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A RELAÇÃO ENTRE PSICOPATOLOGIAS NÃO NEURÓTICAS, NEUROSE OBSESSIVA E PULSÃO DE MORTE

LA RELACIÓN ENTRE PSICOPATOLOGÍAS NO NEURÓTICA, NEUROSIS OBSESIVA Y PULSIÓN DE MUERTE

RESUMO.

As psicopatologias não neuróticas, categoria descrita por André Green, são caracterizadas por problemas na constituição do eu, envolvendo basicamente uma fragilidade narcísica, falhas nos processos de simbolização, além da tendência à atuação e à compulsão, sem o recurso da elaboração psíquica, e a predominância de uma economia do trauma relacionada ao gozo e ao excesso pulsional. São manifestações dessa psicopatologia as somatizações, a síndrome do pânico, as adições, os transtornos alimentares, os estados-limítrofes e a depressão. Green considera que a pulsão de morte, compreendida a partir do processo de desinvestimento dos objetos ou função desobjetalizante, seria um conceito fundamental para a compreensão das não neuroses. A partir da teoria freudiana é possível estabelecer uma relação entre a não neurose e a neurose obsessiva, tendo em vista a utilização de mecanismos defensivos semelhantes e o papel marcante da pulsão de morte, garantindo ainda o lugar da sexualidade infantil inconsciente como fator etiológico predominante.

Palavras-chave:
de morte; psicopatologia; neurose obsessiva

RESUMEN.

Las psicopatologías no neuróticas, categoría descrita por André Green, se caracterizan por problemas en la constitución del yo, básicamente, implica una fragilidad narcisista, el fracaso en los procesos de simbolización, y la tendencia a la acción y la compulsión, sin el uso de La elaboración psíquica, y predominio de una economía del trauma relacionado con el gozo y el exceso pulsional. Son manifestaciones de esta psicopatología la somatización, trastorno de pánico, adiciones, trastornos de la alimentación, los estados fronterizos y la depresión. Green cree que la pulsión de muerte, entendida a partir del proceso de desinversión de los objetos o función desobjetalizante, sería un concepto clave para entender la no neurosis. A partir de la teoría freudiana es posible establecer una relación entre la no neurosis y la neurosis obsesiva, en vista de la utilización de mecanismos de defensa similares y el papel notable de la pulsión de muerte, asegurando todavía el lugar de la sexualidad infantil inconsciente como el factor etiológico predominante.

Palabras-clave:
Pulsión de muerte; psicopatología; neurosis obsesiva

ABSTRACT.

The non-neurotic psychopathologies, category described by André Green, are characterized by problems in the constitution of the self, basically involving a narcissistic frailty, failures on symbolization processes, and the tendency to acting out and to compulsion, without the use of psychic elaboration, and predominance of an economy of trauma related to the jouissance(2 2 Jouissance is a French word that literally means orgasm, but is used by Lacan as a concept to refer to something more than pleasure, which can easily tip into its opposite and touches on an area of excess, outside any register of need, and beyond an economy of pleasure. ) and drive excess. The manifestations of those psychopathologies are somatizations, panic disorder, addictions, eating disorders, borderline states, and depression. Green believes that the death drive, understood from the process of disinvestment of objects or deobjectifying function, would be a fundamental concept for understanding non-neurosis. From the Freudian theory, it is possible to establish a relationship between non-neurosis and obsessive neurosis, considering the use of similar defensive mechanisms and the remarkable role of the death drive, still assuring the importance of unconscious infantile sexuality as the predominant etiologic factor.

Keywords:
Death drive; psychopathology; obsessive neurosis

Introdução

Nas últimas décadas, os teóricos da psicanálise têm formulado hipóteses acerca das psicopatologias que supostamente não se enquadrariam no modelo freudiano clássico das neuroses, psicoses e melancolia. Essas psicopatologias seriam representadas pelos distúrbios alimentares, síndrome do pânico, casos-limite ou borderline, fenômenos psicossomáticos, toxicomanias ou adicções em geral, e depressão.

Dentre os teóricos, André Green se destaca por ter formulado uma categoria denominada por ele de “não neuroses”, a qual se caracteriza por configurações psíquicas em que predominam os distúrbios na constituição do narcisismo, ocasionando perturbações das fronteiras e funções do ego, assim como do investimento libidinal no Eu(2 2 O Eu na teoria freudiana é composto de duas subestruturas: o ego, que surge da diferenciação do Id em contato com a realidade, sendo responsável pelas funções egoicas (realitária, simbólica, imaginativa, sublimação e mecanismos de defesa), e o self, que surge como precipitado das identificações e funciona como imago ou objeto interno que permite ao sujeito relacionar-se consigo mesmo (Juignet, 2001, citado por Minerbo, 2009). ) (Minerbo, 200914. Minerbo, M. (2009). Neurose e não-neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo.). Podem ser caracterizadas também por patologias do self, por transtornos no campo das relações de objeto e das pulsões, e por problemas nos processos terciários de simbolização, ou seja, por falhas nas cadeias de mediação entre processos primários e processos secundários (Figueiredo, 20094. Figueiredo L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta .).

Segundo (Carvalho, 20042. Carvalho, M. T. M. (2004). Sobre o alcance e os limites do recalcamento nas chamadas “psicopatologias da contemporaneidade”. In M. R. Cardoso (Org.), Limites (pp. 151-165). São Paulo: Escuta.), os principais teóricos da psicanálise apontam algumas características comuns aos pacientes que apresentam essas psicopatologias, quais sejam: a ausência de sintomas como formação de compromisso, a carência de um mundo de fantasia operante por meio do qual os derivados do recalcado possam se manifestar e a tendência à atuação, sem o recurso da elaboração psíquica. Além da falha na simbolização, esses pacientes possuiriam também uma fragilidade narcísica que os deixariam suscetíveis às angústias de desintegração e morte, diferentemente dos quadros neuróticos clássicos, regulados pelo Complexo de Édipo e pela Angústia de Castração. Por fim, a noção de trauma também aparece como subjacente a essas patologias, relacionada ao gozo e ao excesso pulsional, diferentemente dos quadros neuróticos clássicos, onde há a predominância do conflito intrapsíquico, o qual estaria ligado ao desejo e à fantasia inconsciente.

Todas essas características parecem refletir a manifestação da pulsão de morte, pois o trauma, a atuação e a ausência de sintomas neuróticos clássicos indicariam uma relação com o aspecto desligado da libido, ou seja, sujeitada ao processo primário, ao princípio de prazer e à compulsão a repetição, evidenciando os traços da redução das tensões e da descarga pulsional a qualquer custo. Diante disso, as denominadas “psicopatologias não neuróticas” estariam relacionadas com a manifestação da pulsão de morte no psiquismo?

O objetivo deste artigo é tentar responder a essa pergunta por meio da realização de um estudo teórico no campo da psicanálise, cuja metodologia é a revisão da literatura especializada, valendo-se de conceitos freudianos acerca da neurose obsessiva e da pulsão de morte, além de outros psicanalistas que se dedicaram ao tema e, especialmente, os trabalhos de André Green, que foi o primeiro a elaborar uma teoria psicopatológica para compreender as manifestações não neuróticas.

Funções objetalizante e desobjetalizante

Para tentar responder à pergunta chave desse trabalho é imprescindível esclarecer as hipóteses de (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008) acerca das funções objetalizante e desobjetalizante, as quais podem ser compreendidas em termos da ligação ou liberação da energia pulsional, na relação estabelecida entre o ego e os objetos internos ou externos. A falha no processo de simbolização e elaboração psíquica, atribuída às psicopatologias não neuróticas, poderia ser fruto da função desobjetalizante, a qual estaria diretamente ligada à pulsão de morte. Freud, sem que soubesse, deu um exemplo da função objetalizante ao explicar a origem da melancolia pelo fato de o ego se dividir para que uma parte dele se identifique com o objeto perdido, logo, tornando-se um objeto para o investimento pulsional.

A incorporação e a introjeção são os modos mais primitivos da relação de objeto e possivelmente permanecem durante toda a vida, a exemplo da identificação e internalização. Contudo, o ego não se contenta em apenas transformar a posição dos objetos do exterior para o interior, ele cria os objetos por meio da atividade pulsional, quando esta, ao se transformar, se torna um objeto. Dessa maneira, as funções psíquicas tomam a posição de objetos, como o pensamento, por exemplo, sendo que o narcisismo e a libido investida no ego explicariam tal afirmação (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008).

Se a função objetalizante parece estar relacionada às pulsões de vida, pelo seu caráter de ligação, a função desobjetalizante, por outro lado, se liga à problemática das pulsões de destruição, pois a manifestação que parece própria à destrutividade da pulsão de morte é o desinvestimento. A função desobjetalizante está ligada à atividade de um narcisismo negativo, que anseia pelo nível zero dos investimentos que sofreram o destino da perda, o que leva o próprio ego a afundar nessa forma de desinvestimento subjetivo mortífero, culminando com o aparecimento de distúrbios das funções elementares de incorporação e introjeção, cujas manifestações psicopatológicas são representadas pela anorexia e certas formas de depressão, dentre as quais a depressão essencial descrita por Pierre Marty ocupa um lugar de destaque (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008). De maneira geral, ocorre a identificação projetiva excessiva ou recusa, operações estas sustentadas pela ilusão de livrar o psiquismo dos conflitos que não pode resolver, mas que, ao mesmo tempo, esvazia o aparelho psíquico e o deixa exaurido.

Portanto, o conceito de objetalização, associado ao narcisismo, explicaria o fato de as funções psíquicas se transformarem em objetos, sendo que, no narcisismo negativo, sob a ação da pulsão de morte, essas funções psíquicas poderiam sofrer o processo de desinvestimento, e assim causar inibição do ego, conforme já descrita por Freud em Inibição Sintoma e Angústia (192610. Freud, S. (1926[1925]-1996f). Inibições Sintomas e Ansiedade. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago . [1925]/1996f).

Dessa forma, a função desobjetalizante, sob a ação da pulsão de morte, oriunda do superego, teria a capacidade de empobrecer o ego e causar, por exemplo, dificuldade na capacidade de simbolização, pela inibição das funções do pensamento. Essa hipótese será de grande valor para a compreensão da relação entre a pulsão de morte e as psicopatologias não neuróticas, uma vez que articula um modo de funcionamento pré-genital, sobre o qual a pulsão de morte tem papel marcante com o aparecimento de certos fenômenos clínicos, característicos das organizações não neuróticas, como a inibição da capacidade de simbolização pela via do pensamento.

Manifestações sintomáticas características da não neurose

(Freud, 18945. Freud, S. (1894-1996a). As neuropsicoses de defesa. In Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 51-72). Rio de Janeiro: Imago./1996a) revelou a importância do funcionamento psíquico para a organização e regulação das excitações no organismo e dos conflitos pulsionais por meio da atividade do pensamento, o qual teria o papel de resolver a contradição existente entre as representações incompatíveis e a censura, ligando o afeto decorrente dos conteúdos recalcados a outras representações mais aceitáveis, como ocorre na sublimação, por exemplo, o que resultaria na diminuição ou eliminação da perturbação provocada pelos conflitos. Por outro lado, caso houvesse falha da atividade do pensamento, seria criada a condição para a instalação do sintoma neurótico, como forma de manter o equilíbrio psíquico por meio de uma solução de compromisso.

Nesse sentido, fica evidente a importância do pensamento em elaborar e regular as excitações no organismo, mediando simbolicamente as inúmeras possibilidades de ligação entre afetos e representações, para eliminar ou diminuir o desprazer gerado pelo conflito.

Segundo (Freud, 19117. Freud, S. (1911-1996c). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 233-244). Rio de Janeiro: Imago ./1996c), o surgimento do pensamento, durante o curso do desenvolvimento psicosexual, foi consequência da introdução de um novo princípio de funcionamento mental, denominado princípio de realidade, constituído em razão da significação crescente da realidade externa e da consequente frustação da satisfação, em oposição ao princípio de prazer, o qual busca incessantemente o prazer e evita o desprazer. Com isso, a satisfação meramente alucinatória, que até então dominava o psiquismo arcaico e era regulada pelo princípio de prazer, teve que ser abandonada, o que provocou o aumento da tensão em decorrência do adiamento da satisfação das necessidades internas. Contudo, esse aumento da tensão pôde ser tolerado pelo psiquismo em razão do surgimento do pensamento, o qual passou a servir como mediador das excitações, buscando ligá-las aos representantes ideativos.

Porém, o pensamento não é regido unicamente pelo princípio de realidade, pois o fantasiar é uma espécie da atividade do pensamento que permaneceu subordinada somente ao princípio de prazer. A pulsão sexual também está em grande parte dominada pelo princípio de prazer, haja vista que permaneceu grande parte do período de desenvolvimento psicossexual afastada do teste de realidade, pois no início obtinha satisfação de forma autoerótica e, posteriormente, permaneceu latente até a puberdade, portanto longe dos objetos externos, o que provocou o adiamento da frustração que instituiu o princípio de realidade (Freud, 19117. Freud, S. (1911-1996c). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 233-244). Rio de Janeiro: Imago ./1996c).

Como consequência, surgiu vinculação mais estreita entre a fantasia e a pulsão sexual, já que ambas estão fortemente influenciadas pelo princípio de prazer, e no campo da fantasia o recalque aparece de forma dominante, inibindo ideias antes mesmo que possam ser notadas pela consciência, caso seja percebido um risco iminente de desprazer. Esse é o ponto fraco da organização psíquica, que é responsável por restituir ao domínio do princípio de prazer processos de pensamento que já haviam se tornado racionais (Freud, 19117. Freud, S. (1911-1996c). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 233-244). Rio de Janeiro: Imago ./1996c).

O papel determinante do pensamento na regulação dos conflitos psíquicos pode ser observado por meio do mecanismo defensivo do recalque, que é um dos principais meios para lidar com os conflitos inconscientes, pois promove a ruptura da ligação entre a representação fonte de desprazer e o afeto, tornando inconsciente a representação e descarregando o afeto nas funções corporais, comportamentais ou religando o afeto a outra representação mais aceitável. Porém, nem sempre existem os recursos para que o psiquismo cumpra com essa função (Volich, 201017. Volich, R. M. (2010). Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise (7a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo .), a exemplo do que ocorre nas patologias não neuróticas, nas quais haveria uma falha na mediação simbólica.

Além da questão simbólica, a não neurose, segundo (Minerbo, 200914. Minerbo, M. (2009). Neurose e não-neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo.), abrangeria também todas as configurações psíquicas em que predominam transtornos na constituição do narcisismo, tanto as perturbações no investimento libidinal do self (conjunto de representações ou imago de si mesmo) quanto das fronteiras e funções do ego. Essa categoria abarcaria os quadros que têm sido denominados estados-limite, dos quais o borderline pode ser visto como paradigma. Fazem parte dessa forma de subjetividade, com exceção das psicoses propriamente ditas, todas as patologias relacionadas aos problemas na constituição do eu, qualquer que seja a maneira pela qual a subjetividade tenha se organizado/desorganizado diante da angústia narcísica: compulsões e adições, distúrbios alimentares, patologias do vazio de feitio melancólico, patologias do ato coloridas por diversos tipos de violência, somatizações, perversões e uma gama de apresentações, denominadas por Freud de neuroses narcísicas e neuroses de caráter.

Vale a pena explicar essas entidades clínicas descritas por Freud. A neurose narcísica, por exemplo, surgiu da necessidade de diferenciar a melancolia das outras psicoses, pois o conflito melancólico está mais circunscrito, estabelecendo-se essencialmente entre pulsões eróticas e pulsões destrutivas. O recalcamento da realidade está presente, porém não conduz à constituição duradoura de uma nova realidade. O que domina é a organização narcísica do ego e a sua reação perante a perda de objeto. O recalcamento da realidade sucede a essa perda que não lhe pré-existia, ao contrário das outras psicoses (Mijolla&Mijolla-Mellor, 199913. Mijolla, A., & Mijolla-Mellor, S. (1999-2002). Psicanálise. Lisboa: Climepsi./2002).

(Freud, 19178. Freud, S. (1917[1915]-1996d). Luto e melancolia, InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 243-263). Rio de Janeiro: Imago .[1915]/1996d) definiu a melancolia a partir da identificação narcísica com o objeto perdido, de forma que o próprio ego se tornou pobre e vazio após a perda do objeto. Essa identificação é marcada pelo caráter ambivalente, num modo oral de incorporação do objeto, remetendo ao ego toda a sua parte de sadismo. Pela ambivalência, o ego encontra-se dividido entre uma parte identificada ao objeto perdido e outra parte que dirige todo o ódio a esse objeto incorporado, revelando a autodestrutividade do superego.

Já a neurose de caráter pode ser definida a partir do exemplo das formações reativas presentes na neurose obsessiva, que são essencialmente exageros dos traços normais do caráter e que se desenvolvem durante o período de latência. A diferença entre as formações reativas na neurose obsessiva e na histeria é que na segunda não há universidade de um traço de caráter, mas estão confinadas a relações específicas. Freud dá exemplo de uma histérica, que pode ser especialmente afetuosa com seus próprios filhos, os quais no fundo ela odeia; mas por causa disso ela não será mais amorosa em geral do que outras mulheres ou mais afetuosa para com outras crianças. A formação reativa da histeria apega-se tenazmente a um objeto específico e jamais se difunde por uma disposição geral do ego, ao passo que o que é característico da neurose obsessiva é precisamente uma difusão dessa espécie - um afrouxamento de relações na escolha de objeto (Freud, 1926[1925]/1996f).

Voltando às características dos desequilíbrios dos estados não neuróticos, segundo (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008), haveria a incapacidade de fantasiar ou de construir uma representação do analista na sua ausência. Enquanto um neurótico não terá grande dificuldade para fabricar para si uma realidade psíquica na qual ele substitui o analista imaginando-o ao seu jeito, o sujeito não neurótico se vê paralisado nessa atividade.

Certos pacientes parecem incapazes de compreender a natureza transferencial de suas reações ao analista, não percebendo nenhuma relação entre o passado - muito defendido - e o presente - não menos defendido. Freud já tinha observado esse fenômeno. Poder-se-ia dizer que essas manifestações psíquicas, resistentes à análise, perderam o caráter de transicionalidade dos processos psíquicos descritos por Winnicott. Estamos aqui, de fato, próximos de um pensamento “delirante” que só quer ouvir o que ele afirma. Por outro lado, esse é muitas vezes o caso, sem transferência erótica associada, de tantos pacientes que não suportam a interpretação e só querem ouvir da boca do analista uma paráfrase que reconheça seu direito, que autentique seus pensamentos conscientes como os únicos válidos e sem nenhum distanciamento em relação à versão que suas defesas do Ego têm elaborado. Existe apenas uma versão verdadeira da história que eles contam, esta é a que eles acabam de enunciar e que tem valor de realidade incontestável, portanto, ininterpretável.(Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008, p. 101)

Diante da incapacidade de associar livremente e de construir relações simbólicas com base na configuração edipiana e na relação transferencial, revelando um controle defensivo excessivamente rigoroso, (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008) conclui que esses pacientes estariam se afastando da organização edipiana da sexualidade em direção a estruturas pré-genitais, estruturas limites ou organizações narcísicas - em suma, estruturas não neuróticas -, pois, quanto maior a regressão dinâmica da sexualidade, mais difícil se torna a remoção do controle defensivo e maior o risco de desorganização do eu.

Portanto, nessas entidades clínicas as representações não desempenham um papel tão importante quanto nas neuroses clássicas, e o desejo aparece de forma bruta, expressão de exigências pulsionais imperiosas, que obrigam o ego a promover uma evacuação das excitações que são angustiantes em função de sua carga excessivamente erótica ou destrutiva. Para isso, o ego leva a efeito uma identificação projetiva excessiva, que o empobrece pelo esvaziamento, conforme descrito por (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008).

Uma certa debilidade de elaboração representativa e uma falência das possibilidades de contenção que a caracterizam, abrindo a porta para regressões anteriores às representações: a alucinatória, a somatização e a atuação. Compreendemos então que os procedimentos de expulsão para o soma ou em direção ao ato, ou seja, enterrar-se no mais interno ou descarregar para o mais externo, se produzem como se houvesse faltado o que chamo de formações intermediárias, aquelas em que justamente os desejos inconscientes podem encontrar uma forma singular de expressão (sonho, fantasia, ato falho, lapso etc.). É em todos esses casos que o Ego aparece como quase cego a si mesmo, padecendo de cegueira durante a instauração de suas operações. Nessa situação o analista tem a impressão de dirigir-se a um paciente sob estado de sonambulismo permanente, vagueando como uma sombra em pleno dia. (p. 134).

Diante da tentativa de isolar um tipo de psicopatologia diferente da neurose, houve a necessidade de lançar mão de outros conceitos metapsicológicos que não estariam relacionados diretamente ao recalque da sexualidade infantil, que é o fator etiológico determinante e paradigmático da neurose.

A pulsão de morte, por exemplo, seria um desses conceitos, pois sua função desobjetalizante, conforme descrita por Green, teria a capacidade de acionar as defesas primitivas, inibindo a capacidade imaginativa, simbólica e mediadora do psiquismo, provocando os adoecimentos não neuróticos em função dos mecanismos de defesa acionados, evidenciados pela inibição e empobrecimento; dissociação e enquistamento; transbordamento e evacuação. A impossibilidade nas passagens ao símbolo criaria áreas de não simbolização e de elementos não representáveis no psiquismo, que, segundo (Figueiredo, 20094. Figueiredo L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta .), estariam associadas a uma experiência traumática, seja como causa, seja como consequência, pois o enfraquecimento de sua potência imaginativa torna o sujeito menos apto a lidar com o que lhe afeta vindo de fora.

Aparentemente os mecanismos psíquicos produtores das psicopatologias não neuróticas estariam relacionados à função desobjetalizante, pulsão de morte e defesas pré-genitais, portanto diferentes do recalcamento (entendido aqui como mecanismo de defesa e não como recalque originário fundador do inconsciente), que é o responsável pela produção dos quadros clássicos de neurose e que estaria relacionado à pulsão de vida, tendo em vista sua meta objetalizante.

Por outro lado, conforme apontam (Carvalho, 20042. Carvalho, M. T. M. (2004). Sobre o alcance e os limites do recalcamento nas chamadas “psicopatologias da contemporaneidade”. In M. R. Cardoso (Org.), Limites (pp. 151-165). São Paulo: Escuta.) e (Ribeiro, 200416. Ribeiro, P. C. (2004). Patologias da Contemporaneidade e conflito sexual: “Não há tratamento social do recalcamento”. In M. R. Cardoso (Org.), Limites (pp. 107-114). São Paulo: Escuta .), as explicações que desconsideram o recalcamento como fundamentais no surgimento das psicopatologias que fogem ao modelo clássico das neuroses devem ser encaradas com reservas. Para eles, o recalcamento da sexualidade infantil continua sendo o fator fundamental na constituição do psiquismo, e seria um grande reducionismo separar de um lado o recalcamento e de outro o trauma, a falha na simbolização e o narcisismo.

Quanto a esse ponto, Green também parece concordar com a importância da sexualidade como fator etiológico e estruturante do psiquismo. A proposta dele é articular a pulsão e o objeto, além do psíquico com o somático, reintroduzindo a sexualidade na condução do tratamento das não neuroses.

A partir disso, é importante questionar se as manifestações psicopatológicas não neuróticas seriam realmente distintas das neuróticas, ou se seria impreciso classificá-las dessa forma. Haveria recursos teóricos suficientes na metapsicologia freudiana para explicá-las? Para responder a essa pergunta vejamos a seguir a teoria freudiana sobre a neurose obsessiva.

Neurose obsessiva e sua relação com as não neuroses

Para (Freud, 192610. Freud, S. (1926[1925]-1996f). Inibições Sintomas e Ansiedade. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago .[1925]/1996f), a neurose obsessiva tem origem na mesma situação que a histeria, a saber, a necessidade de desviar as exigências libidinais do complexo edipiano. Contudo, os meios para atingir esse objetivo seguem um curso diferente da histeria, pois a organização genital da libido vem a ser débil e insuficientemente resistente, de modo que, quando o ego precisa realizar seu trabalho defensivo, a primeira coisa que ele consegue fazer é regredir, no todo ou em parte, ao nível anal-sádico. Essa regressão a uma fase mais antiga do desenvolvimento psicossexual, embora não torne o recalque desnecessário, funciona claramente no mesmo sentido que ele. Dessa forma, na neurose obsessiva, as ocorrências traumáticas e conflitantes não são esquecidas por meio do recalque, mas permanecem conscientes; contudo, ficam isoladas e destituídas de afeto, o que provoca a supressão das conexões associativas, de modo que não são reproduzidas nos processos comuns do pensamento, obtendo-se assim o mesmo resultado defensivo que na amnésia histérica.

Logo, a defesa na neurose obsessiva é mais abrangente que na histeria, não se restringindo apenas ao recalque, pois “o trauma, em lugar de ser esquecido, é destituído de sua catexia afetiva, de modo que, na consciência, nada mais resta senão o seu conteúdo ideativo, o qual é inteiramente desinteressante e considerado sem importância” (Freud, 19096. Freud, S. (1909-1996b). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 10, pp. 137-276). Rio de Janeiro: Imago ./1996b, p. 172).

Esse conteúdo ideativo, que permanece consciente, mas ao mesmo tempo destituído de conexões de sentido, ficando isolado no pensamento e desprovido de afeto, constitui a base dos sintomas, o que prejudica a capacidade do neurótico obsessivo de associar livremente e estabelecer relações simbólicas entre os conteúdos sexuais, muito defendidos, e os sintomas. Por outro lado, o prazer sexual que antes estava ligado ao conteúdo do pensamento vê-se aplicado ao próprio ato de pensar, tendo em vista que a significação sexual do pensamento permanece isolada, de modo que ocorre um deslocamento do investimento libidinal do conteúdo representativo para o próprio ato de pensar, o que provoca os pensamentos ruminantes e as ideias fixas, mas que são desprovidos de sentido.

O fato de ocorrer uma regressão à fase anal-sádica é decisivo para a configuração dos sintomas na neurose obsessiva, sendo que (Freud, 192610. Freud, S. (1926[1925]-1996f). Inibições Sintomas e Ansiedade. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago .[1925]/1996f) entende essa regressão por uma desfusão pulsional, a qual se origina do desligamento dos componentes eróticos que, com o início da fase genital, se juntaram às catexias destrutivas que pertenciam à fase sádica.

Temos aqui o primeiro indicativo que possibilita relacionarmos a pulsão de morte ao aparecimento desse tipo de psicopatologia. A desfusão pulsional, como conceito freudiano, se relaciona aos pontos de vista de Green a respeito da desobjetalização. Assim como Green, Rechardt e (Ikonen, 198615. Rechardt, E., & Ikonen, P. (1986-1988). Sobre a interpretação dA Pulsão de Morte . In A. Green, P. Ikonen, J. Laplanche, E. Rechardt, H. Segal, D. Widlocher. A Pulsão de Morte (pp. 69-84). São Paulo: Escuta ./1988) consideram a pulsão de morte a partir da libido não ligada, que se manifesta especialmente nas fases precoces do desenvolvimento, nos estados regressivos e na psicopatologia grave.

Além do mais, a ampliação do conceito de defesa para além do recalque evidencia a atuação de outros mecanismos defensivos na neurose obsessiva, o que, segundo (Green, 198611. Green, A. (1986-1988). Pulsão de morte, narcisismo negativo, função desobjetalizante. In A. Green, P. Ikonen, J. Laplanche, E. Rechardt, H. Segal, D. Widlocher. A Pulsão de Morte (pp. 57-68). São Paulo: Escuta ./1988), revela a atuação da pulsão de morte. Pois quanto mais nos afastamos do recalque, mais se constata a ação dos outros tipos de defesas primárias(3 3 Segundo (Bergeret, 1972/2006), os mecanismos defensivos mais arcaicos e menos elaborados que o recalcamento (como a projeção, anulação, isolamento, recusa, clivagem etc.) são acionados no intuito de tratar o que não pôde ser recalcado, que, tornando-se incômodo, deve ser eliminado por procedimentos menos eficazes que o recalcamento, mas também menos custosos em contrainvestimento, porque mais “brutais” e mais próximos dos processos primários. ), a exemplo da clivagem e forclusão, onde o desligamento se destaca, dificultando o re-ligamento.

Diante disso, verifica-se certa semelhança entre a psicopatologia não neurótica e a neurose obsessiva, tendo em vista o comprometimento da capacidade do pensamento em estabelecer conexões associativas e relações simbólicas com o conteúdo sexual inconsciente, tornando-as refratárias ao método psicanalítico da livre associação.

Outra provável semelhança estaria na atuação da pulsão de morte de forma desvinculada da libido, pela regressão à fase anal-sádica, e, por consequência, a presença de um superego tirânico, característico dessa fase psicosexual, que se aproveita dos sintomas para satisfazer seus impulsos destrutivos.

Na neurose obsessiva o ego força uma regressão à organização anal-sádica em virtude de sua luta defensiva contra as exigências pulsionais, mas apesar de reconhecer a atuação de outros mecanismos de defesa em detrimento do recalque, Freud não destituiu a importância da sexualidade infantil na etiologia da neurose obsessiva, pois reconhece que talvez seja nos casos obsessivos, mais do que nos normais ou nos histéricos, que podemos mais claramente reconhecer que a força motora da defesa é a angústia de castração, e o que está sendo desviado são as tendências do complexo edipiano. (Freud, 1926[1925]/1996f) acredita que nas neuroses obsessivas, durante o início do período de latência, a dissolução do complexo de Édipo e a consolidação do superego são levados mais longe do que o normal, pelo fato de verificar-se uma degradação regressiva da libido, na qual a desfusão pulsional predomina. Isso torna o superego excepcionalmente severo e rude, e o ego, em obediência ao superego, produz fortes formações reativas de consciência, piedade e asseio, que serão contrapostas às tendências destrutivas e agressivas do Id. Essas formações reativas no ego do neurótico obsessivo, assim como o isolamento e a anulação, parecem estar ausentes ou muito mais fracas na histeria, constituindo, segundo (Freud, 1926[1925]/1996f), outros mecanismos de defesa a serem situados ao lado da regressão e do recalque.

Da mesma forma, (Bergeret, 19721. Bergeret J., Bécache A., Boulanger J. J., Chartier J. P., Dubor P., Houser M., et al. (1972-2006). Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: Artmed./2006) considera o recalcamento como o mecanismo de defesa principal porque assume um lugar quantitativo primordial na economia das diferentes organizações, mesmo nos estados não neuróticos. Mas, apesar de defesa principal, ele atribui ao recalcamento a existência de uma rede de defesas acessórias, tais como o isolamento, o deslocamento, a condensação e a evitação.

Diante da regressão da libido e da desfusão pulsional o superego torna-se mais rigoroso e insiste ainda mais fortemente na supressão da sexualidade, visto esta ter assumido formas tão repelentes pela presença de componentes sádico-anais. Assim, na neurose obsessiva o conflito entre o id e o superego é agravado em duas direções: as forças defensivas se tornam mais intolerantes e as forças que devem ser desviadas se tornam mais intoleráveis, pela regressão da libido (Freud, 192610. Freud, S. (1926[1925]-1996f). Inibições Sintomas e Ansiedade. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago .[1925]/1996f).

O resultado desse processo, que se aproxima cada vez mais de um fracasso completo da finalidade original de defesa, é um ego extremamente restringido, que, caso o sentimento de culpa não se ache consciente, fica reduzido a procurar satisfação nos sintomas, penitências ou restrições de natureza autopunitiva, como forma de satisfazer aos impulsos masoquistas. Diante disso, conforme destaca (Freud, 192610. Freud, S. (1926[1925]-1996f). Inibições Sintomas e Ansiedade. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago .[1925]/1996f), fica claro o quanto que o ego é mais cenário da ação da formação de sintomas na neurose obsessiva do que na histeria, perdendo sua capacidade de mediador do conflito. Basta obsevar como as faculdades intelectuais do ego são o alvo da formação dos sintomas, pelo fato de o próprio processo de pensamento se tornar hipercatexizado e erotizado.

A consequência disso pode ser observada no tratamento psicanalítico de forma bem clara, pois os pacientes neuróticos obsessivos têm grande dificuldade em associar livremente. Seu ego é mais atento e faz isolamentos mais acentuados, mantendo muitos conteúdos afastados do pensamento, como a intrusão de fantasias inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes. Essas características têm sido atribuídas também aos pacientes não neuróticos, de forma que podemos supor a existência de semelhanças entre eles, tanto nos mecanismos defensivos, quanto na inibição do ego, especialmente com relação ao pensamento.

Outro fator que supostamente levaria a uma articulação da neurose obsessiva com as não neuroses, diz respeito à observação de (Chartier, 19723. Chartier, J.-P. (1972-2006). Estruturas Neuróticas. In Bergeret J., Bécache A., Boulanger J.-J., Chartier J.-P., Dubor P., Houser M., et al. Psicopatologia: teoria e clínica . Porto Alegre: Artmed ./2006) acerca da precariedade do arranjo neurótico apresentada por alguns indivíduos obsessivos, cujo índice de histerização é fraco ou inexistente, com predominância dos elementos depressivos, psicastênicos ou de caráter, e ainda nos casos em que os rituais dominam a sintomatologia, como verdadeiras passagens ao ato. Em todos esses casos haveria uma semelhança com os estados-limítrofes, os quais são considerados por (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008) e (Minerbo, 200914. Minerbo, M. (2009). Neurose e não-neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo.) como paradigmas da estrutura não neurótica.

Nas psicopatologias não neuróticas o corpo e o comportamento são os alvos preferenciais das manifestações sintomáticas, como pode ser observado, por exemplo, nas somatizações e transtornos alimentares, na impulsividade ou compulsividade característicos dos estados-limítrofes e dos toxicômanos, além das manifestações corpóreas e angústia difusa presentes na síndrome do pânico. Diante disso, o afeto que na neurose obsessiva foi deslocado para o processo do pensamento, ocasionando as ideias obsessivas, no caso das não neuroses, provavelmente foi deslocado para a esfera corporal e comportamental, mantendo-se, em ambas as estruturas, o conteúdo do pensamento inibido e desprovido de afeto, sob o efeito do mecanismo de defesa do isolamento. Ademais, conforme aponta (Figueiredo, 20094. Figueiredo L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta .), é possível identificar a atuação dos mecanismos defensivos que provocam uma inibição e empobrecimento do ego; que causam uma dissociação e enquistamento, como forma correlata ao isolamento obsessivo; e, finalmente, que promovem o transbordamento e a evacuação das excitações por meio do corpo e das atuações.

Portanto, é possível sugerir a hipótese de que os pacientes não neuróticos compartilham o mesmo mecanismo defensivo presente na neurose obsessiva, desencadeado pela regressão da libido e desfusão pulsional, contudo, mantém certa semelhança com a histeria, uma vez que o afeto não é deslocado para o processo do pensamento, mas é dirigido para o corpo ou escoado do psiquismo por meio de atuações e compulsões. Porém, a significação simbólica desses sintomas, que comumente está presente na histeria de conversão, permanece ausente ou “enquistada”, pela inibição do pensamento levada a efeito no ego.

Quanto à anorexia e bulimia, em síntese, sem aprofundar na complexidade dessa problemática, a inibição do ego se daria na esfera da sexualidade corpórea em sua forma mais radical, pois é contra a maturidade sexual e a maternidade que se luta, retardando ou mesmo impedindo o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, interrompendo o fluxo menstrual e podendo chegar até a morte (Green, 200212. Green, A. (2002-2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago ./2008). Portanto, o que se pode concluir da inibição da anoréxica ou da compulsão da bulímica é a própria evitação da angústia, conforme já mencionado por Freud, cuja batalha contra a atividade pulsional é travada no próprio corpo, sendo que nesses dois casos a atividade do pensamento segue um curso bem parecido com o da neurose obsessiva, tendo em vista que as ideias fixas relacionadas ao emagrecimento, às dietas e à imagem corporal sugerem um caráter obsessivo. Quanto ao aspecto destrutivo da pulsão de morte, observado nas condutas alimentares que põem em risco a própria vida, uma possível explicação estaria na regressão da libido ao nível anal-sádico, com a consequente desfusão pulsional, assim como ocorre na neurose obsessiva por meio do superego sádico e evidenciado pelas inúmeras formações reativas.

Para finalizar, outra hipótese a ser considerada diz respeito ao fato, descrito por (Freud, 19249. Freud, S. (1924-1996e). O problema econômico do masoquismo. InEdição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, Ed. e J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 175-188). Rio de Janeiro: Imago ./1996e), de que a libido dessexualizada, que sofreu uma espécie de sublimação, é o resultado da dissolução do complexo de Édipo, que formará o superego e a consciência moral, instância carregada de pulsão de morte, na forma de libido dessexualizada, ou, na concepção de Green, libido desobjetalizada. Pois bem, essa pulsão de morte oriunda do superego tenderia a manter-se desligada das representações sexuais, sob o risco de voltar a sexualizar-se e reviver a situação edípica, de forma que auxiliaria o ego no trabalho defensivo do recalque, impedindo que o conteúdo recalcado encontre formas substitutivas de representação pela via simbólica do pensamento, causando a inibição da capacidade de simbolização, uma vez que o recalcamento possui uma rede de defesas acessórias, dentre elas o isolamento, capaz de obter tal resultado, conforme demonstrado na neurose obsessiva.

Diante disso, a despeito do pensamento e da simbolização, o afeto livre, resultante dos mecanismos defensivos e impedido de se religar a outras representações pela pulsão de morte, não encontraria outra forma de escoamento que não fosse pela via comportamental, corpórea e da atuação, os quais têm se mostrado na clínica como os destinos preferenciais das manifestações psicopatológicas descritas como não neuróticas.

Considerações finais

Portanto, a partir da análise das psicopatologias não neuróticas foi possível construir um modelo de funcionamento mental hipotético, segundo o qual a pulsão de morte teria um papel importante, assim como descrito por Freud na neurose obsessiva, cujas características envolveriam a regressão da libido à fase anal-sádica, a desfusão pulsional, a presença de um superego sádico, a prevalência de mecanismos defensivos distintos do recalcamento, mas que seriam ao mesmo tempo acessórios a ele, a erotização do pensamento e sua consequente inibição pela atividade defensiva, o que comprometeria a capacidade de associar livremente, e, por fim, a tendência à atuação e à evacuação da pulsão, a qual seria direcionada para o corpo e para o comportamento compulsivo.

Todas essas características confirmam as descrições feitas pelos teóricos da psicanálise sobre a não neurose, no que diz respeito à carência de um mundo fantasístico operante por meio do qual os derivados do recalcado possam se manifestar, além da tendência à atuação, sem o recurso da elaboração psíquica, e a predominância de uma economia do trauma relacionada ao gozo e ao excesso pulsional.

A provável relação com a neurose obsessiva possibilita compreender as psicopatologias não neuróticas com base na noção freudiana de defesa, sem desconsiderar o recalcamento e levando-se em conta o complexo de Édipo e a angústia de castração como mecanismos estruturantes do psiquismo, além de considerar os efeitos da pulsão de morte em sua etiologia, garantindo assim a primazia da sexualidade infantil inconsciente.

Por outro lado, a hipótese da existência de um funcionamento psíquico semelhante ao da neurose obsessiva, aparentemente, não esclarece por completo a psicopatologia não neurótica, pois não haveria argumentos suficientes para explicar outro tipo de descrição, que atribui aos pacientes uma fragilidade narcísica, o que, consequentemente, os deixariam suscetíveis às angústias de desintegração e morte. Não seria possível explicar tal afirmação porque na neurose obsessiva essas angústias não seriam predominantes, mas, pelo contrário, prevalentes na psicose.

Talvez a solução para esse dilema possa ser encontrada na regressão da libido à fase anal-sádica, conforme descrito por Freud na neurose obsessiva, e que, em decorrência dessa regressão, haveria a necessidade de pôr em uso mecanismos defensivos mais arcaicos e radicais em resposta à atuação da pulsão de morte desvinculada da libido, tanto na sua vertente objetal, direcionada aos objetos externos, os quais são percebidos como divididos, fragmentados e perseguidores, quanto na vertente narcísica, direcionada para o próprio ego por meio do superego sádico, o que colocaria em risco a integridade narcísica do ego.

Essa suposição pode ser válida para os casos em que a constituição psíquica se deu de tal forma que haveria a necessidade de usar defesas psicóticas, mais custosas para o ego, a exemplo do que ocorre com os estados-limítrofes. Isso fica evidente a partir da concepção de (Bergeret, 19721. Bergeret J., Bécache A., Boulanger J. J., Chartier J. P., Dubor P., Houser M., et al. (1972-2006). Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: Artmed./2006) de que o trauma vivenciado em um período precoce da evolução edipiana normal, o qual “não pôde ser recebido pela criança segundo um modo perceptivo e relacional, objetal acabado e genital” (p. 190) poderia levar o ego a “procurar integrar essa experiência antecipada às outras experiências do momento, ele dispõe essa percepção do lado das frustrações e das ameaças à sua integridade narcísica” (p. 190). Dessa forma, a fragilidade narcísica seria uma característica mais evidente nos estados-limítrofes e, segundo (Bergeret, 1972/2006), esse tipo de psicopatologia seria mais um arranjo que uma estrutura propriamente dita, pois o ego teria ultrapassado as fixações psicóticas, mas não teria atingido a evolução edipiana normal da neurose, no que se refere à organização pulsional genital e à maturação do ego.

Referências

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    Segundo (Bergeret, 1972/2006), os mecanismos defensivos mais arcaicos e menos elaborados que o recalcamento (como a projeção, anulação, isolamento, recusa, clivagem etc.) são acionados no intuito de tratar o que não pôde ser recalcado, que, tornando-se incômodo, deve ser eliminado por procedimentos menos eficazes que o recalcamento, mas também menos custosos em contrainvestimento, porque mais “brutais” e mais próximos dos processos primários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2017
  • Aceito
    12 Ago 2017
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