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Da Hipnose à Interpretação: Aspectos da Gênese e Evolução de uma Prática

From Hypnosis to the Interpretation: Aspects of the Genesis and Evolution of a Practice

De la Hipnosis a la Interpretación: Aspectos de la Génesis y Evolución de una Práctica

Resumo

O presente trabalho busca articular aspectos conceituais relativos à evolução da prática psicanalítica freudiana no que tange, fundamentalmente, ao trajeto compreendido entre a utilização da hipnose e o balizamento da interpretação. Em constantes articulações da técnica freudiana com as perspectivas de autores atuais, delimitam-se os alcances e destacam-se as transformações e inflexões cruciais da práxis ao longo do percurso freudiano. Inicia-se tendo por foco os primeiros escritos produzidos por Freud, numa retrospectiva do progresso técnico rumo à consolidação do método interpretativo, discutindo-se a evolução da técnica psicanalítica, seus limites, e a própria eficácia da hipnose e da interpretação enquanto recursos técnicos. O texto fornece ainda outros subsídios, auxiliando na pontuação de questões significativas do arcabouço psicanalítico e contemplando: (1) o motivo pelo qual o psiquismo por tantas vezes mostra-se impenetrável, (2) como a retirada do material recalcado move o afeto e (3) como são delineados os limites da evolução técnica da psicanálise.

Freud; Interpretação Psicanalítica; Metapsicologia; Psicanálise

Abstract

The present paper searches to articulate conceptual aspects of the evolution of the Freudian psychoanalytic practice regarding, fundamentally, the path between the use of hypnosis and the beaconing of interpretation. In constant joints of the Freudian technique with perspectives of current authors, scopes are delimited and transformations and crucial inflections of the praxis throughout the Freudian passage are distinguished. Initially, the text focuses on the first writings produced by Freud, in a retrospect of the technic progress to the consolidation of the interpretative method. The evolution of the psychoanalysis technique, its limits, and the proper effectiveness of the hypnosis and interpretation as a technic resource are discussed. The text still provides important subsidies, assists on the points of significant questions of psychoanalysis structure, contemplating (1) the reason for which the psyche for as many times reveals itself as impenetrable, (2) how the removal of the repressed material moves the affection and (3) how the limits of the technique of psychoanalysis evolution are outlined.

Freud; Psychoanalytic Interpretation; Metapsychology; Psychoanalysis

Resumen

El presente trabajo tiene por objetivo articular aspectos conceptuales relacionados con la evolución de la práctica psicoanalítica freudiana con respecto, fundamentalmente, al camino comprendido entre la utilización de la hipnosis y el balizamiento de la interpretación. En constantes articulaciones de la técnica freudiana con las perspectivas de autores actuales, se delimitan los alcances y se destacan transformaciones e inflexiones cruciales de la praxis a lo largo del recorrido freudiano. El comienzo se concentra en los primeros escritos producidos por Freud, en una retrospectiva de progreso técnico hacia a la consolidación del método interpretativo, examinando la evolución de la técnica psicoanalítica, sus límites, y la propia eficacia de la hipnosis y la interpretación como recursos técnicos. El texto proporciona todavía otros subsidios, auxiliando en la puntuación de cuestiones significativas del esquema psicoanalítico y contemplando (1) el motivo por lo cual el psiquismo por tantas veces se muestra impenetrable, (2) como la retirada del material recalcado mueve el afecto y (3) como se detallan los límites de la evolución técnica del psicoanálisis.

Freud; Interpretación Psicoanalítica; Metapsicología; Psicoanálisis

Concepções iniciais: a pré-história da psicanálise

Ao final do século XIX, com os trabalhos do neurologista francês Jean Martin Charcot relativos à reprodução e eliminação de sintomas por submissão à hipnose, tornou-se plausível o desenvolvimento de uma perspectiva que pensasse a manifestação histérica como fruto de uma causalidade psíquico-funcional: seriam as paralisias histéricas resultantes de representações mentais?

Trazendo a ideia de que a sintomatologia histérica se daria devido à incapacidade associativa e à impossibilidade de oferecer representação e associação para as partes do corpo, no texto Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias motoras, orgânicas e histéricas, Freud (1996a) desenvolveu uma de suas primeiras hipóteses acerca da gênese dos fenômenos histéricos.

Encontrava-se ali a inauguração de um novo campo de conhecimento focado na etiologia e no tratamento dos fenômenos histéricos. O texto supracitado trouxe as primeiras concepções que se tornariam pilares da teoria freudiana. Freud (1996a) já esboçava importantes noções como as: (1) de um corpo simbólico, (2) de um trauma psíquico enquanto entidade de isolamento representacional e (3) de afeto como determinante da (im)possibilidade associativa. Ele pontuou ainda que “a quantidade de afeto que devotamos à primeira associação de um objeto oferece resistência a que ela entre numa nova associação com outro objeto e, por conseguinte, torna a ideia do (primeiro) objeto inacessível à associação” (Freud & Breuer, 1996aFreud, S., & Breuer, J. (1996a). Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras, orgânicas e histéricas. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 1). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1893)., p. 214). Birman (1991)Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará. ressalta:

Foi no campo da experiência intersubjetiva que a metapsicologia se constituiu como um saber teórico que transcende o campo da consciência, como indica a existência do prefixo meta, já que, no contexto da constituição da psicanálise, a psicologia se definia principalmente como um saber da consciência. A metapsicologia se define como uma concepção não consciencialista da psique. O inconsciente é enunciado como sendo um registro que se encontra além da consciência, indicando, pois, a existência, na psicanálise, de um sujeito estruturalmente dividido (Spaltung) (p. 16).

Freud (1996a) já preconizava:

todo evento, toda impressão psíquica é revestida de uma determinada carga de afeto (Affektbetrag) da qual o ego se desfaz, seja por meio de uma reação motora, seja pela atividade psíquica associativa. Se uma pessoa é incapaz de eliminar esse afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a lembrança da impressão passa a ter importância de um trauma e se torna causa de sintomas histéricos permanentes (p. 215).

A representação da experiência traumática se constituiria enquanto entidade que se isola de outras representações, tornando-se assim impedida de adentrar na cadeia associativa. Assim, a proposição inicial situava a não produção associativa como consequência da ligação do afeto à experiência traumática. O trauma, causado por uma experiência de cunho sexual, ficaria ligado à lembrança do acontecimento, sendo o sintoma nada mais que uma forma alucinatória de se reviver o fato ocorrido. Desta forma, o evento traumático passa a ser visto como o responsável pela origem do sintoma.

Em Estudos sobre a histeria, Freud (1996b) já delineava o afeto e o trauma psíquico como fatores constitucionais de uma neurose. Escrevia ele: “nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto – o trauma psíquico” (p. 41).

Para Freud, o trauma psíquico não deve ser entendido como um mero agente deflagrador na instalação do sintoma – que passa a ter uma existência independente. O trauma – ou, mais precisamente, a lembrança do trauma – atua nesse processo como um corpo estranho que permanece em ação, ainda que muito após a sua entrada. Os sintomas desaparecem, sim, com a tradução do afeto em palavras: à medida que se consegue clarificar a lembrança do fato desencadeador, com a descrição mais detalhada possível, despertando o afeto a ele atrelado. Sem o quantum de afeto, a simples lembrança não se torna capaz de propiciar resultados (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895).).

Nesse texto inicial da psicanálise, Freud postulava ser a linguagem uma substituta da ação. Os efeitos da experiência traumática são minimizados (ou mesmo esgotados), em decorrência da recordação – via sugestão hipnótica ou não – e do poder constituído pela palavra e pelo afeto enquanto função de desgaste e reintegração associativa, produtora da ab-reação afetiva.

O tratamento ocorria através de ordens e orientações sob hipnose que objetivavam dissipar a sintomatologia apresentada. Nos primeiros momentos, as buscas iniciais diziam respeito às relações de causa e efeito – entre o fato verdade (produtor do trauma) e o fenômeno patológico. Em muitas das vezes, o nexo causal aparecia com nitidez. Em outras, a ligação mostrava-se nebulosa, com indícios de uma sofisticada construção de extrema simbolização.

Freud sustentava que enquanto os relatos das experiências traumáticas fossem incompletos, eles teriam sua eficácia reduzida, pois os resíduos dos afetos penosos iriam sempre ter condições de produzir novos quadros sintomatológicos. Nos Esboços para a Comunicação Preliminar (III), Freud e Breuer (1996c)Freud, S., & Breuer, J. (1996c). Esboços para a “Comunicação Preliminar”: Nota “III”. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 1). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1940). afirmam que “[...] a terapia consiste em remover os resultados das ideias que não sofreram ab-reação, seja revivendo o trauma num estado de sonambulismo, e então ab-reagindo e corrigindo-o, seja trazendo para o plano da consciência moral, sob hipnose relativamente superficial” (p. 193). Segundo Birman (1991)Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará.:

Um dos maiores efeitos teóricos da crítica freudiana à tradição consciencialista da psique foi colocar como objeto possível de pesquisa a problemática que enunciava como indagações cruciais o advento do registro do corpo a partir do registro do organismo e a emergência do sujeito no corpo [...] Essa problemática do discurso freudiano possibilitou a constituição inaugural da psicanálise como um saber da interpretação e revelou a posteriori os seus impasses, caso a psicanálise permanecesse presa a estes limites epistemológicos (p. 18).

O trauma apresenta-se como uma representação carregada em excesso, mas que, ainda assim, não perde sua característica de corpo estranho. Em decorrência da impossibilidade associativa com outras representações, o excesso de excitação psíquica – que acompanha uma representação desprazerosa para a consciência – encontra no corpo (principalmente numa perspectiva histérica) uma possibilidade de expressão desprovida de conexões e de lógica.

Em suma, era por intermédio de uma atividade laborativa intensa e detalhada que Freud checava suas hipóteses, apurando a etiologia de cada ideia patogênica. Trabalhava com cada sintoma e imagem até conseguir derivar sua excitação e esvaziar sua carga afetiva. A suposição era a de que, sob estado hipnótico, o paciente ampliava o campo da consciência, unindo elementos que emergissem de suas recordações, expressando, concomitantemente, os mais autênticos afetos a elas relacionados.

Emmy, Elizabeth e Katharina: observações aos casos clínicos publicados em 1895

Em se tratando de uma reconstrução dos caminhos percorridos, o tratamento da Sra. Emmy von N. (de aproximadamente 40 anos de idade) foi revolucionário sob o ponto de vista técnico. Iniciado em 1º de maio de 1889 – nove anos após o início dos trabalhos entre Breuer e Anna O. –, a paciente apresentava gagueira, afasia, fobias, cãibras, movimentos convulsivos, dedos entrelaçados, tiques nervosos, sons inarticulados, voz baixa, expressão facial penosa e um grau inusitado de instrução e inteligência. Descreve Freud:

Era histérica e podia ser posta com a maior facilidade num estado de sonambulismo; ao tomar conhecimento disso, resolvi fazer uso da técnica de investigação sob hipnose, de Breuer, que eu viera a conhecer pelo relato que ele me fizera do bem-sucedido tratamento (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 82).

Como aponta Uchitel (1997)Uchitel, M. (1997). Além dos limites da interpretação: Indagações sobre a técnica psicanalítica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., além de ser o primeiro relato de uso do método catártico por Freud, a peculiaridade do caso centra-se em reflexões tanto da ordem dos limites da sugestão quanto das modificações referentes à técnica até então aplicada. Tais movimentos precipitam e conduzem a posteriores desenvolvimentos teórico-metodológicos acerca da associação livre e da transferência.

A valia das observações presentes nesse caso mostra-se na transformação de uma terapia basicamente sintomática rumo a uma concepção que vislumbra o fator causal como fundamento. A recordação já não basta mais. Ela não é a garantia da almejada mudança permanente. Mais que recordar, faz-se necessário: (1) reconstituir completamente as experiências traumáticas, (2) investigar a etiologia sintomatológica em partes individuais e (3) estabelecer as mais intrínsecas relações entre cada um dos sintomas e suas significações.

Na discussão acerca do caso da Sra. Emmy von N., Freud (1996b) explica que em dado momento do tratamento, em consonância a uma solicitação emanada pela paciente, ele passa então a evitar interrupções às suas verbalizações. Ainda surpreso com essa impactante “mudança forçada” em sua prática, Freud consegue atentar-se para o fato de que aquele “discurso livre” se encontra permeado de significados e recordações inacessíveis ao formato investigativo utilizado até então. Peter Gay (1988) lembra:

quando Freud a interrogava com insistência, ela se aborrecia, “muito rispidamente”, e pedia que ele parasse de “lhe perguntar de onde veio isso ou aquilo, mas que a deixasse contar o que ela tinha a dizer”. Ele já havia reconhecido que, por mais tediosas e repetitivas que fossem suas narrativas, ele não ganhava nada com suas interrupções, mas que tinha que ouvir as histórias dela até o fim, com todos os seus minuciosos detalhes. Emmy von N. também lhe ensinou algo mais: “O tratamento pela hipnose é um procedimento inútil e sem sentido”. Foi um momento decisivo; levou-o “a criar a terapia psicanalítica, mais sensata” (p. 80).

E destaca ainda:

o tratamento, empreendido por Freud, de Emmy von N. e dos outros, certamente era um trabalho primitivo, do ponto de vista da técnica psicanalítica plenamente desenvolvida. Mas a importância desses analisandos para a história da psicanálise reside no fato de terem sido capazes de demonstrar a Freud alguns de seus principais rudimentos (1988, p. 80).

Com a atenção cada vez menos exclusiva ao sintoma e a escuta voltada agora para o fator causal, o método catártico ia se mostrando insuficiente diante das demandas apresentadas. Assim, denominado por Freud como Análise Psicológica, todo o processo passou a ser pensado tendo em vista a operação de sinais decifrados e a catarse do trauma.

Influenciado por Hippolyte Bernheim sobre a capacidade de remeter pacientes a recordações presentes apenas durante o estado hipnótico, e desconfiado acerca dos poderes e alcances da própria hipnose enquanto método terapêutico, notando nela dificuldades tanto em relação a seus pacientes quanto a si próprio enquanto hipnotizador, Freud passou a pensar na sugestão e sua aplicação ao estado de vigília.

Os relatos dos casos produzidos por Freud não se apresentam na sequência nem nas datas em que os tratamentos foram realizados. Ainda assim, mesmo frente a essa observação, pode-se apurar que passados três anos do tratamento empreendido a Emmy von N., Freud atende Elizabeth von R., uma jovem inteligente, e mentalmente normal, de 24 anos de idade.

O caso traz duas importantes peculiaridades: ser o primeiro caso que Freud afirma ter concluído e, principalmente, ser a inauguração gradual da associação livre enquanto consagrado método psicanalítico em lugar da hipnose e da sugestão.

Freud explica que sua prática consistiria na remoção do material psíquico patogênico, e que o trabalho se baseava, naturalmente, na expectativa de que seria possível identificar um conjunto perfeitamente adequado de determinantes para os fatos em questão. Assim, inicialmente, seriam cuidadosamente anotados os pontos dos relatos nos quais alguma sequência de pensamentos permanecia obscura ou em que algum elo da cadeia causal parecia estar incompleto. Posteriormente, através da hipnose ou de alguma técnica similar, penetrar-se-ia em camadas ainda mais profundas das lembranças (Freud & Breuer, 11996b). Gay (1988) ressalta:

a primeira vista para um diagnóstico da neurose de Elisabeth von R. foi sua excitação erótica, quando ele pressionou ou apertou-lhe as coxas durante um exame físico. “O rosto dela”, observou Freud, “assumiu uma expressão singular, mais de prazer do que de dor; ela gritou – um pouco como se fosse, não pude deixar de pensar, uma cócega voluptuosa –, seu rosto afogueou, atirou a cabeça para trás, fechou os olhos, o tronco pendeu para trás”. Ela estava experimentando o prazer sexual que negava a si mesma em sua vida consciente (1988, p. 81).

Até o estabelecimento da associação livre como método, em muitas vezes Freud supôs que os pacientes se silenciavam, interrompendo o próprio discurso, em decorrência de uma escassez associativa ou mesmo de um dia pouco fértil. Ele logo percebeu, no entanto, que as lembranças se mantinham vivas: elas na verdade estavam impedidas de se apresentar no nível da consciência, uma vez que uma força – a qual denominaria “resistência” – se opunha às comunicações realizadas pelos pacientes.

E foi objetivando que tais resistências sucumbissem – em virtude do desvio da atenção consciente – que a associação livre gradativamente passou a figurar num lugar até então ocupado pela hipnose e pela sugestão. O sintoma passava a ser visto como a expressão do conflito entre uma sentença moral e um desejo erótico. Passa a ser tido como um formato de realização que coloca em ato o que posteriormente deverá ser posto no nível do discurso.

Com a livre associação, a técnica psicanalítica sofria mudanças: “agora, o paciente escolhia, a cada sessão, o tema a ser tratado dentre o que mais lhe preocupava, tomando o que lhe aparecia como mais sensível na superfície do seu inconsciente e realizando então as associações livres” (Birman & Nicéas, 1982Birman, J., & Nicéas, C. A. (1982). Constituição do campo transferencial e o lugar da interpretação psicanalítica: Um estudo sobre o pensamento de Freud. In: J. Birman, & C. A. Nicéas (Orgs.), Transferência e interpretação (pp. 11-59). Rio de Janeiro, RJ: Campus., p. 25).

Na Interpretação dos sonhos, obra tida como parâmetro da técnica psicanalítica, Freud (1999)Freud, S. (1999). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1900). esclareceria:

[os] pacientes assumiam o compromisso de me comunicar todas as ideias ou pensamentos que lhes ocorressem em relação a um assunto específico; entre outras coisas, narravam-me seus sonhos, e assim me ensinaram que o sonho [também] pode ser inserido na cadeia psíquica a ser retrospectivamente rastreada na memória a partir de uma ideia patológica. Faltava então apenas um pequeno passo para se tratar o próprio sonho como um sintoma e aplicar aos sonhos o método de interpretação que fora elaborado para os sintomas (Freud, 1999Freud, S. (1999). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1900)., p. 116).

Na Traumdeutung, Freud (1999)Freud, S. (1999). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1900). preconiza ainda que “‘interpretar’ um sonho implica atribuir a ele um ‘sentido’ – isto é, substituí-lo por algo que se ajuste à cadeia de nossos atos mentais como um elo dotado de validade e importância iguais ao restante” (Freud, 1999Freud, S. (1999). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1900)., p. 112). E assim estabelece: “todo sonho tem um sentido, embora oculto, que os sonhos se destinam a ocupar o lugar de algum outro processo de pensamento, e que para chegar a esse sentido oculto temos apenas de desfazer corretamente a substituição” (Freud, 1900/1996, p. 112). Gay (1988) ressalta ainda:

ouvir, para Freud, tornou-se mais do que uma arte; tornou-se um método, uma via privilegiada para o conhecimento, à qual os pacientes lhe davam acesso [...] foi a conversa, mais que observação, por muito atenta que fosse, que se revelou como a chave para a cura (p. 81).

Com o mesmo sentido, Birman e Nicéas (1982)Birman, J., & Nicéas, C. A. (1982). Constituição do campo transferencial e o lugar da interpretação psicanalítica: Um estudo sobre o pensamento de Freud. In: J. Birman, & C. A. Nicéas (Orgs.), Transferência e interpretação (pp. 11-59). Rio de Janeiro, RJ: Campus. apontam:

a escuta analítica torna-se mais especializada para a apreensão do que ocorre no analisando, e da mesma forma que ao paciente é exigido a submissão à regra psicanalítica fundamental das associações livres, a contrapartida no analista para a realização do trabalho é a regra da atenção flutuante (p. 40).

Celes (2008)Celes, L. A. M. (2008). Crise terapêutica da psicanálise e presença do analista. Revista Percurso, 21(41), 47-54. argumenta que o advento da atenção flutuante se encontra fundamentado sobre a noção de abstinência do analista e tem como finalidade “escutar o que diz a fala do analisando, que é o modo de ouvir capaz de constituir da narrativa do analisando o discurso associativo” (p. 49).

Sendo assim, a associação livre constitui-se como o valioso resultado da combinação entre essas duas importantes noções da práxis psicanalítica que se estabeleceram posteriormente: a atenção flutuante e a abstinência do analista. Celes (2008)Celes, L. A. M. (2008). Crise terapêutica da psicanálise e presença do analista. Revista Percurso, 21(41), 47-54. salienta ainda que a escuta oriunda dessa combinação “retira do analista o empenho de alcançar algo, mesmo que seja uma lembrança” (p. 49).

Mas retornando aos trabalhos apresentados em 1895... Embora seja um relato mais curto, é importante notar que é no caso de Katharina que se encontra, na forma prática, por assim dizer, o que Freud posteriormente denominaria como sendo uma construção em análise. Em dado momento, buscando a solução do enigma apresentado, Freud (1996b) diz à paciente: “Se você não sabe, vou lhe dizer como eu penso que você passou a ter seus ataques. Nessa ocasião, há dois anos, você deve ter visto ou ouvido algo que muito a constrangeu e que teria preferido muitíssimo não ver” (p. 153).

Foi também nesse caso que, partindo da experiência obtida nos tratamentos anteriores, Freud se propôs a realizar uma análise psicológica sem fazer uso da hipnose. Ele então sugere à Katharina que cenas sexuais vistas ou ouvidas estão em sua memória e essas cenas são as responsáveis por seus ataques de angústia. Pressionada pela ideia de que se quisesse encontraria o conteúdo de tais cenas, diante das intervenções de Freud, ela produz um frutífero conteúdo associativo em relação à origem dos sintomas.

O caso de Katharina trouxe à luz que a recordação das experiências dolorosas pode ser plausível em estado de vigília, ou seja, sem o uso da hipnose. Mas a grande contribuição do desenvolvimento desse caso diz respeito à confirmação da ideia de sedução paterna, bem como da existência dos dois tempos do trauma sexual: o acontecimento traumático e o fator auxiliar. No relato, Freud (1996b) explica que:

quando [Katharina] vislumbrou o casal no ato sexual, estabeleceu de imediato uma ligação entre a nova impressão e aqueles dois conjuntos de lembranças, começou a compreendê-los e, ao mesmo tempo, a rechaçá-los. Seguiu-se então um período de elaboração, de “incubação” (p. 156).

O fator repulsivo não teria sido provocado pela visão das duas pessoas, mas pela lembrança que aquela visão havia despertado:

Sei agora o que foi que você pensou ao olhar para dentro daquele quarto: “Agora ele está fazendo com ela o que queria fazer comigo naquela noite e nas outras vezes”. Foi disso que você sentiu repulsa, porque se lembrou da sensação de quando despertou durante a noite e sentiu o corpo dele (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 157).

Assim, a proposta freudiana, figurada através da descoberta do inconsciente, formula que o mal-estar psíquico apresenta uma lógica interna na qual razão e consciência não habitam a verdade. Todo ato psíquico é inicialmente inconsciente, e o caminho percorrido em direção à instância consciente é determinado em razão das resistências encontradas em meio ao percurso.

Trauma ou fantasia? Catarse ou interpretação? Afeto e representação: Questões de metapsicologia freudiana

À época dos Estudos sobre a histeria, o pilar que sustentava a teoria e a terapia da histeria era o do trauma psíquico e seu conteúdo sexual. A teoria do trauma sustentava que o neurótico teria sido vítima de uma sedução sexual real em sua infância, e que esse fato, pelo seu caráter traumático, teria sido recalcado e se transformado em um núcleo patogênico no qual a remoção só seria obtida com a ab-reação e a elaboração psíquica da experiência traumática (Garcia-Roza, 1996Garcia-Roza, L. A. (1996). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Contudo, tendo em vista o ainda não reconhecimento da sexualidade infantil enquanto fundamento basal constante em sua estrutura, a teoria do trauma, conforme inicialmente concebida, trazia, intrínseca a si, uma nuance complicadora que forneceria subsídio ao desdobramento da ação traumática: tornar-se-ia equivocado afirmar que o trauma seria produzido na infância em função de uma sedução sexual exercida por um adulto; pois, se não havia sexualidade infantil, não poderia também haver “sedução sexual” (Garcia-Roza, 1996Garcia-Roza, L. A. (1996). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Desta forma, Freud postula que o efeito traumático é conferido num momento anterior ao atual. Propõe, assim, que a ação traumática deva então ser desdobrada em dois momentos: num primeiro momento, durante a infância, sem que percebesse – e sem que quaisquer efeitos de natureza sexual nela se produzissem –, a criança sofreria uma sedução por parte de um adulto; já num segundo momento, após o surgimento da sexualidade – ocorrido a partir da puberdade –, e sem que necessariamente possua uma natureza de cunho sexual, uma segunda cena evocaria a primeira através de um traço associativo, tornando patogênica a sua lembrança (Garcia-Roza, 1996Garcia-Roza, L. A. (1996). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Enquanto a teoria do trauma permaneceu dominante, não se faziam necessárias quaisquer menções a noções como sexualidade infantil ou fantasias edipianas. Concomitantemente, a teoria do trauma tanto foi causa de grande repercussão sobre o material inicialmente produzido por Freud, como se tornou também um de seus maiores impedimentos no que tange à elaboração teórica, uma vez ser essa teoria do trauma que aponta o acontecimento traumático real como derradeiro causador dos sintomas de um paciente neurótico. Desta forma, “não é o passado que é traumático, mas a lembrança do passado a partir de uma experiência atual” (Garcia-Roza, 1996Garcia-Roza, L. A. (1996). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 94).

Paulatinamente, Freud passava a confiar num método no qual os pacientes poderiam recordar fatos passados – dolorosos ou não – sem a utilização da hipnose. E, mesmo sob dúvida inicial, esses pacientes eram encorajados a remeterem-se verdadeiramente a tais lembranças.

Presente desde o caso Elizabeth em 1892, a noção de resistência toma corpo e robustez e, de camada em camada, Freud vai esmiuçando os conteúdos psíquicos em direção ao trauma. Um trabalho elaborado no qual os traumas auxiliares (secundários) apontam no sentido do trauma “real”.

Esses casos da pré-história psicanalítica deram forma, sobretudo, a uma importante questão: pacientes “sabem” as razões de seu próprio mal-estar. Assim, o que se mantêm apropriado em sua consciência é muito mais um segredo que o anteriormente proposto “corpo estranho”. Como então deve proceder um psicoterapeuta diante de um “sabido” que resiste a ser “sabido de outra forma”?

Era objetivo principal da técnica analítica a minimização da força do recalque – tendo nesse mecanismo o fator motivador da perda das recordações – para possibilitar o acesso às recordações traumáticas, ligando a elas o afeto original e assim transmutando-o ao processo consciente, retirando-lhe consequentemente o caráter ofensivo (Viderman, 1982Viderman, S. (1982). A construção do espaço analítico. São Paulo, SP: Escuta.).

O até então objetivo terapêutico de ampliar o campo mnêmico em prol do acesso à recordação traumática – que possibilitará a descarga afetiva – perde força a partir do advento da resistência.

Gradativamente, o processo de análise psicológica ia perdendo seu teor catártico em relação ao enlace entre afetos e representações. A resistência seria a principal responsável pelo encontro de outro singular recurso, a interpretação.

Com a descoberta da resistência e com o trabalho que dali se deriva, já sem a utilização da hipnose, as análises passam a ser menos ab-reativas e centram-se cada vez mais na busca dos acontecimentos. A proposição de trabalho é a de que lembranças sejam mais enfatizadas que sintomas, trazendo à memória as representações perdidas.

O afeto possui um importante valor. Freud contrapõe os conceitos de afeto e representação, mostrando que a separação entre ambos está na origem do recalque. Cada um deles apresenta diferentes destinos nos processos psíquicos: o afeto é reprimido e a representação é recalcada.

O afeto é reconhecido quando em sua intrínseca conexão a uma representação. Esta, por sua vez, só é capaz de potencializar-se a partir do investimento do afeto. Assim, a representação mostra-se mais responsável pelo afeto que o inverso: o afeto em busca de uma representação que o expresse de maneira completa. Apenas quando a evocação da lembrança remete a revivescência do afeto que estava ligado a ela na origem é que a rememoração encontra a sua eficácia terapêutica.

À guisa de esclarecimento, vale aqui recorrer a Laplanche e Pontalis (2001)Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes., quando, acerca do afeto, afirmam ser:

[um] termo que a psicanálise foi buscar na terminologia psicológica alemã e que exprime qualquer estado afetivo, penoso ou desagradável, vago ou qualificado, quer se apresente sob a forma de uma descarga maciça, quer como tonalidade geral. Toda pulsão se exprime nos dois registros, do afeto e da representação. O afeto é a expressão qualitativa da quantidade de energia pulsional e das suas variações (p. 9).

Já para Representação, pontuam ser um “termo clássico em filosofia e em psicologia para designar ‘aquilo que se representa, o que forma o conteúdo concreto de um ato de pensamento’ e ‘em especial a reprodução de uma percepção anterior’” (Laplanche & Pontalis, 2001Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 448).

Das discussões oriundas da relação entre representação e afeto, Birman (1991)Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará. contribui postulando que “o afeto se refere a uma representação que está ausente do enunciado do discurso porque foi substituída por outra, fazendo com que o discurso se tornasse absurdo” (Birman, 1991Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará., p. 27).

Contudo, quando se refere a afeto, pressupõe-se que alçado nele há sempre uma representação. Entretanto, pode-se também pensar que não existam representações desprovidas de afeto, mas que exista, sim, uma enormidade de afetos e excitações que não demonstram contar com as representações, e que em muitas vezes o afeto dá-se em estado bruto, ou seja, sem que nenhuma representação esteja ligada a ele.

Birman (1991)Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará. explica que, em relação ao deslocamento dinâmico das representações, de nada adianta a utilização de argumentos lógicos para provar ao analisando a falsidade de sua proposição – a questão não é situada no seu devido lugar, e, além disso, não possibilita ao paciente a transformação da sua própria convicção: “Para tal, faz-se necessário reconstituir as condições subjetivas que conduziram o sujeito a substituir uma representação por outra, e isso exige que se percorra a cadeia associativa dessas substituições” (Birman, 1991Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará., p. 28).

A presença de conflitos de “afetos antagônicos” (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 142), como condutores responsáveis a uma histeria, fica evidenciada no caso de Miss Lucy R. (1892). Em seu desenvolvimento, Freud & Breuer (1996b)Freud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895). pontua que “antes de a histeria poder ser adquirida pela primeira vez, uma condição essencial precisa ser preenchida: uma representação precisa ser intencionalmente recalcada da consciência e excluída das modificações associativas” (p. 143). Em sua opinião:

esse recalcamento intencional constitui também a base para a conversão total ou parcial da soma de excitação. A soma de excitação, estando isolada da associação psíquica, encontra ainda com mais facilidade seu caminho pela trilha errada para a inervação somática. A base do próprio recalcamento só pode ser uma sensação de desprazer, uma incompatibilidade entre a representação isolada a ser recalcada e a massa dominante de representações que constituem o ego (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 143).

Assim, continua Freud (1996b), “a representação recalcada vinga-se, contudo, tornando-se patogênica” (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 143). Na discussão acerca do caso ele reitera que “para a aquisição da histeria, vem a ser um sine qua non o desenvolvimento de uma incompatibilidade entre o ego e alguma ideia a ele apresentada” (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 148).

O momento traumático real é aquele no qual ocorre o repúdio, por parte do ego, a uma ideia a ele incompatível. Mas esse referido repúdio não tem o poder de fazer com que a ideia seja plenamente aniquilada. A ideia seria, sim, recalcada para o inconsciente.

Na histeria, conteúdos incompatíveis são então expulsos da consciência, e a conversão somática torna-se a expressão do principal formato defensivo. Contudo, paradoxalmente, através da conversão, o ego resguarda uma reminiscência física e sofre em consequência do afeto que permaneceu atrelado àquela reminiscência.

Assim, o mesmo mecanismo que produz a histeria representa uma atitude defensiva em atenção à instância egoica, e, concomitantemente, um ato de covardia moral; já que, em virtude do processo de recalque, o quadro passa a não mais ser suscetível de modificação, uma vez não mais existir a incompatibilidade que teria exigido a eliminação do afeto (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895).).

Freud (1996b) explica que passa a existir, logo após a ocorrência desse processo, um núcleo voltado para a formação de um grupo psíquico separado do ego, onde ali seria reunido todo o material incompatível: “a divisão da consciência nesses casos de histeria adquirida é, portanto, deliberada e intencional” (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 149). Esse seria, entretanto, um processo oriundo de uma vontade parcial do indivíduo, diferentemente do planejado, já que “[o que] ele desejava era eliminar uma ideia, como se jamais tivesse surgido, mas tudo o que consegue fazer é isolá-la psiquicamente” (Freud & Breuer, 1996bFreud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895)., p. 149).

O evento traumático é tido então em sua intrínseca relação com a (im)possibilidade reativa, bem como com a questão da descarga afetiva. Sendo assim – mais que a intensidade de um afeto –, vê-se que tanto o tipo como a ausência de reposta são os principais responsáveis pelo momento onde o trauma se edifica. E, assim, imersos em recalcamentos, afeto e representação acabam sendo mobilizados pela intensidade que a fala produz.

Em Além dos Limites da Interpretação, Uchitel (1997)Uchitel, M. (1997). Além dos limites da interpretação: Indagações sobre a técnica psicanalítica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. reconhece que não basta apenas que o conteúdo seja relembrado e expresso. O objetivo psicoterapêutico ocorre quando a verbalização (rica em carga afetiva), referente à experiência traumática, substitui uma ação que deveria ter ocorrido naquele momento pontual. Carregadas de sentido, as palavras precisam funcionar como veículos de descarga afetiva.

Nessa concepção, a interpretação apresenta sua propriedade psicoterapêutica quando reúne afeto e representação, outrora separados por ocasião do recalque. Vê-se, desta forma, que tanto a formação quanto a dissolução sintomática referem-se à mediação entre a representação (recalcada) e o quantum de afeto.

Portanto, o sintoma surge a partir de um hiato nos processos mentais e nada mais é que o substituto de algo que deveria ter acontecido. Os processos mentais foram perturbados e obrigados a permanecer inconscientes. Fazendo excluir o sentido da instância consciente, o sintoma mostra-se enquanto enigma.

Figueiredo (2011)Figueiredo, L. C. (2011). A questão dos limites e a situação analisante na clínica contemporânea. In: C. A. Garcia, & M. R. Cardoso (Orgs.), Limites da clínica, clínica dos limites (pp. 185-307). Rio de Janeiro, RJ: Cia de Freud. visualiza uma mudança processual na qual as resistências inconscientes, outrora transpostas ou evitadas, agora são evocadas como protagonistas do processo terapêutico: “na verdade, [o processo agora] deixa-se conduzir pelas próprias resistências” (p. 187).

Na medida em que as resistências surgem como fruto do efeito defensivo, sua atuação passa a ser vista não apenas em direção ao então evento traumático, mas agora num âmbito mais complexo e dinâmico, onde se incluem fatores da vida cotidiana, como as fantasias e os complexos.

Considerações finais

Foram dois os principais enfoques abordados: (1) o trajeto de passagem do método catártico ao método interpretativo, passagem essa fundamentada na mudança de concepção freudiana a respeito da causação da histeria, do privilégio do trauma, do afeto e de sua representação; e (2) o trajeto entre o método pré-analítico – caracterizado pela catarse – e o método analítico propriamente dito – com ênfase na interpretação – que pode ser tido também em outras relações, mas, principalmente, na articulação que se deu entre a teoria do trauma e a teoria da fantasia.

Com isso, em síntese, pode-se constatar (1) o trânsito de uma teoria de estados hipnoides a uma teoria da defesa com o enfoque no trabalho das resistências; (2) o direcionamento que vai tanto da busca de recordações passadas à construção de interpretações, quanto do resgate de um acontecimento real à busca de sentidos para tal; (3) a passagem da hipnose e da sugestão para o método da associação livre; e (4) a metáfora de “corpo estranho” gradualmente sendo substituída pelas ideias de conflito e do trabalho de elaboração psíquica.

Conforme apontam Birman e Nicéas (1982)Birman, J., & Nicéas, C. A. (1982). Constituição do campo transferencial e o lugar da interpretação psicanalítica: Um estudo sobre o pensamento de Freud. In: J. Birman, & C. A. Nicéas (Orgs.), Transferência e interpretação (pp. 11-59). Rio de Janeiro, RJ: Campus.:

Uma das genialidades de Freud é ter tido a coragem e o mérito de transformar os obstáculos que encontrava em sua prática em questões a serem resolvidas. Assim, na medida em que grande número de pacientes não era hipnotizável e mesmo se opunha à hipnose, ao invés disso ser considerado como um sinal de impotência e de fracasso para seu método de investigação, transformava-se num problema a ser solucionado: por que tais pacientes não são hipnotizáveis, o que é que neles impossibilita a hipnose? A sua validade é questionada até o limite da utilização deste procedimento técnico, o que levou à descoberta da resistência, colocada a partir de então como grande obstáculo a ser superado na psicoterapia da histeria (p. 19).

Portanto, a impossibilidade de submeter a totalidade dos pacientes à hipnose, a frequente reaparição dos sintomas e a descrença na veracidade do acontecimento traumático constituíram-se fatores cruciais que remeteram o método catártico às sucessivas modificações que posteriormente surgiriam.

Referências

  • Birman, J. (1991). Freud e a interpretação psicanalítica Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará.
  • Birman, J., & Nicéas, C. A. (1982). Constituição do campo transferencial e o lugar da interpretação psicanalítica: Um estudo sobre o pensamento de Freud. In: J. Birman, & C. A. Nicéas (Orgs.), Transferência e interpretação (pp. 11-59). Rio de Janeiro, RJ: Campus.
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  • Freud, S., & Breuer, J. (1996b). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Volume 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1895).
  • Freud, S., & Breuer, J. (1996c). Esboços para a “Comunicação Preliminar”: Nota “III”. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Volume 1). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1940).
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  • Viderman, S. (1982). A construção do espaço analítico São Paulo, SP: Escuta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2017
  • Aceito
    26 Jun 2018
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