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Linguagem escrita e relações estéticas: algumas considerações

Considerations on language writing and aesthetic relations

Lenguaje escrito y relaciones estéticas: algunas consideraciones

Resumos

O processo de constituição do sujeito ocorre a partir de relações sociais, semioticamente mediadas. Assim, é via produção de sentidos que o ser humano produz cultura e, simultaneamente, constitui-se enquanto singularidade, o que caracteriza esse processo como criador. Ao reconhecer a linguagem como constitutiva do sujeito e entender o processo de criação como característico do ser humano, o presente trabalho apresenta reflexões, à luz da Psicologia Histórico-Cultural, sobre os processos de criação na/com a linguagem escrita. Situações de uma pesquisa anteriormente desenvolvida são apresentadas para ilustrar as dicotomias existentes no processo de produção escrita, mais especificamente no que se refere às relações forma/conteúdo e técnica/sentido. Para a superação dessas dicotomias, necessário se faz estabelecer relações estéticas com a realidade, por cujo intermédio a pessoa pode distanciar-se e aproximar-se da produção escrita, seja esta produto de sua objetivação ou não. É este movimento que possibilita a organização de novos sentidos para a produção própria ou alheia e, por conseguinte, novas escritas.

linguagem escrita; relações estéticas; constituição do sujeito


The process of the constitution of the subject occurs through semiotically mediated social relationships. Through the production of meanings the human being produces culture and, simultaneously, constitutes its singularity, which characterizes the process as creative. While acknowledging language as constitutive of the subject and the comprehension of the creative process as unique to humans, current analysis presents some considerations, based on historical-cultural psychology, on the creative processes with language writing. Situations from a previous research are shown to illustrate the dichotomies during the process of writing production, more specifically the relations between shape/content and technique/meaning. So that these dichotomies may be overcome, it is necessary to establish aesthetic relations with reality. Through reality the subject may distance him/herself from or approach the writing production whether or not it is his/her production. Such shifting permits the organization of new meanings for one’s own or for others’ production, or rather, for new writings.

Writing language; aesthetic relations; constitution of the subject


El proceso de constitución del sujeto ocurre a partir de relaciones sociales, semióticamente mediadas. Así, es vía producción de sentidos que el ser humano produce cultura y, simultáneamente, se constituye con singularidad, lo que caracteriza ese proceso como creador. Al reconocer el lenguaje como constitutivo del sujeto y entender el de creación como característico del ser humano, el presente trabajo presenta reflexiones, a la luz de la Psicología Histórico-cultural, sobre los procesos de creación en el/con el lenguaje escrito. Situaciones de una encuesta anteriormente desarrollada son presentadas para ilustrar las dicotomías existentes en el proceso de producción escrita, más específicamente en lo que se refiere a las relaciones forma/contenido y técnica/sentido. Para la superación de esas dicotomías, se hace necesario establecer relaciones estéticas con la realidad, por cuyo intermedio la persona puede distanciarse y aproximarse de la producción escrita, sea ésta producto de su objetivación o no. Es este movimiento que posibilita la organización de nuevos sentidos para la producción propia o ajena y, por consiguiente nuevas escritas.

Lenguaje escrito; relaciones estéticas; constitución del sujeto


ARTIGOS

Linguagem escrita e relações estéticas: algumas considerações

Considerations on language writing and aesthetic relations

Lenguaje escrito y relaciones estéticas: algunas consideraciones

Silmara Carina Dornelas MunhozI; Andréa Vieira ZanellaII

IMestre em Psicologia do Desenvolvimento. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC

IIDoutora em Psicologia da Educação. Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Silmara Carina Dornelas Munhoz SQN 214, Bloco I, Apto 402, Asa Norte 70.873-090, Brasília-DF E-mail: silmaracarina@gmail.com

RESUMO

O processo de constituição do sujeito ocorre a partir de relações sociais, semioticamente mediadas. Assim, é via produção de sentidos que o ser humano produz cultura e, simultaneamente, constitui-se enquanto singularidade, o que caracteriza esse processo como criador. Ao reconhecer a linguagem como constitutiva do sujeito e entender o processo de criação como característico do ser humano, o presente trabalho apresenta reflexões, à luz da Psicologia Histórico-Cultural, sobre os processos de criação na/com a linguagem escrita. Situações de uma pesquisa anteriormente desenvolvida são apresentadas para ilustrar as dicotomias existentes no processo de produção escrita, mais especificamente no que se refere às relações forma/conteúdo e técnica/sentido. Para a superação dessas dicotomias, necessário se faz estabelecer relações estéticas com a realidade, por cujo intermédio a pessoa pode distanciar-se e aproximar-se da produção escrita, seja esta produto de sua objetivação ou não. É este movimento que possibilita a organização de novos sentidos para a produção própria ou alheia e, por conseguinte, novas escritas.

Palavras-chave: linguagem escrita, relações estéticas, constituição do sujeito.

ABSTRACT

The process of the constitution of the subject occurs through semiotically mediated social relationships. Through the production of meanings the human being produces culture and, simultaneously, constitutes its singularity, which characterizes the process as creative. While acknowledging language as constitutive of the subject and the comprehension of the creative process as unique to humans, current analysis presents some considerations, based on historical-cultural psychology, on the creative processes with language writing. Situations from a previous research are shown to illustrate the dichotomies during the process of writing production, more specifically the relations between shape/content and technique/meaning. So that these dichotomies may be overcome, it is necessary to establish aesthetic relations with reality. Through reality the subject may distance him/herself from or approach the writing production whether or not it is his/her production. Such shifting permits the organization of new meanings for one’s own or for others’ production, or rather, for new writings.

Key words: Writing language, aesthetic relations, constitution of the subject.

RESUMEN

El proceso de constitución del sujeto ocurre a partir de relaciones sociales, semióticamente mediadas. Así, es vía producción de sentidos que el ser humano produce cultura y, simultáneamente, se constituye con singularidad, lo que caracteriza ese proceso como creador. Al reconocer el lenguaje como constitutivo del sujeto y entender el de creación como característico del ser humano, el presente trabajo presenta reflexiones, a la luz de la Psicología Histórico-cultural, sobre los procesos de creación en el/con el lenguaje escrito. Situaciones de una encuesta anteriormente desarrollada son presentadas para ilustrar las dicotomías existentes en el proceso de producción escrita, más específicamente en lo que se refiere a las relaciones forma/contenido y técnica/sentido. Para la superación de esas dicotomías, se hace necesario establecer relaciones estéticas con la realidad, por cuyo intermedio la persona puede distanciarse y aproximarse de la producción escrita, sea ésta producto de su objetivación o no. Es este movimiento que posibilita la organización de nuevos sentidos para la producción propia o ajena y, por consiguiente nuevas escritas.

Palabras-clave: Lenguaje escrito, relaciones estéticas, constitución del sujeto.

Sabe-se que o advento da linguagem é um marco na história da humanidade. Através desta atividade, tipicamente humana, o sujeito passa a ter uma nova relação com o passado, com o presente e com o futuro, pois por meio de narrativas orais tem acesso às memórias dos acontecimentos e modos de vida.

Com a invenção da linguagem escrita essas possibilidades, assim como os processos psicológicos necessários para sua produção, complexificam-se, porquanto aquele que escreve necessariamente precisa ter o " domínio consciente de todos os meios de expressão escrita" (Luria, 1987, p.169). Ademais, a linguagem escrita possibilita ao ser humano inscrever no tempo a sua própria história e reler, tantas vezes quantas se fizerem necessárias, o que escreveu para então (re)criá-la. Com esse movimento, a linguagem escrita permite ressignificar o passado e o presente, constituindo-se também como ferramenta importante para projetar o futuro. Afinal, a escrita permite ao ser humano descolar-se do tempo imediato e mergulhar num mundo imaginário, que, por sua vez, amplia sua experiência na medida em que lhe torna possível (re)criar o que não vê. Desta forma, a capacidade de conhecer o passado e planejar o futuro, no aqui-e-agora, refere-se a uma complexa atividade que envolve processos psicológicos superiores como imaginação, memória, percepção e pensamento abstrato, amalgamados pela emoção e pela própria linguagem.

Assim, a linguagem caracteriza-se não apenas como via de comunicação que transcende limites espaciais e temporais, mas também como constitutiva do sujeito, do seu modo de vida, do seu pensar, sentir e agir. Essas questões serão discutidas neste texto, em especial, a relação entre linguagem escrita1 1 Neste artigo, o termo linguagem escrita refere-se às atividades que englobam o ler e o escrever. Contudo, admite-se que o domínio da leitura é diferente do da escrita, isto é, que estas atividades envolvem capacidades distintas e múltiplas. e processo de criação.

LINGUAGEM ESCRITA E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

Gelb (1962) faz um detalhado estudo, ao longo da História, sobre o nascimento e desenvolvimento da escrita mais utilizada por nós na atualidade – a escrita alfabética, ou seja, a escrita que utiliza letras de um alfabeto. Kato (2002) assinala que por muito tempo a escrita foi compreendida como uma forma duvidosa de informação: " o próprio Platão toma o aspecto impessoal da escrita como um traço inferior, atribuindo a insuficiência dessa modalidade à falta de contato pessoal." (Kato, 2002, p. 34). Por volta do século II, Santo Irineu, considerado o maior escritor eclesiástico de sua época, refere-se à escrita como uma legitimação da oralidade. Neste contexto, a autoridade oral passa a ser questionada e os escritos bíblicos é que assumem lugar de verdade absoluta. A escrita passa, então, a ser " legalizada" , e nós, a fazermos parte de uma cultura grafocêntrica, na qual a escrita adquire indelével importância ante as diversas outras formas de linguagem que o ser humano pode desenvolver.

Saber ler e escrever torna-se símbolo de distinção social, pois permite ao sujeito assumir uma condição diferenciada neste novo contexto, uma vez que a realidade passa, nesse caso, a ser lida com outros olhos e este olhar conta com a mediação semiótica da palavra escrita. Essas atividades, a de ler e a de escrever, não se restringem ao ato de compreender que os rabiscos numa folha branca são símbolos que representam sons da fala ou de discriminar as formas das letras. Elas consistem em ter uma percepção auditiva aguçada, entender o conceito de palavras e sentenças e ser capaz de organizar textos no papel (Lemle, 2000). Além destes aspectos, saberes considerados básicos para que uma pessoa possa aprender a ler e a escrever, considera-se que estas atividades humanas e complexas permitem a produção e apropriação de diversos sentidos à razão de alguns lugares sociais e dos modos de participação dos sujeitos que empreendem essas atividades e, por seu intermédio, estabelecem interlocuções com outras pessoas, de diferentes tempos e espaços. Via processo de significação, ou seja, de produção de sentidos, as ações humanas tornam-se práticas significativas e permitem que o sujeito se aproprie de sua cultura e constitua-se como ser cultural, ao mesmo tempo em que produz cultura (Pino, 1993; Sirgado, 2000; Zanella, 2004b).

A linguagem não é compreendida, assim, apenas como uma ferramenta técnica que medeia as relações humanas, mas também e, sempre, como uma ferramenta semiótica constitutiva do sujeito, pois via signos constituem-se processos psicológicos caracteristicamente humanos. O sujeito, portanto, " (...) só pode ser compreendido [numa visão vygotskiana] na sua relação com o signo e, mais especificamente, com a linguagem" (Smolka, 1997, p. 36), pois suas relações com o mundo são sempre semioticamente mediadas, e nunca diretas. Vygotski (1987, p. 48) assinala este aspecto constitutivo da linguagem ao afirmar que " (...) a interação social pressupõe a generalização e o desenvolvimento do significado verbal; a generalização torna-se possível somente com o desenvolvimento da interação social." As palavras do autor evidenciam que o sujeito não é apenas constituído pela linguagem e nem mesmo apenas produz linguagem, mas constitui-se num movimento dialético que transcende explicações extremas e dissociadas, isto é, este ser constitui-se como humano num movimento em que produz linguagem e, simultaneamente, se produz (transforma) na e pela linguagem.

Destarte, ler e escrever são atividades culturais complexas: culturais, pois veiculam sentidos culturalmente construídos e compartilhados e, ao mesmo tempo possibilitam, em razão de seu caráter polissêmico, a produção de novos sentidos; complexas, pois se relacionam desde o princípio com a consciência e a intencionalidade. A esse respeito, Luria (1987, p. 170) esclarece que, quando aprende a escrever, a criança opera, no início, não com idéias, mas sim com os instrumentos de sua expressão exterior, com os meios de representação dos sons, etc. Somente mais tarde o objeto das ações conscientes da criança é a expressão da idéia. Desta forma, a linguagem escrita - diferentemente da oral, a qual se constitui no processo de comunicação viva - é, desde o início, um ato voluntário consciente, no qual os instrumentos de expressão se configuram como o principal objeto da atividade.

Desse modo, a linguagem escrita exige sempre reflexão, pois para expressar um mesmo pensamento por escrito utiliza-se um número maior de palavras do que na comunicação oral, por não ser possível contar com outros recursos metacomunicativos, como entonação de voz, gestos, postura corporal. Nas palavras de Vygotski (1992, p. 328), " a linguagem escrita ajuda que a linguagem se desenvolva numa forma de atividade complexa (...) a reflexão prévia é muito importante na linguagem escrita: com muita freqüência dizemos primeiro para nós mesmos o que depois escrevemos."

Kramer (2000, p. 114) aponta, por sua vez, para a necessidade de se considerar a escrita além de seu aspecto instrumental, pois esta precisa ser refletida enquanto experiência. Para a autora, " o que faz da escrita uma experiência é o fato de que tanto quem escreve quanto quem lê enraízam-se numa corrente, constituindo-se com ela, aprendendo com o ato mesmo de escrever ou com a escrita do outro, formando-se."

Ao adotar-se aqui uma orientação teórico-metodológica fundamentada no enfoque histórico-cultural em Psicologia, a qual se alicerça no materialismo histórico e na dialética, propõe-se uma discussão rumo a um novo olhar sobre as dicotomias técnica x sentido e forma x conteúdo, que compõem as atividades de ler e escrever. Vygotski baseia-se na noção de movimento dialético em sua compreensão sobre o desenvolvimento do psiquismo humano, na qual procura transcender a velha oposição que marca a psicologia - o dualismo entre natureza e cultura. Neste sentido, Pino (2000, p. 10) afirma que " o homem é um ser que emergindo da matéria e transpondo seus limites no campo do imaginário e do simbólico, torna-se construtor do mundo e de si mesmo." Distante do idealismo e do materialismo mecanicista, encontra-se um movimento no qual o sujeito se constitui nas e pelas relações que mantém com sua cultura, ao mesmo tempo em que também produz cultura, considerando a dimensão histórica da realidade. Isto é, " o homem objetiva-se e concomitantemente se subjetiva, ou seja, constitui-se enquanto sujeito." (Zanella, 2001, p. 74).

É o pensamento dialético que oferece subsídios para suprimir as relações de caráter dicotômico como externo/interno, objeto/sujeito, natureza/cultura, coletivo/singular, técnica/sentido, e abarcá-las como " (...) instâncias de um mesmo e único processo histórico (...)." (Zanella, 2004b, p. 128). Via tal modo de pensar pode-se compreender que o sujeito constitui-se num processo no qual ele é sujeitado a e sujeito de e, desta forma, busca-se " apreendê-lo" em sua totalidade e complexidade, objetivadas nas atividades que empreende em contextos culturais específicos.

Toda atividade humana é mediada por signos em sua significação, ou seja, naquilo que o signo significa por sua relação, e objetiva-se na produção de material simbólico, movimento este que possibilita a constituição dos processos psicológicos superiores, tipicamente humanos. Assim, é via produção de sentidos2 2 O sentido caracteriza-se pelo conjunto de eventos psicológicos que os conceitos provocariam no sujeito, isto é, tudo que o mobiliza de forma particular. que o ser humano produz e apropria-se da cultura e constitui-se enquanto sujeito singular. Este processo ocorre no campo da intersubjetividade, o qual é compreendido como " lugar do encontro, confronto e da negociação dos mundos de significação privados (ou seja, de cada interlocutor) à procura de um espaço comum de entendimento e produção de sentidos, mundo público de significação" . (Pino, 1993, p. 22) E são esses novos sentidos (singulares), que consistem numa (re)significação dos sentidos já apropriados e de outros sentidos (compartilhados), que serão desenvolvidos.

Assim, a linguagem escrita revela-se como possibilidade de criação, a partir da síntese entre aspectos que traz consigo, em relação ao que já foi, ao que é mas deixa e não deixa de ser, ao ser apropriado pelo outro, e ao que virá a ser, a partir desse novo olhar. Referindo-se à obra de arte também como uma forma de linguagem, Da Ros (2007) ajuda a entender esse movimento de deixar e não deixar de ser quando assinala que

(...) as sínteses mais recentes em termos de conhecimento guardam todo o processo e o movimento da produção do saber contida em formas anteriores e que se foram trans-formando, provocando e sendo provocadas pelos diferentes movimentos desta sua produção contendo, também, aquilo que é considerado novo (Da Ros, 2007, p. 3).

É este movimento que liberta as amarras entre a dicotomia forma x conteúdo, ou ainda, na linguagem escrita, técnica x sentidos. Por exemplo, o sujeito, ao ler um texto, enquanto leitor entra em contato com o autor da obra e, ao mesmo tempo, produz sentidos sobre o que foi lido, ou seja, transforma-se em co-autor do texto. Pode-se dizer que o que o mobiliza ao ler um texto revela não apenas sua singularidade, mas uma singularidade que é construída nas suas relações com os outros, as quais trazem marcas de uma coletividade que compartilha sentidos. São os sentidos de um conteúdo específico, que assumem diferentes formas de expressão. (Da Ros, no prelo)

Entende-se, desta forma, que a noção instrumental da linguagem não é suficiente para abranger sua própria complexidade, uma vez que este aspecto não se define como tipicamente humano. É preciso considerar também o movimento dialético de produção de sentidos, por cujo intermédio se busca transcender e compreender a produção de material simbólico e significativo. Vygotski (1992) aborda a " palavra significativa" como uma unidade de análise que abrange os aspectos forma e conteúdo e permite superar antagonismos, compreendendo a dimensão constitutiva destes aspectos.

LINGUAGEM ESCRITA E PROCESSOS DE CRIAÇÃO

Ana Maria Machado (2001), em seu livro " Textos e texturas: sobre leituras e escritos" , ressalta a dimensão criativa que ocorre por meio da linguagem. Nele a autora narra um mito grego sobre Filomena, uma jovem que é raptada e violada pelo seu cunhado Tereu, que a tranca numa torre e corta-lhe a língua para que nunca testemunhe contra ele e, ainda, inventa a morte da moça. Então, na condição de prisioneira, ela começa a tecer a narrativa de sua história. Filomena faz com que a tapeçaria que teceu chegue às mãos de sua irmã, que, como boa leitora, decifra a mensagem embutida na peça tecida e sai em busca da irmã e de justiça. Este exemplo caracteriza o processo de criação que se objetiva na e pela linguagem escrita e que transcende o aqui-e-agora.

No processo de produção de sentidos o ler e o escrever constituem-se como atividades que possibilitam o ato criativo. O sujeito que se constitui na relação com sua cultura ao mesmo tempo em que a produz, realiza este processo por meio de atividades reprodutoras (no sentido de não criar algo totalmente novo) e criadoras, que se instauram no movimento da relação eu-outro, na intersubjetividade, no constituir-se a partir do outro. Dessa forma, Vygotski (1990) assinala que, " por mais individual que pareça, toda criação encerra sempre um coeficiente social" (p.38), o que refuta a idéia de que ser criativo é privilégio de alguns (como se criassem do " nada" ), uma vez que os outros também carregam marcas dos alguns e vive-versa. Para o autor,

Se quisermos calcular o que, em cada obra de arte literária, foi criado pelo próprio autor e o que ele recebeu já pronto da tradição literária, observaríamos com muita freqüência, quase sempre, que deveríamos atribuir à parte da criação pessoal do autor apenas a escolha desses ou daqueles elementos, a sua combinação, a variação, em certos limites, dos lugares comuns, a transferência de uns elementos da tradição para outros sistemas, etc. (Vygotski, 2001a, p.16).

Esse processo de escolha, de combinação e variação, por sua vez, significa a produção de sentidos novos que parte do existente e cria uma nova realidade. Nesse processo de criação, o sujeito apropria-se, de modo singular, dos elementos existentes no mundo, significados coletivamente, e lança sobre estes outro olhar, no qual, impulsionado pela necessidade, busca dissociar, combinar e modificar esses elementos da realidade, viabilizando, nessa recombinação, a emergência do novo (Vygotsky, 1990). O produto da criação, por sua vez, engendrará o movimento de produção de novas significações coletivas e, assim, algum tipo de transformação na realidade social, considerando-se as mudanças para o próprio sujeito criador.

Como já referido, a imaginação possibilita que a pessoa amplie seu conhecimento, pois permite que esta se aproprie de múltiplas experiências suas e alheias e as transcenda, ao ser capaz de imaginar o que nunca viu. Assim, através da imaginação, o sujeito ultrapassa seus limites, assimila experiências históricas e as excede, compondo cenários imprevisíveis que objetivam algo da infinitude das possibilidades de existência humana (Vygotski, 1990). Por isto é que a imaginação projeta o ser humano para o futuro (Vygotski, 1990), pois vai além do que " está posto" , vai " mais adiante" , possibilita que se desconstrua a realidade " dada" e que esta seja reconstruída a partir dessa mesma realidade.

O autor salienta que quanto maior for o número de experiências vivenciadas por uma pessoa, mais subsídios esta terá no processo criativo. Não obstante, deve-se ter cautela ao fazer uma leitura deste pensamento, a fim de não reduzi-lo a mera quantidade de experiências, pois vale ressaltar que não apenas as experiências em si são importantes, mas, fundamental é a significação destas para o sujeito, a qualidade da relação que se estabelece com essas experiências, o que remete ao seu caráter singular. É a participação dinâmica do sujeito na produção de sentidos do que foi vivenciado e a sua (re)significação que garante a condição de sujeito criador. Em relação à linguagem escrita, é importante que a criança, ao apropriar-se desta ferramenta, possa significá-la de modo a ser capaz de utilizá-la para registrar atividades importantes do seu dia-a-dia, para que possa se comunicar e criar por meio desta.

Escrever constitui uma das possibilidades de objetivação da imaginação, de criação, e o ler é atividade fundamental para a ampliação de experiências, pois possibilita à pessoa acesso a ferramentas para a imaginação. Vygotski (2000) lamenta o fato de as atividades de ler e escrever serem ensinadas apenas como um conjunto de habilidades técnicas e " não como atividade cultural complexa" (p.156), atividade esta que possibilita ao sujeito produzir mudanças significativas na realidade e, ao mesmo tempo, reconhecer-se como agente de sua própria história.

Para Vygotski (1990), o processo de criação é complexo, pois envolve distintos aspectos, como experiência, necessidade, interesse, capacidade combinatória, conhecimento técnico, contexto cultural e tradição. Entre estes aspectos, considera a necessidade como força motriz para o ato criativo, pois o sujeito que se encontra totalmente adaptado ao contexto entrega-se à passividade. O impulso para a atividade criadora vem, segundo o autor, da inadaptação, que gera necessidades, desejos, de modo que a atividade torna-se vital para a existência desse ser, na busca de satisfazer tais exigências. Isto é, " a existência de necessidades ou anseios põe, assim, em movimento o processo imaginativo (...)." (Vygotski, 1990, p. 36) Deste modo, no tocante à linguagem escrita, Vygotski (2000) pontua que " (...) ler e escrever devem ser algo de que a criança necessite (...),[algo] relevante para a vida." (p. 156).

LINGUAGEM ESCRITA E RELAÇÕES ESTÉTICAS

É preciso reconhecer que nas atividades de ler e escrever pode ocorrer o processo criativo, e que este não se restringe às grandes obras da literatura. Em nossa sociedade, ensinar e aprender a linguagem escrita, atividades tipicamente humanas e culturalmente determinadas, ocorrem por um processo formal que, muitas vezes, apresenta um caráter institucional; ou seja, este momento é marcado pelo ingresso do sujeito, ainda na infância, em instituições responsáveis pelo ensinar: as escolas. Sabe-se que este processo varia entre as diversas culturas, mas o que marca o percurso do processo de apropriação da linguagem escrita é a intencionalidade do ensinar e aprender a ler e a escrever, característica esta também presente em relação a outros conhecimentos considerados socialmente relevantes, que compõem os currículos escolares.

Ao observar as crianças que chegam à escola e trazem consigo um conhecimento prévio de um mundo regido por letras, também é comum notar o encantamento que estas apresentam ao vislumbrarem a possibilidade de ser leitoras e escritoras fluentes. Há nestas crianças o desejo destas crianças de apropriar-se da linguagem escrita, o que significa a descoberta de um novo mundo; ou ainda, de reconhecer facetas de um universo até então supostamente conhecido. Ao longo do processo de escolarização, o sujeito apropria-se da linguagem escrita, num movimento que lhe permite a (re)construção de sentidos diversos das atividades de ler e escrever. Assim, estas podem traduzir-se em fontes de descobertas, mudanças e satisfação, ou serem compreendidas como instrumentos utilizados apenas para que se cumpram demandas sociais. Os diferentes sentidos construídos podem ou não oferecer condições para que o sujeito se aproprie da linguagem escrita e compartilhe coletivamente este processo.

Para criar através da escrita é fundamental que se estabeleçam relações estéticas com o ler e o escrever. Pode-se dizer que a relação estética é uma das formas mais antigas de relação do homem com o mundo, antecedendo o direito, a política, a filosofia e a ciência. Precede até mesmo a magia, o mito e a religião (Vázquez, 1999). Sabe-se que os seres humanos começam a se distinguir dos animais quando se tornam capazes de manter uma relação produtiva material com a natureza, ou seja, de produzir seus meios de existência. Desta forma, a ação do homem sobre a matéria ocorria em função das necessidades básicas de sobrevivência e de outras exigências criadas pelo próprio homem em função de novas relações que se estabeleciam. Surgiam, então, objetos com funções e finalidades variadas com o intuito de suprir essas necessidades (objetos utilitários). Contudo, nota-se que entre as prioridades criadas pelo ser humano emerge a necessidade de uma produção denominada de " transutilitária" , que se estende para além da função original de utilidade (Vázquez, 1999). É neste contexto que conhecemos a produção estética.

Vázquez (1999, p. 47) define estética como " a ciência de um modo específico de apropriação da realidade, vinculado a outros modos de apropriação humano do mundo e com as condições históricas, sociais e culturais em que ocorre." Esta definição abrange o estético não-artístico, isto é, o que se encontra presente em outras criações elaboradas pelo homem, que não se restringem às especificamente artísticas.

Neste artigo é utilizado o termo relações estéticas em virtude de que a estética existe somente em relação. Ou seja, um objeto é estético potencialmente, mas torna-se realmente estético quando é contemplado, notado pelo sujeito e este, por sua vez, apenas se comporta esteticamente quando entra em relação com um objeto. Em suma, a dimensão estética ocorre na relação sujeito/objeto. Vázquez (1999) expressa claramente esta concepção ao afirmar que " o que existe, na verdade, é a experiência que o objeto provoca, ou o estado, ou atitude engendrada na (e não antes da) relação estética, concreta, singular, com esse objeto" (p. 108). Assim, nas relações estéticas o sujeito também se constitui na singularidade, que por sua vez, é essencialmente coletiva.

Vale enfatizar que, apesar de o ser humano ser capaz de identificar conceitos estéticos e estabelecer relações estéticas, são as circunstâncias que o rodeiam que vão viabilizar a " transformação dessa possibilidade em realidade" (Vygotski, 2001a, p. 10). Assim se explica por que o sujeito desenvolve uns e não outros aspectos estéticos, isto é, diferentes formas de relações com o mundo. Por exemplo, na Idade Média a Igreja Católica viveu seu auge como governante da vida social, uma vez que o estético predominante estava ligado à adoração de Deus, condição que desaparece nos tempos modernos, em que se sobrepõem as linhas retas, a funcionalidade.

Diante, assim, de uma era cujo traço distintivo é a fugacidade, a fragmentação, ou ainda, a provisoriedade na relação sujeito-mundo, características da atualidade apontadas por Jameson (2000), por exemplo, é possível notar que, comumente, realiza-se uma leitura superficial, imediatista desse mundo. Estas características podem turvar o olhar das pessoas, tornando-lhes difícil perceber objetos estéticos e, desta forma, envolver-se em relações estéticas com o mundo que as cerca. Assim, para ter acesso a vivências estéticas e seus significados, é preciso que o sujeito passe por uma educação estética, ou ainda - o que talvez fosse possível denominar de " alfabetização estética" - que ele possa desenvolver outros olhares sobre o que se apresenta. Zanella (2004a) assinala que

a constituição do olhar estético, por sua vez, decorre de um processo, de intervenções deliberadas que objetivem romper com o episódico, com a explosão de imagens e mensagens desconexas que caracterizam a realidade atual e a destituem de sentidos voltados à crítica e sua transformação (p. 142).

Destarte, estabelecer relações estéticas com o mundo (com as pessoas, as atividades, os objetos, a linguagem escrita...) significa superar o que é apresentado como real, como dado; é ir além do hedonismo e desenvolver um olhar de estranhamento que permita romper com cristalizações nos modos de ver. Seria algo como olhar o igual de modo diferente, e então alcançar o que está ali e que é oculto e evidente ao mesmo tempo, mas cuja cotidianidade nos cega. Na construção deste novo olhar, Girardello (2006) enfatiza a necessidade de uma " educação dos sentidos" , a qual possibilitará à criança uma experiência mais profunda e complexa, engendrando possibilidades de criar.

É possível dizer que um sujeito não se comporta esteticamente o tempo todo e, como já vimos, nem mesmo o objeto, pois antes de entrar em relação com o sujeito esse objeto é apenas potencialmente estético (Vázquez, 1999). É preciso que ambos se relacionem. Sendo a relação estética outra forma de referir-se ao mundo, vale ressaltar que tal relação busca uma síntese entre as dimensões forma e conteúdo, deixando de priorizar um ou outro. Neste processo de síntese, é preciso considerar que a forma já carrega consigo um significado, pois toda forma informa, isto é, objetiva-se numa determinada característica cultural do contexto em que é produzida. Vázquez (1999, p. 83) pontua que " a forma não é apenas a organização interna da matéria sensível (...)" , ela traz imanente significado inscrito, significado que não se dilui na obra formada, mesmo que sua função original já tenha desaparecido. Vygotski (1992, 2001b) também contesta essa dicotomia entre forma e conteúdo propondo uma síntese, de modo que tais aspectos sejam reconhecidos como constitutivos do objeto e inseridos numa relação de interdependência, pois uma instância implica em outra.

Dessa maneira, a relação estética acontece quando, em relação com um objeto, o sujeito mobiliza-se pela contradição entre razão e emoção e busca superá-la, uma vez que se relaciona com este mundo como um sujeito inteiro, e não fracionado. Então, esta forma de relação propicia ao sujeito o enfrentamento de confrontos, a produção de reflexões que conduzem a negociações e a transformações de emoções e processos psicológicos superiores.

A estética reinventa a sensibilidade do sujeito, e vivenciar relações estéticas significa desenvolver maior afetividade, reflexão e imaginação, necessárias para a objetivação em produções criadoras que possibilitam ao seu autor assumir um novo compromisso ético tanto com seu produto quanto com a sociedade. A respeito da estética, Guatarri (1996) assinala que se caminha em direção a um paradigma estético no qual o ato criativo transitaria nas diversas dimensões da vida humana, instigando o desenvolvimento de distintas formas de sensibilidade. Compreendida desta forma, fica claro que a relação estética impulsiona os processos criadores, que, por sua vez, encontram-se atrelados à vida cotidiana e são responsáveis pela origem da arte e da ciência.

Relações estéticas, no caso da linguagem escrita, ocorrem num constante diálogo entre o sujeito e as atividades de ler e escrever, compreendidas em sua totalidade. Desta forma, este ser se reconhece enquanto leitor/escritor e vice-versa, alguém que ao mesmo tempo produz cultura e por esta é produzido. O sujeito torna-se capaz de enxergar muito além de sentenças que compõem um texto; compreende o escrito como uma produção inserida num determinado contexto histórico-cultural, que mobiliza lembranças, produz sensações, afetos que lhe permitem um contato diferenciado com o texto. Contudo, infelizmente, nota-se no processo de apropriação da linguagem escrita, uma ênfase no ensino da dimensão técnica, ignorando-se, por vezes, os diversos sentidos (re)produzidos nas atividades de ler e escrever.

Ao realizar observações em circunstâncias que envolviam atividades de ler e escrever num contexto escolar, observações essas que consistiram em dados da dissertação de mestrado da primeira autora deste artigo (Munhoz, 2003), foi possível constatar a separação entre o que é técnico e o que é criação, no processo de ensinar e aprender a linguagem escrita. Neste processo se verificaram situações em que o aspecto técnico recebia tamanha ênfase que acabava ofuscando a possibilidade do ato criativo, uma vez que as idéias, a criação, o novo e o diferente ficavam sempre em segundo plano. A preocupação principal dos professores era com as regras gramaticais, de ortografia, concordância que, posteriormente, serviriam como parâmetro na análise da escrita do sujeito: quanto menos erros cometesse, mais apto estaria para realizar as atividades de ler e escrever.

Benjamin (1996) assinala que esta dicotomia entre técnica e sentido caracteriza um tratamento antidialético dos fenômenos literários. Ao contrário, é na busca de uma síntese entre técnica e conteúdo, ou tendência e qualidade (como diz o próprio autor) que a criança poderá realmente apropriar-se da linguagem escrita em toda a sua complexidade. Ou seja, a técnica é necessária, mas não garante a criação, e uma criação sem técnica pode-se dizer que fica empobrecida. Desta forma, é possível compreender a necessidade e importância de que as crianças não só aprendam a utilizar o código alfabético, mas também se apropriem da linguagem escrita como uma possibilidade de construção de novos sentidos e de criação. Ou ainda, como assinala Vygotski (2001, p. 351), " só é útil aquele ensino da técnica que vai além dessa técnica e ministra um aprendizado criador: ou de criar ou de perceber."

As observações realizadas por Munhoz (2003) com crianças de classes de alfabetização em atividades que envolviam a linguagem escrita evidenciaram que o espaço destinado ao desenvolvimento de relações estéticas com as atividades de ler e escrever parecia minguar a cada ano letivo e o encantamento inicial pelo aprendizado destas atividades começava, nas séries subseqüentes, a dar lugar a outro tipo de relação com a linguagem escrita, agora caracterizada mais por uma espécie de " desencanto" . São os novos sentidos que se (re)constroem no tocante à linguagem escrita e que caminham não necessariamente para a criação, mas não raro, para o assujeitamento do sonho, do desejo, da vida. Não é incomum a observação, nas instituições que ensinam a linguagem escrita, das mesmas características que as encontradas por Munhoz (2003), a saber, que as crianças entram numa dinâmica na qual captam " a alma do negócio" , ou seja, desde cedo elas " aprendem" que quanto menos lêem e escrevem, menor será o risco de cometerem erros, de modo que só realizam estas atividades como tarefas a serem cumpridas (Franchi,1990). Na verdade, nota-se que neste tipo de relação que o sujeito acaba por estabelecer com a linguagem escrita, " substitui-se a autoria pela autorização e impede-se que a escrita com significado seja produzida" (Kramer, 2000, p. 108).

Destarte, não seria exagero afirmar que, no processo de ensinar e aprender a linguagem escrita, as coisas acontecem como se a imaginação da criança fosse aprisionada e impedida de objetivar-se e de transformar-se num ato criativo. A escrita perde seu valor enquanto experiência, enquanto possibilidade de criação. Zanella, Balbinot e Pereira (2000) pontuam que no " momento em que o sujeito se prende a padrões estéticos, segue regras cristalizadas e socialmente partilhadas, fica sob a égide de normas grupais coercitivas partilhadas pelo seu grupo de referência, o que torna mais difícil romper com o existente." Neste sentido, Girardello (2006) assinala a importância da mediação realizada pelo adulto entre criança e ambiente físico, uma vez que esta interferirá na qualidade da vida imaginativa destas crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredita-se que, para que a criança que se encontra em processo de apropriação da linguagem escrita conseguir estabelecer relações estéticas com o ler e escrever, é necessário ela poder compartilhar estas atividades nas relações que estabelece com os muitos outros com os quais convive. A leitura e a escrita não precisam ser atividades solitárias, pelo contrário, ao compartilhar com outro esses momentos o sujeito apresenta evidências de como se apropria da linguagem escrita. Estabelecidas relações estéticas, o sujeito pode ser capaz de exercer um movimento de distanciamento e aproximação com o objeto, seja este produto de sua objetivação ou não, e é este movimento que possibilita a organização de novos sentidos para a produção própria ou alheia. Por exemplo, quando o sujeito compartilha com alguém as atividades de ler e escrever, este alguém pode oferecer-lhe pistas, indícios para que ele elabore sua própria atividade e passe a desenvolvê-la de forma mais auto-regulada (Nogueira, 1993). Ou ainda, quando uma criança relê algo lido por outra, ela procura rever e dar sentido à leitura, de forma a confirmar ou transformar o que foi lido, regulando sua atividade a partir de indícios. É um momento em que o sujeito se distancia de sua realidade e tem condições de (re)construí-la esteticamente, isto é, de retomá-la sob um novo olhar. A esse respeito Vázquez (1999) afirma: " (...) existe, pois uma dialética da união e de separação, da identificação e do distanciamento de sujeito e objeto que constitui a própria natureza da relação na situação estética" (p. 153).

Neste movimento, a criança encontra a possibilidade de observar a dinamicidade do texto, que se define como algo em constante metamorfose, ou seja, não " é pra sempre" . A cada leitura, nasce um novo texto (Machado, 2001), de forma que o leitor também se torna autor ao apropriar-se da obra, atribuindo-lhe sentidos, e o autor se transforma em leitor, pois ao ler seu trabalho, também se apropria deste de maneira diversa. Nesse processo, a criança se reconhece como autora/leitora e autoriza-se a construir sua própria história de leitura, pois quanto mais o sujeito puder intervir no processo de suas atividades, maiores serão suas condições para o exercício da imaginação e da criatividade (Petrovisk, 1979). Destarte, desenvolver relações estéticas com a linguagem escrita possibilita ao ser humano compreender os diversos sentidos da vida para que possa ressignificá-la e vivê-la com mais intensidade.

Recebido em 24/08/2006

Aceito em 06/02/2007

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    Silmara Carina Dornelas Munhoz
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    E-mail:
  • 1
    Neste artigo, o termo linguagem escrita refere-se às atividades que englobam o ler e o escrever. Contudo, admite-se que o domínio da leitura é diferente do da escrita, isto é, que estas atividades envolvem capacidades distintas e múltiplas.
  • 2
    O sentido caracteriza-se pelo conjunto de eventos psicológicos que os conceitos provocariam no sujeito, isto é, tudo que o mobiliza de forma particular.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Recebido
      24 Maio 2006
    • Aceito
      06 Fev 2007
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