministas negras e das práxis antirracistas, rompe com modelos analíticos que tratam categorias sociais como fixas e hierarquicamente organizadas, propondo uma abordagem relacional, dinâmica e contextualizada das desigualdades (Arnoud, Chotgues, Marques, & Habigzang, 2023).

Cabe destacar que a interseccionalidade configura-se como uma teoria social crítica, que envolve um comprometimento com a justiça social e busca olhar para os marcadores estruturais e de intersecção que podem comprometer a validade dos modelos teóricos que embasam a mensuração (Zuberi & Bonilla-Silva, 2008; Gillborn et al., 2018; Randall et al., 2024). No campo da mensuração psicológica, essa abordagem crítica permite que pesquisadores possam contemplar a diversidade em modelos que tratam as categorias sociais como variáveis independentes e dicotômicas (e.g., branco vs. negro, homem vs. mulher), minimizando os efeitos combinados e acumulativos das opressões (Russell, 2023). Isso significa que a observância dessas intersecções pode contribuir para a produção de instrumentos sensíveis a dimensões das opressões (como raça e gênero), garantindo equidade e minimizando a reprodução de formas de violência simbólica, epistêmica e estrutural. Isso se torna relevante quando se observa que, frequentemente, os modelos de mensuração tratam categorias sociais como covariáveis ou fatores de controle, sem reconhecer que são estruturas sociais e representadas na realidade, e não apenas atributos individuais (Vargas & Peet, 2024).

No campo da psicometria, incorporar uma perspectiva crítica e interseccional requer uma revisão do processo científico desde a construção e aplicação dos instrumentos de avaliação até a interpretação dos resultados. O primeiro passo segue a definição dos construtos, que deve contemplar a diversidade e garantir que eles sejam sensíveis às experiências e saberes de grupos historicamente minorizados, considerando as especificidades dos sujeitos. Essa etapa contempla a visibilidade de um histórico epistemológico cujas implicações diretas são inerentes a quem seria representado nos processos de mensuração.

A partir dessa concepção, espera-se que o desenvolvimento dos itens também esteja alinhado criticamente aos contextos e pressupostos que estruturam o instrumento. A construção de itens deve ser um processo dialógico, que inclua a participação ativa dos grupos aos quais se destinam as avaliações, promovendo, assim, representatividade e relevância cultural. No que se refere às análises estatísticas, é necessário reconhecer que os efeitos das opressões são interativos e contextuais, e que as interpretações dos dados devem ser compreendidas também a partir dos sistemas sociais, históricos e políticos que estruturam as desigualdades. Uma psicometria orientada para a justiça social possibilita que as conclusões produzidas sejam estatisticamente robustas e comprometidas socialmente, objetivando o enfrentamento de injustiças e a construção de práticas psicológicas mais éticas, inclusivas e equânimes.

Em termos metodológicos, modelos como o MIMIC podem oferecer uma via potente para identificar o funcionamento diferencial de itens (Differential Item Functioning - DIF) não apenas por um marcador isolado, mas a partir da interação entre múltiplos marcadores, permitindo revelar como opressões sobrepostas moldam respostas psicométricas (Diemer et al., 2024; Montoya & Jeon, 2020). No entanto, cabe destacar que a própria estrutura estatística dos modelos tradicionais possui limitações para capturar plenamente os efeitos não lineares, contextuais e dinâmicos das interseccionalidades. Nesse sentido, cabe enfatizar que a interseccionalidade deve ser um compromisso epistêmico, desde a construção dos instrumentos até a comunicação dos resultados.

Aplicações do modelo MIMIC (Multiple Indicators, Multiple Causes) em uma perspectiva crítica

Ao incorporar uma compreensão crítica, os modelos MIMIC transcendem a mera identificação de disparidades, oferecendo estratégias para corrigir medidas que perpetuam injustiças, seja pela reformulação de itens ou pelo ajuste estatístico de escores (Diemer et al., 2024). Assim, os modelos MIMIC podem contribuir para expor limitações metodológicas e contestar normatividades brancas embutidas na construção dos instrumentos, por exemplo.

No entanto, a aplicação crítica dos modelos MIMIC não é isenta de desafios. Como destacam Diemer et al. (2024), a técnica assume invariância configural e métrica, o que pode limitar sua sensibilidade a nuances culturais mais profundas. Além disso, a dependência de variáveis categóricas (e.g., raça dicotomizada) pode simplificar identidades sociais multifacetadas (Castillo & Gillborn, 2022). Apesar dessas limitações, os modelos MIMIC representam um avanço significativo em relação às abordagens tradicionais, pois permitem quantificar e corrigir vieses sem descartar a utilidade dos métodos quantitativos.

De forma geral, este estudo defende que a psicometria pode, e deve, ser reinventada como uma ferramenta de justiça social. Nesse sentido, os modelos MIMIC, aplicados sob uma lente crítica, exemplificam como o rigor metodológico pode ser aliado ao compromisso ético com a equidade. A psicologia positiva, por exemplo, surgiu como um contraponto ao modelo patologizante tradicional, enfatizando virtudes humanas como resiliência, otimismo e bem-estar subjetivo (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). Contudo, sua abordagem universalista frequentemente negligenciou as condições estruturais que moldam as experiências de grupos marginalizados, como pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e com deficiência (Reppold, Zanini, Campos, Faria, & Tocchetto, 2019). A análise quantitativa crítica, portanto, não é apenas uma alternativa técnica, mas um projeto político que exige reflexão constante sobre quem se beneficia e quem é prejudicado pelas práticas de mensuração em psicologia (Randall, 2021).

Nessa direção, Diemer et al. (2024) propuseram um estudo para demonstrar como os pesquisadores podem colocar em prática o CritQuant, utilizando a aplicação dos modelos MIMIC, com o objetivo de detectar e mitigar vieses raciais (e.g., outras formas de iniquidade) na medição. O estudo forneceu um exemplo prático de como a abordagem CritQuant pode ser implementada ao avaliar como as experiências escolares são moldadas pelo racismo.

Este exemplo utilizou dados do Maryland Adoscvent Development in Contexts Study (MADICS) para avaliar a percepção de tratamento racializado diferenciado por professores e de um currículo inclusivo entre estudantes negros e brancos, provenientes de famílias de origens socioeconômicas comparáveis. Em alinhamento com os princípios de fundamentação e objetivos do CritQuant, Diemer et al. (2024) enfatizaram a interpretação do modelo centrada nas experiências de estudantes negros em todas as análises. Embora os estudantes brancos fossem a categoria de referência analítica, a intenção não era enquadrar suas experiências como normativas, mas sim destacar como os modelos MIMIC podem ser usados para uma medição antirracista ao focar nas experiências de estudantes negros no contexto do racismo.

O estudo concentrou-se em duas dimensões do clima racial escolar: as relações professor-aluno e o clima geral da escola, com o intuito de compreender como o racismo permeia o ambiente escolar. Foram utilizados dois construtos latentes distintos: 1) tratamento diferenciado racializado por professores, que avalia a frequência com que os alunos sentem ser tratados de forma distinta em função de sua raça/cor; e 2) percepção de currículo inclusivo, que mensura a percepção dos alunos sobre a inclusividade do currículo escolar (Tabela 1).

Tabela 1
Itens dos construtos avaliados

Os resultados dos modelos MIMIC demonstraram que estudantes negros são mais propensos a relatar um tratamento racializado diferenciado por professores, bem como são menos propensos a perceber um currículo inclusivo (Figura 3). A análise MIMIC, além de comparar médias latentes, investiga a existência de DIF nos itens individuais. Os resultados revelaram que, mesmo após o controle feito pelas diferenças nas médias latentes, dois dos cinco itens apresentaram funcionamento diferencial entre os estudantes, especificamente os estudantes negros, que apresentavam maior probabilidade de endossar o conteúdo dos itens que indicavam que os professores os achavam menos inteligentes por causa de sua raça/cor e que eram mais desencorajados a se matricular em determinadas aulas. Além disso, estudantes negros sentiam que sua escola enfatizava menos o estudo de figuras não brancas.

Figura 3
Funcionamento Diferencial do Item (DIF) em função do tratamento racializado diferenciado e da percepção de currículo inclusivo em estudantes negros.

A detecção do DIF, como ilustrado na Figura 3, é fundamental para uma abordagem CritQuant. Isso sugere que as diferenças não são meramente decorrentes de um nível mais alto do construto em estudantes negros, mas também ao modo como os próprios itens funcionam para diferentes grupos raciais, o que aponta para como o racismo afeta a forma como os estudantes interpretam e respondem a esses itens. Esse aspecto que está alinhado ao princípio de fundamentação do CritQuant, que exige que a pesquisa seja enraizada em teorias e métodos quantitativos críticos, bem como se alinha ao princípio de subjetividade, que reconhece a natureza política e individual da mensuração.

A capacidade dos modelos MIMIC de identificar esse viés é uma de suas principais vantagens, permitindo que pesquisadores capturem a submedição sistemática do racismo. A validade consequencial é o ponto central, visto que o viés estatístico que sistematicamente eleva grupos privilegiados, como os brancos, em avaliações tem impactos sociais significativos, potencialmente perpetuando e ampliando disparidades. Embora os exemplos apresentados por Diemer et al. (2024) tragam importantes reflexões acerca da potencialidade do uso dos modelos MIMIC, estes exemplos se limitam a uma variável social: a raça. A fim de destacar a potencialidade deste método para um olhar interseccional dos métodos quantitativos, recorremos ao estudo de Silva et al. (no prelo), que avaliou os efeitos de raça, gênero e modalidade esportiva (coletiva e individual) ao avaliar 5Cs: Bateria de Desenvolvimento Positivos de Jovens no Esporte (Bateria dos 5Cs).

Antes de apresentar os resultados interseccionais, é importante contextualizar o modelo teórico adotado por Silva et al. (no prelo). A Bateria dos 5Cs é composta pelas dimensões de competência, confiança, conexão, cuidado e caráter. O modelo parte do pressuposto de que, ao desenvolver essas cinco características, os jovens alcançam o desenvolvimento positivo, associado à promoção de habilidades socioemocionais, bem-estar psicológico e à redução de comportamentos de risco, como o uso de substâncias, evasão escolar e baixa autoestima. O ambiente esportivo, especialmente quando estruturado com atividades supervisionadas e relações de apoio, tende a favorecer esse ciclo positivo (Vierimaa, Turnnidge, Bruner, & Côté, 2017).

Entretanto, mesmo em contextos potencialmente protetores, como o esporte, diferentes marcadores sociais (como raça, gênero e modalidade esportiva) podem operar de forma combinada, facilitando ou dificultando o acesso equitativo às experiências de desenvolvimento positivo. Esses marcadores não devem ser tratados de forma isolada, uma vez que os sujeitos vivenciam suas identidades de forma interseccional. A interseccionalidade, nesse sentido, compreende que raça, gênero e outras categorias sociais se entrelaçam em seus efeitos e impactos, gerando experiências únicas de privilégio e opressão, que devem ser analisadas a partir de suas articulações históricas, institucionais e culturais (Collins, 2021; Kyrillos, 2024).

Nesse cenário, o modelo MIMIC revela-se uma ferramenta promissora, pois permite incorporar múltiplas variáveis causais, que afetam tanto as médias latentes dos construtos quanto o funcionamento diferencial dos itens (DIF). Essa estrutura oferece aos pesquisadores a possibilidade de investigar como categorias sociais entrelaçadas impactam a mensuração, capturando padrões de viés ou exclusão que não seriam visíveis em análises tradicionais unidimensionais (Diemer et al., 2024; Kline, 2015).

Com base nessa perspectiva, Silva et al. (no prelo) examinaram os efeitos de raça/etnia, gênero e modalidade esportiva sobre os 5Cs. Para fins ilustrativos, destacamos aqui os resultados referentes à dimensão Cuidado, que abrange sentimentos de empatia, solidariedade, bondade e compaixão consigo mesmo e com os outros. Os resultados indicaram diferenças nas médias latentes de Cuidado entre grupos raciais, com escores mais elevados entre atletas não brancos, sugerindo que esses atletas tendem a vivenciar níveis mais altos de empatia e senso de comunidade. No entanto, um dos itens do fator (“Sou compreensivo com minhas falhas”) apresentou funcionamento diferencial: atletas não brancos demonstraram menor probabilidade de endossar esse item, mesmo com o controle pelas diferenças latentes. Essa discrepância pode indicar a influência de normas socioculturais que reforçam padrões de autocobrança e autocrítica, particularmente em grupos historicamente racializados. Em termos psicométricos, esse resultado reforça a necessidade de revisar o item para garantir que ele capture de forma justa o construto entre diferentes grupos sociais (Figura 4).

Figura 4
Resultados do modelo MIMIC para a característica Cuidado.

Esses achados ilustram como os modelos MIMIC, quando orientados por marcos teóricos críticos, podem funcionar como ferramentas potentes para operacionalizar a interseccionalidade em análises quantitativas. Ao permitir a identificação tanto de diferenças latentes quanto de funcionamento diferencial de itens (DIF), com base em identidades sociais sobrepostas, como raça, gênero e outros marcadores, o MIMIC amplia a capacidade da psicometria de reconhecer e corrigir distorções que tradicionalmente comprometem a validade de instrumentos para grupos historicamente marginalizados. O estudo de Silva et al. (no prelo) demonstra que é possível unir os métodos quantitativos com um compromisso ético com a justiça, para orientar processos mais justos de avaliação. Portanto, incorporar a interseccionalidade não se restringe à inclusão de múltiplas variáveis, mas proporciona uma transformação profunda na forma como concebemos os dados.

Posicionalidade dos autores

Os autores reconhecem que suas trajetórias sociais, experiências profissionais e contextos acadêmicos influenciaram o desenvolvimento deste artigo, incluindo a escolha do tema, a literatura acessada, os exemplos apresentados e a compreensão das implicações sociais do estudo. Essas reflexões sobre como as identidades dos pesquisadores influenciam seu trabalho visam reconhecer a subjetividade da pesquisa. Vale ressaltar que a posicionalidade não deve ser reduzida a discursos superficiais ou a uma lista de categorias identitárias, mas deve ser um exercício de autorreflexão ao decidir o que expor sobre si mesmo, demonstrando vulnerabilidade e compromisso ético. Por esse motivo, este tópico de posicionalidade do artigo será escrito em primeira pessoa.

Evandro, identifico-me como um homem negro, cisgênero, nascido na periferia da região metropolitana de São Paulo, sou professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Francisco, localizada na região Sudeste do Brasil (Campinas-SP). Proveniente de escolas públicas, reconheço que as políticas de bolsas de estudo voltadas a estudantes atletas foram determinantes para meu ingresso no ensino superior e, posteriormente, na pós-graduação; as bolsas oferecidas por agências públicas de fomento à pesquisa desempenharam papel fundamental em minha trajetória acadêmica e profissional. A aproximação com as abordagens críticas sobre os métodos quantitativos ocorreu a partir dos estudos sobre consciência crítica no esporte. Diante das marcas do racismo, da homofobia, do sexismo, do capacitismo e do classismo nos espaços esportivos, percebi que a maneira como aplicava os métodos quantitativos não alcançavam a profundidade e a complexidade dessas vivências. Foi a partir da abordagem crítica que encontrei uma possibilidade de articular o rigor técnico com o compromisso ético-político no enfrentamento dessas injustiças.

Amanda, identifico-me como uma mulher branca, cisgênero, heterossexual e sem deficiência, sou Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco. Natural do interior paulista, minha trajetória foi marcada por contradições: cresci em um terreiro de Umbanda, espaço que me expôs desde cedo às lutas de grupos marginalizados, enquanto minhas identidades privilegiadas me garantiram acesso a oportunidades negadas a muitos daqueles com quem convivi. Minha consciência crítica sobre esses privilégios emergiu na adolescência, por meio da participação em coletivos feministas. Essa dupla tensão entre o reconhecimento de vantagens estruturais e a vivência em espaços de resistência marca minha prática acadêmica enquanto pesquisadora. Foi recentemente, no CriQuant, que encontrei ferramentas para materializar minhas inquietações. Se antes via minhas críticas aos métodos tradicionais como impasses individuais, hoje reconheço nelas as mesmas contradições que marcam a psicometria: uma disciplina capaz tanto de neutralizar desigualdades quanto de desafiá-las, dependendo de quais vozes orientam sua aplicação.

Maynara, identifico-me uma como mulher cisgênero, branca, nascida em Jacareí, uma cidade do interior do estado de São Paulo. Minha trajetória foi atravessada por diferentes experiências familiares: por parte da família materna, o percurso acadêmico nunca foi prioridade, o foco sempre esteve voltado ao mercado de trabalho. Sou a segunda pessoa da família a ingressar em um curso de graduação e a primeira a alcançar o título de doutora, marca que carrego com orgulho, mas também com consciência do quanto representa uma exceção estatística no Brasil. Já a família paterna foi marcada por profundas desigualdades, tendo vivenciado de perto contextos de vulnerabilidade social, com episódios de envolvimento com o tráfico de drogas. Nesse cenário, meu pai sempre insistiu que a educação era o único caminho possível para quebrar o ciclo de exclusão. Assim, apesar de hoje ocupar um lugar socialmente privilegiado, reconheço que minha trajetória acadêmica só foi possível graças às políticas públicas de acesso à educação, como o Programa Universidade para Todos (Prouni), e as bolsas da CAPES e da FAPESP. Atualmente, sou doutora e atuo como pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Francisco. Minha aproximação com abordagens críticas em psicometria tem sido um esforço de devolver à ciência o seu compromisso ético, especialmente no enfrentamento das desigualdades que marcaram, e ainda marcam, minha história.

Carolina, identifico-me como uma mulher branca, natural do interior paulista, e atualmente sou professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), em Uberaba/MG. Minha trajetória acadêmica foi marcada por condições de favorecimento, sobretudo no acesso aos espaços educacionais que, historicamente, têm sido pouco ocupados por pessoas de grupos minorizados. No entanto, o acesso à pós-graduação foi possível pelo incentivo recebido por meio de bolsas de agências de fomento. Esse reconhecimento orienta meu compromisso com a produção de conhecimento em avaliação psicológica, pautado na promoção da justiça, da inclusão e da responsabilidade social, buscando tensionar normatividades que sustentam exclusões e contribuir para práticas avaliativas mais éticas e sensíveis à diversidade.

Considerações finais

O presente artigo teve como objetivo apresentar uma reflexão crítica sobre os métodos quantitativos, abordando as concepções históricas utilizadas para reforçar desigualdades sociais e a necessidade de repensar como instrumentos psicológicos podem ser repensados a partir de uma perspectiva de justiça social e de um contexto de transformação que vise minimizar opressões. O estudo aborda a psicometria por meio da compreensão da Critical Race Theory (CRT), do QuantCrit, da abordagem de validade orientada à justiça e ao antirracismo, da interseccionalidade e do CritQuant, propondo uma reflexão sobre a mensuração psicológica enquanto prática ética, política e justa.

A psicometria, ligada à eugenia em sua trajetória histórica, buscou naturalizar hierarquias sociais (Gillborn et al., 2018; Zuberi, 2001). Nesse contexto, a utilização acrítica de instrumentos psicológicos pode perpetuar desigualdades, uma vez que muitos deles foram construídos a partir de normatividades brancas, ocidentais e de classe média, ignorando as particularidades culturais e estruturais que moldam as experiências de grupos marginalizados (Castillo & Strunk, 2025).

Diante desse cenário, os modelos MIMIC emergem como uma alternativa metodológica potente para a reorientação da psicometria em direção a um compromisso ético com equidade. Esses modelos permitem não apenas identificar vieses em instrumentos de avaliação, mas também ajustá-los estatisticamente, considerando variáveis contextuais. A aplicação crítica dessa técnica exige, contudo, uma abordagem que vá além da mera análise estatística, incorporando reflexões teóricas e políticas sobre as estruturas de poder que permeiam a construção e a aplicação de testes psicológicos.

É fundamental questionar, por exemplo, as categorias utilizadas para operacionalizar raça e gênero, assim como os pressupostos teóricos que orientam a interpretação dos resultados. Conforme destacado ao longo deste artigo, a neutralidade metodológica é uma ilusão: toda escolha analítica é, em última instância, um ato político. Nesse sentido, este estudo contribui para o avanço da psicometria ao propor uma abordagem crítica que reposiciona os métodos quantitativos tradicionais como ferramentas de justiça social. Ao aplicar o modelo MIMIC a partir de uma perspectiva antirracista e interseccional, a pesquisa evidencia como estruturas de poder implicam na experiência dos sujeitos e afetam diretamente as respostas aos instrumentos psicológicos, visto que viabiliza o reconhecimento de que as variações podem representar expressões de desigualdades estruturais e não que sejam intrínsecas à individualidade.

De forma geral, o presente trabalho defende que a psicometria pode e deve ser uma importante aliada aos esforços de transformação social. O uso dos métodos quantitativos, quando guiado por teorias críticas e comprometidas com a equidade, oferece um caminho metodológico rigoroso para desconstruir normatividades opressivas e promover avaliações psicológicas mais justas. Portanto, o desafio que se coloca não é apenas técnico, mas ético e político, exigindo dos pesquisadores um engajamento constante na desnaturalização de hierarquias e na ampliação de vozes historicamente silenciadas no campo da mensuração psicológica.

Reconhece-se que este artigo teve como foco principal a operacionalização da perspectiva crítica por meio do modelo MIMIC, o que representa apenas uma entre as diversas possibilidades de aplicação dos métodos quantitativos sob a perspectiva comprometida com a justiça social. Esse recorte constitui também uma limitação importante, uma vez que outras abordagens estatísticas ainda têm sido revisitadas a partir da lente das abordagens críticas como as análises de variância e modelos de regressão (Vargas & Peet, 2024). Iniciativas como essas reforçam a ideia de que o direcionamento dos métodos quantitativos aplicados à Psicologia para o enfrentamento das injustiças e relações sociais de poder implica uma revisão mais ampla da lógica científica que orienta o processo de construção do conhecimento.

Por fim, vale ressaltar que essa postura não deve ocorrer apenas na fase de análise dos dados, mas ao longo de todo o processo de pesquisa, desde a problematização inicial e a conceituação dos construtos, passando pela escolha e construção dos instrumentos de medida, planejamento e acesso a amostras e a interpretação e comunicação dos resultados. Mais do que uma exigência técnica e metodológica, trata-se de um compromisso por parte dos pesquisadores com práticas de pesquisa que reconheçam relações de poder, desafiem normatividades excludentes e fortaleçam uma psicologia mais justa. Nesse sentido, embora modelos como o MIMIC ofereçam oportunidades para identificação dos efeitos das experiências sociais sobre a resposta dos testes e possíveis diferenças entre grupos, o seu uso é baseado em variáveis dicotômicas, o que impõe limites à complexidade interseccional, reforçando a necessidade de abordagens múltiplas e teoricamente orientadas para melhor compreender a complexidade dessas vivências.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2025
  • Aceito
    02 Jul 2025
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