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Solidão e contemporaneidade no contexto das classes trabalhadoras

Resumos

A solidão é o tema que conduz este artigo, considerada sintoma cultural de um cenário de desvalorização do espaço público e de crescimento da preocupação com a interioridade e a personalidade. Foram analisadas as peculiaridades da solidão nas classes trabalhadoras e os fatores envolvidos em sua constituição. Considerou-se a solidão mais especificamente no universo das classes menos favorecidas, levando em conta as fortes transformações ocorridas no mundo do trabalho. Neste sentido, tanto para a esfera do trabalho de uma forma geral, quanto para os desfavorecidos de uma maneira mais dramática, o desemprego, subemprego e a dificuldade de solidificar a identidade pelo trabalho parecem estar intensificando o sentimento de solidão.

Solidão; Classes trabalhadoras; Transformações no mundo do trabalho


Solitude, considered as a symptom of a scenery in which the public space loses valor and grows the concerns about the interiority and personality, is the subject that directs this article. There were analyzed the singularities of solitude especially in the worker classes and the factors involved in its constitution. The debate considers specifically solitude in the universe of the lower wealth Brazilians, knowing that in the last years occurred lots of changes in the work culture. To the workers in general and more dramatically to the lower wealth: unemployment, informal jobs and the difficulty to solidify the identity by the work seem to intensify the feelings of solitude.

Solitude; Worker classes; Changes in the work culture


ARTIGOS

Solidão e contemporaneidade no contexto das classes trabalhadoras1 1 Trabalho orientado por Eniel Oliveira

Julia Coutinho Costa Lima* * Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.

Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Julia Coutinho Costa Lima Rua Frei Jaboatão, 280, bl L, apt. 403, Torre Recife-PE TE.: +55-81 3227-0235/ Ce.: +55-81 9946-7143 E-mail: juliacoutinho@bol.com.br

RESUMO

A solidão é o tema que conduz este artigo, considerada sintoma cultural de um cenário de desvalorização do espaço público e de crescimento da preocupação com a interioridade e a personalidade. Foram analisadas as peculiaridades da solidão nas classes trabalhadoras e os fatores envolvidos em sua constituição. Considerou-se a solidão mais especificamente no universo das classes menos favorecidas, levando em conta as fortes transformações ocorridas no mundo do trabalho. Neste sentido, tanto para a esfera do trabalho de uma forma geral, quanto para os desfavorecidos de uma maneira mais dramática, o desemprego, subemprego e a dificuldade de solidificar a identidade pelo trabalho parecem estar intensificando o sentimento de solidão.

Palavras-chave: Solidão, Classes trabalhadoras, Transformações no mundo do trabalho.

ABSTRACT

Solitude, considered as a symptom of a scenery in which the public space loses valor and grows the concerns about the interiority and personality, is the subject that directs this article. There were analyzed the singularities of solitude especially in the worker classes and the factors involved in its constitution. The debate considers specifically solitude in the universe of the lower wealth Brazilians, knowing that in the last years occurred lots of changes in the work culture. To the workers in general and more dramatically to the lower wealth: unemployment, informal jobs and the difficulty to solidify the identity by the work seem to intensify the feelings of solitude.

Keywords: Solitude, Worker classes, Changes in the work culture.

O objetivo deste artigo foi o de analisar as peculiaridades das vivências de solidão nas classes trabalhadoras e os fatores envolvidos na sua constituição. Entendendo a solidão como sintoma cultural contemporâneo, que reflete um cenário de fragmentação e desvalorização do espaço público por um lado, e, por outro, de crescimento da preocupação com a interioridade e a personalidade.

foi dado um recorte na temática, enfocando, mais especificamente o universo das classes menos favorecidas, que, na continuidade de um processo histórico, possuem como instâncias privilegiadas de agenciamento das identidades psicológicas, o trabalho e a questão de ser bom trabalhador.

A partir deste estudo teórico, que se fundamenta numa concepção de sujeito como uma rede de crenças e desejos, que constrói significações pessoais a partir de auto-narrativas, foi abordada a solidão em dois campos férteis para sua manifestação: o primeiro está relacionado ao desenvolvimento do individualismo e o segundo à esfera do trabalho e as mudanças vindas a partir do modelo de organização ‘flexível’.

O objeto de estudo deste artigo, a solidão, não está sendo entendido como uma vivência inerente ou existencial humana, mas um estado que se percebe ou descrimina a partir de fatores históricos e sociais, uma realidade lingüística que serve como modelo de identidade para os sujeitos, para a construção de significação pessoal, que os faz se descreverem e sofrerem como ‘solitários’. A problemática da solidão será aqui tomada como uma construção historicamente datada, que a determina como um dos grandes problemas subjetivos contemporâneos e como fonte constante de mal-estar entre indivíduos que buscam assistência em clínicas de saúde mental.

Solidão Enquanto Sintoma Cultural

O solo para a aparição do sentimento de solidão – no seu sentido estrito – somente existiu quando se pôde falar de um “eu que está entre outros eus”, quando se pôde opor o eu à esfera coletiva. O conceito de solidão – e portanto o próprio sentimento – tem uma raiz paralela ao conceito de eu, ao conceito moderno de indivíduo como um ser autônomo e diferente dos demais. A raiz destes conceitos se situa no momento em que a ‘identidade-eu’ das pessoas passou a ser mais valorizada do que a ‘identidade-nós’, com uma inversão na ‘balança nós-eu’ que constitui as identidades (Elias, N., 1994). A solidão estaria, assim, relacionada ao surgimento das sociedades individualistas, nas quais o indivíduo se torna o valor supremo.

Seria possível, então, pensar que as vivências atuais da solidão que possuem uma carga negativa de sofrimento, envolveriam a noção de que as relações com os “outros eus”, de que o compartilhamento de experiências é algo positivo, esperado e valorizado. No entanto, muitas das tentativas de explicação da emergência da solidão como mal-estar contemporâneo, tomam-na como um sintoma cultural que se associa ao desmoronamento do espaço público e a uma crescente valorização da preocupação com a ‘interioridade’ e a personalidade – decorrentes da evolução da sociedade individualista. Os sujeitos que sofrem e se queixam da solidão estariam, então, impreterivelmente inseridos nesta cultura individualista, cultuando suas privacidades, personalidades, desinvestindo a vida pública, as éticas coletivas e, ao mesmo tempo, vivendo os infortúnios da “falta” deste espaço coletivo, já que este permite o reconhecimento de si. A desarticulação das vivências neste espaço público, espaço de iguais, parece criar, também, dificuldades na tessitura das auto-narrativas, uma vez que elas têm origem relacional e discursiva.

Um percurso que pode vir a esclarecer este aparente paradoxo quanto às configurações da solidão como sintoma cultural é o acompanhamento das transformações do individualismo na cultura ocidental e suas relações com os significados associados à solidão.

A passagem de um tipo de sociedade que privilegia a ‘identidade-nós’, mesmo com a experiência do indivíduo fora do mundo, para uma outra que privilegia a ‘identidade-eu’, ou seja, a experiência do indivíduo no mundo, foi uma marca do Renascimento associado ao protestantismo. A doutrina protestante inverteu a lógica do ascetismo cristão, da culpabilidade, para a lógica da ética salvacionista pelo trabalho, o esforço pessoal e o livre arbítrio. Faz-se importante considerar o protestantismo, pois, pode-se dizer que a partir daí o valor do trabalho para a formação de identidades foi fortemente intensificado. Somente o trabalho trazia salvação e valorizava os homens à vista de Deus, portanto, esse trabalho foi sendo relacionado também com disciplina e adiamento das satisfações. Ou seja, a importância do protestantismo se dá porque pela primeira vez o trabalho vai ser associado a uma ética; é o que Sennett (1999) aborda, comentando a obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber:

“O protestante do século dezessete buscava apresentar prova de seu valor à vista de Deus disciplinando-se, mas, ao contrário do penitente católico num mosteiro, mostrava que era digno com o seu trabalho, negando-se o presente, acumulando pequenos sinais de virtude pelo sacrifício diário. Essa autonegação tornou-se então o ‘ascetismo leigo’ da prática capitalista do século dezoito, com sua ênfase mais em poupar que em gastar, sua ‘rotinização’ da atividade do dia-a-dia, seu medo do prazer” (1999: 123).

A partir de então, e cada vez mais, as pessoas puderam ascender de suas comunidades tradicionais para outras posições sociais partindo de um progresso e esforço individual e não mais relacionado com o grupo de parentesco ou comunidade de que se faz parte. Anteriormente as pessoas se constituíam pelo seu pertencimento a determinados grupos (a partir do nascimento ou desde certo momento da vida). O pertencimento tinha uma força tal que a ‘identidade-eu’ era permanentemente associada à ‘identidade-nós’. Esta última foi passando desde a Idade Média na Europa e mais fortemente no Renascimento com o protestantismo, a ser desvalorizada e obscurecida.

A mudança de uma organização holista para uma individualista vai apontar para uma mudança significativa também nas matrizes de identificação. Se antes a vinculação e os laços sociais formavam as subjetividades, como os sujeitos teriam que fazer agora para se significarem, construir suas identidades? Este papel passa a ser desempenhado pela experiência da intimidade. As pessoas começam a acreditar que cada um é autêntico único. Uma idéia decorrente é a de que o espaço em que o indivíduo é mais autêntico é na sua intimidade, no seu espaço de privacidade, não invadido pelos comportamentos e ações da vida social. A intimidade, autenticidade e o segredo vão ser, neste momento, a base da constituição dos novos indivíduos.

Assim, surge o ideal de se aprender a viver só no meio da multidão e o exercício da privacidade é entendido como a verdadeira liberdade. O que se percebe é uma forte ênfase na oposição entre o íntimo e o mundo. Soares Neto (1999) aponta este novo sentido de intimidade como um dos vetores da vivência angustiada da solidão contemporânea.

Desta oposição entre o íntimo e o mundo, entre privado e público destaca-se que era ainda uma oposição necessária para definir os dois termos. Uma oposição onde cada esfera tinha seu lugar. Precisava-se até da privacidade e da intimidade para contrapor o espaço público, a vida social e o trabalho.

Com a Revolução Francesa, quando se instauraram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, algumas mudanças se processaram para regular as subjetividades que de repente estavam postas sob estes ideais. É neste espaço que pôde-se desenvolver o ideal de vida familiar, tão bem cristalizado por Rousseau que passa a ser eixo do individualismo sentimental.

Como a constituição da família – agora fundada na liberdade de escolha sentimental dos parceiros, na reprodução e educação dos filhos sob a base do amor e na união sexo/amor - se torna um ideal a ser perseguido, os solteiros vão sendo excluídos do “mundo dos felizes”, vão sendo tidos como desviantes. A solidão como negação da família vai tendo, cada vez mais, a conotação e a carga de algo desaprovável. A família como eixo da vida privada e condição para o contrato social, investe num espaço de sociabilidade restrita. A garantia da manutenção da preocupação e do investimento nos ‘outros’/ coletividade é, agora, dada pela família.

A exaltação da vida privada e da família refletia também e por oposição, a percepção burguesa da sociedade como algo impessoal e alheio. A família viria a ser o último refúgio para compensar as ‘amarguras’ da vida pública. Com a revolução industrial e a, cada vez maior, alienação do homem frente ao seu trabalho, perde-se a crença no seu papel de produtor ativo na sociedade, e ao mesmo tempo, assujeita-se a uma ordem social vista como externa e impessoal. Parece, então, que se ampliam as fendas entre a “casa” e a “rua”, que vão ser as bases para a construção de significações pessoais, radicalizando a distinção entre a constituição de identidade pelo trabalho e identidade pela família. Oferecendo o solo para a aparição, posteriormente, da diferença entre a construção da identidade centrada na questão de ser trabalhador, ser bom trabalhador e a construção fundada no modelo de heterosexualidade, de ter uma família e das questões afetivas.

Neste caminho, o movimento de evolução do individualismo chega a configuração de uma sociedade intimista. O espaço público vai perdendo o seu valor e fazendo menos parte da vida dos indivíduos é o que Sennett (1989) abordou como erosão da vida pública.

Nesta cultura, despojada da crença no público e governada pelo sentimento intimista, as relações sociais vão mobilizar o narcisismo como um modo de organização do indivíduo neste contexto. O narcisismo seria fruto do resultado combinado do secularismo e do capitalismo na psiquê. Essa cultura narcísica traz a tona a impossibilidade de sentir e a experiência do vazio não como sintomas psicopatológicos, mas como vivências amplamente difundidas. Como um ápice do individualismo, o narcisista não consegue sentir porque não tem referentes, não tem contato com um outro diferente, somente procura sentido em sua interioridade e acaba por encontrar a ‘experiência do vazio’. Toda expressão torna-se dependente do sentimento autêntico, mas sempre haverá o problema de não conseguir cristalizar o que há de autêntico nos sentimentos.

A insatisfação constante perturba esse indivíduo, é como se ele dissesse: “nada é o bastante para que eu possa sentir”. O eu narcísico é alheio e indiferente aos outros, não há possibilidade de solidariedade social. O que se percebe nessa cultura do narcisismo é uma aversão à impessoalidade, com uma ênfase na autenticidade dos sentimentos. Nesse cenário já se pode perceber como narcisismo e solidão então entrelaçados. Com essa perda dos referentes do ‘outro’, do ‘diferente’, “cava-se” um poço sem fundo de que a solidão angustiada vai fazer parte.

Paralelo a todo este desenvolvimento da sociedade intimista, que desemboca na cultura do narcisismo, uma outra forma de organização teve papel substancial na formação das subjetividades e dos modos de constituição dos indivíduos contemporâneos – o que remete às vivências da solidão. Trata-se da ‘sociedade disciplinar’ que veio a discussão a partir de Michel Foucault (1990) e seu enfoque da questão do poder como prática social nas sociedades modernas.

O foco de análise de Foucault (op.cit.) é o poder não como exercício do Estado, mas como uma prática que a ele se articula e que participa, inclusive, de sua sustentação. Seria o poder ao nível dos mecanismos mais regionais e concretos, formando uma rede de poderes, que se expressam através de técnicas de dominação, as quais visam, sobretudo, um controle detalhado do corpo, dos gestos, atitudes, hábitos, discursos etc.

Outra especificidade da análise genealógica de Foucault está no fato de distinguir o poder como não unicamente repressivo, não associado a castigo, punição. Assim, se refere a um lado do poder, que seria sua face transformadora e criadora de realidade, de verdades. É justamente por essa face que as técnicas disciplinares têm como foco privilegiado o corpo humano, com o intuito de adestrá-lo ou aprimorá-lo. O que se torna de interesse central é a possibilidade de controlar a vida dos homens, no sentido de maximizar sua utilidade econômica e minimizar a sua força política. Esta visão meramente instrumental do corpo no limite é opressora. Assim, a separação entre o pensar o trabalho e executa-lo é uma forma de alienação para a maioria dos trabalhadores. Portanto, a análise aponta que a dominação capitalista não conseguiria se manter somente pelas técnicas repressivas, ela precisava criar espaço, tempo, sujeito, saberes e verdades adequados para si.

Esse tipo específico de poder, que envolve relações e práticas dentro de uma técnica, um dispositivo, incidindo sobre os indivíduos e seus corpos, foi o que se chamou de disciplina ou poder disciplinar.

Nos modelos tradicionais de organização produtiva do capitalismo essa lógica do regime disciplinar tem uma ampla penetração. Seja na criação e estabelecimento de atitudes e destrezas necessárias para cada indivíduo trabalhador, o ‘saber fazer’ e o ‘saber-ser’ (comportamento correto) da mão de obra, em suas qualificações e mesmo no arranjo de quando e onde ser criativo; seja no estabelecimento de estratégias de controle do trabalho e da produção, muitas vezes de modo coercitivo.

Também poderia se dizer, que a lógica disciplinar tende a tornar sem objetivo ou sem prazer qualquer produção no âmbito do trabalho, até porque se excluiu do trabalhador a legibilidade de seu trabalho. Esvaziam-se, assim, aos poucos, as possibilidades de atribuir sentidos à experiência do trabalho. Esse ‘esvaziamento’ teria um peso maior para as classes desfavorecidas, cuja única participação pública é como massa, onde se é assujeitado, despersonalizado.

A relação entre modo de organização disciplinar e modo de organização narcísico/intimista não se configura como estática ou em separado, muito pelo contrário, os dois regimes juntos estão constantemente influenciando um determinado movimento ou prática social. Participam, ambos, do processo de ascensão e declínio da família como eixo privilegiado de estruturação social.

O seu processo de ascensão, configurado no auge da sociedade intimista foi marcado pelo isolamento e ênfase na família nuclear. Retomando agora a idéia de que essa família nuclear seria o centro da vida privada e representaria o refúgio afetivo de uma vida pública desgastante e fria. reafirma-se que esta supervalorização da família reflete o auto status da privacidade em detrimento à vida do trabalho. No entanto, tomando o ponto de vista de Cristopher Lasch (1983; 1991) é possível perceber que quando se institui o poder à família, de ser refúgio das amarguras do mundo público, já se estabelece a impossibilidade dessa condição pois:

“quando as relações pessoais são conduzidas sem outro objetivo além da sobrevivência psíquica, o ‘privatismo’ deixa de proporcionar o refúgio de um mundo sem coração. Pelo contrário, a vida privada assume as próprias qualidades da ordem social anárquica, para qual supõe-se que ela proporcione refúgio” (Lasch, 1983: 50).

Num movimento próprio à organização capitalista, a família com sua função primordial de provedora do conhecimento sobre a educação e socialização dos filhos, foi sendo destituída deste lugar. Neste momento a ordem disciplinar foi a condutora desta perda, uma vez que propiciou a substituição da autonomia familiar, pelo conhecimento e saber dos técnicos e especialistas. “Invadia-se” agora o próprio núcleo da privacidade, com o intuito de moralizar, controlar, higienizar etc. A família deve-ria, assim, recorrer sempre a estes especialistas, sendo considerada, cada vez mais, incapacitada para desempenhar seu papel.

Junto a essa destituição de funções, gradativamente foi à falência a idéia de uma compatibilidade entre amor-paixão e preocupações matrimoniais e, foi também desacreditado o valor atribuído à experiência sensível, inclusive enquanto possibilitava a manutenção da crença na família como ideal. A partir desse declínio da família, a solidão passou a expressar tanto a insuficiência, o desvio da norma tida como natural do humano, quanto o fracasso desse projeto. Soares Neto (1999) aponta como constituintes para o sentido de solidão como insuficiência do eu, esta falência dos ideais de conjugalidade românticos e o processo paralelo de exacerbação do individualismo, da perda da crença no espaço público como propiciador de segurança, da ausência de ideais comuns.

Neste sentido, o que resta aos indivíduos é fechar-se sobre si mesmos, num ‘eu mínimo’, onde a individualidade se restringe ao mínimo que proporcione sobrevivência psíquica ao eu. Como afirma Lasch (1990: 09):

“Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; ( ) Sob assédio, o eu se contrai num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado”.

Tudo isto é posto em cheque, ou se redescreve quando buscamos recortar essa situação sob o viés das classes trabalhadoras. Pois, aqui, soma-se uma série de transformações vividas no trabalho: antes, o proprietário/patrão era reconhecido, tinha um rosto, um nome: ‘Trabalho para Dr. Fulano’; antes os sindicatos, as mobilizações coletivas que concretizavam demandas tinham vez e voz; havia um estado que regulava e negociava; havia contratos duradouros etc. Todo esse movimento leva ao desaparecimento da solidariedade de classe e, cria uma outra via para o individualismo.

Sobre a individualidade mínima, Lasch (1990) ainda acrescenta que esta não é somente o resultado de uma postura defensiva, mas também surge de uma transformação social mais ampla e profunda, a mudança de um mundo em que os objetos eram duráveis, mundo confiável, para uma era de imagens mutáveis que dificultam a distinção entre realidade e fantasia.

A ‘fortaleza’ que era o espaço público, o mundo comum, não se pode mais perceber, fazendo com que se visualize mais claramente o quanto se necessita dele. Essa falência da vida em comum deteriorou também a vida privada, fez com que a imaginação, a capacidade de bem julgar e pensar sucumbisse às tiranias da intimidade, às compulsões e ansiedades internas.

Nesta época de inseguranças e futuro desacreditado, resta aos indivíduos preocupar-se com a própria sobrevivência. Segundo Figueiredo (1995), esse quadro faz com que os sujeitos passem a exercer uma ética do sobrevivente, fruto da ‘desterritorialização’ que o atinge, vivendo a partir de códigos morais e prescrições de condutas que privilegiam a restrição do eu a um mínimo ‘espaço’ de movimentação.

Com esta ética do sobrevivente, os sujeitos contemporâneos parecem estar vivendo, cada vez mais, em redomas individuais, isolados, ‘gradeados’, enfim, solitários. Estariam, desse modo, satisfeitos na segurança de seus espaços interiores? Quando se traz à tona a questão solidão como uma vivência negativa e angustiante para esses mesmos sujeitos poderia se perceber o quanto – ao menos ilusoriamente – procura-se uma saída para essa situação.

As soluções buscadas, ou os caminhos encontrados para lidar com o que se percebe como problemas existentes nesta montagem – e aí, a solidão – parecem ter se configurado sempre ‘soluções para dentro’, ou seja, saídas que privilegiaram o investimento no eu, em espaços privados, sociabilidades restritas etc. (como foi a busca de segurança na família, na intimidade, no ‘mergulho psicológico’, na posse de bens de consumo ). A construção desses caminhos parece ter sido marcada pela ‘lógica’ do próprio contexto, do qual ela sofria as consequências: o individualismo exacerbado, o narcisismo, a perda do sentimento de pertencimento; é como se as soluções buscadas para enfrentar a solidão tivessem assumido as próprias qualidades da ordem social, para a qual supõe-se que elas proporcionassem uma saída.

Essas ‘soluções para dentro’, são muito mais impactantes ao nível dos setores excluídos da sociedade: o consumo só se faz presente pelo negativo: ‘não ter ’, a insegurança da família com o alcoolismo, a intimidade do lar é ‘invadida’ pela promiscuidade ambiental. E, o trabalho, que daria um sentimento de pertencimento, já não é tão seguro.

No entanto, neste momento, uma questão se coloca: será que se pode tomar essas formas de lidar com a solidão como uma experiência válida para os ‘sujeitos contemporâneos’ de uma forma geral? Será possível considerar esta, uma experiência constituinte e caracterizadora também no contexto das classes trabalhadoras?

A questão surge principalmente quando se leva em consideração a realidade dos setores menos favorecidos ou classes trabalhadoras, seu contexto cultural e singularidades de discurso. A partir do momento em que se adota como posição norteadora da investigação uma concepção de sujeito que (re)descreve o mundo e se descreve, narra sua história em função de regras socialmente partilhadas, não se pode deixar de se questionar se, no contexto das classes trabalhadoras, a problemática da solidão se coloca tal como foi aqui discutida.

A luz das discussões apresentadas por Costa (1989) no seu livro Psicanálise e Contexto Cultural foi sendo feita essa leitura da solidão. Costa, buscando abordar a questão da psicoterapia para a população de baixa renda, discutiu também uma particularidade sócio-cultural na forma de adoecer mentalmente, a doença dos nervos, e assim, também, trata das peculiaridades quanto a representação das identidades psicológicas.

Costa vem apontar que diferentemente do modelo hegemônico de construção da identidade psicológica masculina fundada na heterosexualidade, os pacientes masculinos doentes dos nervos centravam a construção de suas identidades na trajetória profissional, na questão de ser trabalhador ou não, bom trabalhador ou não, ficando os elementos relativos à família, sexualidade, afetividade em segundo plano. Essas bases identificatórias não se expressam da mesma maneira para homens das classes altas e baixas. Nas palavras de Costa (1989:27):

“Ao rebatermos nesta tecla, tentamos mostrar que a subjetividade que muitos terapeutas têm em mente está longe de representar a totalidade dos indivíduos brasileiros. A representação de subjetividade que prevalece nas teorias psicológico-psiquiátricas espelha uma realidade sócio-histórica datada e culturalmente circunscrita”.

O trabalho se constitui como tão importante neste setor que, muitas vezes, a inserção na família aparece como uma ‘via’ em que o trabalho é a tônica. Pois, na família os sujeitos se constituem através do que o trabalho pode oferecer (em melhoria de vida, em possibilidade de oferecer estudos aos filhos etc.), se constituem como provedores; ou, quando não conseguem essa melhoria de vida, ou mesmo no desemprego, é aqui, também, que vai ser vivido o fracasso. Fracasso pessoal por não ser um provedor, não ser bom pai etc. Enfim, é o trabalho que está suportando, como eixo, a construção dessas identidades.

Apesar de se compreender que a mídia televisiva e a convivência interclasses produzam certos padrões homogenizadores de condutas, parece possível considerar que o universo cultural e lingüístico das camadas pobres é bem diverso do das classes média e alta. Assim, as possibilidades das ‘histórias’ oferecidas por cada cultura são também diversas, fazendo com que as auto-narrativas se elaborem com diferenças fundamentais. Esta consideração traz a riqueza de proteger contra a ‘captação’ de nossos olhares por um viés universalista e busca assegurar que não se recaia sobre uma posição dogmática.

No entanto, é importante afirmar que não há a intenção de transformar essa solidão em predicado fixamente vinculado às classes média e alta, ‘a solidão das classes abastadas’, nem tampouco associar – nem como hipótese – que se sente solitário quem está pensando sempre em questões “mais profundas”, “mais subjetivas”, quem não se preocupa com o trabalho. Tendo sido necessário um ‘deslizamento’ ou uma ampliação no conceito de solidão, para se compreender este cenário no âmbito do trabalho.

As Transformações no Mundo do Trabalho/ as Classes Trabalhadoras e a Solidão

A situação atual do próprio campo do trabalho também vem sofrendo transformações marcantes que se refletem nas experiências de vida dos sujeitos. O crescimento vertiginoso do desemprego é, no momento, um problema que atinge a grande maioria das nações e das classes sociais. No entanto, Robert Castel no seu livro As Metamorfoses da Questão Social (1998) desenvolve a idéia de que o desemprego é somente o fenômeno mais visível de uma mudança profunda na conjuntura do emprego, que envolve, sobretudo a precarização do trabalho.

Os contratos de trabalho por tempo determinado, os trabalhos de tempo parcial e uma série de ‘formas particulares de emprego’ que estão em ascendência, parecem estar elevando a diversidade e a descontinuidade em detrimento ao emprego homogêneo e estável. Castel afirma ainda que essa precarização do trabalho é uma questão mais importante do que o aumento do desemprego, uma vez que sua observação possibilita a compreensão dos processos que estimulam a vulnerabilidade social e produzem o desemprego e a desfiliação.

Também sobre essas mudanças no universo do trabalho, Bárbara (1999) - em seu artigo sobre o indivíduo trabalhador na qualificação, requalificação e desemprego - afirma que se caracterizaram basicamente pela: diminuição dos ciclos de produção, mudança na divisão do trabalho dentro das empresas, consolidação das tecnologias da computação e da informática, polivalência e treinamento dos trabalhadores como requisitos essenciais aos novos processos produtivos, que trouxeram como conseqüência a diminuição de muitos postos de trabalho formal.

Neste contexto, agravam-se as condições do mercado de trabalho, além do desemprego, no Brasil, está ocorrendo uma ampliação do setor informal na economia. Com todas essas mudanças, tem crescido também a insegurança no trabalho, uma vez que a diminuição de postos de trabalho faz com que a qualidade desses empregos se afaste dos padrões desejáveis, fazendo crescer também o trabalho precário, incrementando e ‘engrossando o caldo’ das desigualdades sociais e da exclusão (Bárbara, 1999).

Dentro das empresas a busca da eficácia e competitividade através da ‘flexibilidade interna’, faz com que se procure conjugar as qualificações dos trabalhadores com as transformações tecnológicas. Assim, termina-se por invalidar a experiência adquirida do sujeito, excluindo os trabalhadores que envelhecem e ao mesmo tempo, não se integrando a força de trabalho dos jovens, já que aumenta-se o nível das qualificações para admissão. Neste sentido, o problema atual, mais do que a consolidação de uma “periferia precária” é o da “desestabilização dos estáveis”. Esse fenômeno diz respeito à situação de uma parte da classe operária e de assalariados da pequena classe média que estão vivendo constantemente sob ameaça de oscilação. (Castel, 1998).

Uma outra ordem de fenômenos específicos da situação atual é a “instalação na precariedade”. A impossibilidade de conquistar um emprego estável faz com que os sujeitos estabeleçam suas trajetórias de trabalho numa alternância de emprego e não-emprego (atividade e inatividade), aceitando tarefas de curta duração, descontínuas e insignificantes e sendo potencialmente demitíveis, ou seja, tendo a “precariedade como destino”. Como essas pessoas poderiam, então, construir para si mesmas a projeção de um futuro? E também, como poderiam rever seus passados e construir auto-narrativas sobre esse passado? Resta, portanto, a utilização de estratégias de sobrevivência pautadas no presente.

Um terceiro aspecto dessa conjuntura do trabalho, sem dúvida o que provoca mais indignação, é a manifestação de um “déficit de lugares” na estrutura social, ou seja, não existem tantas posições com reconhecimento público e utilidade social, quantos sujeitos que poderiam ocupá-las . São os jovens em busca do primeiro emprego, os trabalhadores “velhos”, os desempregados de muito tempo, enfim, uma grande quantidade de indivíduos que terminam por ser considerados irrelevantes, ou mesmo, não serem considerados. Castel (1998) aponta ainda que essa irrelevância social desqualifica esses sujeitos também nos campos cívico e político. São diferentes dos escravos ou classes subordinadas da sociedade industrial, que eram explorados, mas indispensáveis. Como afirma Castel (1998:530):

“Ocupam, na estrutura social atual, uma posição homóloga à do quarto mundo no apogeu da sociedade industrial: não estão ligados aos circuitos de trocas produtivas, perderam o trem da modernização e permanecem na plataforma com muito pouca bagagem. Desde então, podem ser o objeto de atenções e suscitar inquietação, porque criam problema. Porém, o problema é o próprio fato de sua existência. Dificilmente podem ser considerados pelo que são, pois sua qualificação é negativa – inutilidade, não-forças sociais – e em geral são conscientes disso”.

Estes indivíduos perdem não só a importância como produtores, mas também como consumidores, passando a ser um fardo para a sociedade do trabalho, um “lixo industrial”. É o que Nascimento (1994) chama de nova exclusão, que seria mais do que o não-reconhecimento de direitos, uma própria “recusa ao espaço de obtenção do direito”, seria o não-reconhecimento enquanto iguais, sendo totalmente desnecessários do ponto de vista econômico, passam a ser considerados “ameaçadores”, “marginais”.

O que Nascimento (op.cit.) chama de nova exclusão é o que Fridman (1999), num comentário ao livro de Zygmunt Bauman, chama de ‘refugo humano’. Concordam ao caracteriza-lo a partir da impossibilidade de contribuir enquanto consumidores, sendo “consumidores falhos”, portanto, não podem exercer a liberdade, cuja nova perspectiva é a da liberdade de escolha ligada ao mercado consumidor, são pessoas que não consomem e não realizam desejos.

“Gente dispensável, pobres e famintos que contribuem com nada, apenas tiram o dinheiro do contribuinte para financiar políticas sociais que não diminuem o incômodo de vê-los ‘poluindo’ a visão da classe média e dos ricos. Esses ‘consumidores falhos’ não serão reabilitados para o mundo do trabalho porque a sociedade não precisa deles” (Fridman, 1999: 217).

A análise de Fridman aponta para esse refugo humano como um dos limites mais dramáticos da globalização. Considerando que esse processo de globalização não ocorre uniforme e homogeneamente, mas, ao contrário, aumenta a separação entre quem participa e quem é somente atingido pela globalização. Parecem se instalar dois pólos opostos: de um lado, o capital volátil e sem fronteiras, a intensa revolução tecnológica em curso, a comunicação instantânea on-line e, de outro lado, no pólo oposto, está uma grande parcela da população mundial que não participa desse arranjo, e que, segundo o autor, vai progressivamente, estar sob a guarda dos sistemas penais, sem nenhuma intenção de correção ou integração, estando apenas para definhar, desaparecer ou imobilizar-se.

Configura-se, assim, uma nova estratificação social, “segundo capacidades de movimento no tempo e no espaço”, que instauram a elite numa ‘extra-territorialidade’ e a territorialidade forçada do resto da população. Neste sentido, a globalização vem aumentar o fosso entre os que estão ‘dentro’ (vivendo em seus condomínios fechados, e protegidos com as últimas novidades na segurança) e os de ‘fora’, que, impotentes, só podem observar o único espaço que habitam, “movendo-se sob seus pés”.

A análise de toda esta situação nos obriga a nos remetermos às questões já esboçadas sobre a identidade pelo trabalho e impõe novos questionamentos: o que se modificaria no processo de construção de identidades quando mudanças tão radicais ocorrem na sua principal instância agenciadora, o trabalho? Como os indivíduos das classes menos favorecidas, que têm o trabalho como base da identidade psicológica, estão construindo suas identidades em meio a vivências de desemprego, precarização, desestabilização etc?

Sobre este aspecto Castel (1998) avança situando também a ausência de mobilização social, coletiva desses sujeitos, uma vez que estaria faltando a própria base sobre a qual se estrutura a identidade, ou seja, o trabalho, e, nesse contexto, “é difícil falar em seu próprio nome, mesmo para dizer não”. A conclusão possível a que chega é a de que, para números cada vez maiores da população ativa e “inativa forçada”, a identidade pelo trabalho está perdida. Sob que bases a identidade se constituirá, então? Que conseqüências e efeitos nos sujeitos essa mudança acarreta?

Torna-se difícil estabelecer precisamente a amplitude das consequências da perda desse “grande integrador”, pois a identidade pelo trabalho não quer dizer condicionamento pelo trabalho, já que pode-se dizer que existem vários círculos de identidade coletiva, fundados na integração familiar, escolar, social, religiosa etc. No entanto, principalmente para as classes populares, o trabalho seria como um fio condutor, que estaria presente em todas essas áreas e faria a “integração das integrações”.

Poderia se aproximar todos estes questionamentos sobre o poder integrador do trabalho, suas relações com a integração promovida pela rede familiar e relacional, com os referenciais da construção de identidades psicológicas e suas matrizes (eixo do trabalho em primeiro plano e eixo ‘familiar’ e afetivo, em segundo plano, para as classes desfavorecidas) traçando um paralelo entre integração social e construção de identidade.

Partindo desse paralelo, há um campo aberto para se refletir sobre a experiência de solidão no contexto das classes trabalhadoras. Sem trabalho, ou com trabalho precário, com a integração social também precária, e a identidade psicológica se debatendo nessa situação, não estaria em jogo, também, um sentimento de não pertencimento? Acredito que esse não reconhecimento e não pertencimento pode ser considerado uma experiência de solidão, um sentimento de estar só, não se ver entre os demais. E aqui já caberia se pensar num deslizamento do conceito de solidão, para a situação das classes trabalhadoras. Será que dentro desta conjuntura de desestabilização, precariedade, insegurança quanto ao futuro, desintegração, não reconhecimento, os sujeitos estariam vivendo isso tudo como um fracasso pessoal, e contribuindo para uma vivência de solidão?

Não são poucas as conseqüências desses processos sobre os sujeitos, como aponta Sennett (1999) no seu livro A Corrosão do Caráter. Uma das mudanças fundamentais trazida por esses processos foi a perda da possibilidade de se criar uma narrativa de vida linear, onde o tempo é linear, as conquistas são acumulativas e a própria vida faça sentido. Hoje, com a idéia de se atacar a burocracia a partir das experiências de risco, enfatizando-se a flexibilidade e a capacidade de mudanças rápidas, perde-se o solo onde se constroem metas a longo prazo e instala-se a vivência de deriva. Parece, então, que a flexibilidade, com todos os seus riscos e incertezas não poderá remediar o ‘mal’ que está atacando: a rotina.

Um dos aspectos que Sennett (op.cit.) observa como principais é uma mudança na forma de organizar o tempo, principalmente o tempo de trabalho. Não há mais longo prazo, os profissionais não têm papel fixo a desempenhar, não podem dizer “é isso que eu faço”, e então, perde-se o sentido de uma carreira a se seguir, de um ofício que se exerce. No entanto a prerrogativa de ‘não há mais longo prazo’ termina também por fazer ruir a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo, que são expressões que levam um certo tempo para se construírem, para que se crie um laço.

Essa relação com o tempo de maneira imediatista é o que mais estaria afetando a vida afetiva dos indivíduos fora do trabalho, uma vez que a ausência de investimentos a longo prazo na esfera familiar, por exemplo, simbolizaria ‘mudar’, ‘não se comprometer’ e ‘não se sacrificar’.

Coloca-se, assim, uma incompatibilidade entre as características que são mais geralmente atribuídas à vivência familiar – a obrigação formal, o compromisso, senso de objetivo, estabilidade, amizade etc. – e as características do comportamento que levam ao sucesso no trabalho. Não seria demais refletir novamente: como, então, poderia se buscar objetivos a longo prazo numa sociedade pautada no curto prazo? Ou, ainda, como acrescenta Sennett (1999:27) “como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?”. Essa nova ‘versão’ do capitalismo, capitalismo de curto prazo atinge os indivíduos, desintegrando as suas qualidades de caráter que ligam um ser humano a outro e que permitem a cada um, ter um senso de identidade sustentável. Aqui poderíamos tangenciar essa questão e somente nos perguntar se essa dificuldade de desenvolver uma narrativa de identidade e de manter os laços com outros sujeitos não estaria potencializando também uma experiência de solidão.

O ‘comportamento flexível’ em que estão imersos os sujeitos nesta nova ordem do trabalho envolve a busca de mudanças irreversíveis, além de uma falta de apego ao que se construiu – a possibilidade de destruir concretizações do passado pelas demandas do momento -, isto é, uma verdadeira ausência de apego temporal, solidificando assim, uma permissividade e tolerância com a fragmentação. Sennett (op.cit.) vem colocar que quem obtém sucesso com esse comportamento flexível são os sujeitos que ‘estão por cima’ nas relações de poder, não sofrem por permanecer na desordem e fragmentação. Enquanto que, para os que trabalham mais embaixo do regime flexível, esses mesmos traços de caráter passam a ser autodestrutivos.

Um outro elemento sentido como pessoalmente degradante para esses sujeitos é a maneira como trabalham, que, muitas vezes, com o uso das novas tecnologias e de máquinas sofisticadas podem vir a ser operacionalmente fáceis, mas passam a ser também emocionalmente ilegíveis, sendo muito difícil entender o que estão fazendo. Com essa dificuldade de compreensão do trabalho e também com o afastamento da participação nas discussões que marcam a reestruturação produtiva, instaura-se um sentimento de estrangeridade, de não pertencimento do trabalhador (Grisci,1999).

A falta de legibilidade nas modernas formas de trabalho cria um problema: como definir o que faz cada um ser um bom trabalhador? Sennett (1999) observou que a idéia de ser um bom trabalhador parece ainda se constituir num importante elemento para ser respeitado, no entanto, o que se entende por um bom trabalhador está mais difícil de definir com a experiência da ilegibilidade nas formas de trabalho. Desse modo, a identificação com o trabalho – um trabalho que não se entende – se torna fraca, e as leituras que os sujeitos fazem a respeito desse trabalho passam a ser de experiências pessoais, o trabalho parece ser uma experiência pessoal.

A ilegibilidade dificulta, para os sujeitos, a distinção das características atribuídas para ser um bom trabalhador, e ainda não deixa claro quais as medidas objetivas que indicam o que é um bom serviço. A descentralização do poder e o trabalho em equipe também podem levar os indivíduos a não saberem exatamente em que posição estão nas relações de trabalho.

Tudo isso viria a aumentar a sensação de deriva, de falta de ancoramento. A vivência da incerteza se torna uma condição nesse novo regime, já que a rotina é fortemente atacada através da experiência do “risco”. Entretanto, o risco não possui a qualidade de uma narrativa, em que um acontecimento condiciona e gera o acontecimento seguinte; persistindo, assim, a questão da fragmentação e descontinuidade.

Com essa transformação do “tempo” na esfera do trabalho, intensificam-se as experiências de superficialidade. Superficialidade na ética do trabalho e nas relações humanas, pois os sujeitos passam a sentir a ausência de relações constantes, de objetivos e metas duráveis, bem como do compromisso, lealdade e confiança compartilhados, os quais precisam de mais tempo para se construir.

Sennett (op.cit.) centra os seus questionamentos num problema tido como efeito de toda essa organização do capitalismo atual, e podemos também toma-lo como central na problemática da solidão: o quanto as experiências de deriva, fragmentação, superficialidade etc. dificultariam aos sujeitos a organização de suas histórias de vida, a construção de suas auto-narrativas.

Então, poderia se evocar uma dificuldade na organização das teias narrativas que estruturam os sujeitos e uma dificuldade de construir as auto-narrativas. Observando a determinação social destas narrativas e seu caráter relacional, discursivo, poderíamos, por operação inversa, falar de uma vivência do sentimento de solidão ligado a essa desestruturação na construção das auto-narrativas para os sujeitos intensificada também pela esfera do trabalho.

A dificuldade para construir identidade pelo trabalho e a experiência de deriva das novas formas de trabalho, que criam obstáculos na organização das narrativas de história de vida, trariam outras formas de desfiliação e de não-reconhecimento. Toda essa combinação levaria a quê? Estaria levando também a um fechamento num eu-mínimo, como para as classes médias e altas? Ou poderia estar gerando sofrimento pela permanência daquele ideal de trabalho, bom trabalho – trabalho estável, de carteira assinada etc -, gerando sofrimento por levar a uma identificação negativa? Neste caso, restaria, portanto como única possibilidade, a identidade do fracassado, sendo esse fracasso introjetado como fracasso pessoal, que pode se coadunar com a configuração da solidão como fracasso do eu (Soares Neto, 1999).

Assim, toda essa combinação poderia estar, também, potencializando um sentimento de solidão. Porém, neste momento já fica mais claro que para poder se afirmar que esses sujeitos vivenciam o não-reconhecimento e a fragmentação das bases de suas identidades psicológicas como solidão, seria preciso admitir uma premissa anterior, subjacente: de que o investimento num espaço coletivo e numa ética que privilegie o compromisso e a vida em comum sejam necessários. Isto é, a falta ou o desligamento dessa esfera “do outro” é que estaria incidindo na vivência da solidão como uma queixa, um problema.

Neste sentido, poderíamos trazer as contribuições de Hanna Arendt (1993) sobre a condição humana, quando discute o papel da esfera pública, da política. O termo ‘público’ significa o próprio mundo, uma vez que é comum a todos. E é esse convívio num mundo comum, em que outros podem passar pelas mesmas experiências que nós, que poderá respaldar o nosso sentido do quê é a realidade e, portanto, de como nos constituímos.

“A presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, sempre intensifica e enriquece gradativamente toda escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo e dos homens” (Arendt, 1993: 60).

Assim, a pluralidade é a condição da ação humana. Esta ação, por sua vez, corresponde a uma das atividades humanas fundamentais, junto com o labor e o trabalho, mas só a ação não pode ser pensada fora da sociedade dos homens. A ação se relaciona com a pluralidade e então, com a política, sendo a única atividade que se exerce sem a mediação das coisas ou matéria, que se exerce exclusivamente entre os homens e não ‘pelo Homem’.

A ação, em sua relação com a política, traz a questão do discurso como central, pois, segundo Arendt (op.cit.), o discurso é que torna o homem um ser político. É a possibilidade de serem discutidas que atribui sentido às experiências dos homens, a tudo o que fazem e o que sabem. Os homens que vivem no mundo comum, que se movem e agem nesse mundo só conseguem experimentar o significado das coisas porque podem falar e ser inteligíveis entre si e para si mesmos.

É com esta concepção da esfera pública enquanto espaço da política e do discurso por excelência que Hanna Arendt faz suas críticas à moderna sociedade de massas. Nesta última perde-se um aspecto essencial da esfera pública enquanto mundo comum: sua característica de reunir os homens na companhia uns dos outros e ainda evitar que se ‘colidam’ uns com os outros. Na sociedade de massas, o que é difícil de suportar é que o mundo entre as pessoas perdeu sua força de mantê-las juntas, de fazer com que se relacionem entre si e de separá-las. Nas condições da sociedade de massas:

“Os homens tornam-se seres inteiramente privados, isto é, privados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles. São todos prisioneiros da subjetividade da sua própria existência singular, que continua a ser singular ainda que a mesma experiência seja multiplicada inúmeras vezes. O mundo em comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva” (Arendt, 1993: 67).

Essa situação se torna ainda mais difícil para os desfavorecidos, cuja única participação pública é como massa, onde se é assujeitado, despersonalizado, não se tem ‘voz’. Talvez seja importante buscar se proteger de ser massa, proteger seu segredo, redescrever a solidão.

Discussão

O ponto que merece ser aprofundado no desenrolar dessa discussão sobre a solidão como um dos efeitos destas fortes transformações no âmbito do trabalho ‘flexível’ e da reestruturação produtiva, é o questionamento sobre “o que fazer, então?”. Que caminhos podem ser oferecidos como saídas, ou alternativas para uma organização tão danosa e causadora de sofrimento?

Em resposta a esses questionamentos Benilton Bezerra (1998) aponta a construção da solidariedade como um norte e um marco para a possibilidade de articular em conjunto realidades mais democráticas. Nas palavras do autor:

“A família, a religião, a tradição, fontes de significação relevante para a vida em outras épocas, têm tido seu papel cada vez mais restringido na função de ordenamento dos processos de subjetivação dos indivíduos. As relações de trabalho, e o próprio papel do trabalho na construção das imagens identificatórias dos sujeitos, também provavelmente continuarão a sofrer os efeitos das transformações político-econômicas e tecnológicas em andamento. Nada resta a fazer, então? Creio que não. Uma tarefa – certamente gigantesca – que temos todos é a de multiplicar e ampliar os espaços de tolerância e exercício da solidariedade. ( ) Só se pode sonhar com um mundo melhor e menos violento se formos capazes de recuperar a imaginação política para os jovens ( ). A construção progressiva da solidariedade como valor central no projeto democrático é a resposta mais duradoura que podemos oferecer ao quadro que viemos observar”. (1998: 145)

Essa construção conjunta da solidariedade proposta por Bezerra (op.cit.) envolve, ainda, uma ampliação/multiplicação dos espaços de tolerância, através do uso da imaginação, da vontade e de uma identificação ‘viceral’ com esse projeto e não somente de uma racionalidade. O caminho proposto por Sennett (1999) não destoa desse da solidariedade, se refere ao uso do pronome “nós”, à busca de regimes que ofereçam aos seres humanos motivos para se ligarem uns aos outros. Sennett (op.cit.) vai concluindo que dentro dessa situação que o capitalismo moderno nos coloca, em especial nas condições emocionais nos locais de trabalho, de incertezas da flexibilidade, de falta de confiança e compromisso, de não se conseguir inserir o seu trabalho num sentido de vida, o que resta é a busca – até defensiva – de outras formas de ligação e de profundidade, um desejo de comunidade.

Sennett (op.cit.) afirma que a ligação social nasce do senso de mútua dependência. E que essa dependência deve ser pensada com sua face positiva, que é relativa também ao fato de que os outros podem contar conosco e, portanto, temos responsabilidades para com os outros e para com nossas ações para eles. A falta de responsividade parece ser uma contrapartida ao sentimento de que não se é necessário, e isso vale tanto para as comunidades de trabalho, quanto para os mercados de mão-de-obra.

“Está faltando o Outro, e assim estamos desligados. ( ) Esse é o problema do caráter no capitalismo moderno. Há história, mas não narrativa partilhada de dificuldade, e portanto tampouco destino partilhado. Nessas condições, o caráter se corrói; a pergunta: ‘Quem precisa de mim?’ não tem resposta imediata” (Sennett, 1999: 175,176).

Tanto o caminho da solidariedade construída, quanto o da ligação de uma narrativa partilhada, do uso do ‘nós’, estão em plena consonância com a problemática da solidão e sua escalada para a condição de fracasso pessoal. Desse modo, também acredito que essas saídas possam refazer, reescrever essa história da solidão e sua forte inserção como mal estar contemporâneo. No entanto, é importante que se pense esse uso do ‘nós’ respeitando as realidades construídas e necessidades de diferentes atores sociais, diferentes sujeitos.

Recebido 22/03/01

Aprovado 18/05/01

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  • Endereço para correspondência

    Julia Coutinho Costa Lima
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    Trabalho orientado por Eniel Oliveira
  • *
    Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2001

    Histórico

    • Aceito
      18 Maio 2001
    • Recebido
      22 Mar 2001
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