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Travestis e transexuais profissionais do sexo: implicações da Psicologia

Travestis y transexuales profesionales del sexo: implicaciones de la Psicología

Sex profissional travestites and trans - sexuals: implications in Psychology

Resumos

Este trabalho teve como objetivo analisar e discutir as demandas de travestis e transexuais profissionais do sexo com relação à saúde mental. Participaram do estudo 10 travestis e 2 transexuais, e todas se declararam profissionais do sexo. A coleta de dados se deu por meio de grupos focais, sendo a análise dos dados qualitativa pautada na análise de conteúdo. Os resultados da pesquisa apontaram uma fragilidade na rede de apoio social e afetiva dos participantes, representada pelo sentimento de abandono e de solidão. Os resultados evidenciaram a necessidade de implementação de políticas públicas e de intervenções no âmbito da saúde mental.

Comportamento psicossexual; Profissionais do sexo; Saúde mental; Identidade sexual; Transexualismo


Este trabajo tuvo como objetivo analizar y discutir las demandas de travestis y transexuales profesionales del sexo con relación a la salud mental. Participaron del estudio 10 travestis y 2 transexuales, y todas se declararon profesionales del sexo. La recogida de datos se dio por medio de grupos focales, siendo el análisis de los datos cualitativo pautado en el análisis de contenido. Los resultados de la investigación apuntaron una fragilidad en la red de apoyo social y afectivo de los participantes, representada por el sentimiento de abandono y de soledad. Los resultados evidenciaron la necesidad de implementación de políticas públicas y de intervenciones en el ámbito de la salud mental.

Conducta psicosecual; Profesionales del sexo; Salud mental; Identidad sexual; Transexualismo


This work had as a goal to analyze and discuss the demands of sex professionals, as transvestites and trans-sexual in relation to mental health. Ten transvestites and two trans-sexuals participated in this study. All the participants declared themselves sex professionals. The collection of data happened through focal groups, being the qualitative analysis of the data ruled in the content analysis. The results of the survey pointed to a fragility in the social and affectionate support of the participants, represented by the feeling of desertion and solitude. The results showed the necessity of the implementation of public policies and interventions in the context of mental health.

Psychosexual behavior; Professionals of the sex; Mental health; Sexual identity; Transsexualism


ARTIGOS

Travestis y transexuales profesionales del sexo: implicaciones de la Psicología

Carmem Regina Giongo* * Psicóloga, Especialista em Psicologia Organizacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: ca.aiesec@gmail.com ; Lisiane Machado De Oliveira Menegotto** ** Psicóloga clínica e escolar, mestre e doutora em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente do curso de Psicologia e pesquisadora da Universidade Feevale – Novo Hamburgo - RS - Brasil. E-mail: lisianeoliveira@feevale.br ; Simone Petters*** *** Pós Graduanda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Algre – RS – Brasil. E-mail: simonekretschmer@hotmail.com

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Carmem Regina Giongo ERS-239, 2755 - Novo Hamburgo-RS. CEP: 93320-006. E-mail: ca.aiesec@gmail.com

RESUMO

Este trabalho teve como objetivo analisar e discutir as demandas de travestis e transexuais profissionais do sexo com relação à saúde mental. Participaram do estudo 10 travestis e 2 transexuais, e todas se declararam profissionais do sexo. A coleta de dados se deu por meio de grupos focais, sendo a análise dos dados qualitativa pautada na análise de conteúdo. Os resultados da pesquisa apontaram uma fragilidade na rede de apoio social e afetiva dos participantes, representada pelo sentimento de abandono e de solidão. Os resultados evidenciaram a necessidade de implementação de políticas públicas e de intervenções no âmbito da saúde mental.

Palavras-chave: Comportamento psicossexual, Profissionais do sexo, Saúde mental, Identidade sexual, Transexualismo.

ABSTRACT

This work had as a goal to analyze and discuss the demands of sex professionals, as transvestites and trans-sexual in relation to mental health. Ten transvestites and two trans-sexuals participated in this study. All the participants declared themselves sex professionals. The collection of data happened through focal groups, being the qualitative analysis of the data ruled in the content analysis. The results of the survey pointed to a fragility in the social and affectionate support of the participants, represented by the feeling of desertion and solitude. The results showed the necessity of the implementation of public policies and interventions in the context of mental health.

Keywords: Psychosexual behavior, Professionals of the sex, Mental health, Sexual identity, Transsexualism.

RESUMEN

Este trabajo tuvo como objetivo analizar y discutir las demandas de travestis y transexuales profesionales del sexo con relación a la salud mental. Participaron del estudio 10 travestis y 2 transexuales, y todas se declararon profesionales del sexo. La recogida de datos se dio por medio de grupos focales, siendo el análisis de los datos cualitativo pautado en el análisis de contenido. Los resultados de la investigación apuntaron una fragilidad en la red de apoyo social y afectivo de los participantes, representada por el sentimiento de abandono y de soledad. Los resultados evidenciaron la necesidad de implementación de políticas públicas y de intervenciones en el ámbito de la salud mental.

Palavras clave: Conducta psicosecual, Profesionales del sexo, Salud mental, Identidad sexual, Transexualismo.

A transexualidade é um fenômeno complexo e tem se apresentado como um tema de extrema relevância social e científica. Os estudos sobre essa área estão apoiados, sobretudo, em duas perspectivas. Podemos, diante disso, citar uma perspectiva patologizante, em que se destaca o trabalho de Stoller (1992) e outra, a partir do entendimento de construção cultural do gênero, que rompe a relação binária entre sexo e gênero, desenvolvida por Butler (2003, 2009) e Arán (2006), com a qual este estudo foi desenvolvido.

De acordo com a concepção patologizante de Stoller, o fenômeno é identificado como transexualismo, aludindo ao transtorno da identidade de gênero (DSM IV). Nessa abordagem, o transexualismo está baseado em três aspectos principais: um sentimento de identidade permanente – a crença em uma essência feminina (ou vice-versa), uma relação de horror ao órgão genital e uma relação simbiótica com a mãe. Esses aspectos, segundo o autor, não podem ser decorrentes de uma psicose, e sim, de uma experiência que pode ser tratada através da cirurgia de transgenitalização. Em contrapartida, Butler discute a transexualidade na perspectiva cultural, em que o gênero é construído socialmente, e não diretamente vinculado ao aspecto biológico. Embora haja uma tendência de autores partidários de uma concepção patologizante compreenderem a transexualidade a partir de uma estrutura ou de um modo de funcionamento específico, não necessariamente podemos fixá-la em uma posição subjetiva. A experiência transexual, nesse sentido, comportaria várias formas singulares de subjetivação (Butler, 2009).

Nessa mesma lógica, Bento entende que a cirurgia pode não ser a única alternativa terapêutica se partirmos do pressuposto que “o que faz o sujeito afirmar que pertence a outro gênero é um sentimento” (2006, p. 44). Sendo assim, para muitas transexuais, a transformação do corpo por meio de hormônios já é suficiente para garantir um sentimento de identidade, da mesma forma que, para muitas transexuais operadas, o sentimento de incompletude permanece.

Do ponto de vista histórico, os primeiros estudos sobre o tema surgiram na década de 50, dando início à construção do dispositivo da transexualidade, sendo que, em 1953, Harry Benjamin, nos Estados Unidos, retomou o termo já utilizado por Cauldwell, afirmando, contrariamente aos profissionais que atuavam na área da saúde mental, que a cirurgia seria a única alternativa terapêutica para o transexual. Esses conceitos, no entanto, foram transformando-se graças aos novos estudos sobre a construção de gênero e de identidade sexual (Bento, 2006).

Na perspectiva médica, as primeiras cirurgias de transgenitalização eram consideradas adequações sexuais, e foram realizadas na Alemanha e na Dinamarca. Em 1997, o Conselho Federal de Medicina aprovou a realização de cirurgia de transgenitalização nos hospitais públicos universitários do Brasil e, em 2002, tendo em vista o sucesso das cirurgias realizadas até então, foi autorizada a sua prática nos hospitais públicos ou privados, condicionada ao diagnóstico de transexualismo e ao acompanhamento psiquiátrico de no mínimo dois anos antes da cirurgia (Arán, 2006; Arán, Zaidhaft, & Murta, 2008).

Diante dessa discussão do tratamento psicológico/psiquiátrico de, no mínimo dois anos, e da cirurgia de transgenitalização como uma espécie da adequação social, recorremos à reflexão crítica de Carvalho (2011), inspirada nos estudos de Butler, que considera o tratamento psicológico/ psiquiátrico e a cirurgia de transgenitalização como uma espécie de medicalização e de purificação social. Sendo assim, o atendimento psicológico/psiquiátrico atende ao objetivo “de disciplinar esses corpos abjetos a fim de produzir um feminino medicamente desejável” (2003, p. 42).

Diferentemente da transexual, a travesti é considerada por Borba e Ostermann (2008) um indivíduo biologicamente masculino que, através da utilização de artifícios, molda seu corpo com características ideologicamente associadas ao feminino. Geralmente, de acordo com Pelúcio (2006), as travestis gostam de se relacionar sexualmente e afetivamente com homens, e não se reconhecem como homens homo-orientados. No entanto, buscam parecer-se fisicamente com uma mulher através do uso de silicone e de uma série de técnicas corporais que as distanciam dos padrões masculinos, demonstrando também comportamentos femininos, sem esquecerem, em contextos específicos, que são homens e que devem agir como tais. De maneira geral, as travestis buscam uma adequação de seus corpos de homens às suas práticas e desejos sexuais, reproduzindo, em suas relações conjugais, os papéis sociais de esposa/esposo, com a expectativa de que seu parceiro também se adapte a esse modelo.

Autores como Goffman (1975) e Pelúcio (2006) abordam a condição de estigma e de marginalização social de travestis e transexuais. Um trabalho realizado por Benedetti (2005) na cidade de Porto Alegre/RS mostrou que 89% das travestis que participaram de seu estudo haviam saído de casa cedo, entre os 11 e os 14 anos. Algumas foram expulsas pelos pais e outras motivadas pela busca de viver livremente suas transformações corporais. Por esse motivo, as histórias das participantes eram caracterizadas por vivências na rua, brigas, necessidade de pedir esmola, violência, prostituição, encontros e socialização com outras travestis, como se a rua lhes oferecesse a liberdade desejada para assumir os papéis que quisessem.

Apesar das importantes diferenças entre travestis e transexuais, a prostituição pode apresentar-se para ambas como espaço social de construção e de aprendizado do feminino. Elas encontram, através da prostituição, um espaço para viver a identidade de gênero e se socializar, o que nem sempre é aceito em outros espaços sociais em função do preconceito. E esse mesmo preconceito também limita as possibilidades de emprego no mercado de trabalho, aproximando-as ainda mais do trabalho informal (Benedetti, 2005).

A prostituição esteve presente em todas as épocas, sendo reconhecida historicamente como uma das formas mais antigas de comércio. É caracterizada pela troca consciente de favores sexuais por interesses não sentimentais e não relacionados ao prazer ou ao afeto, mas sim, ao dinheiro, aos benefícios pessoais e ao favorecimento profissional, entre outras formas de pagamento. Ao longo da História, inúmeros foram os sinônimos encontrados para identificar a profissional que atua na prostituição, como por exemplo: meretriz, puta, cortesã, quenga, moça leviana, mulher de vida fácil, vagabunda, garota de programa, gueixa, profissionais do sexo e prostituta (Silva, 1998).

De modo geral, percebemos que a história da prostituição teve um percurso repleto de exclusões, de preconceito e de diversas posturas e posicionamentos políticos e sociais. No Brasil, a prostituição esteve associada ao sexo feminino, ao preconceito e à repressão social. O início da mudança dessa realidade preconceituosa e excludente ocorreu através da própria organização social, com os movimentos feministas do século XX, com a estruturação de ONGs (organizações não governamentais) e com o estabelecimento de políticas públicas direcionadas para a prevenção de doenças e para a conquista da cidadania entre os(as) profissionais do sexo (Rodrigues, 2009). Nesse período, a prostituição passou a ser vista como uma forma de trabalho, e por isso surgiu o termo trabalhador do sexo ou profissional do sexo (Roberts, 1998).

Atualmente, existem controvérsias sobre a legalização, a permissão ou a proibição da prostituição. No Brasil, por exemplo, é permitida a prostituição, e são considerados ilegais o comércio sexual e os variados tipos de agenciamentos e de organização de casas de prostituição, enquanto, em países como a Holanda, a Turquia e Portugal, existem leis que são favoráveis a que a prostituição ocorra de forma organizada. Nos países em que a prostituição é proibida, como na Rússia, na Hungria e na China, a legislação é pautada na ideia de que a prostituição é uma fonte de contaminação de doenças e uma violação dos direitos humanos (Rodrigues, 2009).

Uma ação importante nesse sentido foi a discussão e a aprovação da nova versão da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), em 2000, em que o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) reconheceu os(as) profissionais do sexo como trabalhadores (as), inovando o modelo tradicional de enfrentar a prostituição no Brasil. De acordo com a CBO (2002), profissional do sexo significa:

5198-05 – Profissional do sexo: garota de programa, garoto de programa, meretriz, messalina, michê, mulher da vida, prostituta, trabalhador do sexo (...) Buscam programas sexuais, atendem e acompanham clientes, participam de ações educativas no campo da sexualidade. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidade da profissão. (CBO, Classificação Brasileira de Ocupações, 2002, p. 634)

No entanto, independentemente da legalização ou não da profissão, a prática de trabalho existe e é considerada pelo Ministério da Saúde como uma área de trabalho de risco. De acordo com o Ministério da Saúde (2002), o preconceito mostra-se de maneira ambígua nesse contexto, pois a(o) profissional é vista(o) ora como vítima, sem alternativas diante da situação econômica, ora como culpada(o) de sua atividade profissional.

Sousa (1998) e Castro (1993) afirmam que a visão acadêmica/científica trabalha o tema de duas maneiras diferentes, uma que concretiza a imagem da prostituta como mulher fatal e outra que a coloca em um lugar de vítima do sistema, ou vítima de algum trauma do passado ou mesmo de problemas que a levaram à prostituição. Em oposição a essas duas perspectivas, ambos os autores discutem e consideram a prostituição uma questão de pares, no sentido de que não haveria profissionais do sexo se não fossem os clientes, assim como não haveria as casas de prostituição se não fossem os(as) profissionais do sexo, assim como não haveria nem um e nem outro se não fossem o imaginário social, as dificuldades financeiras, o estado, o desejo, etc. Portanto, não podemos tomar a prostituição como consequência de algo, ou, de maneira linear, causa-efeito, e sim, como uma questão social, permeada por fantasias, desejos, representações e papéis.

Possivelmente, não há um avanço nessas discussões e no amadurecimento de políticas públicas e no estabelecimento de legislações adequadas porque, de acordo com Pedroso (2009), o discurso gerado em torno da prostituição está nas mãos da sociedade, de uma perspectiva moralista de decência, à qual as prostitutas estão subjugadas. As principais correntes que disciplinam o fenômeno da prostituição e que acabam norteando o posicionamento legal e político de muitos países, inclusive os do Brasil, são o proibicionismo, o regulacionismo e o abolicionismo. A corrente proibicionista parte de uma ideia de proibição, e nasceu do movimento feminista do final da década de 80, que entende a prostituição como uma violação dos direitos da mulher. O regulacionismo propõe a regulamentação da profissão e concebe a prostituição como um direito da mulher e uma possibilidade de trabalho, partindo do entendimento de que melhorar as condições de trabalho para esses(as) profissionais seria uma forma de proteção. O abolicionismo nasceu em oposição à corrente regulacionista, e propõe que se penalize a exploração em torno da prostituição, embora preserve o direito do livre exercício da prostituição, sem que haja a presença de agenciadores que tomam o corpo alheio como objeto de comércio.

Uma pesquisa realizada em Porto Alegre/RS constatou que 67% das 97 prostitutas que buscaram o Núcleo de Estudo da Prostituição (NEP) no período de outubro de 2000 a janeiro de 2001 apresentavam sintomas depressivos, associados ao uso de álcool e à prevalência de doenças sexualmente transmissíveis. O estudo revela que a presença de sintomas depressivos pode indicar transtorno depressivo maior, como pode também corresponder a outros transtornos depressivos como: distimia, reações de ajustamento com sintomas depressivos, episódio depressivo em transtorno de humor bipolar e outros transtornos mentais (Schreiner et al., 2004).

Um estudo realizado na Índia com 326 profissionais do sexo mostrou que o risco de suicídio entre esse público é elevado em função da vulnerabilidade social e da constante exposição à violência física e psicológica. O estudo alerta para a necessidade de desenvolvimento de projetos na área da saúde mental associados às campanhas preventivas com foco na redução de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e AIDS (Shahmanesh et al., 2009).

No trabalho dos(as) profissionais do sexo, conforme Sousa, há uma representativa temporalidade, que cria a expectativa de que, com o passar do tempo, conseguirão sair da profissão, “seja porque encontrariam o ‘tipo ideal' de homem, seja porque teriam sanado seus problemas financeiros” (1998, p.21). No entanto, esse processo é lento e nem sempre linear, pois muitas não conseguem construir e manter um relacionamento com um parceiro fixo, tampouco economizar e guardar dinheiro suficiente para mudar de vida, o que contribui para o aumento da desesperança e dos sintomas depressivos desse público.

Diante dessas questões, um trabalho realizado por estudantes de Psicologia na cidade de Curitiba/PR evidenciou, através de intervenções grupais, observações de campo e entrevistas junto a profissionais do sexo, que as demandas desse segmento estavam muito além de conversas e oficinas sobre DSTs e de cuidados com a prevenção de sua saúde física. O estudo apontou a necessidade de fala e de escuta para aspectos relacionados à solidão que sentiam, a seus sonhos, a seus familiares, etc (Carvalho & Borges, 2005).

Esses dados corroboram a relevância de discussões, projetos e pesquisas no âmbito da saúde mental desses profissionais, que possibilitem o desenvolvimento de políticas públicas que possam firmar intervenções que visem não somente às questões epidemiológicas e aos cuidados físicos como também aos psíquicos, intervenções que tenham um caráter de escuta, indo além de uma perspectiva informativa e educativa. No entanto, percebemos que tanto os aspectos legais relacionados à legalização da profissão quanto as políticas de saúde pública apresentam preocupações com as possíveis epidemias de doenças sexualmente transmissíveis ou com a preservação da saúde dos clientes que utilizam os serviços dos(as) profissionais do sexo. Sendo assim, praticamente não existem estudos ou políticas públicas voltadas para a prevenção e a promoção da saúde mental desses profissionais.

Atento a todas as problemáticas e demandas, este artigo aborda uma investigação junto a travestis e transexuais profissionais do sexo da cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. O trabalho partiu da pergunta sobre quais as demandas que travestis e transexuais profissionais do sexo possuem com relação à saúde mental.

Método

Participaram do projeto 10 travestis e 2 transexuais, com idades entre 19 e 46 anos (M=29). Quanto à escolaridade, três participantes possuíam o ensino fundamental incompleto, três possuíam o ensino fundamental completo e seis possuíam o ensino médio completo. Quanto ao estado civil, oito participantes se declararam solteiras e quatro casadas. Foram consideradas profissionais do sexo travestis e transexuais que se declararam como tal no questionário sociodemográfico aplicado no primeiro encontro. As participantes da pesquisa eram vinculadas à ONG Igualdade, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A amostra foi por conveniência, e o local escolhido para a realização dos grupos foi a própria sede da ONG.

O contato com o público-alvo ocorreu através da ONG Igualdade, que desenvolve inúmeros trabalhos direcionados à prestação de assistência jurídica e social para travestis e transexuais na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A Igualdade foi fundada no dia 25 de março de 1999, em defesa do direito e da cidadania de travestis e transexuais. O foco dos projetos e das ações do local é baseado no regaste dos direitos humanos desse público, através da realização de palestras, encontros e discussões sobre cidadania, direitos humanos, autoestima e saúde.

Inicialmente, foi apresentada a proposta de intervenção para a ONG, que se mostrou aberta à medida e ressaltou a necessidade de um trabalho nesse sentido. O grupo já havia tido a experiência de trabalhar com oficinas sobre autoestima realizadas por uma psicóloga, mas que não tiveram continuidade em função da falta de verbas para manutenção do trabalho.

A Igualdade organiza há mais de dez anos um espaço de discussão e reunião mensal para seu público-alvo, do qual participam em média 35 travestis e transexuais. Esse espaço nos foi cedido para divulgar o projeto e convidar o grupo para participar da proposta. Nessa apresentação, foram esclarecidos os objetivos do estudo, o método utilizado, o compromisso de devolução dos resultados e os procedimentos éticos seguidos, como garantia de sigilo da identidade das participantes e sigilo quanto aos materiais coletados, ressaltando-se que os mesmos seriam destruídos transcorridos cinco anos de realização da pesquisa. Também foi salientado o fato de que qualquer participante poderia desistir da pesquisa a qualquer momento. Após a apresentação da proposta, o grupo foi convidado a participar do estudo, e todos os interessados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A divulgação do nome da ONG foi autorizada pela coordenadora da organização.

As participantes preencheram um questionário sociodemográfico contendo perguntas sobre sexo, profissão, idade, etc. No primeiro momento com o grupo, realizamos o contrato de trabalho, definindo horários, datas, duração dos encontros e devolução dos resultados.

Como método para a coleta de dados, foi adotado o grupo focal, definido por Morgan (1997) como uma técnica de pesquisa que coleta dados por meio de intervenções grupais ao se discutir um tópico em especial sugerido pelo pesquisador. Em outras palavras, o grupo focal é uma entrevista em grupo, com o diferencial de contar com as interações entre os participantes. Como técnica, ocupa um lugar intermediário entre a observação participante e as entrevistas em profundidade, em que o pesquisador/moderador grupal exerce o papel de facilitar as discussões, pois sua ênfase está nos processos de constituição de opiniões e nos processos psicossociais. A unidade de análise do grupo focal é o próprio grupo.

Para atender ao objetivo deste trabalho, foi escolhido o método de grupo focal autorreferente, que, conforme Morgan, é utilizado para explorar um novo campo ou um novo tema proposto pelo pesquisador, podendo também servir como dispositivo para aprofundar, responder ou discutir uma pergunta de pesquisa ou o desenvolvimento de um projeto social. Foram realizados quatro encontros com duração de uma hora e com frequência semanal; todos foram filmados em vídeo e conduzidos por dois moderadores. Para a condução dos grupos, foi realizado um roteiro a priori com tópicos estruturadas a partir do objetivo da pesquisa. Os tópicos continham temas sobre quais seriam as possibilidades de trabalho da Psicologia junto ao grupo, sobre as necessidades de fala e de escuta do grupo e sobre o formato ideal de trabalho que o grupo demandava. O roteiro foi delineado a partir do modelo discutido por Souza, Minayo, Deslandes e Veiga (2005), que o define como uma listagem de temas que fazem emergir os indicadores qualitativos e que assumem o formato final de tópicos capazes de guiar a entrevista grupal de forma coerente e oferecer abertura para novas descobertas e discussões.

O material filmado foi transcrito e analisado primeiramente pelos dois moderadores do grupo, e posteriormente discutido com um grupo de juízes, formado por profissionais da área da Psicologia. Ao longo da análise do material, foram sendo identificados os principais conteúdos emergentes das discussões geradas pelos grupos focais. Posteriormente, foi realizada uma análise de conteúdo proposta por Bardin (1977), na qual se buscou identificar categorias organizadas por temas que emergiram ao longo dos grupos. Após a análise do material coletado, foi organizada uma devolução da pesquisa junto aos participantes bem como uma proposta de intervenção com base nas demandas apresentadas.

A devolução dos resultados da pesquisa foi organizada através de duas etapas. No primeiro momento, solicitamos às participantes que falassem sobre como foi participar da pesquisa, pontos positivos, negativos, inclusive com relação às moderadoras. No segundo momento, foram resgatados os assuntos discutidos ao longo dos grupos e também as percepções dos moderadores quanto ao funcionamento dos encontros, as relações entre as participantes e o papel dos moderadores. Após a devolução, foi entregue ao grupo uma proposta de intervenção, considerando a escuta do sofrimento psíquico das travestis e transexuais como foco.

Discussão dos resultados

A partir da análise dos relatos trazidos pelas participantes do grupo focal, foi possível identificar inúmeras temáticas emergentes, tais como a relação com seus familiares, a percepção e a construção de um novo corpo e a relação com os clientes, entre outras. No entanto, optamos por aprofundar a discussão acerca de um tema central que norteou grande parte do discurso do grupo e que atravessou todas as temáticas emergentes, qual seja, o sentimento de abandono e solidão causado pelo empobrecimento das relações sociais e afetivas. Esses aspectos podem ser observados em relatos como: “Hoje em dia eu tenho medo da solidão, de ficar sozinha, tu tá entendendo? (...) Como a Carol (nome fictício) tá colocando, nos sentimos muito só”.

O tema central abandono e solidão relacionouse ou apresentou-se como resultado de três ideias principais, que serão discutidas com maior detalhamento; são elas: relações interpessoais, família e sociedade.

As relações interpessoais que as travestis e transexuais possuem com outras travestis e transexuais são consideradas passageiras e com pouco potencial para servir como fonte de apoio social e afetivo. As observações a seguir apontam essa questão: “Eu te digo, eu não tô vindo aqui por causa de nenhuma delas, eu tô vindo por mim. Porque eu tenho certeza que nenhuma delas tá vindo por ter uma união ou conhecer umas às outras”; ou: “Antes d'eu sair do hospital, minha casa vivia cheia de pessoas, de amigas, colegas... No momento que eu saí do hospital, ninguém apareceu, não que eu teja cobrando delas. Eu acho assim, no momento que você tá de palhaçada, tu tem um monte de amigas, amigas não, nós temos colegas de trabalho de profissão”, ou ainda: “Aqui mesmo não dá pra contar com ninguém. Uma quer destruir a outra. A gente é sozinha, sem ninguém. Uma quer ver a outra ferrada. Ninguém quer saber se tu sofre ou não (...)”.

Esses depoimentos mostram não só uma fragilidade nos vínculos mas também uma indiferença diante do sofrimento do outro. A prostituição e a competição pela conquista ou pela manutenção dos clientes apareceram como uma das causas dessa fragilidade. Como coloca uma das participantes, elas se enxergam como colegas de trabalho, e não como amigas ou pessoas com quem podem contar em momentos difíceis. Durante as discussões em grupo, as próprias participantes demonstravam pouca sensibilidade diante do que a outra dizia. Brincadeiras e comentários ofensivos umas com as outras eram considerados comuns, revelando essa condição de marginalização não somente no que se refere ao fato de se declararem travestis e transexuais, mas sobretudo ao fato de estarem em um cenário de prostituição. Essa agressividade parecia estar também revelando uma condição de fragilidade e de sofrimento diante do olhar opressor da sociedade. Encontramos suporte em Siqueira (2011), que propõe o entendimento de que há uma contração da sociabilidade pública e uma redução dos laços sociais, por causa da marginalização, do preconceito e da violência que acompanham as travestis e as transexuais.

Nesse sentido, é possível que as travestis e as transexuais não usem somente artifícios para moldar seu corpo com características femininas, como afirmam Borba e Ostermann (2008), mas também como forma de esconder sua fragilidade e sofrimento. Utilizando esses artifícios, acabam distanciando-se das pessoas com quem mantêm algum tipo de relacionamento ou passando por dificuldades no processo de estabelecimento de novos vínculos.

No que diz respeito à família, considerada por Baptista, Baptista e Dias (2001) como um dos principais grupos capazes de fornecer apoio ao sujeito e proporcionar sentimentos de bem-estar subjetivo, as participantes entendem, de maneira geral, que precisam distanciar-se das relações familiares para viver sua identidade de gênero. Acabam saindo de casa muito cedo, pelo fato de a família não as aceitar ou pelo medo de fazer a família sofrer diante do preconceito social. O grupo afirmou que “Minha família não me aceitou em casa, entendeu?”, ou (...)“eles sofrem mais pelos outros, porque todo mundo diz, ‘ah, lá na casa da fulana tem um viado, tem um puto, um gay'. Todo mundo diz, e por dentro minha mãe sofre. O pai e a mãe ficam sentidos. Muitas vezes eu fui discreto com a mãe em casa, aquela coisa de respeito, mesmo. Não usar roupas de mulher e tal. Eu saí de casa pra poder viver minha opção de vida. Eu acho que, pra conviver com a transexualidade, tu não pode envolver família”, ou: “Quando eu me maquiava, minha mãe achava que eu era um palhaço, me via como homem”. Podemos perceber que um dos primeiros abandonos sofridos pelas travestis e transexuais ocorre por parte da família e amplia-se para a comunidade e para a sociedade de maneira geral.

De acordo com Benedetti (2005), esse processo de sair de casa também favorece a entrada dessas pessoas para o mercado da prostituição, que se apresenta como mercado de trabalho gerador de renda e também como espaço de socialização e de experiência do feminino. Mas esse espaço, onde muitas delas conseguem viver sua identidade de gênero, tende a caracterizar-se por relações de competitividade e de agressividade, podendo dificultar o estabelecimento de relações de apoio social.

Em contrapartida, entendemos que o espaço constituído pela ONG Igualdade pode representar o potencial de apoio social, embora tenha sido idealizado a partir de um movimento político em prol da inclusão social desse público. Sendo assim, o encontro que se origina desse movimento político pode avançar para um dispositivo de rede de apoio social, possibilitando a construção de laços diferentes daqueles estabelecidos no campo da prostituição. Nessa perspectiva, Goffman (2008) indica a importância da interação com outros estigmatizados, com os iguais. É na relação com os seus pares que o estigmatizado poderá reorganizar suas ideias, ressignificar sua existência e o próprio estigma. Isso é percebido na grande importância dada pelas travestis ao contato com outras travestis, o que permite não apenas um aprendizado mas também a possibilidade de se localizar socialmente.

Outro aspecto atrelado ao trabalho nesse contexto é que a prostituição ainda se encontra no campo da informalidade. Sendo assim, o indivíduo que atua na área não é beneficiado pelas políticas nacionais de saúde do trabalhador, não paga impostos, não recebe aposentadoria e outros direitos pertencentes ao mercado de trabalho formal. Entendemos que somente o reconhecimento da profissão na CBO não foi suficiente para promover a cidadania desses profissionais, aumentando assim os riscos à saúde integral dos profissionais do sexo e dificultando ações em cidadania e direitos humanos.

As relações que as participantes do grupo possuem com seus parceiros amorosos são consideradas passageiras ou excessivamente vinculadas à beleza física, como é possível perceber nestas colocações: (...) “a gente vai terminando com a nossa beleza, todo aquele encanto, vamo ficá velha, vai terminar, entendeu! Aí quem vai querer? Acha que um bofe ou um homem lindo, belíssimo, vai me querê, vai te querê? Não vai, vai querê vê a coisa feia... que está ali atrás”(...) ou: “com certeza, como uma mulher, como um casal, quando ela é novinha, bonita, com tudo em cima, mas depois que começa a cair tudo, tu acha que ele vai ficar com ela, sendo que, no outro lado da rua, tem outra mais bonita, com tudo em cima? Entendeu, não tem porquê”.

Em outras palavras, é possível perceber a ausência de um plano de vida ou de perspectiva futura, tanto econômica quanto afetiva. A expectativa que muitas possuem em deixar o trabalho como profissionais do sexo dificilmente é atingida, e o medo de não saber o que fazer para se manter no futuro aparece como um importante elemento. As participantes do grupo afirmavam que a prostituição era uma profissão momentânea, mas que não tinham planos para o futuro. O sentimento de solidão era assustador no sentido de não se enxergarem com seus parceiros por muito tempo e de não saberem o que fazer profissionalmente. Como abordado por Sousa (1998), existe uma espera pelo encontro do homem ideal ou pela conquista de estabilidade financeira, processo que raramente acontece em função da dificuldade de manter um relacionamento e principalmente de garantir o seu sustento sem depender da prostituição.

Quanto ao aspecto temporal da beleza abordado pelas participantes, entendemos que a sociedade gira em torno do ideal e do apelo à beleza e à jovialidade. Sendo assim, essa condição, de uma espécie de escravidão da beleza, sobretudo porque elas sobrevivem disso, não é uma questão peculiar desse público, e sim, uma questão que marca a nossa sociedade como um todo. Notamos que, considerando o excerto de fala apresentado anteriormente, o atributo que rege o vínculo é a beleza, o corpo, como se nenhum outro atributo sustentasse as relações amorosas.

Do ponto de vista social, o grupo apresenta uma dinâmica que se retroalimenta, pois, na medida em que as participantes apresentam queixas diante da exclusão, do preconceito social, dos olhares e dos comentários que escutam todos os dias, também parecem gostar de serem olhadas, de chamarem a atenção, assim como também parecem buscar no outro elementos que representem a sua rejeição. Não podemos, entretanto, reduzir a rejeição social para uma perspectiva de causa e efeito, uma vez que identificamos, na área social, um preconceito, seguido de rechaço com relação às diferenças, àquilo que se afasta do convencional.

Em uma proposta em que cada participante do grupo deveria escolher figuras que se identificassem, as participantes disseram: “eu escolhi essa mulher com luvas de boxe porque, na rua e em qualquer lugar, eu tô sempre pronta pra reagir. Fico sempre na defensiva, esperando uma piadinha, um olhar julgador... Já tenho na cabeça uma resposta pronta, assim como ela na figura, com as duas mãos pra frente, pronta pra se defender. Tudo por causa das pessoas que mexem com a gente”. Outra participante afirmou: “eu escolhi essa figura aí porque as pessoas passam pela gente na rua e olham como se a gente fosse ser de outro mundo, olha com espanto. Claro que isso do preconceito já tá melhorando, mas nosso dia a dia é cheio disso. Tu é visto como doente”; ou ainda: “se tem tanta gente no ônibus, porque olhar assim pra mim? (...) Não é o viado passar, é eu passar... E eu sou uma pessoa.”

Nas manifestações acima, fica evidente o sofrimento psíquico gerado pela discriminação social calcada em uma concepção estigmatizante e rotuladora sobre a diferença. Em função disso, muitas travestis e transexuais não saem de casa durante o dia, procuram esconder-se de pessoas desconhecidas e utilizam, diante da família e da comunidade, roupas de homem para evitar o preconceito. Nesse sentido, também trazem a dificuldade para conseguir um emprego formal, fator que incrementa o lugar marginalizado que ocupam, que causa impacto na saúde mental e na constituição de laços e de rede de apoio social (Goffman, 1975; Benedetti, 2005).

Outro aspecto relevante é o preconceito sofrido pelas travestis e transexuais profissionais do sexo por parte dos profissionais que prestam atendimento no âmbito da saúde pública. A falta de acolhimento, de respeito e de utilização do nome social, considerado o nome feminino pelo qual as travestis e transexuais preferem ser chamadas, faz com que passem a evitar a realização de exames periódicos, consultas médicas, entre outros procedimentos relacionados à atenção básica na saúde. Esse dado corrobora as discussões de Goffman, que problematiza o fato de as travestis serem estigmatizadas socialmente, principalmente pelos profissionais que atuam na área da saúde, e aponta a necessidade de intervenções no âmbito da formação desses profissionais e de sensibilização para humanizar os atendimentos.

Dessa forma, percebemos que a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que expressa o compromisso do Governo com a garantia do direito à saúde sem qualquer preconceito e discriminação, reforçando as responsabilidades de cada esfera de gestão do SUS (Sistema Único de Saúde) na implementação de ações e na articulação com outros setores de Governo e da sociedade civil, em especial, com os movimentos sociais que representam a população LGBT, não têm se mostrado eficaz e presente nas experiências relatadas pelas participantes dos grupos focais. Entendemos, a partir do que foi dito pelas participantes, que tal política está muito distante do objetivo final do cuidado com a saúde, segundo sua vertente social, que, além de tratar os sintomas, deve trabalhar em uma perspectiva de inclusão social, (re)inserindo o sujeito em sua vida social e garantindo-lhe o pleno exercício de sua cidadania. Estudos comprovam que as pessoas integradas a sua comunidade vivem por mais tempo e possuem maiores recursos para lidar e para recuperar-se do sofrimento psíquico, físico e social que afeta sua saúde (Souza & Kantorski, 2009).

Ao final dos quatro encontros, quando solicitamos uma avaliação das participantes quanto ao trabalho realizado, os principais relatos se relacionavam ao sentimento positivo que havia surgido naquele espaço, gerado pela possibilidade de falarem sobre os seus sentimentos pelo fato de se sentirem acolhidas e respeitadas como pessoas. Foi possível identificar que, mesmo tratando-se de um grupo focal, as discussões e as relações ali estabelecidas se mostraram terapêuticas. O espaço construído de fala e escuta e, sobretudo, de olharmos para elas sem julgamentos, preconceitos e discriminações possibilitou que elas se vissem a partir de um outro lugar, sem o peso do rótulo e da opressão social. Inicialmente, traziam para o grupo esses rótulos e estigmas, por meio dos ataques dirigidos às demais participantes. Testemunhamos suas fragilidades e seus sofrimentos, muitas vezes travestidos de defesas e agressividades, mas, sobretudo, escutamos os seus apelos de ajuda e de busca de um lugar onde pudessem constituir laços, saber que poderiam contar com o outro e ressignificar a sua condição de abandono e de solidão.

Após a avaliação dos resultados gerais dos grupos focais, foi possível entender o compromisso social da Psicologia para esse grupo. Vimos que as possibilidades de trabalho estão pautadas em intervenções que possam fomentar o fortalecimento das redes de apoio social e afetiva dos participantes, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, reconhecendo na ONG Igualdade o seu potencial de apoio social. Propostas de trabalho, nesse sentido, corroboram estudos que mostram que o apoio social atua amenizando os efeitos patogênicos do estresse no organismo, aumentando a capacidade de as pessoas lidarem com situações difíceis e, em consequência, se relaciona diretamente com o bem-estar psicológico e com a saúde mental (Cassel, 1974; Dalgard & Haheim, 1998). Trabalhando esses aspectos com o grupo, é possível criar uma sensação de empoderamento e de controle de vida nos participantes. Cassel observa que o apoio social pode ser um forte elemento no estabelecimento do empowerment, processo no qual as pessoas, os grupos sociais e as organizações passam a ganhar mais controle sobre seus próprios destinos.

É sabido que o Ministério da Saúde tem apoiado projetos nas áreas de prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (IST), disponibilizando assessoria jurídica e favorecendo o desenvolvimento de campanhas de comunicação e de ações para visibilidade da população LGBT como estratégia de promoção da saúde. Essas ações já vêm conquistando espaço e trabalhando contra o preconceito social, mas os dados apresentados e discutidos neste trabalho mostram que essas ações precisam ser incrementadas, com maior direcionamento para intervenções em saúde mental.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo analisar e discutir as demandas de travestis e de transexuais profissionais do sexo com relação à saúde mental. As demandas identificadas no grupo estavam relacionadas ao fortalecimento da rede de apoio social e afetiva, ao desenvolvimento de estratégias de enfrentamento diante das situações de risco vivenciadas no cotidiano dos participantes e principalmente à estruturação de políticas públicas voltadas para a promoção de saúde mental, cidadania e direitos humanos.

Partindo dessas demandas, a contribuição da Psicologia pode ocorrer tanto no nível institucional, com intervenções nas ONGs voltadas para atender esse público como também junto às próprias participantes, através de grupos ou oficinas que possam fortalecer o vínculo do grupo, ou ainda através da formação de profissionais que prestam atendimento às travestis e transexuais, através da elaboração e da execução de políticas públicas e de programas governamentais, entre outros. Cabe ressaltar que essas demandas discutidas ao longo do trabalho necessitam de intervenções interdisciplinares, pois estão além do campo de atuação da Psicologia, passando por questões políticas, sociais e econômicas.

O que preocupa é que a própria Psicologia, historicamente, ao invés de se mostrar acolhedora com relação às diferenças sexuais, têm desenvolvido trabalhos e discussões que estigmatizam e normatizam as experiências da sexualidade, construindo teorias e explicações que patologizam a experiência da diversidade sexual.

A preocupação com a saúde mental do público investigado neste trabalho ainda é pouco privilegiada em campanhas e programas desenvolvidos pelas Secretarias e pelo Ministério da Saúde no Brasil. Da mesma forma, estudos e pesquisas nesse contexto estão voltados, em sua maioria, para a prevenção de DSTs e AIDS, o que sem dúvida se faz necessário, mas poderia estar associado também às intervenções em saúde mental, em qualidade de vida, em bem-estar e em outros aspectos relevantes. Finalmente, pensamos que a construção de identidade de gênero também é uma questão de pares, ou seja, é uma produção social. Portanto, deixamos registradas, ao final deste trabalho, a importância e a necessidade de não somente a Academia desenvolver estudos, pesquisas e intervenções nesse contexto como também a sociedade e o Estado trabalharem fortemente na implementação de programas e de políticas públicas que possam, de maneira eficaz, intervir no âmbito da saúde mental; afinal, estamos tratando de uma questão de pares.

Travestis e transexuais profissionais do sexo: implicações da Psicologia Sex profissional travestites and trans – sexuals: implications in Psychology

Recebido 23/08/2010

1ª Reformulação: 18/06/2012

Aprovado 15/10/2012.

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  • Travestis e transexuais profissionais do sexo: implicações da Psicologia

    Sex profissional travestites and trans – sexuals: implications in Psychology
  • Endereço para correspondência Travestis e transexuais profissionais do sexo: implicações da Psicologia Sex profissional travestites and trans – sexuals: implications in Psychology
    Carmem Regina Giongo
    ERS-239, 2755 - Novo Hamburgo-RS. CEP: 93320-006.
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    Psicóloga, Especialista em Psicologia Organizacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail:
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    Psicóloga clínica e escolar, mestre e doutora em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente do curso de Psicologia e pesquisadora da Universidade Feevale – Novo Hamburgo - RS - Brasil. E-mail:
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    Pós Graduanda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Algre – RS – Brasil. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      23 Ago 2010
    • Aceito
      15 Out 2012
    • Revisado
      18 Jun 2012
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