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O "morar" em hospital psiquiátrico: histórias contadas por familiares de ex-"moradores"

The "residence" in psychiatric hospital: stories told by families of ex-"residents"

El "vivir" en hospital psiquiátrico: historias contadas por familiares de ex-"habitantes"

Resumos

Este estudo teve como objetivo conhecer as histórias de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico na visão de seus familiares. Por meio de uma pesquisa de campo de caráter exploratório entrevistamos alguns familiares de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico, os quais descreveram o trajeto percorrido. As histórias possibilitaram delinear os caminhos que levaram essas pessoas a se tornarem "moradoras" de hospital psiquiátrico, o que esse fato lhes acarretou e o que lhes possibilitou retornar ao lar. A recorrência e longevidade da internação psiquiátrica dos "moradores" provocaram perda de papéis sociais e de laços afetivos, além de sinais de cronificação do transtorno mental, reforçando que o modelo manicomial acarreta agravos que poderiam ser evitados com o tratamento em consonância com os preceitos da atenção psicossocial. Neste modelo não há lugar para o "morar" em um hospital psiquiátrico tradicional, mas leitos em hospital geral para permanência pelo menor tempo possível, como determinam a Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, e a Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011.

Saúde mental; família; reforma psiquiátrica


This study aimed at getting to know stories of the ex-"residents" of psychiatric hospital in their families'view. Through a field research of exploratory character, families of ex-"residents" of psychiatric hospital were interviewed and they described the route taken by them. The stories allowed to trace the path that led these people to become "residents" of psychiatric hospital, what this fact caused to them and what allowed them to return home. The recurrence and longevity of psychiatric hospital admission of "residents" caused loss of social roles and of affective bonds, and also cronicity signs of mental disorders, reinforcing that the asylum model entails in aggravations that could be avoided with treatment in accordance with the precepts of psychosocial care. In this model, there is no place to "reside" in traditional psychiatric hospital, but in general hospital beds and in the shortest time possible, as determined by Law 10216 of April 6, 2001 and by Decree 3088 of 23 December 2011.

Mental health; family; psychiatric reform


Esta investigación tuvo como objetivo conocer las historias de ex "habitantes" de hospital psiquiátrico según la visión de sus familiares. Por medio de una investigación de campo de carácter exploratorio, entrevistamos tales familiares cuyos relatos permitieron delinear los caminos que hicieron que estas personas se convirtieran en "habitantes" de hospital psiquiátrico, las consecuencias de este hecho y lo que les posibilitó el retorno a sus casas. La recurrencia y la longevidad de la internación psiquiátrica generaron la pérdida de papeles sociales y de lazos afectivos, además de señales de cronificación del trastorno mental, reforzando que el modelo manicomial conduce a agravantes que podrían evitarse con el tratamiento de acuerdo con los principios de atención psicosocial. En este modelo no hay lugar para el "vivir" en hospital psiquiátrico tradicional, pero en los lechos de los hospitales generales y en el menor tiempo posible, según lo determinado por la Ley 10.216 de 6 de abril de 2001 y el Decreto 3088 de 23 de diciembre de 2011.

Salud mental; familia; reforma psiquiátrica


ARTIGOS

O "morar" em hospital psiquiátrico: histórias contadas por familiares de ex-"moradores"

The "residence" in psychiatric hospital : stories told by families of ex-"residents"

El "vivir" en hospital psiquiátrico: historias contadas por familiares de ex-"habitantes"

Carina Furlaneto FrazattoI; Maria Lucia BoariniII

IMestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, funcionária efetiva da Secretaria Municipal de Saúde de Marialva, coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS I) de Marialva

IIDoutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Santa Efigênia, 1333, centro CEP 86990-000 - Marialva-PR, Brasil E-mail: caryfrazatto@hotmail.com

RESUMO

Este estudo teve como objetivo conhecer as histórias de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico na visão de seus familiares. Por meio de uma pesquisa de campo de caráter exploratório entrevistamos alguns familiares de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico, os quais descreveram o trajeto percorrido. As histórias possibilitaram delinear os caminhos que levaram essas pessoas a se tornarem "moradoras" de hospital psiquiátrico, o que esse fato lhes acarretou e o que lhes possibilitou retornar ao lar. A recorrência e longevidade da internação psiquiátrica dos "moradores" provocaram perda de papéis sociais e de laços afetivos, além de sinais de cronificação do transtorno mental, reforçando que o modelo manicomial acarreta agravos que poderiam ser evitados com o tratamento em consonância com os preceitos da atenção psicossocial. Neste modelo não há lugar para o "morar" em um hospital psiquiátrico tradicional, mas leitos em hospital geral para permanência pelo menor tempo possível, como determinam a Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, e a Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011.

Palavras-chave: Saúde mental; família; reforma psiquiátrica.

ABSTRACT

This study aimed at getting to know stories of the ex-"residents" of psychiatric hospital in their families'view. Through a field research of exploratory character, families of ex-"residents" of psychiatric hospital were interviewed and they described the route taken by them. The stories allowed to trace the path that led these people to become "residents" of psychiatric hospital, what this fact caused to them and what allowed them to return home. The recurrence and longevity of psychiatric hospital admission of "residents" caused loss of social roles and of affective bonds, and also cronicity signs of mental disorders, reinforcing that the asylum model entails in aggravations that could be avoided with treatment in accordance with the precepts of psychosocial care. In this model, there is no place to "reside" in traditional psychiatric hospital, but in general hospital beds and in the shortest time possible, as determined by Law 10216 of April 6, 2001 and by Decree 3088 of 23 December 2011.

Key words: Mental health; family; psychiatric reform.

RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo conocer las historias de ex "habitantes" de hospital psiquiátrico según la visión de sus familiares. Por medio de una investigación de campo de carácter exploratorio, entrevistamos tales familiares cuyos relatos permitieron delinear los caminos que hicieron que estas personas se convirtieran en "habitantes" de hospital psiquiátrico, las consecuencias de este hecho y lo que les posibilitó el retorno a sus casas. La recurrencia y la longevidad de la internación psiquiátrica generaron la pérdida de papeles sociales y de lazos afectivos, además de señales de cronificación del trastorno mental, reforzando que el modelo manicomial conduce a agravantes que podrían evitarse con el tratamiento de acuerdo con los principios de atención psicosocial. En este modelo no hay lugar para el "vivir" en hospital psiquiátrico tradicional, pero en los lechos de los hospitales generales y en el menor tiempo posible, según lo determinado por la Ley 10.216 de 6 de abril de 2001 y el Decreto 3088 de 23 de diciembre de 2011.

Palabras-clave: Salud mental; familia; reforma psiquiátrica.

Estimativas do Ministério da Saúde (Brasil. Ministério da Saúde, 2010a) revelam que existem aproximadamente 10.7221 1 Número calculado com base na afirmação de que o número de 3.574 usuários, correspondente aos beneficiários do Programa de Volta para Casa, corresponde a 1/3 do número estimado de pessoas com longo tempo de internação em instituição psiquiátrica (Brasil. Ministério da Saúde, 2010a). usuários vivendo como "moradores" de hospitais psiquiátricos em nosso país. O "morador" de hospital psiquiátrico é aqui entendido como aquele usuário que ficou ininterruptamente por mais de um ano recolhido em uma instituição psiquiátrica, já saiu do período de crise, está de alta hospitalar, porém continua internado (Brasil. Ministério da Saúde, 2003).

Se atualmente "morar" em hospital nos parece estranho, uma vez que, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2011), a palavra hospital indica "estabelecimento onde se recebem e se tratam doentes", a origem do termo hospital desfaz esta estranheza. Etimologicamente, o vocábulo é derivado de hospes (latim), que significava "hóspede" ou "hospedeiro" e indicava somente um local onde os hóspedes eram recebidos. De acordo com Amarante (2007, p.22), o hospital "... foi criado na Idade Média como instituição de caridade, que tinha como objetivo oferecer abrigo, alimentação e assistência religiosa aos pobres, miseráveis, mendigos, desabrigados e doentes". Para o autor, devido à condição de pobreza e miserabilidade, não é de estranhar que essas pessoas fossem também doentes. Em meados do século XVIII o hospital foi perdendo sua função inicial de filantropia, aos poucos, se delineando sua finalidade atual, na qual hospital é sinônimo de atenção à saúde, o que nos remete à já citada estranheza, ou seja, centenas de pessoas ainda moram em hospital. Essa estranheza é ainda maior quando entendemos que o modelo de atenção à saúde mental baseado em internações psiquiátricas já no início do século XX era questionado por alguns dos profissionais que faziam parte da Liga Brasileira de Higiene Mental – LBHM – ao observarem que o atendimento, quando não se valia do isolamento, era melhor, mais eficaz e mais econômico (Lopes, 1932). Esses profissionais preferiam esse atendimento quando ainda nem usufruíam dos psicotrópicos, que hoje garantem melhor controle dos sintomas advindos dos transtornos mentais, tornando ainda mais viável uma proposta de tratar sem isolar.

É fato conhecido que, contrapondo-se ao modelo centrado nos hospitais psiquiátricos, a sociedade brasileira, em sintonia com clamores procedentes de outros países e, no caso brasileiro, com o movimento italiano, batalhou e conta hoje com um importante aparato jurídico que dá sustentação a uma política de Estado no que se refere à saúde mental. Se em geral o encaminhamento anterior a esta política restringia-se à internação por longos períodos, em regime de reclusão e em amplos hospitais psiquiátricos, na atualidade contamos com outro modelo, que inclui vários serviços extra-hospitalares os quais devem se articular de forma complementar entre si, para garantir uma atuação em rede, com a finalidade de substituir os cuidados em saúde mental, tal como estabelece a Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011. É preciso destacar que a Portaria 3.088 de 23 de dezembro de 2011 descreve os diversos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial derivados dos seguintes componentes: 1) Atenção Básica em Saúde (Unidades Básicas de Saúde, Equipes de Atenção Básica para populações em situações específicas – como consultório de rua, centros de convivência, Núcleos de Apoio à Saúde da Família); 2) Atenção Psicossocial Especializada (CAPS I, II e III, CAPSad e CAPSi); 3) Atenção de Urgência e Emergência (SAMU, Unidade de Pronto Atendimento, Salas de estabilização, etc.); 4) Atenção Residencial de Caráter Transitório (Unidades de Acolhimento, Serviços de Atenção em Regime Residencial); 5) Atenção Hospitalar (Enfermaria especializada em Hospital Geral, O Serviço Hospitalar de Referência); 6) Estratégias de Desinstitucionalização(Serviços Residenciais Terapêuticos e Programa de Volta para Casa); 7) Reabilitação Psicossocial (iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas sociais).

Tendo como referência o modelo contemporâneo de atenção à saúde mental e considerando que, apesar do grande contingente de pessoas "moradoras" de Hospital Psiquiátrico, o Ministério Público entende que a verba do SUS não é para manter moradias em hospitais, a legislação brasileira, contemplando as estratégias de desinstitucionalização, determina que sejam providenciados serviços residenciais terapêuticos para os "moradores" "... que não possuam suporte social e laços familiares" (Portaria nº106 de 11 de fevereiro de 2000). Além disso, visando favorecer a saída destas pessoas do hospital psiquiátrico, foi criado um benefício denominado Programa de Volta para Casa, que prevê o pagamento de um auxílio-reabilitação psicossocial, de caráter financeiro, para pessoas com transtornos mentais egressas de longas internações (mais de dois anos). Durante o período em que estão vinculados ao Programa, os usuários devem frequentar o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS e ser acompanhados pela equipe de saúde mental do município. O benefício tem duração de um ano e pode ser renovado por mais um, contemplando pessoas que residem com suas próprias famílias ou substitutas ou, ainda, as que habitam os serviços residenciais terapêuticos ­– SRTs (Brasil. Ministério da Saúde, 2003).

Dados divulgados pelo Ministério da Saúde em julho de 2011 (Brasil. Ministério da Saúde, 2011a) apontaram 596 serviços residenciais terapêuticos em funcionamento, abrigando um total de 3.236 moradores. A mesma publicação divulgou o número de 3.832 pessoas beneficiárias do Programa de Volta para Casa até o período mencionado. Com esse relato, tendo como recurso os números, podemos correr o risco de adjetivar a situação dos "moradores" de hospital psiquiátrico como algo simples de se resolver; no entanto o Ministério da Saúde argumenta que o número de beneficiários do Programa de Volta para Casa é menor do que o desejável (Brasil. Ministério da Saúde, 2011a) e prevê que o número de beneficiários cadastrados no início de 2011 correspondia a apenas 1/3 das pessoas estimadas como "moradoras" de hospital psiquiátrico no Brasil (Brasil. Ministério da Saúde, 2011b). Além disso, várias pesquisas (Gomes, Couto, Pepe, Almeida, Delgado e Coutinho, 2002; Pinheiro, Guljor, Silva Jr. e Mattos, 2007; Barros e Bichaff; 2008) evidenciam ser alto o número de "moradores" que ainda habitam as instituições psiquiátricas.

O Ministério da Saúde (Brasil. Ministério da Saúde, 2011a, p.10) afirma que vários fatores influenciam o processo de desinstitucionalização e considera que "... a longa permanência nos hospitais psiquiátricos não se justifica pela situação clínica, mas por questões familiares, sociais, culturais, econômicas e políticas".

Se, por um lado, a existência dos SRTs sugere a ausência de famíliares ou de vínculos entre eles, por outro, a convivência nestes serviços nos leva a questionar que tipo de relações estão sendo estabelecidas em seu interior e quais os avanços e desafios que esse tipo de dispositivo oferece às pessoas com transtorno mental.

Com o intuito de conhecer as questões que permeiam a existência do "morar" em hospital psiquiátrico realizamos um estudo junto a familiares de pessoas que viveram anos como "moradoras" de tais instituições. O objetivo foi conhecer a realidade de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico na visão de seus familiares. Para atender ao objetivo proposto, realizamos uma pesquisa de campo de caráter exploratório, cujo desenho e percurso descrevemos no item seguinte.

O caminho da pesquisa

A história de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico foi construída com base no relato de seus familiares. A escolha dos familiares, e não dos usuários, deveu-se ao fato de o ex-"morador", no nosso caso, não conseguir relatar sua própria história. Estes familiares foram selecionados após a escolha de usuários que atendessem aos seguintes critérios: ter sido "morador" de hospital psiquiátrico, estar cadastrado como usuário da Rede de Atenção Psicossocial de Maringá-PR2 2 Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. no ano de 2009, ter referência familiar conhecida e ser residente em Maringá-PR ou região. Seis das quinze pessoas que foram identificadas como ex-"moradoras" de hospital psiquiátrico e residiam em Maringá no ano de 2009 não tinham referência familiar conhecida e, por isso foram excluídas da pesquisa. Das nove pessoas que atendiam aos critérios de residir em Maringá e possuir referência familiar conhecida, três foram excluídas pelo fato de suas famílias residirem em municípios distantes de Maringá ou região e duas foram excluídos porque seus familiares apresentavam comprometimentos psiquiátricos que impediam a realização das entrevistas. Dessa forma, restaram quatro ex-"moradores" de hospital psiquiátrico, cujos familiares foram nossos interlocutores, sendo abordados por meio de entrevistas semiestruturadas. Para Minayo (2007), este tipo de entrevista oferece certa liberdade ao informante, por serem as questões mais abertas. Com esta perspectiva utilizamos perguntas norteadores que objetivaram construir a história dos ex-"moradores" a partir do histórico da doença e da situação atual da pessoa com transtorno mental. Adotando nomes fictícios apresentamos a seguir as principais características dos familiares entrevistados.

Uma vez coletado e transcrito, o material recolhido foi analisado e articulado para que a história oral desses ex-"moradores" pudesse ser relatada neste estudo. Segundo Thompson (1992, p. 44), a história oral "... é uma história construída em torno de pessoas" - no caso deste estudo, tendo-se como base duas das maneiras descritas pelo autor: a utilização de narrativas, de diferentes pessoas, sobre um enfoque e a utilização de outras fontes complementares à história oral, tais como os dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Maringá, os procedimentos da Promotoria de Defesa da Saúde Pública e Saúde do Trabalhador e, ainda, as informações teóricas sobre os assuntos discutidos nesta pesquisa.

Todos os dados coletados foram reunidos em torno de temas comuns, tratados por meio de uma extensiva análise, sob a lente da Política Nacional de Saúde Mental. Por privilegiar as histórias de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico na visão de seus familiares, optamos por construir tais histórias utilizando o recurso da história oral temática, pois, conforme aponta Fonseca (1997, p. 38), os aspectos enfocados nessa forma de narrativa não se referem "... à totalidade da vida da pessoa, mas aos aspectos da vivência, os quais constituem informações para a reconstituição de fatos, eventos ou problemáticas do passado".

Para a realização deste estudo contamos com a aprovação do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, conforme o Parecer nº 285/2010, emitido em 11/06/2010.

HISTÓRIAS DO "MORAR" EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

Ao construir a história oral de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico na visão de seus familiares, buscamos compreender os aspectos que levaram essas pessoas a se tornarem "moradoras" de hospital psiquiátrico, as mudanças geradas pela longa permanência no hospital, e ainda, o retorno dessas pessoas a seus lares. Buscamos identificar neste processo quais os fatores que possibilitaram ou dificultaram a saída do hospital e a convivência fora desse ambiente. As histórias revelaram que algumas das questões que levam a pessoa à internação constituem, elas próprias, entraves para o retorno ao lar, como se verá nos próximos subitens. Da mesma forma, geralmente a longa internação produz agravos, entre eles a possibilidade de cronificação do quadro psiquiátrico, que também dificulta o retorno ao lar. Não obstante, os casos relatados neste estudo indicam que, mesmo com todas as dificuldades, é possível conviver em comunidade.

O INÍCIO DA HISTÓRIA: A INTERNAÇÃO EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

As histórias contadas pelos familiares de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico nos levam a identificar um ponto inicial comum a todas as histórias enfocadas neste estudo: em um momento de crise o único recurso encontrado foi a internação em hospital psiquiátrico. Este foi descrito como uma continuidade da doença, como se existisse um caminho preestabelecido: transtorno mental pressupõe internação em hospital psiquiátrico. Podemos ilustrar esse fato com a fala do irmão e da cunhada de Alberto ao relatarem o que fizeram diante da crise apresentada por Alberto: "Internar, né..." (irmão de R.), "Não tinha outra opção não" (cunhada de R.). Afirma Boarini (2006, p.83):

De fato, sem a compreensão do que está ocorrendo, sem recursos e invadida por apreensões, a família busca a saída que lhe vem mais fácil à mão: a exclusão do problema, que, em outras palavras, é sinônimo de internação em hospital psiquiátrico.

A manifestação do transtorno e as internações repetitivas ao longo dos anos foram constatações evidenciadas por Boarini (2006) e Rosa (2003), que também apareceram nos relatos entrevistados neste estudo, como relata a mãe de Tadeu, cuja última internação durou quatro anos e quatro meses: "... aí, daí para frente, a vida foi assim: levando ele, internando, trazendo, levando, trazendo, internando, trazendo ... Foram quatorze internamentos em vários lugares; aqui em Maringá, aqui não tem quantidade" (mãe de Tadeu).

No caso de Elvira, após diversas internações, chegou o momento em que ela se internou por conta própria, ficando institucionalizada por 29 anos, como relata sua filha:

... ela ficava de clínica em clínica [referindo-se a instituições psiquiátricas], por um período, quando a B. [filha caçula] era menor, e, pelo que eu entendo, a situação na família dela era aquela situação de muita briga, de muita discussão. Acabou que em 1979 a minha mãe, por conta própria dela, pegou as coisas dela e ela mesmo se internou; ela mesma foi para a clínica e não saiu mais de lá, desde 1979 (filha de Elvira).

Segundo Rosa (2003), crises psiquiátricas sucessivas, acompanhadas da forma como os serviços as abordam, acabam por levar a família a se organizar de uma forma que alija a pessoa com transtorno mental de seu meio, temporariamente ou em definitivo. Para a autora, "As incertezas e dúvidas iniciais vão sendo substituídas pela certeza da incurabilidade que vão enrijecendo as relações da família com o portador de transtorno mental, e confirmando sua suspeita de impossibilidade de mudanças comportamentais do PTM" (p. 250), sigla que é utilizada por Rosa (2003) para significar portador de transtorno mental.

Ao observar que a internação em hospital psiquiátrico, nos casos estudados, foi a alternativa encontrada para solucionar o agravo do transtorno mental, temos indícios de que se tornar "morador" não foi uma opção para estas pessoas, mas, praticamente, uma imposição. Se considerarmos que ninguém nasce efetivamente um "morador", mas torna-se tal, podemos entender esse fato como uma construção, derivada, em geral, da insuficiente implantação e implementação de uma da Rede de Atenção Psicossocial em municípios brasileiros, bem como da ausência de intervenções em outras áreas para além da saúde, o que caracterizaria as ações intersetoriais. O atendimento em hospital geral no momento da crise, acompanhado de intervenções nas áreas da assistência social ou de habitação quando se fizer necessário, somado a tratamento na da Rede de Atenção Psicossocial após estabilização dos sintomas, é o modelo definido pela Reforma Psiquiátrica, que se constitui, atualmente, em política de Estado e que pode proporcionar outro destino à pessoa com transtorno mental que não seja "morar" em hospital psiquiátrico.

Cronificação e perdas: a vida hospitalizada, a vida em reclusão

As internações repetitivas mencionadas no item anterior podem revelar o que Robaina, Guljor e Pinheiro (2007, p.132) definem como revolving door (porta giratória), que indica o processo contínuo de entrada e saída do hospital psiquiátrico. Para as autoras, "... esse movimento constante de construção e reconstrução ocorre até que num momento esses sujeitos perdem o lugar para onde voltar ou desistem de investir na criação de novos laços". A mãe de um dos usuários, por exemplo, relata que sair do hospital não foi uma decisão de seu filho: "Ah, ele não queria sair não, ele tinha medo de sair, ele queria ficar no hospital..." (mãe de Tadeu).

Basaglia (1979), citado por Machado, Manço e Santos (2005), revela que muitos pacientes apresentam dificuldade em deixar a instituição psiquiátrica para viver socialmente, e atribui esse comportamento a dois motivos: habituar-se ao modo de vida asilar; ter supridas necessidades econômicas e sociais dos quais eram privados fora do hospital. Além disso, Moreira (1983, p.113) afirma que, "(...) após sucessivas reinternações, dependendo do estado do paciente, podem acabar, também por diminuir sua capacidade de resistência ou levá-lo a preferir, definitivamente, a vida hospitalar ao convívio social". Rosa (2003, p. 298) descreve a situação em que a pessoa prefere manter-se internada pelos efeitos do hospitalismo ou ser "(...) mantida pela família neste circuito por ter desistido de cuidar dele ou ter dificuldade em manejar seus sintomas nas condições de vidas dadas".

Goffman (2008, p.16), abordando a dificuldade de deixar instituições totais, entende-as como aquelas instituições que são muito mais "fechadas" do que outras; "fechamento" que é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico. Para o autor, após longa internação, ao voltar para o mundo exterior, o internado sofre um "desculturamento", tornando-se "... temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária" (Goffman, 2008, p.23).

Além das consequências citadas, temos ainda o fato de que, em geral, a internação inicial em hospital psiquiátrico ocorre na faixa etária produtiva do ser humano. Este fato, aliado às longas e recorrentes internações, dificulta o acesso destas pessoas à escolaridade, à realização profissional, entre outras possibilidades (Boarini, 2006). A mãe de Tadeu, por exemplo, relata que seu filho surtou pela primeira vez aos dez anos de idade, e, como o tratamento recebido foram diversas internações, ele foi impedido de avançar em sua vida escolar. Já a filha de Elvira relata ter convivido com sua mãe somente até os sete anos de idade, porque nessa época sua mãe surtou e iniciou uma carreira de recorrentes internações, de modo que ela passou a receber cuidados de outros membros da família, o que culminou no afrouxamento dos laços afetivos entre mãe e filha. Para Goffman (2008, p.25), a internação em instituições totais, como os manicômios, impede que o internado expresse alguns papéis sociais que podem não ser recuperados mesmo após a saída da instituição, como, por exemplo, "... o tempo não empregado no progresso educacional ou profissional, no namoro, na criação dos filhos".

A cronificação do transtorno mental é outra consequência das longas internações, e atinge desde a noção temporal dos indivíduos até a capacidade de desenvolver atividades básicas do cotidiano, como atravessar uma rua, vestir-se sozinho, etc. A ex-esposa de Paulo descreve a situação dele dizendo que é como se ele tivesse parado no tempo, pois até aquele momento ele não se dera conta da separação entre os dois. O pai e a madrasta de Paulo descrevem que ele tem dificuldade em se lembrar do presente, embora tenha uma ótima lembrança dos acontecimentos que antecederam o primeiro surto, seguido de internação e da separação conjugal. Outras dificuldades observadas pelos familiares de Paulo são as falas repetitivas, sendo necessário que alguém as controle. Além disso, falta noção temporal - por exemplo, após uma internação de cinco anos, afirma ter ficado apenas 45 dias fora de casa. Moreira (1983, p.129) esclarece que, em uma instituição total, os eventos, quando existem, "... perdem a pessoalidade, para se revestirem de um caráter uniforme e desindividualizado. Nessa repetição monótona da rotina diária, a história pessoal se interrompe; o paciente passa a viver um eterno presente, uma anti-historicidade". Além das dificuldades relacionadas à memória e à noção temporal, Gonçalves, Fagundes, Lovisi & Lima (2001), ao avaliarem as limitações no comportamento social em pacientes psiquiátricos de longa permanência, destacam que esses indivíduos apresentam dificuldades nas seguintes áreas: iniciativa, aparência pessoal e higiene, concentração, inatividade, inadequação da conversa, comportamento suicida, realização de ideias bizarras, comportamento destrutivo, depressão e comportamento sexual. Embora os autores defendam que 65% da população pesquisada estavam aptas a residir na comunidade, tornam evidente que essas pessoas carregam as marcas deixadas pelos anos de internação. O irmão e a cunhada de Alberto comentam sobre as diferenças percebidas em seu familiar antes e depois da última longa internação, que teve duração de dez anos: "Ele está bem gordo, tem diferença grande sim. Ele sempre foi forte, né? Mais assim do que eu, mais cheião, mas dessa vez, agora, ele está gordo mesmo, está um barroco de um homem"; e mais adiante: "... só que igual era antes, não conversava não, parece que meio vagaroso, assim, meio quase sem assunto, né?" (irmão de Alberto).

Segundo Colvero, Ide e Rolim (2004, p.202), a família tem dificuldade em lidar com os comportamentos decorrentes da doença, como delírios, alucinações, agressividade, bem como com aqueles comportamentos que as autoras caracterizam como "... os chamados sintomas negativos que são aqueles relacionados a uma apatia marcante, pobreza de discurso e embotamento ou incongruência das respostas emocionais". A mãe de Tadeu descreve em detalhes como se dá a orientação temporal de seu filho após a última internação, de mais de quatro anos: "O ano ele sabe, o problema é o dia; ontem mesmo ele perguntou que dia que era ontem, eu falei que era domingo, dia quatro de julho, e amanhã dia cinco de julho; aí ele dá uma volta, volta e pergunta de novo, deita, levanta e quer saber que dia que é mesmo que eu tinha falado".

Esta mãe refere: "Ele ia na igreja antigamente, mas não vai mais, só fica em casa; ... eu comprei um radinho para ele, uma TV só para ele assistir, só que ele não quer barulho; não quer barulho de jeito nenhum" (Mãe de Tadeu). Ou seja, Tadeu parece viver recluso dentro da própria casa.

Olha, eu falo para você, tem hora que ele sai, vai lá para frente da casa assim, e fala para mim: "Eu vou dar uma voltinha", mas ele não vai; aí, eu penso: "Ah, Senhor, acorrenta ele com a corrente divina dentro de casa, para ele não andar para rua mais". Aí, daí a pouco, eu falo assim não vejo ele lá, não vejo o portão aberto nada: "ah meu Deus do céu, onde está meu pipoco? Ah meu Deus onde está meu pipoco?". Aí, ele chega lá na janela e dá risada: "ah mãe, estou aqui"; eu dou carinho para ele, dou carinho (Mãe de A.).

Ao defender a desinstitucionalização, Rotelli, Leonardis e Mauri (2001, p.61) deixam claro que não se trata de lutar apenas a favor da desospitalização, e sim, de ir contra um saber que se utiliza da privação para buscar a "cura". Para os autores, o manicômio é "o lugar zero de troca", ou seja, um lugar onde não há trocas sociais, e assim, todo espaço que reproduza essa lógica estará reproduzindo a lógica institucional. Nesse sentido, mesmo quando há negação da reclusão como forma de tratamento e quando a desospitalização é efetivada, Basaglia (1982, citado por Rotelli, Leonardis & Mauri, 2001, p.68) nos alerta quanto à "... impossibilidade do nosso sistema social de receber aqueles que reabilitamos. O futuro dos nossos internados é ainda apenas a instituição".

Tais aspectos talvez estejam relacionados com a concepção de loucura, que sujeita as pessoas com transtorno mental ao isolamento e faz com que a lógica institucional/manicomial seja reproduzida nos diversos meios sociais, seja no interior das relações familiares seja mesmo dos serviços existentes fora do hospital. Neste sentido afirma Boarini (2006, p.44): "Quando lidamos com loucura, é necessário demolir o hospício que há em cada um de nós".

De "morador" de hospital psiquiátrico a usuário Rede de Atenção Psicossocial

A última etapa das histórias relatadas por familiares de ex-"moradores" de hospital psiquiátrico - ou seja, o momento de "voltar para casa" e para a comunidade -, é agravada por todos os aspectos apresentados (perda de laços afetivos, perda de papéis sociais, desejo de não sair mais do hospital psiquiátrico, cronificação do quadro psiquiátrico). Além disso, no tocante à família, Rosa (2003) nos alerta que o medo, o peso das exigências de cuidado, o fato de não gerar renda e sobrecarregar o grupo com despesas, o comprometimento do tempo do cuidador são fatores que desmotivam as famílias a exercer este cuidado. Afirma a autora:

O distanciamento prolongado, a falta de convívio direto, a desinformação e o despreparo no lidar com os próprios sentimentos moldam condutas, enrijecendo as relações. A família representada pelo cuidador, perde o pouco traquejo que tinha com o PTM e as condições emocionais para o convívio (p. 297).

Cumpre considerar que o processo de passar de "morador" a ex-"morador" de hospital psiquiátrico não implica somente voltar para um lar, para o lugar de onde partiu e ao qual agora vai retornar, para uma família com quem antes habitava e que agora receberá (ou não) essa pessoa com transtorno mental após a alta hospitalar. São múltiplos os sentidos que o retorno ao lar pode ter, descartando-se ser único e predefinido o destino após a saída da instituição psiquiátrica. Neste sentido, Furtado (2006) revela que, dos 1.016 beneficiários do Programa de Volta para Casa – PVC, cadastrados na época de sua pesquisa, 810 residiam em casas dos Serviços Residenciais Terapêuticos, ou seja, grande parte não havia retornado ao lar no sentido comum do termo. Sendo assim, o retorno ao lar pode implicar não só voltar para a família de origem, mas também inaugurar uma nova casa custeada pelo Estado, como é o caso dos Serviços Residenciais Terapêuticos, ou mesmo ir morar com um membro da família, ainda que afetivamente distante, dentre outras possibilidades, como ser acolhido em um asilo para idosos ou em um abrigo para menores, ou morar sozinho.

O relato dos familiares entrevistados nos dá um demonstrativo do cenário que esses "moradores" encontraram em termos de assistência à saúde mental depois de terem saído do Hospital.

No caso de Tadeu, por sua opção, o tratamento recebido por ele é somente a medicação dos sintomas. Segundo sua mãe, ele está muito "bonzinho", não sai de casa para nada, detesta barulho - portanto não usufrui do rádio e da TV que a mãe lhe deu - e não gosta de receber visitas. Por opção dele, não frequenta os serviços substitutivos de saúde mental, como o CAPS, embora já tenha sido convidado várias vezes para tal. Isso faz com que a única assistência por ele recebida seja a medicação.

Alberto viveu em um Serviço Residencial Terapêutico durante três anos e, na época da pesquisa, morava em um pensionato custeado com recursos advindos dos benefícios que ele recebia do Programa de Volta para casa e do Benefício de Prestação Continuada (Brasil, Ministério da Previdência Social, 2010b). A falta de serviços na área da saúde mental na região onde mora está entre as condições citadas por seu irmão e sua cunhada que, segundo eles, tornam inviável acolher seu familiar com transtorno mental em casa. Especificamente sobre a Rede de Atenção Psicossocial na localidade em que residem, os familiares afirmam: "É tudo longe; e até pegar um homem daquele e colocar numa ambulância aqui para chegar lá, ele já quebrou meio mundo" (cunhada de Alberto).

O pai e a madrasta de Paulo temem recebê-lo em casa outra vez e, depois, verem-se desamparados, sem saber o que fazer na hora das crises. Julgam, assim, que seja melhor ele permanecer sob os cuidados dos serviços de saúde institucionais. A madrasta afirma:

Uma pessoa adulta você não tem como segurar, lá [referindo-se ao hospital psiquiátrico] qualquer coisa que eles veem, eles já dão um calmante, troca o remédio, no outro dia, já começa a fazer o efeito e, aqui, nós fazemos o quê? Quando a gente precisa de assistência, chama, chama; chama um, chama outro, e não tem na hora que precisa, tem que esperar a boa vontade, então... né. Eu não tenho coragem (Madrasta de Paulo).

No que se refere à filha Elvira, a assistência em saúde mental de Maringá - PR foi considerada um ponto positivo na escolha de ficar com a mãe, por considerar os serviços desta cidade melhores do que aqueles oferecidos na cidade onde reside sua irmã mais nova. Não obstante, faz uma ressalva quanto à frequência com que sua mãe vai ao Centro de Atenção Psicossocial – CAPS:

Única coisa que ficou assim meio vago é que daí eu tive que rever a função do CAPS porque, quando ela foi encaminhada, foi o psiquiatra, o Dr. X, que encaminhou, aí quando eu fui conversar com ele para ver se dava para diminuir [referindo-se à frequência ao CAPS], porque ela tinha ficado um pouco traumatizada, aí, ele falou: "isso aí não é comigo"; aí, ficou uma coisa assim, sabe, eu mesmo tomei a decisão dela frequentar duas vezes por semana e não houve interferência de ninguém, "ah, não, não pode" ou "ah, pode", conversei com o psicólogo do CAPS e ele falou assim: "olha, você não pode forçar, se ela não quiser vir..."; mas, eu pensei: "como? Ela vai ficar sem assistência nenhuma?"; porque querendo ou não, pelo menos psicólogo, já tem lá para conversar, para dar um amparo (Filha de C., itálicos nossos).

Essa indefinição do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS com relação à frequência do paciente ao serviço, além de deixar os familiares confusos, pode levar tanto o paciente quanto a família a sentirem-se desamparados, pois, não fosse o questionamento da filha de Elvira e sua insistência em levar sua mãe duas vezes ao serviço, acreditando que seria importante sua mãe receber, pelo menos, um apoio psicológico, a estratégia de tratamento se reduziria apenas às consultas psiquiátricas e à medicação do sintoma. O fato descrito pela filha de Elvira nos remete à possibilidade de tomar como sinônimo a desinstitucionalização e a desassistência ou simplesmente a desospitalização, tal como nos aponta Amarante (1996). Com base em fatos como estes, em que os critérios são definidos pelo desejo do paciente, que, muitas vezes, não tem a capacidade de se autodeterminar, a falta de assistência pode servir de argumento para aqueles que se opõem à desinstitucionalização propriamente dita e à reforma psiquiátrica.

Leal e Delgado (2007) entendem que o serviço oferecido nos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS deve ser sustentado sobre o tripé formado pela rede, pela clínica e pelo cotidiano. Para os autores, mesmo quando os pacientes apresentam a suposta "resistência" em aderir ao tratamento, o serviço, neste caso do CAPS, deve ser posto em questão junto ao paciente, tendo-se em vista o cotidiano a este e o tipo de cuidado que lhe é oferecido.

Para Rotelli, Leonardis e Mauri (2001, p. 22), os serviços, a partir do momento em que são dotados de um alto nível de especialização e refinamento de técnicas, acabam por selecionar determinados tipos de problemas para atender, e, em relação aos problemas que não se enquadrem, simplesmente afirmar que não são problemas deles. Segundo estes autores, chega um ponto em que essa forma de funcionar, seletiva e por especialidades, "... faz com que as pessoas sejam separadas, "despejadas", jogadas de um lado para outro entre competências diferentes e definitivamente não sejam de responsabilidade de ninguém e sim abandonadas a si mesmas". Nestes termos, para Amarante (1996, p.19), desinstitucionalizar significa substituir os mecanismos hospitalares existentes por outras formas de assistir e cuidar. O autor defende que a desinstitucionalização "... não pode, em absoluto, representar o 'desamparo' dos doentes ou o simples 'envio para fora do hospital, sem ser implantada, antes, uma infraestrutura na comunidade para tratar e cuidar dos mesmos e das suas famílias".

Para Amarante e Guljor (2010), após deixar o hospital, o paciente necessita de um acompanhamento contínuo, pautado pela mediação e não pela tutela e pela criação de recursos no território onde ele vive. Neste sentido, consideramos que a atuação da equipe da Estratégia Saúde da Família – ESF– deve contribuir para o monitoramento do quadro da pessoa com transtorno mental, bem como para fornecer esclarecimentos quanto às dúvidas, mitos e preconceitos que a família possa alimentar.Vale ressaltar que a Estratégia Saúde da Família – ESF – é formada por uma equipe composta por médico, enfermeira, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Implantada no Brasil desde 1994, seu objetivo é reorientar a prática médica através de uma equipe responsável pelo acompanhamento de um número de famílias, localizadas em uma área geográfica limitada, com vistas à manutenção da saúde de seus membros (Brasil. Ministério da Saúde, 2012).

Para além do "morar" em hospital psiquiátrico

Como observamos, de forma recorrente, em todas as histórias apresentadas neste estudo, a internação psiquiátrica foi o recurso encontrado no momento de aparecimento dos sintomas do transtorno mental. Mesmo entre aqueles que se tornaram "moradores" de hospital psiquiátrico na última década, quando os direitos da pessoa com transtorno mental e o tratamento em comunidade já estavam previstos pela Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, o recurso encontrado nos momentos de crise foi o velho e conhecido hospital psiquiátrico.

De modo geral, este estudo confirma a literatura ao indicar que. após anos de reclusão e longas e repetidas internações, os "moradores" somente acumulam perdas em diversos âmbitos de suas vidas, tais como a quebra de laços sociais e afetivos, dependência geral, morte civil e atitudes infantis. Todas essas perdas constituem provas vivas da improcedência da forma de tratamento baseada somente na reclusão da pessoa com transtorno mental.

A título de conclusão, ressaltamos que o final da história de um ex-"morador" de hospital psiquiátrico, ou seja, o retorno ao lar, nem sempre é sinal de desinstitucionalização e não deve ser considerado como a simples saída do hospital psiquiátrico, já que, por vezes, a institucionalização se mantém sob outras formas. As mentiras, por exemplo, contadas aos pacientes sobre fatos importantes para eles (como a mãe de Tadeu, que omite do filho a sua condição de aposentado, ou mesmo a filha de Elvira, que não lhe informou que seu ex-marido faleceu) talvez possam ser consideradas formas de manter essas pessoas alheias ao mundo que as cerca, mesmo morando fora do hospital, ou então, de levar uma vida privada de liberdade e de contatos sociais, como no caso de Tadeu, que pode ser considerada uma institucionalização da mesma espécie da hospitalar, embora em outro estilo: o de institucionalização doméstica. Neste sentido, ainda lembramos os Serviços Residenciais Terapêuticos criados para acolher egressos de internação psiquiátrica (Portaria 106 de 11 de fevereiro de 2000), denominação que remete mais à institucionalização do que à socialização dessas pessoas na comunidade, uma vez que, se é serviço e se é terapêutico, não é de fato uma residência, uma casa ou um lar no sentido social comum.

Reconhecemos, portanto, que sair do hospital psiquiátrico e "voltar para casa" não significa, necessariamente, desinstitucionalização, pois, para que esta seja efetivada, e o retorno ao lar seja seguido do retorno à vida e à comunidade é necessário que este ex-"morador" continue sendo atendido e, neste caso, em uma Rede de Atenção Psicossocial, consolidada e em funcionamento 24 horas. Entendemos que o atendimento em rede, desde os primeiros sinais de transtorno mental, pode evitar agravos e desta forma mudar os rumos da vida da pessoa com transtorno mental, que, tal como demonstramos neste texto, ainda é marcado pela reclusão. Compreendemos, também, que o medo, o desconhecimento, a falta de informações, o preconceito em relação à loucura e tantos outros aspectos que envolvem esta questão e que vão além do nível individual podem ser trabalhados na sociedade a partir da convivência em comunidade.

Recebido em 06/05/2012

Aceito em 11/04/2013

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  • Endereço para correspondência
    Rua Santa Efigênia, 1333, centro
    CEP 86990-000 - Marialva-PR, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Número calculado com base na afirmação de que o número de 3.574 usuários, correspondente aos beneficiários do Programa de Volta para Casa, corresponde a 1/3 do número estimado de pessoas com longo tempo de internação em instituição psiquiátrica (Brasil. Ministério da Saúde, 2010a).
  • 2
    Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Maio 2012
    • Aceito
      11 Abr 2013
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