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Apropriação cultural e mediação pedagógica: contribuições de Vigotski na discussão do tema

Apropiación cultural y mediación pedagógica: las contribuciones de Vigotski para discutir el tema

Cultural appropriation and pedagogic mediation: contributions from Vygotsky to discuss the subject

Resumos

Este artigo consiste em pesquisa cujo objetivo foi conhecer o repertório cultural de professores de escolas públicas de Educação Básica de Uberaba e Uberlândia (MG). Fundamentada na teoria de Vigotski e na de Bourdieu, a pesquisa partiu do pressuposto de que a mediação para a aprendizagem será tanto melhor quanto mais abrangente e variado for o repertório de conhecimentos e experiências do mediador. Os professores responderam a questionários cujas respostas indicaram que a maioria não tem familiaridade com expressões da cultura erudita e com determinadas produções artísticas, principalmente devido aos baixos salários e às intensas jornadas de trabalho. Considerando-se que a escola, para muitos, é a única possibilidade de acesso à produção artística não massificada, a pesquisa aponta a necessidade de ampliar as investigações no sentido de aprofundar a discussão acerca da temática nela abordada, bem como a premência de se criar uma política pública para a formação cultural e estética de professores.

Apropriação cultural; mediação pedagógica; Vigotski


Este artículo se refiere a la investigación cuyo objetivo era conocer el repertorio cultural de los maestros de la enseñanza general básica de las ciudades de Uberaba y Uberlândia (MG). Basado en las teorías de Vigotski y la de Bourdieu. La investigación supone que la mediación para el aprendizaje será mucho mejor cuanto más amplio y variado sea su repertorio de conocimientos y experiencias. Los datos sobre las experiencias estéticas de los docentes fueron recolectados a través de un cuestionario. Los resultados indican que la mayoría de los docentes no tiene familiaridad con expresiones de la alta cultura, o que se debe, principalmente, a los bajos salarios y jornadas laborales intensas. Teniendo en cuenta que la escuela es, para muchos, la única posibilidad de acceso a la producción artística que no sea de masas, el estudio identifica la necesidad de ampliar las investigaciones para profundizar la discusión sobre el tema que aborda, como la urgencia de crear una política pública para el bienestar cultural y estético de los docentes.

Apropiación cultural; mediación pedagógica; Vigotski


This article refers to the research that targeted the understanding of the cultural repertoire of public school teachers in primary and high school of Uberaba and Uberlândia cities (Minas Gerais state). Based on on Vygotsky’s and Bourdieu’s theories, the project assumes that the mediation for learning would be better as much as its repertoire of knowledge and experience is wide and varied. Data on the aesthetic experiences of teachers were collected through a questionnaire. The results indicate that the majority does not have the habit of visit spaces and cultural events, and that the familiarity with expressions of high culture is weak or virtually nonexistent, mainly due to low wages and intense days of work. Considering that the school is, for many, the only possibility of accessing the non mass artistic production, the study identifies the need to expand investigations that deepen the discussion about the topic it addressed, as well as the urgent need of creating a governmental policy to the cultural and aesthetic formation of teachers.

Cultural appropriation; pedagogical mediation; Vygotsky


ARTIGOS

Apropriação cultural e mediação pedagógica: contribuições de Vigotski na discussão do tema1 1 Cultura aqui entendida como conceito antropológico: “(...) modos de pensar, de ser e de se comportar de uma coletividade (...) maneira de representar e de interpretar o mundo (...) percepção com relação ao Outro e (...) maneiras de entrar em contato e de se comunicar com ele.” (Mellouki & Gauthier, 2004, p. 539).

Cultural appropriation and pedagogic mediation: contributions from Vygotsky to discuss the subject

Apropiación cultural y mediación pedagógica: las contribuciones de Vigotski para discutir el tema

Silvia Maria Cintra da SilvaI; Célia Maria de Castro AlmeidaII; Sueli FerreiraIII

IDoutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil(2002). Professora Associada 1 da Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

IIDoutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil(1992). Professora Titular da Escola Paulista de Magistratura , Brasil

IIIDoutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil(2002). Professora Participante da Universidade de Uberaba , Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Silvia Maria Cintra da Silva Instituto de Psicologia - Campus Umuarama - Bloco 2C Av. Pará, 1720, Bairro Umuarama CEP 38400-902, Uberlândia-MG, Brasil E-mail: silvia_ufu@hotmail.com

RESUMO

Este artigo consiste em pesquisa cujo objetivo foi conhecer o repertório cultural de professores de escolas públicas de Educação Básica de Uberaba e Uberlândia (MG). Fundamentada na teoria de Vigotski e na de Bourdieu, a pesquisa partiu do pressuposto de que a mediação para a aprendizagem será tanto melhor quanto mais abrangente e variado for o repertório de conhecimentos e experiências do mediador. Os professores responderam a questionários cujas respostas indicaram que a maioria não tem familiaridade com expressões da cultura erudita e com determinadas produções artísticas, principalmente devido aos baixos salários e às intensas jornadas de trabalho. Considerando-se que a escola, para muitos, é a única possibilidade de acesso à produção artística não massificada, a pesquisa aponta a necessidade de ampliar as investigações no sentido de aprofundar a discussão acerca da temática nela abordada, bem como a premência de se criar uma política pública para a formação cultural e estética de professores.

Palavras-chave: Apropriação cultural, mediação pedagógica, Vigotski

ABSTRACT

This article refers to the research that targeted the understanding of the cultural repertoire of public school teachers in primary and high school of Uberaba and Uberlândia cities (Minas Gerais state). Based on on Vygotsky’s and Bourdieu’s theories, the project assumes that the mediation for learning would be better as much as its repertoire of knowledge and experience is wide and varied. Data on the aesthetic experiences of teachers were collected through a questionnaire. The results indicate that the majority does not have the habit of visit spaces and cultural events, and that the familiarity with expressions of high culture is weak or virtually nonexistent, mainly due to low wages and intense days of work. Considering that the school is, for many, the only possibility of accessing the non mass artistic production, the study identifies the need to expand investigations that deepen the discussion about the topic it addressed, as well as the urgent need of creating a governmental policy to the cultural and aesthetic formation of teachers.

Key words: Cultural appropriation, pedagogical mediation, Vygotsky

RESUMEN

Este artículo se refiere a la investigación cuyo objetivo era conocer el repertorio cultural de los maestros de la enseñanza general básica de las ciudades de Uberaba y Uberlândia (MG). Basado en las teorías de Vigotski y la de Bourdieu. La investigación supone que la mediación para el aprendizaje será mucho mejor cuanto más amplio y variado sea su repertorio de conocimientos y experiencias. Los datos sobre las experiencias estéticas de los docentes fueron recolectados a través de un cuestionario. Los resultados indican que la mayoría de los docentes no tiene familiaridad con expresiones de la alta cultura, o que se debe, principalmente, a los bajos salarios y jornadas laborales intensas. Teniendo en cuenta que la escuela es, para muchos, la única posibilidad de acceso a la producción artística que no sea de masas, el estudio identifica la necesidad de ampliar las investigaciones para profundizar la discusión sobre el tema que aborda, como la urgencia de crear una política pública para el bienestar cultural y estético de los docentes.

Palabras-clave: Apropiación cultural; mediación pedagógica; Vigotski

A partir da segunda metade do século XX as ciências humanas e as ciências sociais reconheceram na cultura2 2 Respectivamente La Reproduction. Éléments pour une théorie du système d'enseignement (1970) e Deschooling Society (1971). uma importância e um poder analítico-interpretativo maiores, de modo que na análise social contemporânea ela passou a ser vista como condição constitutiva da vida social. Enquanto Featherstone (2000) entende que na área educacional o interesse pelos estudos sobre a cultura (como categoria de análise ou campo de investigação) resultou da intensificação de estudos trans e interdisciplinares, Faria Filho, Gonçalves, Vidal e Paulilo (2004) ressaltam a influência de obras como A reprodução, de Bourdieu e Passeron, e Sociedade sem escolas, de Illich3 3 Para Tardif (2002, p. 12–3), a noção de “saber” tem “(...) sentido amplo, que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes, isto é, aquilo que muitas vezes foi chamado de saber, saber-fazer e saber-ser.” .

No campo da psicologia, as ideias de Vigotski contribuíram para os questionamentos da década de 1980, a parir dos quais a cognição e cultura passaram a ser compreendidas como elementos inseparáveis de um processo. Pino (2005, p. 35) ressalta a inovação trazida por Vigotski à psicologia, que faz da cultura “a categoria central de uma nova concepção do desenvolvimento psicológico do homem.” Com a introdução desta categoria, que rompe com uma visão naturalística sobre o homem, ocorre uma mudança qualitativa no debate da psicologia acerca do desenvolvimento humano.

Em educação, é consenso que o sucesso do processo de ensino e aprendizagem depende, em grande parte, do domínio de conteúdos escolares e da capacidade do professor de ensiná-los. Bourdieu e Passeron concluíram que as relações entre competências culturais e linguísticas próprias de dada classe social determinam o desempenho escolar. Se tomarmos como certa a premissa de não ser possível separar sistemas de ensino dos demais dispositivos cognitivos e simbólicos em ação no campo social (Bourdieu, 1998), podemos pressupor uma relação entre capital cultural e desempenho docente: professores com capital cultural maior e diversificado teriam desempenho profissional superior ao dos não familiarizados com certos bens culturais; ou seja, quanto mais amplo e variado for o repertório cultural do professorado, mais numerosas e apropriadas serão as escolhas possíveis para que este medeie a construção de conhecimentos escolares.

Ao concordar com Bourdieu e Passeron, e também com Vigotski, podemos concluir que o capital cultural do professor é de fundamental importância na mediação que faz para a aprendizagem dos conteúdos escolares, e este é o objeto da pesquisa “Repercussões do repertório cultural de professores da educação básica de Uberaba e de Uberlândia (MG) nas suas práticas pedagógicas”, realizada nos anos de 2005 e 2006, cujos resultados discutimos neste artigo.

CULTURA COMO CONTEÚDO DA EDUCAÇÃO

Numerosos são os estudos que destacam os vínculos entre cultura e educação ou enfatizam a importância das experiências culturais para o desenvolvimento humano (Forquin, 1993; Bourdieu, 1998, 2002; Vigotski, 2000, 2003 a e b, entre outros). Vigotski (2000, p. 34) afirma que “A cultura origina formas especiais de conduta, modifica a atividade das funções psíquicas, edifica novos níveis no sistema do compostamento humano em desenvolvimento”, o que também pode ser compreendido como uma forma especial de desenvolvimento a partir da experiência cultural.

Vigotski (2003b) apresenta cultura e prática pedagógica de forma interativa e em plano privilegiado, por atribuir à instrução preponderante papel na constituição da consciência. Em uma visão histórico-cultural do conhecimento, segundo a qual o saber é social é criado nas interações, o professor é responsável por organizar atividades educacionais que possibilitem ao indivíduo criar e, consequentemente, internalizar o conhecimento social. Nesta linha de raciocínio, Vigotski (2003a, p. 76) afirma: “Do ponto de vista psicológico, o professor é o organizador do meio social educativo, o regulador e controlador de suas interações com o educando” e “é onipotente em sua influência indireta, através do meio social. O ambiente social é a autêntica alavanca do processo educativo, e todo o papel do professor consiste em lidar com essa alavanca”.

Forquin (1993), fundamentado na obra La crise de la culture, de Hannah Arendt, afirma ser a cultura o conteúdo da educação; é por ela que se transmitem às novas gerações os conhecimentos, as competências, as instituições, os valores e os símbolos que se constituíram durante gerações e caracterizam dada comunidade humana, definida de maneira mais ou menos ampla e mais ou menos exclusiva. Nestes termos, é incontestável a relação entre educação e cultura, porque, seja o termo educação tomado em sentido amplo, como formação e socialização do indivíduo, seja em sentido restrito ao domínio escolar, é preciso reconhecer que, se a educação é sempre educação de alguém por alguém, ela sempre pressupõe, necessariamente, comunicação, transmissão, aquisição de algo: conhecimentos, competências, crenças, hábitos e valores, que compõem o que se chama exatamente “conteúdo” da educação (Forquin, 1993).

APROPRIAÇÃO DA CULTURA E DESENVOLVIMENTO HUMANO

A psicologia de Vigotski (2000; 2003a) preocupa-se com o homem histórico, com o homem constituído na cultura, que organiza os impulsos naturais herdados, como também proporciona o material para estudo da própria conduta humana. Com base neste princípio teórico, Vigotski, ao investigar a constituição da mente, contempla as dimensões biológica e social.

Na estruturação de sua teoria Vigotski baseou-se em quatro eixos fundamentais: a) a atividade mediada, que é um desenvolvimento da ideia do emprego de ferramentas na atividade humana; b) o papel da interação social na origem da linguagem e, em geral, de toda conduta mediada; c) a conduta intencional e voluntária; d) a influência das condições socioculturais de vida no desenvolvimento dos processos psíquicos superiores: percepção, atenção voluntária, memória, solução de problemas (Siguán, 1987).

Vigotski investigou como se adquirem e desenvolvem os aspectos tipicamente humanos na filogênese e ontogênese, procurando estudar como o homem se apropria de sua herança cultural acumulada ao longo da história. Os eixos acima citados se relacionam de tal forma que a explicação de um não prescinde da explicação do outro, sendo que um ponto os centraliza: as interações pessoais.

A psicologia histórico-cultural aponta que, ao aprender, o indivíduo não está isolado, mas sempre envolvido com outras pessoas, em um processo intersubjetivo constituído pelo sujeito que aprende, pelo sujeito que ensina e pela própria relação entre eles. Não obstante, a aprendizagem não ocorre apenas na presença do sujeito que ensina; ela pode ser constituída por objetos culturais, situações sociais e, principalmente, pela linguagem, que, por estar carregada de significados, torna-se o signo fundamental para a internalização das coisas da cultura. Emerge desta dinâmica a importância dos mecanismos externos (sociais) na constituição dos mecanismos internos do indivíduo. São os movimentos interpsicológicos constituindo o intrapsicológico. Sobre estes movimentos Vigotski (2000, p. 150) assim se expressou:

Podemos formular a lei genética geral do desenvolvimento cultural do seguinte modo: toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos. primeiro no plano social e depois no psicológico, primeiramente entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica.

Tais movimentos alicerçam o processo de apropriação da cultura proposto por Vigotski (2003b), que aponta para a natureza social, histórica e cultural dos processos mentais superiores, os quais são constituídos na dinâmica da interação do homem com seu mundo cultural. A apropriação da cultura acontece de forma transformadora: o homem transforma as atividades externas ao seu organismo e as interações com o outro em atividades internas e intrapsicológicas.

Considerando estes princípios, a psicologia de Vigotski estuda a relação entre aprendizagem e desenvolvimento, criando o conceito de Zona de Desenvolvimento Próximo (ZDP), que parte do princípio de que “qualquer situação de aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem sempre uma história prévia” (Vigotski 2003a, p.110). Entretanto, a psicologia histórico-cultural defende a ideia de que o contexto escolar necessita descobrir as relações reais entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizado, o que levou Vigotski à definição de dois níveis de desenvolvimento: o real e o potencial.

O desenvolvimento real é aquele que permite ao indivíduo solucionar problemas de forma independente, enquanto o desenvolvimento potencial é o que lhe permite encontrar soluções por meio de orientações e da colaboração de outrem. A distância entre estes dois níveis do desenvolvimento é demarcada como zona de desenvolvimento próximo e “define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário”. (Vigotski 2003 a, p. 113 ).

Na ZDP é que o processo instrucional se constitui, a fim de estimular o desenvolvimento psicológico do indivíduo. Atuando neste “espaço”, o professor tem a possibilidade de potencializar os modos mais adequados ao desenvolvimento real do indivíduo e ao seu contexto sociocultural. Enfatizamos, no entanto, que esta atuação exige do professor o conhecimento do desenvolvimento real de seus alunos, princípio básico de uma prática pedagógica efetivamente transformadora.

O professor que atua na ZDP torna-se mediador do conhecimento e da apropriação da produção humana. Ao afirmarmos isso nos reportamos ao processo de mediação, que mereceu especial atenção de Vigotski ao abordar a questão dos instrumentos de trabalho e dos signos na constituição das funções psicológicas superiores. Conforme Vigotski (2000), assim como os instrumentos mudam operações de trabalho, os signos ― instrumentos psicológicos ― alteram a estrutura psicológica; ou seja, as palavras, os números, os recursos mnemotécnicos, símbolos algébricos, obras de arte, sistemas de escrita, mapas, diagramas, etc., são artefatos sociais que modificam a organização mental humana e ressoam no contexto em que o sujeito vive, portanto são mediadores dos processos psicológicos.

Vigotski destacou, ainda, outra forma de mediação: a que se dá por meio de outra pessoa (Kozulin, 1994, p.116). Como apontamos anteriormente, é na relação com o outro que se constitui o plano interpsicológico do desenvolvimento cultural do indivíduo. Neste sentido, o outro é signo mediador de condutas, gestos, sentimentos e pensamentos, valendo lembrar que toda e qualquer função psicológica superior foi social antes de tornar-se interna ao indivíduo.

A importância destas características da teoria histórico-cultural nos leva a refletir sobre o contexto escolar, que é, por excelência, destinado a propiciar experiências e aprendizagens gradativamente mais complexas e desafiadoras para impulsionar o desenvolvimento humano.

O âmbito escolar apresenta-se como fórum privilegiado para a apropriação da cultura, e o professor, como singular agente mediador deste processo. Seu papel no processo de aprendizagem é fundamental, por isso ele precisa refletir continuamente sobre os conhecimentos que se propõe a ensinar, como ensiná-los, quais experiências deve organizar e de que forma pode mediar intencionalmente a aprendizagem. Escrevem Zanella, Da Ros, Reis e França (2004, p. 96):

Contextos de ensinar e aprender são, portanto, contextos de produção de significações em que os sujeitos em relação ativamente produzem aos outros como a si mesmos. Isso porque aprender, de acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, consiste na apropriação ativa (e não adaptação, introjeção literal do percebido) das significações das produções humanas que caracterizam a realidade como universo semiótico: é um meio para a humanização, posto que possibilita a constituição de modos mais complexos e elaborados de regulação pelo próprio sujeito de sua conduta e vontade.

CONSTITUIÇÃO DA PROFISSIONALIDADE DOCENTE

Se o professor é, por excelência, o mediador da aprendizagem dos conteúdos escolares, e se experiências culturais da vida cotidiana contribuem para a sua formação e atuação na docência, é pertinente refletir a respeito de como se constitui sua subjetividade profissional, ou seja, como ele se apropria das dimensões teóricas e das práticas referentes à sua profissão e como as internaliza e as transforma em prática pedagógica.

Como sujeitos sociais e históricos, os professores têm visões de mundo, valores, sentimentos, comportamentos e hábitos próprios, derivados de um conjunto de experiências vivenciadas em espaços sociais diversos. Assim, estudos sobre as relações do professorado com a cultura são relevantes, por permitirem compreender dimensões da vida social que determinam, em parte, suas práticas pedagógicas.

Tardif (2002, p. 9), ao indagar-se acerca dos “saberes que servem de base ao ofício de professor [e sobre] como esses saberes são adquiridos”4 4 A acepção clássica ou humanista entende cultura como “(...) o conjunto de conhecimentos, dos mais variados campos, que contribuem para a formação do senso crítico, do gosto e da capacidade de julgar do indivíduo que os adquire.” (Mellouki & Gauthier, 2004, p. 539). , mostra que o saber docente é plural e construído em diferentes tempos e espaços da vida em sociedade; é resultante de um amálgama de vários saberes: os da formação profissional, os disciplinares, os curriculares e os experienciais. Os saberes da formação profissional são as doutrinas e concepções transmitidas pelas instituições de formação pedagógica. Os saberes disciplinares correspondem aos diversos campos do conhecimento que surgem da tradição cultural, dos grupos sociais produtores de saberes e que são organizados em disciplinas. Ossaberes curriculares – expressos em objetivos, conteúdos e métodos apresentados nos programas escolares – são “(...) os saberes sociais por ela [a instituição] definidos e selecionados como modelos de cultura erudita” (Tardif, 2002, p. 36–7). Enfim, os saberes experienciais são constituídos na experiência do trabalho cotidiano e mobilizam conhecimentos adquiridos na história de vida, na experiência de trabalho e na socialização; são construídos por professores “(...) em interação com diversas fontes sociais de conhecimentos, de competências, de saber-ensinar provenientes da cultura circundante, da organização escolar, dos atores educativos, das universidades, etc.” (Tardif, 2002, p. 111).

Se, como afirma Tardif (2002), os saberes experienciais colaboram para a constituição do saber docente, e se resultam, em grande parte, das experiências da vida em sociedade, então cabe perguntar: que experiências são essas?

Assim como Tardif, vários autores (Fontana, 2000; Imbernón, 2000; Nóvoa, 1997, entre outros), ao discutirem a formação para o magistério, concordam que a subjetivação profissional se refere aos modos de apropriação e internalização das dimensões teórico-práticas relativas à profissão construídas pelo sujeito ao longo de sua vida. A formação do professor, segundo estes autores, acontece nos entremeios das múltiplas práticas sociais e culturais que ocorrem dentro e fora da escola.

Este entendimento vem ao encontro do que nos informa a teoria histórico-cultural: é na relação com o outro que nos constituímos (Vigotski, 2003b); e sendo assim, é por meio das interações tecidas ao longo de sua história de vida que alguém se torna professor, e é nas e pelas interações que ele conhece, experimenta e organiza sua prática, as filigranas que configuram suas relações com o aluno e outros aspectos que constituem a aula propriamente dita, a sala de aula e a escola, considerando-se também a educação de modo geral e as políticas públicas que regulamentam as atividades educacionais.

Assim, na relação com os diversos outros ― colegas professores, alunos, família, sociedade, conhecimentos ― o educador constrói o seu ser/fazer/saber docente, forma e é formado dialeticamente em suas relações, em uma dinâmica interativa, num processo que se inicia antes mesmo da educação acadêmica para o magistério e se prolonga ao longo da vida. Enfim, experiências pedagógicas concretas, vivenciadas como estudante e como docente, assim como todas as demais experiências da vida cotidiana, igualmente vão formando um arcabouço que embasa as ações pedagógicas.

É neste arcabouço de experiências adquiridas tanto na escola (como aluno ou, posteriormente, como professor) quanto na vida cotidiana que se constitui a subjetividade do profissional professor. Os professores levam para a sala de aula um repertório cultural que interfere de forma direta no modo como ensinam e aprendem, assim como dialeticamente acontece com o repertório dos estudantes. Em se tratando do professor, a repercussão de seu repertório de experiências se dá na prática pedagógica, em especial na seleção de recursos didáticos e na proposição de atividades para discentes. Sua prática se ancora em experiências proporcionadas pelo ambiente sociocultural cotidiano, entre elas a leitura, os programas de tevê, o cinema, os shows de música ao vivo - enfim, experiências promovidas por diferentes instituições educativas que não a escola, como a família, a igreja e o clube, entre outras, mas também pelos meios de comunicação de massa, como tv, cinema, jogos eletrônicos, imprensa, propaganda, etc. (Giroux, 1995). Daí a importância de conhecer as práticas culturais dos professores, conhecimento que pode contribuir para a compreensão da mediação oferecida aos estudantes no espaço escolar.

REFERÊNCIAS CULTURAIS E PROCESSOS DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Sendo a escola o lugar privilegiado para educar, “(...) é esperado que as atividades ligadas à cultura, como música, literatura, teatro, cinema, entre outras, sejam partes importantes do processo educativo.” (Perfil, 2004, p. 89); e se os professores são responsáveis e mediadores no processo ensino e aprendizagem, conhecer as dimensões da vida sociocultural do professor “(...) pode alargar a compreensão da educação e do papel dos educadores na sociedade.” (Perfil, 2004, p. 89).

Estudos diversos apontam o valor das artes para o desenvolvimento humano e a aprendizagem como um todo (Duarte Júnior, 2001; Hernández, 2000; Peregrino, Penna & Coutinho, 1995; Silva, 2005; Teplov, 1977; Vigotski, 1987). Alguns autores entendem que os currículos escolares pouco valorizam o patrimônio cultural da humanidade, e defendem currículos concebidos numa “perspectiva cultural”, que possibilitem aos alunos o acesso às artes, à literatura, ao patrimônio histórico e à cultura científica e tecnológica:

(...) o papel do mestre é tornar o aluno (...) consciente de sua herança, colocando-o em contato com a obra humana passada e com as culturas de outros lugares, com o desenvolvimento das letras, das artes, da história, das ciências das tecnologias. (...) É auxiliando o aluno a situar os conhecimentos, objetos culturais e modos de vida em seu contexto social e histórico que o mestre contribui para a formação cultural do aluno para ajudá-lo a tomar consciência dos pontos de junção e de ruptura que marcam a história humana. (Mellouki & Gauthier, 2004, p. 557. Em itálico no original).

Peregrino, Penna e Coutinho (1995), ao comentarem a conquista cotidiana da cidadania plena, afirmam que a escola necessita ampliar o acesso à arte e à cultura, sendo ela a instituição que, em grande parte, cria a necessidade cultural e fornece os meios para satisfazê-la. As autoras afirmam que o ensino democratizante das artes é aquele preocupado em oferecer aos alunos esquemas de apropriação dos bens culturais. Afirmam elas: “O desafio é a construção de caminhos que levem da camiseta ao museu, do rádio à sala de concerto e da novela de TV ao teatro.” (1995, p. 28).

Hernández afirma que a arte atua como um mediador cultural e explica:

Entendo por função mediadora uma derivação da idéia de Vygotsky de mediação que pressupõe que ‘o signo é possuidor de significado’. Isso implica que a arte, os objetos e os meios da cultura visual contribuem para que os seres humanos construam sua relação-representação com os objetos materiais de cada cultura (...) (2000, p.52).

Infelizmente, são escassos os estudos que apontam a relevância das experiências estéticas para os processos de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e para a constituição da profissionalidade docente, o que não se justifica por falta de reconhecimento da importância desses vínculos. Kincheloe (1997, p. 72) afirma que a arte se constitui como uma “epistemologia alternativa” que possibilita uma forma de conhecer “que transcende as declarativas formas de conhecimento”.

Garcia (2000) e Kramer (2006) reclamam da falta de uma política de formação que assegure ao professor o acesso a concertos, óperas, balés, teatros, museus, etc.; e Nogueira (2008, p. 38) defende uma formação cultural que vá

(...) além da dicotomia cultura popular – cultura erudita. Ir além não no sentido de ignorar as diferenças, mas sim de promover um processo de enriquecimento pessoal que abrace todo esse campo, que inclua tanto o conhecimento das práticas culturais locais quanto as obras-primas universais.

Por fim, as Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores da Educação Básica apontam a necessidade de os currículos de licenciatura oferecerem “atividades de enriquecimento cultural” (Brasil, 2002, s.p.), e o Plano Nacional de Educação recomenda às instituições de ensino superior “buscar parcerias com os equipamentos culturais públicos, tais como museus e bibliotecas e privados, como cinemas e teatros.” (Brasil, 2000, p. 74) .

Esta recente (mas ainda insuficiente) preocupação dos órgãos governamentais é auspiciosa diante dos resultados de uma pesquisa de âmbito nacional (Perfil, 2004) acerca do perfil dos professores brasileiros que atuam na Educação Básica. Realizada em 2002, a pesquisa, entre outros quesitos, levantou informações sobre o consumo cultural e as preferências e atividades culturais docentes. Os dados, obtidos mediante questionário respondido por cinco mil professores de escolas públicas (82%) e privadas (18%) das 27 unidades federativas (1.698.383 professores), revelam ser muito baixa a frequência a museus e exposições de artes visuais, teatro, concertos de música erudita e cinema: 62,1% dos professores nunca foram a um concerto musical, 17,4% nunca foram ao teatro, 14,8% nunca foram a um museu, 8,6% nunca visitaram uma exposição em centros culturais e 8,6% nunca foram ao cinema (Perfil, 2004). Estes índices tanto podem ser decorrência de um descaso para com a formação cultural na educação escolar como podem indicar ser escassa ou nula a oferta de equipamentos, ações e eventos culturais em muitos municípios brasileiros.

A PESQUISA

Partindo do pressuposto de que práticas culturais vivenciadas fora da escola também constituem os saberes docentes, interessava-nos conhecer o repertório cultural de professores que atuavam em escolas públicas de educação básica em Uberaba e Uberlândia, cidades de 300 mil e 600 mil habitantes, respectivamente, situadas no Triângulo Mineiro.

O problema foi investigado em duas perspectivas: a quantitativa e a qualitativa. Num primeiro momento trabalhamos dados gerados a partir de informações recolhidas por meio de questionário composto por questões abertas e de múltipla escolha, e levantamos dados relativos à identidade dos professores — gênero, idade, estado civil, constituição familiar —, à sua formação e atuação profissional, às práticas relacionadas aos hábitos e preferências de leitura, música, programas de tv, e à frequência a museus, exposições de artes visuais, cinema, teatro, concertos, shows musicais e espetáculos de dança.

A seleção das escolas nas quais se aplicou o questionário aos professores não foi inteiramente aleatória, a fim de garantir a representatividade e proporcionalidade de diferentes tipos de escola: municipais e estaduais; de Educação Infantil, de Ensino Fundamental e de Ensino Médio; escolas centrais e escolas de bairros periféricos.

Os questionários foram respondidos nas escolas, na presença das pesquisadoras, e os dados recolhidos das respostas foram estatisticamente analisados por meio do software Statistical Package for Social Science (SPSS). Os dados colhidos nos questionários subsidiaram a elaboração de um roteiro para entrevista semiestruturada a fim de aprofundar algumas das respostas neles obtidas. Dada a amplitude da pesquisa e a extensão permitida a este artigo, nele trataremos apenas de parte dos dados obtidos nos questionários.

Perfil e condições de trabalho dos professores

Dos 584 professores atuantes nas escolas públicas de Uberaba e Uberlândia à época da pesquisa que responderam ao questionário, 88,2% eram mulheres e 11,8% homens, sendo que 64,9% lecionavam exclusivamente no Ensino Fundamental, 21% no Ensino Médio, e 14,1% na Educação Infantil. Entre os que atuavam no Ensino Fundamental e Médio estão representados em maior número os que lecionavam Matemática (15,6%), Língua Portuguesa (14,5%), História (10,5%), Geografia (8,7%) Educação Física (8,7%) e Educação Artística (7,2%). Os representantes das demais disciplinas e dos que lecionavam dois ou mais componentes curriculares somam 34,8%.

A maioria (43,7%) dos sujeitos era constituída de professoras com idade entre 40 e 49 anos, e nesta faixa etária os homens eram 34,4%. O segundo maior número de professores se concentrava na faixa entre 31 e 39 anos, na qual 25% eram homens e 24,6%, mulheres. Entre os mais jovens (18 a 29 anos), encontramos maior número no grupo masculino (25% contra 15,2%), dado interessante, pois mostra que talvez o magistério esteja deixando de ser considerado uma carreira feminina. Outra possibilidade é que esteja ocorrendo um recuo do mercado de trabalho em outras áreas, de modo que esta seja uma alternativa.

Com relação ao estado civil, 54,7% se declararam casados, sendo o percentual dos homens (60,9%) maior que o das mulheres (53,9%). Entre as professoras, o número de divorciadas (13,3%) é muito superior ao de homens divorciados (2,9%). As mulheres viúvas (4,5%) também são em maior número do que os viúvos (0%), o que não causa surpresa, visto que as mulheres vivem, em média, mais do que os homens. Em relação ao número de filhos, 49,3% tinham um ou dois, enquanto 30,3% não tinham filhos e 20,2% tinham de três a cinco filhos.

Quanto ao nível de escolaridade, a porcentagem dos que concluíram o Ensino Superior não varia muito entre homens e mulheres: 34,8% entre os homens e 32,7% entre as mulheres. Muitos (40,6% mulheres e 39,1% homens) também concluíram curso de especialização. Há mais mulheres com ensino superior incompleto (11,8%) do que homens (5,8%), e 6,2% delas possuem somente o ensino médio/magistério. Entre os homens, 2,9% têm o título de mestre e 7,2% cursavam o mestrado, enquanto apenas 0,8% das mulheres o havia concluído e 1,2% estava fazendo o mestrado. Apenas 1,4% dos professores concluiu o doutorado, enquanto nenhuma das professoras tinha este título ou cursava o doutorado na época em que a pesquisa foi realizada.

Em relação à dependência administrativa, aproximadamente metade dos homens (46,4%) atuava exclusivamente na rede estadual de ensino, certamente porque é apenas ela que oferece o Ensino Médio, nível em que leciona a maioria deles. Já a maioria das mulheres (44,3%) atuava na rede municipal de ensino pelo, mesmo motivo: elas lecionavam, principalmente, em classes de Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, inclusive porque 18% não tinham diploma de curso superior.

A maioria dos professores (53,1%) exercia uma jornada semanal de trabalho docente entre 13 e 24 horas-aula; 23,3% trabalhavam de 37 a 48 horas-aula, e 3,1% afirmaram trabalhar até 60 horas-aula por semana. A maior parte dos professores (71,8%) recebia entre dois e quatro salários mínimos; menos de um quarto (22,4%) recebia entre cinco e sete salários mínimos e apenas 5,8% tinham uma remuneração superior a sete salários mínimos. A remuneração salarial das mulheres era bem inferior à dos homens: enquanto menos da metade deles (44,1%) recebia até quatro salários mínimos, 75,6% das mulheres estavam nesta faixa salarial.

Os professores e suas práticas culturais

A maioria dos participantes da pesquisa afirmou não ter o hábito de frequentar museus ou exposições de artes visuais, teatro, concertos ou shows de música ao vivo, espetáculos de dança, e nem mesmo cinema. Para a grande maioria o lazer se resumia em assistir a programas televisivos e fitas em vídeo ou em DVD, bem como em ouvir música em casa ou em bares.

Dentre os professores que participaram da pesquisa, apenas 4,2% confirmaram frequentar museus ou exposições de artes visuais com certa regularidade, enquanto 46,5% informaram nunca ir e 48,9% disseram que iam raramente; 70,6% dos professores afirmaram nunca ir ao teatro, 27,5% informaram ir esporadicamente, e apenas 1,5% afirmou ir ao teatro mensalmente. Também são baixos os índices de frequência aos espetáculos de dança: apenas 7,7% afirmaram assistir a eles com certa regularidade, 24,9% o faziam esporadicamente e 66,3% informaram nunca ir a este tipo de espetáculo. Os índices que computaram a assistência a concertos e shows de música ao vivo são mais altos, certamente inflados pela frequência aos shows, mais populares: 12,1% afirmaram frequentá-los regularmente, 26,5% esporadicamente e 59,3% afirmaram nunca assistir a tais espetáculos. A frequência regular às salas de cinema é mais alta, mas ainda não animadora: aproximadamente 15,7% informaram frequentá-las mensalmente e 4,3% semanalmente; 42,2% disseram ir esporadicamente ao cinema, enquanto 37,7% afirmaram assistir aos filmes somente em casa. Na tabela 1 podemos visualizar a proporção de professores segundo a assistência a eventos culturais.

Os baixos índices de consumo de bens culturais obtidos na pesquisa podem ser interpretados como decorrência de poucas opções de lazer no campo da cultura, o que não se aplica a Uberaba e Uberlândia, pois as duas cidades oferecem uma razoável gama de espetáculos cênicos, concertos e exposições de artes visuais, muitos deles subsidiados pelo poder público.

As causas do absenteísmo, segundo os professores, são os baixos salários, intensas jornadas de trabalho, escassa divulgação dos espetáculos e falta de familiaridade com determinados tipos de produção artística.

A pauperização do professorado se reflete na vida pessoal, sobretudo no acesso aos bens culturais. A baixa remuneração salarial foi apontada pelos professores como a principal causa de não frequentarem eventos culturais, preferindo empregar o tempo livre em atividades realizadas no ambiente doméstico. Isto é compreensível, se considerarmos que a renda familiar da grande maioria dos professores pesquisados (71,8%) se situava entre dois e quatro salários mínimos, 22,5% indicaram uma renda familiar de cinco a sete salários mínimos e apenas 5,7% afirmaram ter uma renda familiar de mais de sete salários mínimos.

Também as condições de trabalho explicam, em parte, a baixa frequência a eventos culturais: os professores afirmaram ter uma intensa carga horária de trabalho (na escola e em casa), agravada por turmas grandes e itinerância entre escolas.

Destarte, a fragilidade cultural dos professores pesquisados está relacionada às condições de trabalho, salário e renda familiar, que dificultam ou impedem a fruição de produções culturais, inclusive as da cultura de massa.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Concordamos com Vigotski (2003a) quando afirma que homens e mulheres se apropriam e internalizam a cultura e que os signos dialeticamente transformam o funcionamento mental ao constituir as funções psíquicas superiores e nelas promovem alterações qualitativas, e acreditamos que o contato com a produção cultural em geral, em especial com as artes, traz inúmeras possibilidades de desenvolvimento destas funções e de avanço da consciência humana. Tais possibilidades subjazem ao processo de mediação que os professores realizam para a aprendizagem discente, pois, se diferentes formas de expressão cultural e artística forem apropriadas pelo professor, é de esperar que estas sejam aproveitadas em sua prática pedagógica; entretanto os dados da pesquisa aqui relatada contrariam esta expectativa, ao indicarem ser mediana ou baixa a frequência dos professores pesquisados aos espaços e eventos culturais populares e quase nula a sua familiaridade com expressões da cultura erudita.

Num momento em que tanto se discute a problemática da inclusão, não podemos deixar de considerar que a não participação de professores na vida cultural da sociedade é uma forma de exclusão social. Ressaltamos, neste contexto, a necessidade de se ampliar o repertório cultural de professores, incentivando e facilitando a leitura e o acesso ao teatro, ao cinema, às exposições de arte, aos museus, aos concertos, aos espetáculos de dança, etc. Mediador que é entre a cultura e o aluno, o professor precisa ter amplo acesso às várias formas de expressão da cultura, não apenas à cultura de massa. Com esta afirmação não pretendemos desqualificar a produção cultural ofertada pela mídia, mas defender que o professor tem o direito de poder conhecer e fruir outras formas de expressão artística. Se grande parte da população brasileira não tem acesso às formas eruditas de expressão artística, é tarefa da escola a apresentação deste acervo cultural (Bourdieu & Darbel, 2003). Como bem afirma Rouanet (1999), é preciso fugir de uma falsa polarização entre alta cultura e cultura de massa.

Urge uma política pública para a formação cultural e estética de professores que crie um programa educativo a ser desenvolvido em longo prazo que abarque a educação básica, os cursos superiores e os destinados à profissionalização docente; um programa que possibilite aos professores o acesso a outros bens culturais que não os oferecidos pela indústria cultural.

Como concordamos que um dos objetivos da educação escolar é possibilitar aos estudantes apropriarem-se do patrimônio cultural da humanidade, torna-se imprescindível os professores terem acesso às mais diversas formas de expressão da cultura, para que possam transformar a escola em um espaço de formação que não se restrinja à aprendizagem dos conteúdos curriculares, mas contemple uma formação humanística que abarque teatro, música, dança, cinema, artes visuais e literatura não como conteúdos confinados ao espaço de ação da disciplina Arte, mas como conteúdos que perpassem todo o currículo da Educação Básica, contribuindo para a aprendizagem dos diversos componentes curriculares.

Como ainda não foram suficientemente esclarecidos os modos como os professores transformam suas experiências socioculturais em práticas educativas, pesquisar as relações de professores com a cultura é relevante, pois nos permite compreender as dimensões da vida social que atuam de forma determinante na prática pedagógica. Saber quais são os hábitos e as preferências estéticas do professor possibilita conhecer dimensões de sua vida pessoal que podem nos ajudar a compreender melhor seu desempenho profissional.

No campo da educação e da psicologia escolar os estudos contemporâneos cada vez mais enfatizam o papel do professor como decisivo para o êxito do processo educativo. Daí a necessidade de indagarmos: quais as consequências para o processo ensino e aprendizagem mediado por um professor com repertório cultural restrito? Como ampliar o repertório de experiências culturais dos professores? Como tornar esta mediação mais profícua? Sem dúvida, a análise dos dados encontrados na pesquisa requer aprofundar a reflexão acerca dos fatores sociais que intervêm na formação profissional e no exercício da profissão docente, o que extrapola os limites deste artigo.

A problemática concernente à formação e prática para o magistério, se tratada de forma redundante, não alcança os efeitos esperados. Os resultados da pesquisa não seriam um indicativo de que estamos caminhando na direção errada? Considerar que o desenvolvimento profissional do professor se estende para além dos limites do atual currículo de formação inicial e dos cursos posteriores a esta formação não seria um caminho a ser levado em conta?

REFERÊNCIAS

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Recebido em 01/11/2010

Aceito em 17/05/2011

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  • Endereço para correspondência

    Silvia Maria Cintra da Silva
    Instituto de Psicologia - Campus Umuarama - Bloco 2C
    Av. Pará, 1720, Bairro Umuarama CEP 38400-902, Uberlândia-MG, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Cultura aqui entendida como conceito antropológico: “(...) modos de pensar, de ser e de se comportar de uma coletividade (...) maneira de representar e de interpretar o mundo (...) percepção com relação ao Outro e (...) maneiras de entrar em contato e de se comunicar com ele.” (Mellouki & Gauthier, 2004, p. 539).
  • 2
    Respectivamente La Reproduction. Éléments pour une théorie du système d'enseignement (1970) e Deschooling Society (1971).
  • 3
    Para Tardif (2002, p. 12–3), a noção de “saber” tem “(...) sentido amplo, que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes, isto é, aquilo que muitas vezes foi chamado de saber, saber-fazer e saber-ser.”
  • 4
    A acepção clássica ou humanista entende cultura como “(...) o conjunto de conhecimentos, dos mais variados campos, que contribuem para a formação do senso crítico, do gosto e da capacidade de julgar do indivíduo que os adquire.” (Mellouki & Gauthier, 2004, p. 539).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      01 Nov 2010
    • Aceito
      17 Maio 2011
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
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