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Concepções sobre álcool e outras drogas na atenção básica: o pacto denegativo dos profissionais de saúde

Concepts on alcohol and other drugs in basic care: the denegative pact of healthcare professionals

Concepciones acerca del alcohol y otras drogas en la atención básica: el pacto de denegación de los profesionales de salud

Resumos

O objetivo do presente estudo foi analisar as concepções de profissionais de saúde de nível superior que atuam na Estratégia de Saúde da Família acerca da atenção em saúde a usuários de álcool e outras drogas. A coleta de dados envolveu o emprego de um roteiro semiestruturado de entrevista junto a 12 participantes, sendo quatro médicos, quatro enfermeiros e quatro psicólogos. Os dados obtidos foram submetidos à análise temática de conteúdo e interpretados à luz de aportes teóricos psicanalíticos. Os resultados apontam que os participantes possuem concepções acerca dos usuários permeadas por preconceitos e estigmas, o que gera dificuldades para o empreendimento de ações de saúde e os leva, na maior parte das vezes, a apenas realizar encaminhamentos. Tais resultados sugerem o engajamento dos participantes em um pacto denegativo, ou seja, uma aliança inconsciente que implica na renúncia destes em relação aos usuários de álcool e outras drogas. Novos estudos são necessários para que se possa compreender as concepções de profissionais de saúde inseridos em outros níveis de atenção e, assim, identificar eventuais outros obstáculos à efetivação das políticas públicas.

Drogas; Concepção; Profissionais da saúde; Política de saúde; Intervenção precoce


The object of this study was to analyze the concepts of university-level healthcare professionals working in the Family Health Strategy on the attention given in healthcare to users of alcohol and other drugs. Data collection involved the use of a semi-structured interview script with 12 participants, including four doctors, four nurses and four psychologists. The data obtained was subjected to thematic content analysis and interpreted in the light of psychoanalytic theoretical contributions. The results indicate that the participants' conception of the users is permeated by prejudice and stigma, creating difficulties for developing health actions, and generally leads to just making referrals. These results suggest the involvement of participants in a denegative pact, i.e. an unconscious alliance that implies renouncing themselves from users of alcohol and other drugs. Further studies are needed so that one can understand the concepts of health care professionals inserted in other levels of care and thus identify any other obstacles to effectively apply public policy.

Drugs; Concepts; Healthcare professionals; Public health policies; Early intervention


El objetivo del presente estudio ha sido analizar las concepciones de profesionales de salud de nivel superior que actúan en la Estrategia de Salud de la Familia acerca de la atención en salud a usuarios de alcohol y otras drogas. La recolección de datos ha involucrado el empleo de un guion semi-estructurado de entrevista junto a 12 participantes, siendo cuatro médicos, cuatro enfermeros y cuatro psicólogos. Los datos obtenidos han sido sometidos al análisis temático de contenido e interpretados a la luz de aportes teóricos psicoanalíticos. Los resultados señalan que los participantes poseen concepciones acerca de los usuarios permeadas por prejuicios y estigmas, lo cual genera dificultades para el emprendimiento de acciones de salud y los lleva, en la mayor parte de las veces, a tan sólo realizar encaminamiento. Dichos resultados sugieren el comprometimiento de los participantes en un pacto de denegación, es decir, una alianza inconsciente que conlleva la renuncia de éstos en relación a los usuarios de alcohol y otras drogas. Nuevos estudios son necesarios para que se pueda comprender las concepciones de profesionales de salud insertados en otros niveles de atención y, de esa manera, identificar otros obstáculos a la puesta en marcha de las políticas públicas.

Drogas; Concepciones; Profesionales de la salud; Política de salud; Intervencion precoz


ARTIGOS

Concepções sobre álcool e outras drogas na atenção b ásica: o pacto denegativo dos profissionais de saúde

Concepts on alcohol and other drugs in basic care: the denegative pact of healthcare professionals

Concepciones acerca del alcohol y otras drogas en la atención b ásica: el pacto de denegación de los profesionales de salud

Waleska Rodrigues Silva* * Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: waleskars@hotmail.com ; Rodrigo Sanches Peres** ** Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

Universidade Federal de Uberlândia

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Waleska Rodrigues Silva Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Psicologia. Avenida Pará, 1720 – Bloco 2C, Campus Umuarama. CEP 38.401-136. Uberlândia/MG – Brasil E-mail: waleskars@hotmail.com

RESUMO

O objetivo do presente estudo foi analisar as concepções de profissionais de saúde de nível superior que atuam na Estratégia de Saúde da Família acerca da atenção em saúde a usuários de álcool e outras drogas. A coleta de dados envolveu o emprego de um roteiro semiestruturado de entrevista junto a 12 participantes, sendo quatro médicos, quatro enfermeiros e quatro psicólogos. Os dados obtidos foram submetidos à análise temática de conteúdo e interpretados à luz de aportes teóricos psicanalíticos. Os resultados apontam que os participantes possuem concepções acerca dos usuários permeadas por preconceitos e estigmas, o que gera dificuldades para o empreendimento de ações de saúde e os leva, na maior parte das vezes, a apenas realizar encaminhamentos. Tais resultados sugerem o engajamento dos participantes em um pacto denegativo, ou seja, uma aliança inconsciente que implica na renúncia destes em relação aos usuários de álcool e outras drogas. Novos estudos são necessários para que se possa compreender as concepções de profissionais de saúde inseridos em outros níveis de atenção e, assim, identificar eventuais outros obstáculos à efetivação das políticas públicas.

Palavras-chave: Drogas, Concepção,Profissionais da saúde, Política de saúde, Intervenção precoce.

ABSTRACT

The object of this study was to analyze the concepts of university-level healthcare professionals working in the Family Health Strategy on the attention given in healthcare to users of alcohol and other drugs. Data collection involved the use of a semi-structured interview script with 12 participants, including four doctors, four nurses and four psychologists. The data obtained was subjected to thematic content analysis and interpreted in the light of psychoanalytic theoretical contributions. The results indicate that the participants' conception of the users is permeated by prejudice and stigma, creating difficulties for developing health actions, and generally leads to just making referrals. These results suggest the involvement of participants in a denegative pact, i.e. an unconscious alliance that implies renouncing themselves from users of alcohol and other drugs. Further studies are needed so that one can understand the concepts of health care professionals inserted in other levels of care and thus identify any other obstacles to effectively apply public policy.

Keywords: Drugs, Concepts, Healthcare professionals, Public health policies, Early intervention.

RESUMEN

El objetivo del presente estudio ha sido analizar las concepciones de profesionales de salud de nivel superior que actúan en la Estrategia de Salud de la Familia acerca de la atención en salud a usuarios de alcohol y otras drogas. La recolección de datos ha involucrado el empleo de un guion semi-estructurado de entrevista junto a 12 participantes, siendo cuatro médicos, cuatro enfermeros y cuatro psicólogos. Los datos obtenidos han sido sometidos al análisis temático de contenido e interpretados a la luz de aportes teóricos psicoanalíticos. Los resultados señalan que los participantes poseen concepciones acerca de los usuarios permeadas por prejuicios y estigmas, lo cual genera dificultades para el emprendimiento de acciones de salud y los lleva, en la mayor parte de las veces, a tan sólo realizar encaminamiento. Dichos resultados sugieren el comprometimiento de los participantes en un pacto de denegación, es decir, una alianza inconsciente que conlleva la renuncia de éstos en relación a los usuarios de alcohol y otras drogas. Nuevos estudios son necesarios para que se pueda comprender las concepciones de profesionales de salud insertados en otros niveles de atención y, de esa manera, identificar otros obstáculos a la puesta en marcha de las políticas públicas.

Palavras clave: Drogas, Concepciones, Profesionales de la salud, Política de salud, Intervencion precoz.

O termo “drogas” alude a qualquer agente químico capaz de provocar alterações nos processos bioquímicos e fisiológicos do organismo e que, muitas vezes, é consumido com o objetivo de provocar alterações na percepção do indivíduo (Brasil, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2010). Porém, como alertam Amorim, Lazarini e Siqueira (2007), na população em geral o termo em questão tipicamente remete apenas às drogas ilícitas, as quais – a exemplo da cocaína, do crack e da heroína, dentre outras – têm sua comercialização e utilização proibidas legalmente. Com isso, comumente se desconsidera que certas substâncias lícitas – tais como o álcool, a cafeína, o tabaco e os fármacos vendidos com receita médica – também se afiguram como drogas.

O fato de drogas lícitas muitas vezes não serem consideradas como drogas na população em geral, assim como outros fenômenos relacionados às drogas, somente pode ser compreendido à luz de valores e simbolismos específicos, aliados a condições de acesso e consumo determinados histórica e culturalmente (Silva, 2000). Neste sentido, vale lembrar que o uso dessas substâncias remonta, segundo Araújo e Moreira (2006), às civilizações ancestrais. Ocorre que, ao longo dos tempos, nas mais diferentes culturas, as pessoas utilizaram e continuam utilizando drogas. As motivações para tanto são as mais diversas: purificação em rituais religiosos e místicos, exaltação em cerimônias profanas e pagãs, celebração do prazer ou mera recreação, para citar apenas algumas (Nunes & Jólluskin, 2007).

Não obstante, no mundo ocidental do século XIX, conforme Araújo e Moreira (2006), o uso dessas substâncias se distanciou dos contextos dos rituais e extrapolou sua indicação médica. Desse modo, nas últimas décadas, como alertam Nunes e Jólluskin (2007), tem-se observado uma elevação bastante expressiva do consumo de drogas no mundo todo entre as mais variadas faixas etárias e classes sociais. A produção e a distribuição de drogas ilícitas se dão em larga escala, impulsionadas pelo baixo custo de algumas delas. Mas o aumento no consumo de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, deve-se também, para Birman (2009), ao fato de predominar nas sociedades ocidentais da atualidade uma cultura que se pauta na evitação do sofrimento psíquico.

Nesse contexto, o consumo abusivo de drogas representa um problema de saúde pública em função dos agravos, em diversas esferas, que dele decorrem. No Brasil, contudo, políticas públicas voltadas para tal questão são recentes. A chamada Política Nacional Antidrogas (Brasil, 2002) foi a pioneira, mas apresentava um caráter essencialmente proibicionista, ensejando uma espécie de “guerra contra as drogas”. Em 2005, houve o realinhamento dessa política e, como resultado desse processo, foi criada a chamada Política Nacional sobre Drogas (Brasil, 2005), a qual, em contraste com sua antecedente, não tinha a repressão como um de seus eixos norteadores. Duarte (2010) considera que, além da mudança de foco traduzida pelo nome de tal política, também foi de grande relevância sua proposta de contemplar tanto a redução da oferta de drogas quanto a redução da demanda e de danos.

A redução de danos, deve-se esclarecer, compreende, de modo geral, qualquer ação que visa minimizar os riscos e danos causados pelo uso de álcool e outras drogas à saúde de um indivíduo. Porém, está voltada não apenas para a promoção da saúde, mas também à valorização da cidadania e à garantia dos direitos humanos. Santos e Malheiro (2010) ressaltam que os serviços e profissionais de saúde orientados pela lógica da redução de danos procuram valorizar o saber da população em prol da construção conjunta de ações de saúde. Nesse sentido, como bem observaram Souza e Kantorski (2007), tal lógica se pauta na liberdade de escolha do indivíduo e prescinde de qualquer espécie de julgamento baseada em premissas repressivo-moralistas.

É preciso salientar, também, que o tema “álcool e outras drogas” passou a ser incluído de forma efetiva na agenda de debates da saúde pública quando do lançamento da Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2003). Ainda que tal política tenha enfatizado a necessidade de articulação dos cuidados dentro da rede de Atenção Básica à saúde e também de capacitação para seus profissionais, na prática, essas ações não foram incorporadas ao trabalho da grande maioria das unidades de saúde de imediato. A Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2006), inclusive, preconizava várias linhas de cuidados, mas não fazia menção à Saúde Mental ou à atenção aos usuários de álcool e outras drogas, evidenciando uma possível dificuldade na articulação de ações no âmbito do próprio Ministério da Saúde.

Vale enfatizar que a Atenção Básica em saúde, ao menos em tese, afigura-se como a referência para a articulação estratégica dos serviços de saúde, dado que tem como finalidade organizar o fluxo de usuários em todos os níveis de atenção (Favaro, 2011). A redefinição do modelo assistencial à saúde por meio da revitalização da Atenção Básica no país tem no Programa de Saúde da Família (PSF) seu principal expoente. É importante lembrar que, desde sua instituição, o PSF, a despeito de sua nomenclatura, sempre apresentou características diferentes dos demais programas do Ministério da Saúde, uma vez que não se tratava de uma ação a ser desenvolvida de forma paralela pelo sistema de saúde. O PSF se destacou como uma iniciativa de reorganização da assistência a partir de um território, dos conhecimentos sobre a população e dos recursos sociais nele existentes.

Somente com a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2011a), houve a mudança para a nomenclatura Estratégia de Saúde da Família (ESF). Tal revisão não acrescenta recomendações sobre áreas de cuidados. Todavia, enfatiza a implementação de ações de acordo com as necessidades de saúde da população com prioridade para grupos vulneráveis e fatores de risco, sejam eles clínicos, comportamentais ou ambientais. Portanto, a atenção aos usuários de álcool e outras drogas poderia ser prioritária em algumas unidades de Atenção Básica ou equipes de Saúde da Família.

Parâmetros mais claros acerca da atenção aos usuários de álcool e outras drogas foram definidos por meio da instituição da Rede de Atenção Psicossocial (Brasil, 2011b). A partir de tal movimento, as ações em Saúde Mental ganharam um novo patamar, alcançando a condição de rede de ações e serviços articulada a outras redes dentro do sistema de saúde. A Atenção Básica em saúde, inclusive, é mencionada na portaria referente à Rede de Atenção Psicossocial, pois tanto as Unidades Básicas de Saúde tradicionais quanto aquelas que abrigam equipes de Saúde da Família passam a ser consideradas explicitamente como pontos de atenção, ou seja, como serviços responsáveis pelos cuidados em Saúde Mental por meio de ações de acolhimento ou acompanhamento.

Contudo, como alerta Delgado (2010), nenhuma política pública é eficaz se não conseguir alterar as concepções das pessoas em relação ao assunto ao qual se refere. E, no cotidiano do trabalho no contexto da saúde, é possível observar que, por diversas razões, muitos profissionais vivenciam impasses importantes no desenvolvimento de suas atividades junto a usuários de álcool e outras drogas, o que, indubitavelmente, pode comprometer a efetividade das mesmas. Não obstante, são escassas as pesquisas nacionais dedicadas à investigação de concepções sobre questões referentes ao tema “álcool e outras drogas”.

Em uma pesquisa na qual esse enfoque foi adotado, Brusamarello, Sureki, Borrile, Roehrs e Maftum (2008) buscaram compreender as concepções de familiares de alunos do ensino fundamental sobre o consumo de drogas. As autoras observaram que a maioria dos participantes assumiu uma postura moralista e preconceituosa acerca do uso de drogas, apontando-o como a principal causa de uma ampla gama de malefícios para o indivíduo, a família e a sociedade. Uma parcela expressiva deles admitiu consumir álcool e tabaco. Porém, sinalizou que não concebia tais substâncias como “drogas”.

Martins, Zeitoune, Francisco, Spindola e Marta (2009), em outra pesquisa que se alinha a esse enfoque, descrevem as concepções de profissionais de enfermagem sobre o consumo de drogas. As autoras verificaram que os participantes possuíam um conhecimento técnico apropriado sobre o assunto. Não obstante, concebiam as drogas de modo contraditório, como se os riscos associados ao consumo se aplicassem somente às outras pessoas e não a eles. Além disso, constatou-se uma tendência à naturalização do uso de drogas lícitas, o qual foi concebido inclusive como uma válvula de escape frente a problemas familiares.

Já Lopes e Pessanha (2008) analisaram as concepções sobre drogas de docentes de um curso de graduação em enfermagem. As autoras observaram que uma parcela dos participantes da pesquisa concebeu o consumo de drogas ilícitas apenas a partir do modelo biomédico, entendendo-o, consequentemente, como um mero desdobramento de um estado patológico com forte influência de condições sociais e individuais. Trata-se de um achado preocupante, pois essa concepção tende a ser transmitida aos estudantes, futuros profissionais de saúde, os quais poderão vir a entender que o consumo de drogas é um problema que necessariamente demanda medicalização e institucionalização.

Lopes, Lemos, Lima, Cordeiro e Lima (2009), por outro lado, pesquisaram as concepções de estudantes de enfermagem a respeito de usuários de álcool e outras drogas. Os autores apontam dificuldades na relação entre os participantes e tal população. A falta de conhecimento prévio dos estudantes sobre álcool e outras drogas e a pouca atenção dedicada pelos cursos de graduação a essa temática foram considerados fatores associados a essas dificuldades. Todavia, os autores não deixam de supor que os estudantes que participaram da pesquisa possuem crenças particulares que também podem contribuir nesse sentido.

Tais pesquisas apontam a necessidade de novos estudos, particularmente se desenvolvidos com o intuito de fornecer subsídios para a compreensão das concepções de profissionais de saúde acerca do tema “álcool e outras drogas”. Afinal, os mesmos são os principais responsáveis pelo planejamento e implementação das políticas públicas dedicadas ao referido tema. O presente estudo, assim, foi concebido com a finalidade de prestar contribuições para a ampliação do entendimento a respeito. Mais especificamente, o objetivo do presente estudo foi analisar as concepções de profissionais de saúde de nível superior que atuam na ESF acerca da atenção em saúde a usuários de álcool e outras drogas. Profissionais da ESF foram privilegiados tendo-se em vista, como já mencionado, que esta traduz a mudança de orientação da atenção à saúde no Brasil.

Vale destacar ainda que apenas duas das pesquisas citadas sobre as concepções acerca do tema “álcool e outras drogas” (Lopes & Pessanha, 2008; Lopes et al., 2009) apresentam definições para o termo “concepção”. No presente estudo, optouse por situar o termo “concepções” no corpo de conhecimentos da Psicologia. Foi adotada, assim, a definição de Cabral e Nick, segundo a qual concepções são, essencialmente, “conceitos relacionados entre si por um ponto de vista comum a todos eles” (2006, p. 65). Para os referidos autores, portanto, concepções remetem a conceitos. E, conforme Galimberti, um conceito resulta de “um processo de abstração com a consequente categorização de objetos ou acontecimentos baseando-se nas qualidades e realizações consideradas comuns” (2002, p. 226) (tradução nossa). Tal definição do termo “conceito” igualmente foi considerada no presente estudo, uma vez que amplia a compreensão do termo “concepção”.

Método

Participantes

Participaram do presente estudo 12 profissionais de saúde – sendo quatro médicos, quatro enfermeiros e quatro psicólogos – vinculados à ESF de um município do interior do estado de Minas Gerais. Tendo em vista que houve um cuidado no sentido de evitar a coleta de dados junto a mais de um membro de uma mesma equipe da ESF para prevenir uma eventual contaminação dos resultados, conclui-se que, nos termos propostos por Turato (2003), os participantes do presente estudo constituíram uma amostra por intencionalidade de tipos.

A maioria dos participantes era do sexo feminino (n=10), com idade entre 30 e 40 anos (n=11). Em relação à titulação, um deles possuía apenas graduação, sendo que os demais possuíam títulos de especialização. Notou-se também que todos os profissionais de enfermagem possuíam especialização em Saúde da Família ou Saúde Pública, enquanto apenas um profissional de Psicologia reportou tal formação. Quanto ao tempo de atuação em Saúde Pública ou na ESF, constatou-se que os profissionais de Psicologia apresentaram menor experiência (média de 30 meses).

Vale mencionar que médicos e enfermeiros foram selecionados por serem profissionais de saúde de nível superior constituintes das equipes mínimas da ESF. Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2011a), os mesmos possuem como atribuições participar, contribuir e realizar educação permanente para as equipes da ESF. Já a inclusão de psicólogos entre os participantes do presente estudo se justifica tendo-se em vista que estes integram as equipes de Saúde Mental e atuam na inclusão, no âmbito da Atenção Básica, de ações que contemplam os transtornos decorrentes do abuso de álcool e outras drogas. Além de pertencerem a uma das categorias profissionais descritas acima, os profissionais de saúde considerados elegíveis para a participação no presente estudo deveriam, para serem incluídos de fato entre os participantes, atender a outro critério, a saber: estarem atuando há pelo menos seis meses junto a uma equipe de Saúde da Família.

Instrumento

A coleta de dados foi realizada mediante o emprego de um roteiro de entrevista semiestruturada. Trata-se, conforme Martins e Bicudo (1994), de um recurso básico para a pesquisa – sobretudo nas abordagens qualitativas – em Psicologia, na medida em que permite ao pesquisador dirigir a coleta de dados segundo determinados aspectos considerados de maior relevância. Por outro lado, a entrevista semiestruturada também oferece aos entrevistados a oportunidade de configurar o campo da entrevista conforme suas características individuais, auxiliandoos, assim, a emitir respostas efetivamente condizentes com suas opiniões e concepções.

Estratégia para a coleta de dados

Inicialmente, foi obtida junto à Secretaria Municipal de Saúde uma listagem por setor sanitário dos profissionais de nível superior que atuavam nas equipes da ESF da área urbana. A partir dessa listagem, buscouse junto aos coordenadores dos setores sanitários a identificação dos profissionais que atuavam há menos de seis meses na área e, assim, não preenchiam a um dos critérios de inclusão estabelecidos. De posse dessa informação, os nomes dos profissionais que preenchiam tal critério foram sorteados por categoria profissional e setor sanitário. A disponibilidade dos profissionais sorteados para participar deste estudo foi checada a partir de contatos telefônicos. O passo seguinte à obtenção de respostas afirmativas foi o agendamento de um horário e local de comum acordo para a coleta de dados. Vale destacar, ainda, que as entrevistas foram gravadas em áudio e desgravadas depois de transcritas literalmente e na íntegra.

Estratégia para a análise de dados

Os dados obtidos mediante a realização das entrevistas foram submetidos à análise temática de conteúdo proposta por Bardin (1979), a qual se destaca como uma das principais técnicas de tratamento de dados no campo das abordagens qualitativas. Enquanto técnica hermenêutica, é capaz, conforme Minayo (1992), de subsidiar a identificação de significados latentes imperceptíveis no conteúdo manifesto de uma mensagem e, assim, reconhecer a polissemia inerente à comunicação humana. Campos e Turato (2009) esclarecem que, no contexto da análise temática de conteúdo, o desenvolvimento de inferências implica ainda em ancorar os referidos significados latentes a um quadro de referenciais teóricos, o que, neste estudo, foi feito a partir do recurso a aportes psicanalíticos.

A análise temática de conteúdo envolve a execução de três procedimentos básicos, a saber: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados. O primeiro demanda o empreendimento de uma leitura flutuante do conjunto do material, a organização do conteúdo em temas – ou seja, em unidades de significação naturalmente circunscritas – e o delineamento de hipóteses iniciais. Já o segundo consiste essencialmente na administração de técnicas voltadas à codificação do conteúdo e à agregação dos temas. O terceiro tem como etapa inicial a seleção dos resultados decorrentes da exploração do material e como etapa complementar a elaboração de inferências, interpretações e sínteses (Bardin, 1979).

Aspectos éticos

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Universidade Federal de Uberlândia (protocolo 298/10) e respeitou as condutas a serem observadas em pesquisas envolvendo seres humanos estabelecidas por meio da Resolução 196/96 (Conselho Nacional de Saúde, 1996). Desse modo, todos os participantes concordaram espontaneamente em participar da coleta de dados, tendo, para tanto, assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

Com base no emprego dos procedimentos estabelecidos pela análise temática de conteúdo, o conjunto do material obtido por meio das entrevistas foi organizado em cinco grandes categorias, as quais foram intituladas da seguinte forma: 1) “Ser ou não ser... lícita ou ilícita”, 2) “É (en)caminhando que se faz o caminho?”, 3) “Muitos caminhos para um só lugar” 4) “O usuário de álcool e drogas: um ilustre desconhecido” e 5) “As dificuldades do dia a dia”. Neste artigo, optou-se por privilegiar a discussão da segunda categoria, posto que a mesma focaliza a prática cotidiana em relação à atenção em saúde a usuários de álcool e outras drogas, agrupando, assim, os relatos sobre os movimentos empreendidos pelos participantes frente ao desafio de desenvolver ações de saúde junto a tal população.

Inicialmente, faz-se necessário salientar que, dos doze participantes, oito referiram que se limitam a realizar encaminhamentos para serviços especializados, sobretudo para os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad). Os relatos 1, 2 e 3 o exemplificam. Aparentemente a esse achado encontra-se subjacente uma concepção acerca dos usuários de álcool e outras drogas segundo a qual estes devem ser passivos ao saber dos profissionais de saúde. E uma concepção dessa natureza contraria a lógica da redução de danos preconizada desde o advento da Política Nacional sobre Drogas (Brasil, 2005). Afinal, como já mencionado, os serviços e profissionais que se orientam por tal lógica devem, para Santos e Malheiro (2010), privilegiar a construção conjunta de ações de saúde, estimulando, assim, o protagonismo dos usuários. Além disso, como destacam Souza e Kantorski (2007), a adoção de uma postura paternalista já se revelou insuficiente no sentido de reduzir os danos associados ao consumo abusivo de álcool e outras drogas.

Relato 1: “...a gente acabou, não sei se por comodidade também, tudo que é álcool e drogas é CAPS ad, né...” (Medicina 1)

Relato 2: “Aqui a gente não se encontra apto pra tratar com profundidade desse paciente, aí a gente acaba encaminhando pro CAPS ad, né, e acaba encaminhando, às vezes, quando a gente consegue, a assistente social consegue uma casa de internação, pra caso de internação, o que é muito raro” (Enfermagem 3)

Relato 3: “...o que as pessoas sabem dos profissionais do PSF é que quando alguém deseja, então, né, um tratamento pra álcool e drogas, encaminhar pro CAPS ad do município” (Psicologia 2)

Embora a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2003) enfatize a necessidade de uma assistência que considere o contexto sóciocultural do usuário e esteja integrada e articulada não só com os dispositivos de uma rede de Saúde Mental, mas também com toda a rede de saúde, não há uma definição mais clara sobre as responsabilidades de cada nível de atenção. Para além desse impasse, o relato 2 deixa claro que o participante em questão entende que a equipe da ESF na qual se encontra inserido se julga inapta a empreender qualquer ação de cuidados junto a usuários de álcool e outras drogas, talvez por não estar habituada ao manejo de questões que podem estar relacionadas ao sofrimento psíquico. E essa concepção de suposta inaptidão da equipe seria o principal determinante de sua propensão a se limitar a realizar encaminhamentos. Entretanto, parece razoável cogitar que, nesse contexto, a escuta frente à demanda dos usuários tende a ser prejudicada devido a um automatismo que desvaloriza as singularidades dos mesmos.

A ocorrência de problemas em relação à adesão quando da realização de encaminhamentos a serviços especializados foi mencionada por alguns participantes deste estudo, como se vê nos relatos 4 e 5. Entretanto, estes sugerem que os determinantes desses problemas são concernentes apenas aos próprios usuários, quer seja por falta de motivação ou pela distância de suas residências em relação aos CAPS ad. Tal concepção sobre a atenção em saúde a usuários de álcool e drogas e suas vicissitudes pode ser entendida como um fenômeno correlativo da desvalorização dos determinantes históricos e culturais que, conforme diversos autores (Araújo & Moreira, 2006; Nunes & Jólluskin, 2007; Silva, 2000), estão associados ao consumo dessas substâncias. E vale destacar que Martins et al. (2009) encontraram resultados similares em uma pesquisa com profissionais de enfermagem, posto que observaram que parte deles coloca em relevo as motivações pessoais do consumo de drogas, principalmente lícitas.

Relato 4: “...às vezes eles relutam em ir para o CAPS ad, não querem ir, então aí eu acabo discutindo o caso com a psiquiatra que vem aqui de vez em quando” (Medicina 1)

Relato 5: “...a maioria dos casos vão pro CAPS, ficam lá, sei lá, 1 mês, voltam pra trás...” (Psicologia 1)

Ainda em relação aos relatos 4 e 5, estes fazem menção a usuários que aderem ao encaminhamento aos CAPS ad e a outros que hesitam em fazê-lo. É possível supor que, para estes usuários que resistem a frequentar os serviços especializados, ainda não exista uma demanda explícita por um tratamento para o uso de álcool ou outras drogas, o que sinaliza que uma parcela dos encaminhamentos talvez seja motivada essencialmente por expectativas dos profissionais de saúde. Tal situação pode ser considerada problemática, na medida em que, conforme apontado anteriormente, a lógica da redução de danos preconiza, segundo Santos e Malheiro (2010), o compartilhamento de responsabilidades entre profissionais de saúde e usuários.

Os relatos 6 e 7 parecem confirmar que os participantes deste estudo não tendem a priorizar a construção conjunta de ações de saúde com os usuários de álcool e outras drogas. É possível supor que predominam, no cotidiano dos participantes, ações automáticas, passíveis de síntese por meio da seguinte formulação: se o usuário deixa de frequentar o CAPS ad, o profissional de saúde vai procurar fazer com que ele retorne, ao passo que, se o usuário entende que é necessária alguma mudança em seu padrão de consumo de álcool ou outras drogas, ele também é encaminhado ao CAPS ad. Não parece haver uma reflexão sobre os fatores associados à não adesão ou sobre a possibilidade de encaminhamento para outro dispositivo de saúde. Resultados semelhantes, ao menos em seus aspectos gerais, foram reportados por Lopes et al. (2009) em uma pesquisa com estudantes de enfermagem, na medida em que as autoras salientam que a maioria deles encontra dificuldades marcantes no estabelecimento de uma relação produtiva com os usuários.

Relato 6: “A verdade é a seguinte [...] quando esses casos, principalmente os que são egressos de CAPS ad, então eles chegam pra gente aqui [...] vou pras visitas domiciliares sempre pensando em fazer com que este paciente possa aderir ao tratamento no CAPS, fazer com que ele volte” (Psicologia 1)

Relato 7: “É até a gente acionar a decisão da pessoa querer mudar, no PSF. E aí depois a gente encaminha pros locais específicos, no CAPS ad” (Psicologia 2)

Para Favaro (2011), o encaminhamento partindo das unidades de Atenção Básica para unidades especializadas como os CAPS ad deveria ser realizado caso o usuário não obtivesse um resultado satisfatório frente à sua demanda de diminuir ou interromper o uso de álcool ou outras drogas. Isso após o empreendimento, por parte do profissional de saúde na Atenção Básica, de uma série de ações, destacando-se, dentre elas, orientações, intervenções para redução de danos, atenção compartilhada por meio de recursos de matriciamento e abordagens psicossociais. Ademais, é válido reforçar que, como já mencionado, pode-se inferir, em face da revisão da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2011a), que as equipes de Saúde da Família, sempre que necessário, devem empreender ações voltadas à saúde de usuários de álcool e outras drogas. E a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (Brasil, 2011b) explicita a relevância da ESF enquanto ponto de atenção para tal população com vistas à integralidade dos cuidados.

Na medida em que oferecem diversificadas ações aos usuários de álcool e outras drogas, os profissionais das equipes de Saúde da Família podem ampliar a possibilidade de uma escuta atenta, capaz de viabilizar o surgimento e a consolidação da demanda de atenção em saúde e a implicação do próprio indivíduo nos cuidados de si.

Além disso, a oferta de cuidados pode propiciar o fortalecimento do vínculo com o usuário de álcool e outras drogas, abrindo a possibilidade da construção conjunta de uma proposta de cuidados em saúde. Mesmo que o encaminhamento se mostre necessário, ele precisa ser construído com o usuário, e este deve ter segurança em relação à continuidade de seu acompanhamento por parte da equipe de saúde mais próxima a ele. Ou seja, o usuário deve ter a certeza de que poderá retornar ao seu ponto de partida, sem julgamentos.

Embora alguns profissionais que atuam na ESF não se sintam capacitados para oferecer assistência a usuários de álcool e outras drogas, é possível que tenham condições de promover algum acolhimento. E profissionais aptos a acolher, para Oliveira e Tedesco (2006), apresentam um atributo essencial para trabalhar junto a tal população. Ocorre que, nas palavras das referidas autoras, “acolher, receber, estar aberto para a especificidade da vivência do outro. Eis o principal requisito para o tratamento de dependentes químicos” (p.53). A propósito, cumpre assinalar que o acolhimento é apontado como ferramenta central para a qualificação dos cuidados em saúde e para a articulação e integração dos pontos de atenção no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial.

Tendo em vista o que precede, pode-se concluir que o presente estudo esclarece aspectos importantes das concepções dos participantes acerca da atenção em saúde a usuários de álcool e outras drogas. Assumindo as assertivas de Delgado (2010), é razoável deduzir que tais concepções podem influenciar a assistência oferecida pelos profissionais de saúde a essa população, principalmente no que tange à observância das diretrizes estabelecidas pelas políticas públicas vigentes. O presente estudo amplia o entendimento a respeito do assunto, na medida em que pesquisas anteriores com enfoque semelhante foram desenvolvidas com populações distintas: familiares de alunos do ensino fundamental (Brusamarello et al., 2008), profissionais de enfermagem (Martins et al., 2009), docentes de um curso de graduação em enfermagem (Lopes & Pessanha, 2008) e estudantes de enfermagem (Lopes et al., 2009). De qualquer forma, ao menos um denominador comum entre os resultados ora reportados e aqueles veiculados por tais pesquisas pode ser apontado: uma parcela expressiva dos participantes concebe o consumo de álcool e outras drogas de forma reducionista, colocando em relevo suas motivações individuais e negligenciando seus determinantes históricos e culturais.

Por fim, considerou-se importante ancorar os resultados ora reportados a um quadro de referenciais teóricos, estratégia que, para Campos e Turato (2009), confere maior sustentação ao desenvolvimento de inferências preconizado pela análise temática de conteúdo. Neste processo, optou-se pela interpretação como procedimento metodológico, buscando-se, assim, a identificação dos significados latentes dos relatos apresentados pelos participantes do presente estudo. A interpretação desses relatos – sobretudo aqueles referentes à categoria “É (en)caminhando que se faz o caminho?” – revela que, em parte, as concepções dos mesmos acerca da atenção em saúde a usuários de álcool e outras drogas podem ser compreendidas mediante o recurso a um operador conceitual psicanalítico, a saber: pacto denegativo.

Trata-se de um operador conceitual pósfreudiano, proposto originalmente por Käes (1991) no contexto clínico para designar uma espécie de aliança inconsciente que se estabelece entre os membros de uma família, criando uma espécie de zona de silêncio que impossibilita a elaboração de questões problemáticas. Nesse sentido, o vínculo estabelecido pelos participantes do presente estudo com os usuários de álcool e outras drogas pode ser interpretado como resultante de um conluio que implica em uma espécie de renúncia daqueles (os profissionais de saúde) em relação a estes (os usuários).

Käes (1991) esclarece que o pacto denegativo tem duas polaridades: organizativa e defensiva. Afinal, ele organiza o vínculo entre as partes, mas o faz por meio de uma operação defensiva que promove certos benefícios ao implicar no abandono das possibilidades de elaboração das questões problemáticas que o motivaram, na medida em que as mantém no plano inconsciente. O próprio pacto denegativo, deve-se reforçar, também é um fenômeno inconsciente, cujo enunciado não pode ser formulado consciente e espontaneamente pelo sujeito, o que contribui para a manutenção do status quo, quer seja em uma família, em um grupo ou em uma instituição.

Considerações finais

A complexidade do tema “álcool e outras drogas” permite que sua abordagem em pesquisa seja feita a partir de diversos vértices. Este estudo privilegiou uma metodologia qualitativa em face do objetivo de delinear as concepções de profissionais de saúde acerca da atenção aos usuários de álcool e outras drogas no âmbito da ESF. Apesar do número relativamente reduzido de participantes, tal metodologia permitiu que o objetivo pretendido fosse atingido. Possivelmente, o fato de ter sido utilizado um roteiro semiestruturado de entrevista também foi determinante para tanto, pois permitiu aos participantes se expressarem com significativa liberdade. O recurso a um operador conceitual psicanalítico igualmente foi considerado proveitoso, dado que possibilitou a ancoragem dos resultados a um quadro de referenciais teóricos.

Em suma: os resultados apontam que os participantes possuem concepções acerca dos usuários de álcool e drogas permeadas por preconceitos e estigmas, o que gera dificuldades para o empreendimento de ações de saúde e os leva, na maior parte das vezes, a apenas realizar encaminhamentos. Os usuários são vistos como pessoas que dificilmente demonstram adesão aos tratamentos. Além disso, os participantes perceberam-se sem capacitação para oferecer cuidados a essa população. De modo geral, parece prevalecer a concepção de que a ESF tem pouco a oferecer e a atenção aos usuários de álcool e outras drogas deveria estar a cargo de profissionais e serviços especializados para tanto. Tal concepção, vale destacar, pode ser considerada incompatível com as diretrizes estabelecidas pelas políticas públicas vigentes. Não obstante, tal concepção aparentemente tem origem em processos inconscientes com propósitos defensivos. Logo, não é reconhecida conscientemente pelos participantes.

Obviamente o presente estudo possui limitações, as quais dizem respeito principalmente à composição dos participantes, uma vez que entre eles foram incluídos representantes de apenas três categorias profissionais. Portanto, estes não podem ser considerados representativos dos profissionais de saúde em geral. Ademais, todos os participantes se encontravam vinculados à ESF. Uma vez que a atenção aos usuários de álcool e outras drogas é um desafio para a saúde pública como um todo, seria importante conhecer, além das concepções de médicos, enfermeiros e psicólogos sobre assunto, as concepções de outras categorias profissionais, inseridas em outros níveis de atenção ou em serviços especializados como CAPS ad. Portanto, recomenda-se que novos estudos sejam realizados com esse enfoque, de modo a possibilitar o aprofundamento do conhecimento atualmente disponível a respeito na literatura nacional e, assim, identificar eventuais obstáculos à efetivação das políticas públicas.

Recebido 24/09/2012

Aprovado 16/10/2013

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  • Endereço para correspondência
    Waleska Rodrigues Silva
    Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Psicologia.
    Avenida Pará, 1720 – Bloco 2C, Campus Umuarama. CEP 38.401-136. Uberlândia/MG – Brasil
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    Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia – MG – Brasil. E-mail:
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    Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia – MG – Brasil. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      24 Set 2013
    • Aceito
      16 Out 2013
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