Acessibilidade / Reportar erro

NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS E ARTE NA CENA DA PESQUISA PSICANALÍTICA DE FENÔMENOS SOCIAIS

NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS Y ARTE EN LA ESCENA DE LA PESQUISA PSICOANALÍTICA DE FENÓMENOS SOCIALES

RESUMO.

No presente texto, deseja-se apresentar o proceder metodológico da pesquisa ‘Adolescências e leis’ (Fapemig, 2016-2018), afirmando o movimento que tenta alcançar uma topologia da horizontalidade ao considerar todos os saberes formais, informais, estéticos e pessoais envolvidos no processo. Nesse contexto, as narrativas memorialísticas erigem-se como estratégia de acesso à história dos sujeitos, jovens pobres moradores de territórios violentos. Essa estratégia considera a proposta da psicanálise, pois permite pensar a ficção através da qual toda história é contada. Após recolher as narrativas, o material registrado foi encaminhado para artistas convidados a transformar as histórias escutadas em obras artísticas e literárias. Em uma oficina devolutiva, envolvendo todos os atores (pesquisadores, coletivo de artistas e jovens), as obras foram entregues aos próprios narradores. Esse encontro possibilitou escutar os jovens das narrativas e capitanear pontos de real que retornaram pela via do traumático, da afirmação do desejo ou da repetição, indicando possíveis processos de ressignificação subjetiva e discursiva, bem como novos trajetos teóricos e metodológicos para o uso das narrativas memorialísticas.

Palavras-chave:
Narrativas memorialísticas; arte; psicanálise

RESUMEN.

En el presente texto, se desea presentar el proceder metodológico de la pesquisa ‘Adolescencias y leyes’ (Fapemig, 2016-2018), afirmando el movimiento que intenta alcanzar una topología de la horizontalidad al considerar todos los saberes formales, informales, estéticos y personales involucrados en el proceso. En ese contexto, las narrativas memorialísticas se erigen como estrategia de acceso a la historia de los sujetos, jóvenes pobres que viven en territorios violentos. Esa estrategia considera la propuesta del psicoanálisis, pues permite pensar la ficción a través de lacual toda historia es contada. Luego de recoger las narrativas, el material registrado fue enviado a artistas invitados a transformar las historias escuchadas en obras artísticas y literarias. En un taller de devolución, que involucró todos los actores (pesquisadores, colectivo de artistas y jóvenes), las obras fueron entregadas a sus propios narradores. Esse encuentro posibilitó escuchar los jóvenes de las narrativas y capitanear puntos de lo real que regresaron por la vía de lo traumático, de la afirmación del deseo o de la repetición, indicando posibles procesos de resignificación subjetiva y discursiva, bien como nuevos trayectos teóricos y metodológicos para el uso de las narrativas memorialísticas.

Palabras clave:
Narrativas memorialísticas; arte; psicoanálisis

ABSTRACT.

This text aims to present the methodological approach used in the ‘Adolescent and laws’ research (Fapemig, 2016-2018), affirming the movement that attempts to achieve a horizontality topology when considering all the formal, informal, aesthetic and personal knowledge involved in the process. In this context, the narrative memoirs constitute a strategy for access subjects’ histories, poor young people living in violent territories. This strategy considers the psychoanalysis standpoint, allowing for considering the fiction through which the whole story is told. After collecting the narratives, the registered material was sent to artists invited to turn the listened histories into artistic and literary works. Then, during a devolutive workshop involving all actors (researchers, collective of artists and young people), the art pieces were handed to the narrators themselves. This encounter enabled listening to the young narrators and apprehending the real dimension that returned by way of the traumatic, the affirmation of the desire or repetition, indicating possible subjective and discursive resignification processes and new theoretical and methodological paths for the use of the narrative memoirs.

Keywords:
The narrative memoirs; art; psychoanalysis

Introdução

Este trabalho surge de um estudo psicanalítico sobre a desistência do crime na adolescência5 5 O projeto foi originalmente registrado na Plataforma Brasil com o título ‘Sujeito do desejo e lei’. Parecer: 1.470.642; CAAE: 53647116.5.0000.5149 , realizado no período de 2016 a 2018, no escopo de projeto de pesquisa financiado pela Fapemig - Edital 01/2017 Demanda Universal. Partimos de narrativas de histórias de vida de homens jovens em cumprimento de medidas socioeducativas privativas de liberdade (regime de semiliberdade e internação), de jovens moradores de territórios com altos índices de vulnerabilidade social e criminalidade violenta de Belo Horizonte e de jovens atuando em instituição profissionalizante nesse município. No presente texto, desejamos apresentar nossas escolhas metodológicas afirmando, pois, uma trajetória que tenta alcançar uma ‘topologia da horizontalidade’ em relação a todos os atores envolvidos (pesquisadores, jovens sujeitos da pesquisa e artistas convidados), ou seja, considerar todos os saberes formais, informais, estéticos e pessoais na difícil tarefa de oferecer contorno para o real da vida.

Reconhecemos que essa horizontalidade é atravessada pela irredutibilidade das singularidades em jogo, bem como pela perspectiva simbólica que torna o horizonte real complexo, dado que o outro em psicanálise se desdobra na figura do semelhante, de um lado, e na função simbólica de enquadre da realidade, de outro, dotando o horizonte de prismas e reflexos, como explicaremos. Além da apresentação metodológica, pretendemos analisar os impactos do processo da pesquisa em três jovens, destacando pontos que emergiram a partir do encontro de devolução da pesquisa.

A primeira pergunta que nos anima, portanto, é: como realizar uma escuta psicanalítica de fenômenos sociais? Assim, para trabalhar o tema a partir da perspectiva psicanalítica, as pesquisadoras passaram a se interrogar sobre quais as possibilidades e os dispositivos de escuta de que a psicanálise dispõe no procedimento de investigação de processos inconscientes, quando aplicada à pesquisa de fenômenos sociais. Voltamo-nos à proposta freudiana para acessar as histórias dos sujeitos, que se localiza na escuta clínica do inconsciente e na construção do caso clínico. Seu método associa, intencionalmente, investigação e tratamento. Freud opera a construção da teoria psicanalítica a partir de casos que a interrogam enquanto singularidade radical, ao mesmo tempo em que extrai o que permite a formulação de novos aportes conceituais. As possibilidades de generalizações, para Freud, partiam de inferências cuidadosas, sendo a singularidade o limite e, ao mesmo tempo, o ponto de onde o novo poderia advir. Quanto à escrita do caso, entre a ficção e a realidade, concluímos que não se trata nem de uma posição de empiria pura e descritiva do caso, nem de narrativa ficcional. Trata-se, antes, em suas pesquisas, de tocar o real no caso. Em psicanálise, portanto, a verdade tem estrutura não apenas de ficção, mas também de fixação, e isso relativiza a perspectiva de acedermos a uma verdade natural. Assim, a ancoragem do caso é menos pela referência à verdade, e mais pela irrupção traumática do real que esgarça o tecido discursivo.

Na pesquisa aplicada a fenômenos sociais (Chrisóstomo, Moreira, Guerra, & Neto, 2018Chrisóstomo, M. C., Moreira, J. O., Guerra, A. M. C., & K Neto, F. K. (2018). A pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais: algumas considerações. Psicologia em Revista, 24(2), 645-660.), os aspectos históricos, a dimensão empírica dos fenômenos políticos, a presença das dinâmicas de território quando realizamos pesquisa in loco, as relações de poder entre pesquisador e sujeitos da pesquisa, o enlaçamento com a comunidade, entram como elementos simbólicos e discursivos que configuram o Outro social. Porém, paradoxalmente, não podemos abrir mão dos atravessamentos inconscientes do texto do próprio sujeito, singularidade que não se transpõe para outro corpo ou para a experiência coletiva. Como articular estes dois polos?

No final do século XX, percebe-se uma mudança epistêmica nas ciências sociais, fazendo com que a pesquisa científica passasse a uma perspectiva em que os significados dos atores envolvidos pudesse ser foco investigativo. Assim, surge uma adesão ao campo narrativo no meio científico. Citamos como exemplo Muylaert, Júnior, Gallo, Neto e Reis (2014Muylaert, C. J., S Júnior, V. S., Gallo, P. R., L Neto, M. R., & Reis, A. O. A. (2014). Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 48(esp2), 193-199.) e Nascimento e Kind (2018Nascimento, P. C., & Kind, L. (2018). Narrativas posithivas: vulnerabilidade de mulheres ao hiv/aids em relações heterossexuais de conjugalidade. Linhas Críticas, 24, 85-105. doi: 10.26512/lc.v24i0.18957). Silva e Trentini (2002Silva, D. G. V., & Trentini, M. (2002). Narrativas como técnica de pesquisa em enfermagem. Revista Latino-americana de Enfermagem,10(3), 423-432. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v10n3/13352.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v10n3/1335...
) anunciam três pontos importantes na construção de narrativas que precisam ser considerados no âmbito da pesquisa científica, a saber: 1. As narrativas são reconstruções, reedições dos acontecimentos passados; 2. O narrador considera o ouvinte na organização de sua narrativa; 3. A construção da narrativa não se resume a um produto individual, mas, sim, a uma construção dialógica, que parte de formas culturais populares na descrição de experiências compartilhadas.

Nesse contexto, as narrativas memorialísticas, tributárias da literatura, parecem-nos uma estratégia de acesso à história dos sujeitos que considera a proposta da psicanálise, ou seja, que permite pensar a ficção através da qual toda história é contada como fixação, no sentido pulsional de apreender os pontos nodais que enlaçam o sujeito na história e no próprio corpo, a partir de marcos na linguagem que tratam o impossível de significar da experiência como falta em torno da qual se abrem possibilidades de criação e de elaboração. Isso porque o narrador encontra na linguagem uma maneira de narrar diretamente, com elementos subjetivos, acontecimentos que portam sempre uma falta, em torno da qual se abrem possibilidades de elaboração. Além disso, o estilo memorialístico autoriza a inserção de outros na narrativa, suscitando a partir de sua análise, reflexões no/do Outro social, ancorando uma dimensão política. As narrativas forneceram um caminho de acesso para os processos subjetivos no enfrentamento do real, permitindo considerar suas dimensões inconscientes e político-discursivas.

Após recolher as narrativas memorialísticas, nos interrogamos sobre a ação em relação ao intenso material coletado. Como tocar o real de cada história? Assim, tivemos a ideia de enviar o material gravado para artistas convidados a transformar as histórias de vida recolhidas em obras artísticas e literárias, atuando como Outro do texto autoral, que produz novos sujeitos. O sujeito da narrativa é modificado pelo olhar do artista e esse, por sua vez, se modifica através da escuta da narrativa e da produção artística que lhe é correlata. No interstício entre os sujeitos emerge um novo personagem nascente do ato de criação artística.

Tentamos discutir as relações entre sujeito e Outro, em sua radical diferença, e os possíveis efeitos que podem ser produzidos no tecido social e na subjetividade dos jovens (pesquisadores, narradores e artistas), com vistas à transformação dos sujeitos e dos processos discursivos que os significam. Para esse fim, a estratégia metodológica desdobrou-se no encontro entre os jovens autores das narrativas e os artistas criadores das personagens, junto com a equipe da pesquisa. Foi organizada uma reunião devolutiva que ocorreu no Centro de Referência da Juventude, congregando pesquisadores, jovens que narraram suas histórias e os respectivos artistas6 6 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais - Parecer CAAE 53647116.5.0000.5149 .

Assim, a estratégia metodológica da pesquisa buscou inovar nos três movimentos: escuta de narrativas memorialísticas, produção artística a partir da narrativa e encontro dos atores da pesquisa em celebração devolutiva. Todavia, parece-nos importante sublinhar e descrever os pontos de tensão de cada movimento que nos possibilitou avançar no sentido da escuta dos sujeitos em contexto de pesquisa.

Das estratégias metodológicas: narrar, criar e partilhar

Primeiro tempo: Narrar

Convidar a palavra a tomar a cena e propor, portanto, a um adolescente narrar sua história de vida - procedimento padrão nessa pesquisa - invertia uma relação de poder que surgia da suspeita dos adolescentes, como se o saber e o poder concentrados no pesquisador fossem denunciados pela posição do jovem na investigação. Infelizmente, porém, a resposta deles vinha no sentido de uma atualização transferencial em relação às figuras que haviam prejudicado esses jovens, ou seja, a repetição dos afetos despertados ao longo de suas histórias de vida. Era o que eles denunciavam literalmente ao questionarem qual seria o retorno da pesquisa para eles em sua realidade, lembrando quantas vezes pesquisadores nunca retornavam ao campo após recolherem as informações que buscavam. A relação de suspeita era o primeiro lastro de afeto apresentado na maior parte das vezes. Em nossa leitura, trata-se de uma denúncia do saber-poder instituído pelos serviços e disciplinas voltados ao adolescente, em contraposição ao saber-potência do jovem, cuja armadura discursiva lhes serve de anteparo e escudo. Nossa proposta, portanto, foi deixar a palavra ser tomada pelo jovem, e não oferecer a palavra a ele, como se ela fosse um privilégio do pesquisador.

Assim, íamos em seus espaços, naqueles em que eles nos indicavam - por isso, as narrativas realizadas em território - e lhes perguntávamos se tinham interesse em contar sua história de vida, de forma que outros jovens pudessem compartilhar e aprender com sua experiência, no âmbito da pesquisa. O despojamento com que os jovens que visitávamos traziam suas histórias nas narrativas contrapôs-se às narrativas daqueles que se encontravam acautelados em centros socioeducativos, privados de liberdade. Nesse último caso, a palavra não circulava, revelando um corpo aprisionado no espaço discursivo, simbólico e físico.

No total, conversamos com 16 jovens que se identificaram como sendo do gênero masculino e 2 jovens que declararam ser do gênero feminino. As narrativas aconteceram em diferentes espaços privados, como residências; em contextos institucionais, como centros sociais ou socioeducativos; ou em ambientes de trabalho. Os relatos dos jovens marcados pela experiência com a criminalidade, em sua totalidade, partiam da escrita do crime em suas narrativas, enquanto os jovens aprendizes (inseridos em instituições profissionalizantes) traziam a marca do traumático ou da repetição atualizada da infância em suas histórias de vida.

Importante destacar que o acesso a cada um dos jovens se deu através de uma mediação prévia com alguém do campo transferencial e afetivo do jovem, como a técnica social que o acompanhou em sua medida ou uma colega do ambiente de trabalho, ou ainda um oficineiro do território onde o jovem residia. Esse contato prévio abriu um campo simbólico de pertencimento transferencial que, a nosso ver, foi central para acolher e suscitar o lastro da história narrada. A partir de tal introdução, aliada ao consentimento preliminar do adolescente, um/a pesquisador/a de uma dupla formada pela equipe de pesquisa fazia o contato com o jovem e agendava o encontro para escuta e registro das narrativas. Em sua totalidade, as trajetórias foram contadas em um encontro entre a dupla de entrevistadores e o jovem, por vezes com a presença de algum familiar por perto. Os encontros duraram em torno de uma hora, muitas vezes menos tempo e raramente mais. A idade refletiu em um tempo maturado de elaboração do vivido, entre os jovens adultos, e um tempo da atualidade do ato encenado no momento presente, entre os adolescentes.

Podemos assim dizer que, aos moldes da escuta clínica - denominada por Freud de ‘escuta flutuante’- a associação livre dos jovens revelou aspectos da repetição ou do real traumático que inundavam suas trajetórias de vida de pontos de não-representação vivificados. O material coletado foi mantido em seu registro oral e ganhou análise sob duas vertentes: uma teórica e outra estética. A análise teórica seguiu as grandes linhas da pesquisa, concentrando-se na incidência das estruturas sociais sobre a subjetividade adolescente, na perspectiva da família, da escola e da profissionalização e, ainda, na dimensão subjetiva, onde se destacou a aposta e o risco, as nominações e os pactos (diabólicos) encarnados no cotidiano pulsional desses adolescentes. Aqui, porém, nós nos deteremos na análise do destino ético-estético do material coletado, conforme antecipado na descrição do método de pesquisa adotado.

Segundo tempo: criar

Pois bem, além do tratamento teórico conferido à análise dos dados coletados, entendemos que havia uma urgência de implicar pesquisadores e pesquisados no interior da topologia horizontal de investigação científica que poderia instaurar um novo sujeito, um giro ético que considerasse a força de cada discurso. Apostamos, em nossa proposta de intervenção, que a criação artística se comporta como um acontecimento, no sentido de Alain Badiou (1995Badiou, A. (1995). Ética: Um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.). Para o filósofo, pensador da psicanálise, para que o sujeito surja, faz-se necessário que ele ultrapasse sua condição animal - esse movimento exige que alguma coisa aconteça. O acontecimento seria aquele fato que está fora de todas as leis regulares e obriga o animal humano a inventar uma nova maneira de ser e de agir dentro da situação vivida. O acontecimento é uma situação de ruptura que exige novo posicionamento e uma fidelidade a nova ordem criada. Para Badiou (1995Badiou, A. (1995). Ética: Um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará., p. 56), “[...] o sujeito é suporte para fidelidade, assim o sujeito não existe antes do processo, ele é resultado”. O sujeito pode surgir como um evento político, amoroso, artístico, científico, psicológico. Qualquer evento pode ter densidade de acontecimento e exigir do sujeito inventivo criar uma nova modalidade de subjetivação que ecoe as vozes por diferentes cantos convidando outros para uma mudança.

Ora, o que fizemos então a partir das trajetórias de vida recebidas, narradas e registradas nos encontros dos pesquisadores com os jovens foi entregar esse material em áudio para artistas, fotógrafos, poetas e escritores de forma que pudessem dialogar com a presença viva daquelas narrativas. Desse segundo tempo de encontro, nasceram obras literárias na forma de poesias e contos, peças teatrais em esquetes, fotos, e novos textos. Os artistas - como chamaremos esse coletivo diversificado na pesquisa - se surpreenderam com a responsabilidade de tocar nessas vidas em áudio a eles reveladas. Cada qual a seu modo resgatou a humanidade presente nas narrativas a partir desse ponto mesmo em que a linguagem domestica aquilo que do corpo vivo ultrapassa o discurso, mas nunca toda essa quota extraviada, resvalando o que pulsa sem possibilidade de apreensão. Assim, a peça artística se avizinhava da psicanálise, ambas tocando o real por suas bordas infinitas e reabertas, nunca totalmente capturadas por texto, fala, movimento ou imagem. Fotografias, obras e textos circularam entre pesquisadores e foram presenteadas em ato no encontro com os jovens pelas mãos dos artistas. A pergunta ‘Quem é o autor?’ torna-se, nesse circuito, obsoleta.

Terceiro tempo: partilhar

Em uma manhã, num Centro de Juventude na cidade sede da pesquisa, investigadores, artistas e jovens enfim se encontram, agenciando saberes múltiplos e diversos em circulação. Agradecimento e gentileza, palavras de ordem; presença e afeto na partilha. Um oficineiro, que foi entrevistado, toma a palavra, após apresentação da pesquisa. Ele recebe uma fotografia. Devolve um rap. Um escritor jovem lê seu texto em forma de performance e o entrega ao adolescente; o outro jovem o recebe e fala de sua maior dor: a perda de um amigo da escola portador de uma doença crônica. Ele o recusara, cansado de ajudar. Com a morte, não conseguia apagar sua culpa. Outra rodada com a leitura de um conto. Jovem ausente. Poesia lida, o jovem fala de sua superação e transformação. Outro adolescente desafia sua dor em público, lembrando como os colegas de trabalho falam da favela onde mora - lugar do qual tanto se orgulha. Um outro jovem não consegue entender por que estão valorizando tanto a ele, não podia imaginar que sua vida pudesse ter esse valor para um outro.

Espelhos desidênticos de vidas únicas, mas partilhadas - uma pesquisadora/artista e outra pesquisadora explicam a experiência da escuta e da produção. Respeito, admiração e zelo do artista no tratamento da história do outro e em sua apresentação; sua tarefa enquanto artista, diz outro, é adicionar força àquele material. A marcada lembrança das sensações do exato momento do encontro da artista com a história de um jovem é testemunho do grito sobre a dor, mas, sobretudo, do amor que escutava. Falar é reivindicar o direito de existir, afirma um artista, que continua dizendo que o texto, ele o recebeu pronto, pois tinha à sua frente uma existência. Um reencontro com a inspiração, resume o outro artista.

Em A partilha do sensível, Rancière (2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política (M.C. Netto, trad.). São Paulo, SP: EXO Experimental., p. 15, grifo do autor) desenvolve seu argumento nos seguintes termos:

Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um ‘comum’ partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira como um ‘comum’ se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha.

Podemos dizer que, política e esteticamente, um dos efeitos recolhidos pela metodologia que inclui a devolutiva aos sujeitos da pesquisa, foi possibilitar pela palavra e pela arte a abertura do campo para que cada um tomasse sua parte na partilha do sensível. Já havíamos constatado nas pesquisas envolvendo juventude e criminalidade, como os jovens rompiam com a configuração dos lugares sociais e os sistemas de legitimação policialescos, constituindo sua existência como ato político. Partindo desse pressuposto, constatamos como todos puderam tomar parte no comum, como vimos, a partir de pontos nunca totalmente capturados pelo simbólico.

Se, em um primeiro momento das pesquisas, éramos confrontadas com sujeitos que respondiam na relação transferencial de maneira a reivindicar que sua emissão sonora não fosse da ordem de ruídos, mas, sim, que fizesse parte da contagem simbólica, a experiência político-clínica das narrativas memorialísticas pareceu-nos assentir com tal reivindicação. O terceiro tempo metodológico, por sua vez, nos atesta que: “[...] as práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (Ranciére, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política (M.C. Netto, trad.). São Paulo, SP: EXO Experimental., p. 17, grifo do autor). À maneira como Ranciére (2005) aponta para uma descentralização da lógica representativa, a partir da interface entre diferentes suportes estéticos, podemos pensar que a suposta hierarquização que marcava o sujeito como suspeito também se desvanece na conjunção dos suportes das narrativas e das obras artístico-literárias. Toda a história dos sujeitos se torna uma “[...] grandeza político-social” (Rancière, 2005, p. 23). Sobre diferentes manifestações artísticas, Rancière (2005, p. 17, grifo do autor) indica:

Do ponto de vista platônico, a cena do teatro, que é simultaneamente espaço de uma atividade pública e lugar de exibição dos ‘fantasmas’, embaralha a partilha das identidades, atividades e espaços. O mesmo ocorre com a escrita: circulando por toda parte, sem saber a quem deve ou não falar, a escrita destrói todo fundamento legítimo da circulação da palavra, da relação entre os efeitos da palavra e as posições dos corpos no espaço comum.

O deslocamento subjetivo-político possibilitado pelo compartilhamento das obras de arte com sujeitos da pesquisa, pesquisadores e coletivo de artistas possibilitou que as “[...] hierarquias da representação” (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política (M.C. Netto, trad.). São Paulo, SP: EXO Experimental., p. 19) se destruíssem, abrindo a via para as respostas subjetivas e fantasmáticas que embaralham os marcos identitários. Importava como uns e outros tomavam parte no campo comum, como vimos.

Assim, emergiram, marcadamente, no discurso dos presentes, a partir da leitura da psicanálise, um retorno do real pela via da repetição, do traumático ou do desejo entre “[...] os simulacros da cena [...]” e o “[...] movimento autêntico [...]” (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política (M.C. Netto, trad.). São Paulo, SP: EXO Experimental., p. 18), capitaneados pela experiência subversiva da arte no fazer político de um sujeito. Vejamos como pensar cada uma dessas vias.

Um olhar sobre os efeitos dos três tempos em três jovens

O efeito recolhido na oficina, possibilitou, com a apresentação das obras aos próprios narradores e seu relato acerca desse encontro, capitanear pontos de real que retornaram pela via do traumático, da afirmação do desejo ou da repetição, indicando possíveis processos de ressignificação subjetiva e discursiva, bem como novos trajetos teóricos e metodológicos para o uso das narrativas memorialísticas. Selecionamos três obras e os fragmentos dos seus efeitos. Uma fotografia, um roteiro para uma performance e um desenho (Figura 1, 2 e 3). Localizamos, antes de breve reflexão, as obras e seus autores.

a)Repetição

Figura 1
Da série: Pesadelo Assistido7 7 Legenda: Série composta por 18 imagens, relativas às narrativas da pesquisa aqui mencionada. As imagens, registradas entre 29 de março a 15 de abril de 2018, foram localizadas pelo fotógrafo João Vitor Couto em uma sequência que retrata do nascimento à morte, apreendendo a ficção e a fixação dessas histórias a partir de um ‘pesadelo assistido’ - título dado pelo artista. .

Quanto à repetição, a psicanálise localiza que “[...] o que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz [...] ‘como por acaso’” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. Obra original publicada em 1964., p. 59, grifo do autor). Lacan indica que há uma espécie de ‘tropeção’ ou ‘fisgamento’ com que o sujeito sempre se defronta. Assim, na devolutiva, um jovem adulto desistente da trajetória infracional diz sobre como a dificuldade financeira o havia feito pensar em novamente buscar o tráfico como uma saída. Justamente o encontro com uma realidade (materialmente) faltante, como por acaso, desperta uma resposta do sujeito que se repete. Há um mais-além na relação do sujeito com o objeto, nesse caso, criminogênico, que apresenta a função da repetição. Ao receber uma fotografia de sua história de vida, ele afirma: ‘a vida é um jogo’. A exigência da novidade no jogo, ao adulto e à criança, diz Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. Obra original publicada em 1964., p. 66), “[...] vela aquilo que é o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma”. A hiância de um encontro sempre faltoso, nesse caso, retornou como “[...] causa de um traçado centrífugo” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. Obra original publicada em 1964., p. 66). Ao se deparar com e narrar sua vacilação frente à trajetória infracional que havia sido deixada para trás, é a significância de tal repetição (inconsciente), que escapa ao sujeito, que se põe em perspectiva na devolutiva.

Parece-nos importante ressaltar que o fotógrafo captou os dilemas de nosso jovem, porque a imagem da foto apresenta uma ‘sinuca de bico’, situação em que a bola branca toca ou se aproxima do canto da mesa, impedindo que o jogador atinja outra bola e a encaçape. Expressão usada em analogia para uma pessoa que se encontra sem saída. Mas o interessante é que o jovem da narrativa interpreta a imagem como uma bola no ponto de ser encaçapada. Como revela Ranciére (2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política (M.C. Netto, trad.). São Paulo, SP: EXO Experimental., p. 19), a arte subverte as hierarquias e “[...] institui uma comunidade dos leitores”.

b) Traumático

Pensando pela via do traumático, importante lembrar a centralidade que a concepção de Nachträglichkeit toma na teoria freudiana do trauma sexual infantil, no momento da teoria da sedução. Para Freud, em um primeiro momento, a significação sexual da investida do adulto na criança só seria possível após a introdução da sexualidade pela puberdade, instaurando uma temporalidade a posteriori. Rudge (2009Rudge, A. M. (2009). Trauma(Coleção Psicanálise passo-a-passo). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) nos lembra que mesmo após a constatação da sexualidade infantil, que fez avançar a teoria da sedução traumática à da fantasia, a concepção do a posteriori continuou sendo central para a psicanálise, ao indicar que, “[...] a cada momento, o presente se associa ao passado e transforma a sua significação” (Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma(Coleção Psicanálise passo-a-passo). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 21). Frente a tal “[...] determinação retroativa [...]” (Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma(Coleção Psicanálise passo-a-passo). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 48), podemos pensar o efeito da oficina devolutiva para um jovem que apresenta suas culpas ao ser introduzido à sua obra literária, intitulada Performance de autoria de Jean Valdez, que aponta exatamente para seu desejo. O preço a pagar por sustentar seu desejo pela dança, e o despertar da puberdade, com tudo que teve de renunciar - inclusive de uma posição de cuidado de um amigo portador de necessidades especiais, vem no ‘só depois’ embaralhar suas significações. A presença do desejo de sua família de um futuro promissor também indicava a angústia de abrir mão de seu próprio desejo, e vimos como o traumático ato de ruptura com o Outro, lugar simbólico da alteridade representada por familiares, colegas, instituições ou até mesmo por fragmentos estranhos de pensamentos, sensações, percepções, também pode ter lugar na transferência com o grupo.

Figura 2
Performance.

Figura 2
continuação

Figura 2
continuação

Aqui pode-se entrever a dimensão transversal no que diz respeito à busca pela solução do problema neurótico, “[...] qual seja, o modo como o sujeito, em seu desejo, lida com a manifestação de seu ser enquanto tal, com ele mesmo como autor possível do corte” (Lacan, 2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (C. Berliner, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Obra original publicada em 1958-1959., p. 461-462).

O autor, Jean Valdez, conforme Figura 2, inicia a obra:

Podem entrar, esta ponta é o meu pedaço de infinito particular. Por favor, sentem-se, não se acanhem. Podem se sentar em qualquer lugar, menos nesta cadeira azul desbotada. Aí não pode. (Silêncio). Esta cadeira é sempre reservada para algo que pode vir a acontecer.

Magnífica a imagem na sua articulação com o desejo: a cadeira é reservada para algo que pode acontecer. Na sequência, encontramos a afirmação do desejo: “Eu gosto de palco. (Silêncio). Por quê? Ah, eu sou um dançarino. Dançar é o porquê […]” (Figura 2). O artista localiza o embate de nosso jovem com a mãe no ponto da sustentação de seu desejo pela dança e toca no traumático da morte do amigo de infância.“Quando eu era criança, tinha apenas um amigo. Alguns brinquedos. Na minha introspecção, era o suficiente. Então minha mãe me levou à igreja [...]” (Figura 2). A dor e culpa em relação ao amigo morto é o ponto mais pungente que se destaca no momento da partilha.

c) Desejo

Figura 3
Corrida da Vida.

Lacan (2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (C. Berliner, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Obra original publicada em 1958-1959., p. 453) indica que

[...] o desejo do Outro permanece aí como um núcleo enigmático, até que, depois, a posteriori, o sujeito possa reintegrar o momento vivido numa cadeia, que não será obrigatoriamente a cadeia correta, mas que será, em todo caso, a cadeia geradora de toda uma modulação inconsciente.

Outro jovem, apresenta uma narrativa marcada pelo abandono da mãe e do pai, no alvorecer da puberdade, entre 13 e 14 anos. Sua resposta a tal desamparo se deu pela via do trabalho, como desde o início de sua narrativa pontua. Pode-se entrever, na tela fantasmática que suporta sua narrativa memorialística, a reintegração do vivido, do “[...] estar sem recursos [...]” frente ao desejo do Outro [Hilflosigkeit] (Lacan, 2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (C. Berliner, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Obra original publicada em 1958-1959., p. 455), a partir do que, de sua posição, convoca o cuidado e acolhimento do Outro, pela oferta de trabalho. Para a psicanálise, o desejo humano se constitui em uma inadequação radical na medida em que a satisfação das necessidades vitais passa pelo apelo de amor dirigido a uma figura de cuidado, fundando o campo de relação do sujeito com a linguagem. O pedido de socorro desse jovem, frente aos amigos, parentes e empregadores que encontrou em sua vida, era uma maneira de sustentar seu desejo. Mas esse apelo a figuras de cuidado coloca o sujeito em uma posição de certa vulnerabilidade, pois trata-se do encontro com uma resposta que não corresponde totalmente ao que se espera e com a concomitante descoberta de que esse encontro é impossível. Lacan (2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (C. Berliner, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Obra original publicada em 1958-1959., p. 126) pontua que “[...] é o narcisismo que oferece ao sujeito o suporte, a solução, a via de solução do problema do desejo”. Enquanto operação originária do aparelho mental que permite ao sujeito transitar entre uma organização das pulsões e o investimento de energia psíquica nos objetos do mundo, o narcisismo constitui importante via de amarração com o desejo. A resposta desse jovem, que ao receber sua obra - que dizia da escolha de caminhos - pelas mãos do artista, reitera o orgulho de sua história na história da favela, e reafirma seu desejo de trabalhar e continuar sua vida em sua comunidade, passa “[...] pela relação profunda com o Eros narcísico” (Lacan, 2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (C. Berliner, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Obra original publicada em 1958-1959., p. 126) na relação desse sujeito com o objeto, como via de solução à sua posição de sujeito desamparado.

O desenho de Daniel Alves nos oferece a imagem de um jovem nos caminhos da existência. Temos um caminho sem vida, árvores mortas, mas sem obstáculos. O outro caminho viceja o verde, mas os obstáculos são muitos - este é o caminho do trabalho. O que, no olhar do artista, compõe a escolha do jovem intitula-se ‘corrida da vida’. Nessa, o caminho do trabalho, por mais tortuoso que tenha se constituído, claramente vivifica a existência desse jovem, já que ele se salva do Outro que o abandona por essa trilha. E nesse contexto de caminhos e trajetos é que o território onde vive desponta como marca positivada de seu lugar desejante. Assim, ao receber sua obra, o jovem pode afirmar:

Não é querendo fazer de vítima da sociedade, mas é a verdade. Quem tá lá dentro, sabe como é. [...] A gente costuma ver as pessoas criticando muito a comunidade. [...] Tem muitas pessoas bacana e tem pessoas que precisam de ajuda. E talvez, se estivessem aqui, conhecessem, poderiam seguir um mundo totalmente diferente. Um outro caminho [sic] (Guerra, Moreira, & Oliveira, 2020Guerra, A. M. C ., Moreira J. O., & Oliveira(Orgs.). (2020). Adolescências e narrativas memorialísticas: escutando apostas inconscientes. Santa Cruz, RS: EDUNISC.).

O que podemos encontrar por trás das três vias apresentadas, como fio que orienta a trança da fantasia é “[...] a função da tiquê, do real como encontro - o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. Obra original publicada em 1964., p. 60).

A arte estilhaça, nesse sentido, a função especular do outro - denominada de imagem de eu, a partir do ponto em que o eu se projeta no outro. Temos uma espécie de (re)encontro com o vazio originário, não circunscrito pelo significante, não especularizável, não representável. E, por isso mesmo, fonte de angústia.

O encontro com a obra permite o retorno do sujeito em sua condição minimal de objeto, configurando sua condição de heterogeneidade radical, já que nem sujeito nem objeto o revelam. Disjuntos sujeito e objeto na partilha do sensível, o que restam na cena do encontro entre autor (jovem), obra (artística) e saber (científico) são cacos ou pedaços de real que retornam por três vias: (a) repetição do significante; (b) revivescência do traumático, reconfigurado por nova teia; (c) abertura ao desejo. Nesse sentido, trata-se de uma investigação-intervenção que articula psicanálise e política num plano que visa a transformação de sujeitos, coletivos e formas discursivas responsáveis pela manutenção de relações de hierarquia e de poder, mas que o faz a partir dos modos introjetados de satisfação com que cada sujeito, em sua singularidade, se exercita na cena pública. Entendemos que a linguagem medeia toda relação do sujeito com o próprio corpo, com os outros e com os sistemas de poder que organizam o mundo. Entretanto, a linguagem, ao não representar o mundo de forma totalizante, deixa brechas para as intensidades desejantes que capturam as subjetividades em modos alienantes ou emancipatórios. Assim, partindo das determinações inconscientes que atravessam os sujeitos, acreditamos que a metodologia adotada intervém transformando essas relações em seus diferentes níveis.

Considerações finais

‘O esbarrão com o real’, sempre contingente, que não obedece a qualquer lei, que escapa do necessário e da determinação e desarranja a homeostase significante - tem a importante função de romper com uma situação na qual o eu se reconhecia. Como tal, o acidente traumático é algo que impulsiona para a mudança, porque a desestruturação que promove na tessitura simbólica e imaginária do eu empurra o sujeito para um novo arranjo ‘em que a construção de uma narrativa tem um papel fundamental’ (Rudge, 2009Rudge, A. M. (2009). Trauma(Coleção Psicanálise passo-a-passo). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 66, grifo nosso).

O primeiro tempo da pesquisa (Guerra, Moreira, Oliveira, & Lima, 2017Guerra, A. M. C ., Moreira, J. O ., Oliveira, L. V., & Lima, R. G. (2017). The narrative memoir as a psychoanalytical strategy for the research of social phenomena. Psychology, 8, 1238-1253.doi: 10.4236/psych.2017.88080
https://doi.org/10.4236/psych.2017.88080...
), de registro das narrativas memorialísticas, não apenas atesta como também relocaliza a importância da narrativa no contexto da pesquisa de fenômenos sociais. Em adição, também mostra como sua própria construção pode vir a desestruturar novamente a cadeia simbólica assumida pelo sujeito, ou mesmo abrir vias de ressignificação que não poderiam ser deixadas à mercê de um encontro entre pesquisadores e pesquisados. A própria pesquisa, configurando-se como esbarrão no real, recolocou os trajetos metodológicos, introduzindo dois novos tempos em que arte e fenômenos sociais se encontram na tentativa de possibilitar ressignificações subjetivas, culturais e político-sociais.

Traduzido para nossa experiência metodológica, podemos dizer que a singularidade das narrativas pode ser compartilhada a partir de critérios estéticos, políticos e subjetivos que identificaram pontos de transformação e recolocação subjetiva. Assim, entendemos que na direção do tratamento, a partir da regra fundamental da psicanálise do sujeito experimentar o discurso mais livre possível (Vale & Castro, 2013Vale, S. C., & Castro, J. E. (2013). O tempo e o ato psicanalítico na direção do tratamento. Tempo Psicanalítico, 45(I), 439-451. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v45n2/v45n2a12.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v45n2...
), a arte parece pôr em operação reduções que permitiriam ao sujeito se perceber como desejante, no apreender criativo de suas ficções, fixações e fantasias. Retratar os hiatos como pontos de retorno e repetição, através da arte, parece ter possibilitado o surgimento de versões de uma nova história, sempre tendo em vista a perspectiva do narrador e sua leitura na cena composta.

Do ponto de vista metodológico, fomos tocados por um fluxo pulsional que se inicia com nosso desejo de pesquisar, segue para o encontro subversivo com o outro, que nos presenteia com sua história, avança ainda mais com a riqueza do contorno estético e se realiza na partilha do sensível entre todos os atores. Todos os movimentos possibilitaram uma ação de subversão da tradicional topologia vertical das pesquisas científicas. A baixa plasticidade dos estudos verticais, pois estes se fundamentam em uma rígida estrutura de saber-poder, cede lugar para a força transformadora da topologia horizontal que inclui todos os saberes disjuntos e suplementares presentes na cena. Sabemos que a pesquisa, por vezes, se apresenta como uma forma de manter a produção do pesquisador e não estabelece verdadeiras trocas com o pesquisado. Segundo Maffesoliee Icle (2011Maffesoli, M., & Icle, G. (2011). Pesquisa como conhecimento compartilhado: Uma entrevista com Michel Maffesoli. Educação & Realidade, 36(2), 521-532. Recuperado de:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/20637/12917
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade...
), a pesquisa precisa rever sua concepção dogmática e escutar o pulsar na vida social. Nas palavras do autor:

A hipótese é, então, considerar que no século XIX, no qual a sociedade, no fundo, era mais estática, a ideia de uma abordagem conceitual era legítima e necessária. Atualmente, como se vive um momento que é fugidio, o melhor é utilizar instrumentos que sejam mais flexíveis. Essa é, resumidamente, a minha hipótese. Eu acho que a pesquisa científica ou acadêmica não pode mais ficar restrita a uma concepção, que é uma concepção, no fundo, dogmática, que se apoia unicamente sobre uma concepção simplificada de pesquisa. Ou seja, algo que seria, mais uma vez, muito sistemático, muito conceitual. Ao contrário, a pesquisa deve estar na escuta da vida social (Maffesoli & Icle, 2011Maffesoli, M., & Icle, G. (2011). Pesquisa como conhecimento compartilhado: Uma entrevista com Michel Maffesoli. Educação & Realidade, 36(2), 521-532. Recuperado de:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/20637/12917
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade...
, p. 522).

Tentamos escutar a vida social não só com as narrativas memorialísticas, mas também com a criação artística e o momento da partilha. Não podemos afirmar os efeitos em todos os sujeitos presentes no ato de partilha, mas podemos confirmar o efeito de mudança em nós, pesquisadores, na forma de conceber a pesquisa.

E assim, advertidos por um jovem adulto presente no terceiro tempo metodológico aqui narrado, a partir de sua experiência enquanto objeto pesquisado, pudemos refletir sobre a verticalidade na condução das pesquisas: “[...] era só o venha a nós, e vosso reino, nada” [sic] (Guerra et al., 2020Guerra, A. M. C ., Moreira J. O., & Oliveira(Orgs.). (2020). Adolescências e narrativas memorialísticas: escutando apostas inconscientes. Santa Cruz, RS: EDUNISC.). Para ele, assim como para os presentes, essa postura não poderia ser tolerada. Essa advertência produziu um efeito de um novo posicionamento na ação de pesquisa e, assim, achamos importante convidar os jovens para os eventos científicos de apresentação dos resultados; dois dos jovens compareceram.

Referências

  • Badiou, A. (1995). Ética: Um ensaio sobre a consciência do mal Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.
  • Chrisóstomo, M. C., Moreira, J. O., Guerra, A. M. C., & K Neto, F. K. (2018). A pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais: algumas considerações. Psicologia em Revista, 24(2), 645-660.
  • Guerra, A. M. C ., Moreira J. O., & Oliveira(Orgs.). (2020). Adolescências e narrativas memorialísticas: escutando apostas inconscientes. Santa Cruz, RS: EDUNISC.
  • Guerra, A. M. C ., Moreira, J. O ., Oliveira, L. V., & Lima, R. G. (2017). The narrative memoir as a psychoanalytical strategy for the research of social phenomena. Psychology, 8, 1238-1253.doi: 10.4236/psych.2017.88080
    » https://doi.org/10.4236/psych.2017.88080
  • Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (C. Berliner, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Obra original publicada em 1958-1959.
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. Obra original publicada em 1964.
  • Maffesoli, M., & Icle, G. (2011). Pesquisa como conhecimento compartilhado: Uma entrevista com Michel Maffesoli. Educação & Realidade, 36(2), 521-532. Recuperado de:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/20637/12917
    » https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/20637/12917
  • Muylaert, C. J., S Júnior, V. S., Gallo, P. R., L Neto, M. R., & Reis, A. O. A. (2014). Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 48(esp2), 193-199.
  • Nascimento, P. C., & Kind, L. (2018). Narrativas posithivas: vulnerabilidade de mulheres ao hiv/aids em relações heterossexuais de conjugalidade. Linhas Críticas, 24, 85-105. doi: 10.26512/lc.v24i0.18957
  • Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política (M.C. Netto, trad.). São Paulo, SP: EXO Experimental.
  • Rudge, A. M. (2009). Trauma(Coleção Psicanálise passo-a-passo). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Silva, D. G. V., & Trentini, M. (2002). Narrativas como técnica de pesquisa em enfermagem. Revista Latino-americana de Enfermagem,10(3), 423-432. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v10n3/13352.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v10n3/13352.pdf
  • Vale, S. C., & Castro, J. E. (2013). O tempo e o ato psicanalítico na direção do tratamento. Tempo Psicanalítico, 45(I), 439-451. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v45n2/v45n2a12.pdf
    » http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v45n2/v45n2a12.pdf
  • 5
    O projeto foi originalmente registrado na Plataforma Brasil com o título ‘Sujeito do desejo e lei’. Parecer: 1.470.642; CAAE: 53647116.5.0000.5149
  • 6
    O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais - Parecer CAAE 53647116.5.0000.5149
  • 7
    Legenda: Série composta por 18 imagens, relativas às narrativas da pesquisa aqui mencionada. As imagens, registradas entre 29 de março a 15 de abril de 2018, foram localizadas pelo fotógrafo João Vitor Couto em uma sequência que retrata do nascimento à morte, apreendendo a ficção e a fixação dessas histórias a partir de um ‘pesadelo assistido’ - título dado pelo artista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2019
  • Aceito
    30 Jan 2021
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br