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REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS SOBRE O LEGADO DE VIGOTSKI: ENTREVISTA COM O PROFESSOR NIKOLAI VERESOV (ENTREVISTA COM NIKOLAI VERESOV) - PARTE II

REFLEXIONES TEÓRICO-METODOLÓGICAS SOBRE EL LEGADO DE VYGOTSKY: UNA ENTREVISTA CON PROFESOR NIKOLAI VERESOV (ENTREVISTA COM NIKOLAI VERESOV) - PARTE II

Entrevista

Ana Caroline:O conceito de perezhivanietem recebido uma atenção crescente entre os pesquisadores do campo da Teoria Histórico-Cultural. No Brasil, nós a temos traduzido, de maneira geral, como vivência. Você acredita ser possível traduzir perezhivaniede uma forma correta e/ou justa? Por quê?

Professor Nikolai:Eu sei que não é modesto começar a partir de si mesmo, mas, em meu entendimento, esta questão é muito importante do ponto de vista histórico. Na tradição russa - na União Soviética, e depois, na Rússia - as pessoas que trabalham com o legado de Vigotski não excluíram perezhivaniedos conceitos estudados. Para os seguidores russos de Vigotski, perezhivaniepermaneceu como um conceito-chave na teoria de Vigotski. Um exemplo disso é o livro de Vasilyuk, Psychologyofperezhivanie (Psicologia da perezhivanie). Esse livro foi publicado na Rússia em 1984, mas atualmente também há uma versão disponível na língua inglesa, de 1991. Esse fato indica que, para os seguidores russos de Vigotski, o conceito de perezhivanie, embora não estivesse sempre no foco, também não estava na periferia de seus estudos... era um dos conceitos discutidos, mas não para os pesquisadores que seguiam Leontiev. Na teoria de Leontiev não há lugar para o conceito de perezhivanie; Leontiev nunca disse nada sobre perezhivanie - e, como eu já disse antes, ele tem foi muito crítico à ideia de tomar a perezhivaniecomo a unidade de análise da consciência. Leontiev foi muito crítico e rejeitou a ideia de perezhivaniecomo unidade da consciência. Então ele sugeriu a atividade como a unidade da consciência e personalidade - mas isso já é outra história.

Então, para os vigotskianos, vigotskianos puros, perezhivanie era um dos conceitos estudados. Por exemplo, se você der uma olhada no trabalho da LidiyaBozhovich, você verá sua contribuição original ao avanço do conceito de perezhivanie. Mas isso ainda é praticamente desconhecido no Ocidente, em livros americanos, porque a tradição americana começou com Mindandsociety(em português, traduzido como A formação social da mente), aquele livrinho verde de 1978. Naquele livro não há nada sobre perezhivanie, mas pelo fato dele ainda ser considerado como a fonte principal dos escritos de Vigotski (apesar de Vigotski não ter escrito este livro!), o conceito de perezhivaniese manteve desconhecido entre os pesquisadores ocidentais. O capítulo de Vigotski sobre perezhivaniefoi traduzido apenas em 1994, mas perezhivaniefoi traduzido como experiencing(experiência), e por isso nossos colegaspesquisadores que falam na língua inglesa simplesmente não compreenderam do que se trata perezhivanieem Vigotski. E é por isso que não houve debates, discussões, nem nada sobre perezhivaniena literatura dos vigotskianos ocidentais.

Quando eu comecei, muitos anos atrás (no final da década de 90), uma das questões que me surpreenderam foi o porquê de não haver nada sobre perezhivaniena língua inglesa. Agora eu estou falando sobre os anos 80 e 90, os últimos dez anos do século passado, e não, da atualidade: você não conseguiria encontrar nada sobre perezhivanie. Então você poderia me dizer “ei Nikolai, me desculpe, me desculpe, me desculpe ... mas o Collectedworksof Vygotsky (verão inglesa das Obras completas) foi publicado durante os anos 80 e 90, e aqueles volumes apresentam capítulos em que Vigotski fala sobre perezhivanie”. Você poderia até dizer “ei Nikolai, me desculpe, me desculpe, me desculpe, mas e o The Vygotsky reader (Vigotski, uma síntese, em português), de 1994van der Veer, R. VALSSINER J. Vygotsky: uma síntese, Sao Paulo, Edições Loyola, 1994.! Há um capítulo sobre perezhivanielá!”. E minha resposta será: “o livro chamado The Vygotsky reader contém uma das aulas das Aulas sobre pedologia, chamada ‘O problema do meio’, e naquela aula Vigotski fala muito sobre perezhivanie”. Isso é absolutamente correto, mas o problema é que tanto no Collectedworks quanto no Vygotsky’sreader, perezhivaniefoi traduzido como experienceou experiencing. Mas o que experiencesignifica? Experience significa, por exemplo ... uma workexperience (experiência de trabalho): quando você se candidata a um emprego, a exigência é a de que o empregador precisa de alguém que tenha workexperience - é como algo no seu passado. Mas, em russo, a palavra para isso é opyt: se você tem alguma experiência no passado, em russo significa que você tem opyt. No entanto, o que Vigotski quis dizer não foi opyt: ele disse perezhivanie. E é por isso que este termo, mesmo sendo traduzido, não chamou a atenção dos pesquisadores; porque era só uma experience, um livethrough, algo assim - essa é como se fosse a pré-história dessa questão.

Então, um dos meus questionamentos era ‘por quê?’ ‘Qual a razão disso?’ Porque se você olhar na teoria de Vigotski você vê que perezhivanie tem um lugar importante no sistema teórico como um todo - sem perezhivanie, você nunca iria entender completamente o que é a Situação Social de Desenvolvimento, porque Vigotski diz que perezhivaniefazda Situação Social uma Situação Social de Desenvolvimento. Além disso, sem perezhivanie, você também dificilmente entenderia o conceito de drama... veja como este conceito apresenta sua ‘localização teórica’ dentro de um sistema de outros conceitos. Sem o conceito de perezhivanie, a totalidade da construção teórica de Vigotski fica com um grande buraco. Você pode ter uma lista de conceitos de THC, e tentar descobrir como eles são interconectados e interrelacionados como um sistema. A questão é que isso é impossível se não há o conceito de perezhivanienessa lista. Perezhivanie, como afirma Vigotski, é o conceito que nos permite compreender o lugar e o papel do meio social, a influência do meio no curso do desenvolvimento da criança. Este conceito é uma ferramenta teórica de análise, e se você não a utiliza, você dificilmente realiza esta análise e você nunca entenderá completamente o papel do meio na situação social no desenvolvimento da criança. Em outras palavras, sua análise será vaga e superficial.

Foi tendo isso em mente que eu fui para um Congresso do ISCAR (InternationalSocietyof Cultural-historicalActivityResearch) em Aarhus, na Dinamarca, em 1998. Foi o primeiro Congresso do ISCAR que eu participei e, naquela época, o nome desta Sociedade era ISCRAT (InternationalSociety for Cultural-historicalandActivityTheory), e não, ISCAR. Eu realizei uma apresentação, apenas uma apresentação oral em uma das muitas sessões paralelas. Minha apresentação era sobre a lei genética geral do desenvolvimento, o conceito de drama e perezhivanie. Eu era muito ingênuo e esperava explicar a importância do drama no desenvolvimento humano, assim como esperava explicar perezhivaniecomo um conceito importante. Mas somente cinco pessoas compareceram à sessão. Eu nem sei o porquê delas terem ido; talvez para ouvir alguma outra pessoa.

Foi uma decepção para mim, mas foi a primeira vez que o conceito de perezhivanie foi introduzido formalmente à comunidade do ISCAR - mas apenas cinco pessoas apareceram (risos). Então, eu decidi continuar o meu trabalho com perezhivaniee desenvolvimento infantil.

Eu repeti a minha tentativa de levar perezhivaniepara a pauta do ISCAR e para os vigotskianos ocidentais no Congresso do ISCAR de San Diego (provavelmente em 2008), e novamente eu quis apresentar perezhivaniee drama e a dialética do desenvolvimento, e foi a mesma história... apenas três ou quatro pessoas compareceram à apresentação. Não houve feedback, nada aconteceu. Uma voz vazia no deserto.

Mas o fato histórico é: provavelmente eu fui o primeiro a introduzir o conceito de perezhivanieao ISCAR e à comunidade vigotskiana. Mas, como você pode ver, ninguém estava interessado.

Então eu decidi escrever um artigo sobre perezhivanie, explicando porque perezhivanieé importante e como este conceito ajuda na compreensão da teoria de Vigotski. Eu escrevi o artigo e enviei para uma revista - eu não quero lhe dizer qual, mas é uma revista de muito, muito respeito... uma das principais revistas da comunidade... e o artigo foi rejeitado. O revisor disse “nós discordamos da interpretação que você deu à categoria de drama, da questão da colisão e perezhivanie e etc...”, enfim, o artigo foi rejeitado. Ok, o artigo foi rejeitado... mas havia ainda o manuscrito, o manuscrito rejeitado. Então meus colegas brasileiros me escreveram uma carta, dizendo “caro Nikolai, nós estamos descobrindo agora o conceito de perezhivanie. Você sabe algo sobre isso? Porque você conhece Vigotski, e provavelmente você também sabe alguma coisa sobre perezhivanie”. Eu respondi: “sim, eu tenho um artigo, um artigo rejeitado sobre perezhivanie”. Então eu enviei para os meus colegas brasileiros o artigo não publicado. E, como você sabe, esse artigo é conhecido em todo o Brasil como o “manuscrito não publicado do Nikolai Veresov sobre perezhivanie”. Por sinal, este é um dos meus artigos mais citados (risos) - o qual continua não publicado, e eu sequer posso inclui-lo na lista das minhas publicações. Mas eu não me importo, isso não é importante. O que é realmente importante é que apenas recentemente, nos últimos dez anos - você está correta -, e especialmente nos últimos cinco anos, que o interesse sobre perezhivanievem crescendo dramaticamente, havendo muitas publicações sobre perezhivanie.

O lado bom é que os pesquisadores internacionais estão tentando dar alguns passos para entender o que é perezhivanie e como interpretar este conceito, como traduzi-lo corretamente, e qual o seu conteúdo... o que é isso - perezhivanie? E por que perezhivanieé tão importante? Isso é muito bom, porque abre um novo tipo de porta para Vigotski, e nos ajuda a entender a relação entre perezhivanie e outros conceitos. Bem, esta é uma maneira de transformar uma lista de conceitos em um sistema conceitual - o que é bom.

Mas o lado ruim é que Vigotski tem se tornado bastante popular, e por causa desta popularidade algumas pessoas estão usando a Teoria Histórico-Cultural como um novo rótulo, só para ter alguma publicação sobre perezhivanieporque é um tópico que está na moda; é muito mais fácil ter uma publicação aceita em uma revista se você fala sobre perezhivanie. Os pesquisadores estão usando perezhivaniecomo um rótulo - não todos eles, mas em alguns casos - sem sequer apresentar um entendimento profundo sobre o que é isso. E isso não é bom, porque a mesma coisa aconteceu com o conceito de ZDP (Zona de Desenvolvimento Proximal), que foi recebido, aplicado, e as pessoas estavam brincando com este conceito como se ele fosse um brinquedo novo, sem que houvesse um entendimento profundo sobre qual é o significado original de zona de desenvolvimento proximal nos textos de Vigotski. O que nós temos é um milhão de repetições de interpretações incorretas, baseadas em traduções incorretas sobre ZDP.

Infelizmente, mesmo agora, no início deste século, após a publicação de um artigo fantástico de Seth Chailkin sobre a ZDP, em 2003, a situação não mudou. Neste artigo, Chaiklin afirmou que “nós não podemos entender o que a ZDP significa sem entender o que significa desenvolvimento na teoria de Vigotski”. Eu concordo completamente, e devo acrescentar: nós temos de entender este conceito dentro de um sistema de outros conceitos. Mesmo após o capítulo fantástico de Chaiklin, a situação não mudou. As pessoas estão repetindo e repetindo coisas que não tem nada a ver com a ZDP de Vigotski. E eu tenho receio de que o mesmo aconteça com o conceito de perezhivanie. As pessoas usarão perezhivaniesem compreende-la, como crianças brincando com um novo brinquedo porque se cansaram do antigo, e agora há um novo brinquedo para brincar...

Claro, eu sou muito radical - e talvez impolido e incorreto -, e talvez eu esteja colocando os pesquisadores em uma situação desvantajosa, mas eu estou contando a história real. O que eu estou lhe dizendo é apenas a minha modesta opinião: eu posso estar absolutamente enganado, e eu ficarei feliz em saber que estou, mas agora eu estou respondendo a sua questão.

Mas... o que me deixa realmente feliz é que recentemente nós temos tido algumas publicações interessantes, tentando adentrar no real significado de perezhivanie, e de como nós podemos utiliza-lo como um conceito dentro de um sistema, nos ajudando a construir nossos programas de pesquisa. Eu não quero fazer nenhum tipo de auto-propaganda, mas um dos últimos lançamentos foi o livro Perezhivanie, emotionsandsubjectivity (Emoção, perezhivanie e subjetividade), que eu publiquei junto com a Marylin Fleer e o Fernando González Rey, em 2017.

Além disso, há uma edição especial da revista Mindcultureandactivity (Mente, cultura e atividade) sobre perezhivanie, em que nós contribuímos com um artigo sobre perezhivaniee pesquisa na primeira infância. Também tiveram alguns simpósios sobre perezhivanie, e um capítulo na edição especial da revista InternationalResearch in EarlyChildhoodEducation, em 2016. E, claro, no Congresso do ISCAR em Sydney (2014) teve dois simpósios sobre perezhivanie, e três no ISCAR ded Quebec (2017). Então, você sabe, essas coisas simplesmente vêm, e elas me deixam realmente feliz.

Sua questão sobre a tradução e vivência. Durante vários anos houvediscussões sobre como traduzir perezhivanie - em inglês, experience, experiencing, living through, emotionalrelation, e por aí vai. Eu me lembro de uma discussão em um fórum da internet em que acadêmicos sérios apresentaram seus pontos de vista sobre perezhivanie. Para mim foi uma leitura divertida; por exemplo, alguém disse que perezhivanieconsiste em duas partes: ‘pere’, que em russo significa over (sobre) andzhivanie’, que significa tolive (viver). Que conhecimento profundo! Eu sou russo, e posso lhe dizer que a palavra ‘zhivanie’ não existe na língua russa. E ‘pere’ pode significar muitas coisas, como uma ‘cruz’ - perekrestok significa cruzamento -, e também ‘re’ como ‘refazendo algo’ - perepisat significa reescrever, e a palavra que você provavelmente já conhece, perestroika, significa apenas reconstrução. Foi divertido ler essa discussão acadêmica, mas muitas pessoas a levam a sério e chegam até a traduzir perezhivaniecomo ‘aventura’. Na Rússia nós temos um provérbio que diz: “você pode até me chamar de panela, mas não me coloque no forno” - no caso da perezhivanie, por causa das discussões que eu mencionei sobre traduções como ‘aventura’, a situação é que eles não só a chamam de panela, como a colocam no forno. É por isso que eu fico feliz com o fato de que agora meus colegas têm publicado utilizando apenas o termo perezhivanie, sem tradução. Pelo menos ninguém mais a chama de panela.

O problema não é encontrar a palavra correta para a tradução, às vezes isso não é possível... o problema é encontrar o entendimento correto. E é aqui que está o problema. Se você não pode traduzir, você pode ao menos explicar... e é isso o que eu estou fazendo nos últimos cinco anos, ao publicar artigos e capítulos de livro sobre perezhivanie - e há apenas uma tarefa que eu procuro resolver: eu não estou tentando explicar minha compreensão de perezhivanie, eu estou tentando explicar o que Vigotski quis dizer com perezhivanie... eu só quero, a partir dos seus textos originais em inglês, e de textos que não estão disponíveis em inglês, reconstruir o significado original de perezhivanieem Vigotski.

Se você olhar os meus artigos, verá que não há muitas interpretações do Nikolai - nós já temos muitas interpretações sem a minha. O problema não é a tradução correta, mas sim o entendimento correto. Minha tarefa é dar voz ao Vigotski, porque neste coro de vozes, a de Vigotski desapareceu... dificilmente você consegue ouvir suas palavras individuais, e eu quero que sua voz faça um solo, e não aquele coro em que todo mundo canta sua música individual em dissonância com Vigotski, sem harmonia. É essa minha humilde tarefa.

Eu chamei perezhivanie de conceito mistificado porque muitas pessoas o entendem de forma diferente, não há uma compreensão comum, não cá consenso, concordância e entendimento claro. Mas, para Vigotski, este não é um conceito mistificado... não há nada de mística nele. De um certo modo, minha tarefa é desmistificar perezhivanie. Você pode chama-la de “desmistificação” da perezhivanie. Ano passado, em abril de 2019, eu estava em Campinas e meus colegas da Unicamp - a Ana Luiza Smolka - organizaram uma aula especial de duas horas para professores e estudantes, e o título era ‘Desmistificando perezhivanie’.

Bem, o primeiro problema é a palavra russa perezhivanie: ela não tem dois significados, mas sim, duas formas de utilização. Ela pode ser usada na linguagem coloquial, relacionando-se à experiência emocional, ou relacionada a coisas negativas, como crise ou algo assim... ainda, pode dizer respeito à algo positivo. Pode haver perezhivanienegativa e perehivaniepositiva. Mas não é esse o termo científico, e sim o sentido cotidiano, coloquial, da palavra. Por outro lado, em psicologia, na psicologia científica o termo perezhivanie(perezhivaniepsíquica) foi largamente utilizado mesmo antes de Vigotski. Se você pegar os livros de psicologia, ou mesmo os livros didáticos daquela época, você pode encontrar esse termo - em Dewey, na América, e os ‘gurus’ russos Chepanov, Kornilov e outros. Perezhivanieera apenas um termo unificado para qualquer tipo de fenômeno psicológico. Percepção é um tipo de perezhivanie, memória é um tipo de perezhivanie, volição... sensação é perezhivanie... tudo o que nós chamamos hoje de processo psicológico ou fenômeno psicológico era perezhivanie- ela era só um ‘termo guarda-chuva’.

Nos estágios iniciais de seu trabalho - antes que a Teoria Histórico-Cultural aparecesse -, Vigotski, seguindo a tradição existente, também utilizou a palavra perezhivanieem muitos lugares. Nós temos uma evidência de que Vigotski compreendeu perezhivaniedesta forma antes de 1928 (o ano em que a primeira pesquisa em Teoria Histórico-Cultural iniciou).

Você pode abrir o Dicionário psicológico, escrito por Vigotski e Varshava em 1927 como um material para estudantes, na letra P, e encontrar a definição de perezhivanie. Vigotski diz que perezhivanieé um nome/termo comum para todos os processos psicológicos, e que há o processo de perezhivanie, e o conteúdo de perezhivanie(como nós experienciamos algo e o quê nós estamos experenciando). O dicionário reflete o uso comum desta palavra na psicologia russa - e não só na psicologia russa, mas também na psicologia ocidental. Esse dicionário é um tipo de evidência de que Vigotski utilizou o termo perezhivanieem sua forma tradicional e de que não há diferença entre Vigotski e quaisquer outros psicólogos o utilizando. Perezhivanieé apenas um rótulo para qualquer tipo de sensação, percepção, memória, pensamento... qualquer coisa.

Mas quando as pessoas simplesmente citam Vigotski e dizem “- veja, é isso que Vigotski diz sobre perezhivanie!”, eu sempre respondo da seguinte forma: espere um pouco, ele compreende perezhivaniede maneiras diferentes, em diferentes períodos de seu trabalho! O primeiro passo é identificar - essa citação vem dos trabalhos de Vigotski na Teoria Histórico-Cultural, ou é anterior? Por exemplo, em Psicologia da Arte você pode encontrar três ou quatro frases interessantes em que Vigotski fala sobre perezhivanie. Mas, como você sabe, Psicologia da arte foi um dos livros do Vigotski inicial, do Vigotski antes da aparição da Teoria Histórico-Cultural. A maior parte de Psicologia da arte foi escrita antes de 1925 e o subtítulo de seu livro foi: uma análise da reação estética. Infelizmente, esse subtítulo, que reflete claramente sobre o que é esse livro, foi omitido das edições russa e inglesa (e provavelmente da portuguesa também). Nesse livro, perezhivanieera compreendida de forma muito tradicional - como uma reação estética, sentimentos estéticos, emoções, emoções complexas, etc. Eu fico surpreso em ver como alguns pesquisadores vigotskianos perderam completamente este ponto e tentam nos convencer de que Psicologia da arte é um livro que pertence à Teoria Histórico-Cultural. Isso é um erro, esse livro reflete o estágio inicial do trabalho de Vigotski antes da criação da Teoria Histórico-Cultural.

O conceito ‘histórico-cultural’ de perezhivanieé diferente. Agora, vamos esquecer sobre o sentido clássico de seu uso - estou focando em Vigotski agora. Vamos olhar para a teoria de Vigotski: o que é perezhivanie como parte da teoria de Vigotski? Nesta teoria, perezhivanie tem dois significados principais; meus alunos de PhD costumam diferencia-los como P1 e P2.

P1 éperezhivanie como um fenômeno psicológico, e você pode observa-lo em crianças ou em adultos. Como um fenômeno psicológico, nós podemos observa-lo, fotografa-lo, fazer vídeos... nós podemos analisa-lo como um tipo de realidade fenomenológica. Ele é fácil de compreender - por exemplo, se nós dizemos algo para um grupo de várias crianças, não significa que todas elas irão entender da mesma forma o que dissemos. Ou quando você se aproxima de uma criança (um bebê ou uma criança pequena) com um sorriso no rosto, esperando que ela reaja positivamente... mas ela começa a chorar. Por quê?

Por que, realmente? Eu devo dizer que aqui nós vemos a diferença entre fisiologia e psicologia. Em fisiologia há um modelo básico fundamental ‘estímulo-resposta’ (S-R). Estímulo gera resposta, e reação é a resposta ao estímulo. Mas as crianças podem reagir de forma diferente ao mesmo estímulo, e aqui começa a psicologia. Há alguma coisa entre estímulo e reação que modifica o estímulo, como se houvesse na criança um ‘prisma’ mágico, que refrata o estímulo subjetivamente. E aqui nós podemos ver a diferença entreprincípio psicológico do reflexo e princípio psicológico da refração. Os humanos não apenas refletem, como também refratam. Esse novo princípio foi introduzido por Vigotski, e essa é uma conquista fundamental para a psicologia! Perezhivanieda criança é um tipo de ‘prisma’ através do qual o estímulo é refratado, e a P1 é isso.

Isso significa que perezhivanienão pode ser reduzido a reações emocionais. Sim, nós podemos observar emoções no rosto de um bebê quando ele começa a chorar com a nossa aproximação. Mas isso é o que existe na superfície. Vigotski diz que perezhivanie(P1) é como a criança percebe, interpreta, compreende, toma consciência e responde emocionalmente à certo evento de sua vida. Veja, P1 é um fenômeno complexo que abarca muitas funções psicológicas ao mesmo tempo - percepção, pensamento, e mesmo a memória, a imaginação e a vontade. Mas quando nós observamos esse fenômeno, nós podemos ver apenas as expressões emocionais no comportamento ou no rosto das crianças. Vigotski diz “há muito mais por detrás dessas manifestações externas, há uma uma complexidade envolvendo vários processos psicológicos”, e todos eles juntos é o que nós podemos chamar de perezhivaniee princípio da refração. Em outro lugar Vigotski diz “perezhivanieé uma atitude interna integral de uma pessoa à certo evento”, e infelizmente isso foi traduzido como “relação externa à certo evento”. É triste, esta tradução ainda continua a enganar os pesquisadores.

Por que isso é tão importante? Para os pesquisadores, isso é tão importante porque se eu entendo queo que de fato é perezhivanie, quando eu vejo como as crianças respondem emocionalmente, eu entendo “ah, essa é a ponta do iceberg”; por trás disso, na mente da criança, há muito mais. Para mim, essa reação emocional da criança não é perezhivanie, mas sim apenas uma indicação, a parte visível dessa complexa unidade psicológica de diferentes processos. É um tipo de dica. E, como um pesquisador, eu devo agora acessar níveis muito mais profundos, as camadas da mente desta criança, para descobrir o que há abaixo desta superfície, qual é a sua atitude interna diante de certo evento. E isso me direciona ao aprofundamento do meu estudo. Se para mim perezhivanieé apenas uma resposta emocional, eu, como pesquisador, estarei apenas coletando respostas emocionais sem ver toda a fenomenologia que com certeza está escondida. É por isso que o entendimento de Vigotski sobre perezhivanieé tão importante. E o segundo ponto sobre o porquê de perezhivanieser tão importante é o fato de que é impossível separar as emoções do pensamento, pensamento da memória, é um tipo de... um tipo de caldeirão, sabe? Uma vez derretido, você não pode separar. E isso é muito importante: como você pode ver, até o P1 dá óculos aos pesquisadores, um certo tipo de óculos que permite com que eles sejam capazes de entender e ver muito mais do que se não os tivesse utilizando... esse é o P1, e é por isso que mesmo o P1 nos dá oportunidades muito interessantes de pesquisa. É isso o que eu estou tentando explicar nas minhas publicações sobre perezhivaniecomo P1.

O segundo significado de perezhivanieé perezhivaniecomo um conceito teórico (P2). A palavra é a mesma, perezhivanie, mas o seu significado é diferente. P2 não é um fenômeno, não é um processo que nós podemos observar; P2 é, puramente, inteiramente, um conceito teórico.

Nesse sentido, perezhivanieé uma abstração teórica, um conceito teórico. Para entender isso, eu posso dar um exemplo da Física. Vamos tomar o conceito de massa (M) no campo da Física. Por um lado, a massa de qualquer corpo físico é a sua característica física e pode ser medida e calculada (por exemplo, em gramas ou quilogramas - esse é o peso do corpo como nós costumamos falar cotidianamente). Por outro lado, M é um conceito teórico, uma parte da teoria mecânica de Newton. Você não pode medir o conceito de massa em gramas ou quilogramas - ele não é uma coisa empírica, mas com este conceito (e com outros também, como o de velocidade) Newton explicou a gravidade. Albert Einstein, como você sabe, deu um grande passo adiante e em sua teoria da relatividade o conceito de M foi parte do famoso E = mc², que explica a equivalência entre massa (M) e energia.

Você se lembra de que a primeira definição que discutimos, que é a de perezhivanie sendo como a criança percebe, interpreta, se torna consciente e reage emocionalmente à certo evento? Esse é o P1, um fenômeno. Em relação à P2, Vigotski diz algo muito diferente: como um conceito, perezhivanienos permite compreender o lugar e o papel do meio social e a influência do meio social no curso do desenvolvimento da criança”. Veja que aqui ele não fala sobre a influência do meio na criança, e sim sobre a influência do meio no curso do desenvolvimento da criança. Não é tudo que influencia a mim ou a você que irá influenciar no meu ou no seu desenvolvimento. Nem tudo refratado no prisma da perezhivanieestá influenciando meu desenvolvimento ou o seu desenvolvimento! Então, da mesma forma em que na física newtoniana o conceito de M é uma ferramenta teórica utilizada para compreender as leis da gravidade, na teoria de Vigotski o conceito de perezhivanieé uma ferramenta teórica utilizada para compreender o desenvolvimento da criança como um processo.

O uso desse conceito permite a nós, pesquisadores, compreender o lugar e o papel do meio em sua influência no curso do desenvolvimento da criança.

Em outras palavras, as minhas respostas para as suas questões: esta entrevista pode influenciar muito você, e você pode estar impressionada e feliz, ou deprimida e triste após finalizarmos. Mas (e é isso o que eu espero) ela pode influencia-la de forma que você comece a pensar de maneira diferente, que comece a repensar seu entendimento... então ela poderá afetar seu desenvolvimento, sua forma de pensar as coisas. Enfim, P1 e P2 são diferentes.

É por isso que P2 como um conceito teórico é tão importante, e é por isso que Vigotski o desenvolveu. Ele nos deu um exemplo de como utilizarperezhivanie como um conceito na análise do processo de desenvolvimento. Seu famoso exemplo do Problema do meio, sobre as três crianças e a mãe alcóolatra: esse é um exemplo da análise do desenvolvimento dessas três crianças utilizando o conceito de perezhivaniepara explicar porque mesmo estando em uma mesma situação social as crianças tiveram diferentes resultados de desenvolvimento.

No entanto, na mesma aula Vigotski nos dá mais três exemplos do uso do conceito de perezhivanie como uma ferramenta teórico analítica. É interessante notar que a literatura sobre perezhivanienão leva em conta esses três outros exemplos.

Em nenhum desses quatro exemplos Vigotski dá muito detalhes acerca do tempo em que essas situações vêm acontecendo, qual era a idade dessas crianças, qual era o meio e a situação... em seu primeiro exemplo ele apenas diz “três crianças estavam em uma situação terrível”, porque sua tarefa não era nos dar detalhes, e sim nos dar um exemplo: o de como nós podemos utilizar o conceito de perezhivaniepara analisar como uma mesma situação, a da mãe alcoolista, afetou três crianças de forma diferente e, por isso, afetou também seu desenvolvimento de três formas diferentes. Foi apenas um exemplo de análise. E a resposta era a de que mesmo em uma mesma situação social, devido a diferença de idade, sua percepção, entendimento, tomada de consciência e reação emocional foram diferentes e, portanto, essas crianças apresentaram trêsperezhivanie diferentes; elas estavam envolvidoa em três situações sociais do desenvolvimento (SSD) diferentes, e portanto, o desenvolvimento dessas crianças resultou em três diferentes formas. Aqui conseguimos ver como os conceitos estão conectados - perezhivanie, meio social, situação social e situação social de desenvolvimento.

É por isso que Vigotski nos apresenta a metáfora do prisma, dizendo que perezhivanieé um tipo de prisma, como um prisma que refrata certo evento no meio da criança, refratando-o individualmente. E, fazendo isso, cria a SSD - através dela, o meio irá afetar o desenvolvimento da criança; não a criança, mas o desenvolvimento da criança. Portanto, as trajetórias do desenvolvimento dessas três crianças se originaram no mesmo meio social, mas esse meio os afetou de formas diferentes. O que eu vejo aqui é que Vigotski nos providenciou um exemplo de análise teórica - este exemplo foi apenas uma ilustração de como a perezhivaniepode funcionar para estudos práticos com crianças e adultos em uma determinada situação. Apenas nos foi dada uma espécie de matriz. Mas me diga: quem de fato está utilizando essa matriz? Nós temos alguma publicação que aplique essa matriz ou essa lógica de análise? Eu não conheço nenhuma publicação que utiliza a mesma lógica ao analisar dados experimentais. Mas nós temos muitas publicações sobreperezhivanie das crianças sem uma clara distinção entre P1 e P2, e definindo perezhivaniecomo as reações emocionais das crianças. Infelizmente, os vigotskianos contemporâneos não aprenderam as lições de Vigotski.

É essa a razão pela qual eu tento explicar isso para o público de pesquisadores. Esse é o lugar do conceito de perezhivanie. Você vê? Só resumindo a minha resposta: há uma pré-história sobre o assunto, há uma distinção entre P1 e P2 que Vigotski faz de forma muito interessante e original, e de como o entendimento de P1 pode enriquecer nossa pesquisa, fazendo-nos analisar nosso material de forma mais acurada; nós vimos também como perezhivaniecomo P2, em conjunto com outros conceitos, pode criar um modelo de estudo das situações da vida real, ou então criar um design experimental especial para o estudo do papel do meio no desenvolvimento das crianças - como o meio influencia o desenvolvimento, pensando também sobre o que queremos dizer com “os sociais fatores que o influenciam”, por exemplo.

Nós estamos o tempo todo em um certo tipo de meio. Mas há algo que é refratado, e algo que não. E somente aqueles fatores que são refratados através da perezhivaniepodem influenciar em nosso desenvolvimento - ou não. O que isso significa de fato? Significa que se você colocar a criança no melhor meio social, não há garantias de que ela irá se desenvolver. O desenvolvimento é construído socialmente, isso é verdade, mas não significa que o meio social gera o desenvolvimento automaticamente! De acordo com Vigotski, o meio social é uma fonte de desenvolvimento, então por isso que a minha tarefa como pesquisador é apenas a de criar um meio social para a criança, dar suporte para o meio e só. Diferentes crianças em um mesmo meio refratam diferentes aspectos desse meio e portanto as trajetórias de seu desenvolvimento são diferentes. Em outras palavras, o meio social é a fonte, sim! Mas isso não tem nada a ver com determinismo social; o meio social não determina automática e completamente o desenvolvimento. Se você coloca alguém embaixo d’água, essa pessoa ficará molhada; mas isso não significa que se você colocar a criança em um meio social, essa criança se desenvolverá. Não! É por isso que Vigotski diz que o meio social é a fonte de desenvolvimento. O que isso significa? Isso significa que rio, por exemplo, é uma fonte de água somente quando alguém começa a beber desse rio. O meio social começa a agir como uma fonte de desenvolvimento quando a criança começa a interagir ativamente junto a esse ou aquele meio, e Vigotski diz que quando isso ocorre a criança começa a ‘escavar’ (scoop em inglês, e cherpat, em russo) o meio.

Não é correto, portanto, afirmar que tudo depende do meio social... e que o meio social é a chave mágica. O conceito de perezhivanienos mostra que Vigotski não era um determinista social.

Infelizmente, essa ideia ainda não é aceita por muitos acadêmicos que pensam que trabalham na tradição de Vigotski. Eu posso lhe dar um exemplo: eu vejo uma quantidade imensa de artigos discutindo o tópico “criar condições”. Eu vejo muitas publicações, livros, dissertações sobre criar condições para o desenvolvimento das crianças, criar condições, condições, condições... condições. Parece feitiço xamânico. Os xamãs lançam feitiços mágicos repetindo muitas vezes as mesmas palavras, esperando que se ele disserem a palavra “chuva” cem vezes, vai começar a chover.

A abordagem científica não funciona desse jeito. O que significa “criar condições para o desenvolvimento”? Você pode criar as mesmas condições para a criança, mas isso não significa que você criou a fonte de desenvolvimento; as condições por elas mesmas não funcionam automaticamente! É por isso que na vida real muitas pessoas crescem em condições muito ruins, mas se tornam pessoas fantásticas; por outro lado, algumas pessoas estão crescendo em ótimas condições, mas elas não se desenvolveram de fato. Se nós compreendemos corretamente o conceito de perezhivanie, ele é capaz de guiar a nós, pesquisadores, a criar e analisar o meio social da criança como uma fonte de trabalho de desenvolvimento, que é a situação social desenvolvimento, mas não como um simples conjunto complexo de “condições de desenvolvimento”. Bom, isso é um pouco da perehivanie. Acho que é o suficiente, foi uma resposta muito longa, me desculpe.

Ana Caroline: Em um artigo recente, você fez uma sistematização de como os conceitos da Teoria Histórico-Cultural funcionam em uma espécie de matriz, nos fornecendo um caminho de como realizar análises no campo experimental/prático - o qual, como Vigotski nos ensinou em A crise da psicologia, não é a pedra rejeitada, mas sim, angular, da psicologia. Pensando na psicologia como ciência, você poderia compartilhar conosco quais são seus pensamentos sobre a importância da THC para o desenvolvimento da psicologia de maneira geral?

Professor Nikolai:Essa é uma questão interessante. Vamos novamente começar partindo da realidade. E a realidade não é otimista, não é boa - sim, nós estamos orgulhosos pelo fato de haver uma comunidade internacional de pesquisadores trabalhando com Vigotski, e que continuam essa tradição na Rússia, Escandinávia, Europa, América do Norte, América Latina... em todos os lugares. De maneira geral, isso parece muito bom. Mas, se você olhar mais de perto, fazendo uma comparação com a psicologia mainstream - você sabe o que é a psicologia mainstream: behaviorismo, psicologia humanista, psicanálise, psicologia positiva - ...comparando com estas teorias, nós vemos um grupo de pesquisadores muito pequeno e marginalizado; talvez 500, ou 1000 pesquisadores. Se o compararmos com a American PsychologyAssociation (Associação Americana de Psicologia), por exemplo, quando eles têm um congresso - o congresso da APA -, você sabe quantas pessoas aparecem? Alguns milhares. No congresso do ISCAR, você encontrará 350, 400 pessoas. Não que isso seja ruim; é só a realidade, a minoria pode estar certa, e a maioria errada. A ciência não é sobre isso. Mas essa é a realidade, e ela reflete o estado da arte nessa área. E você pode se perguntar “por que nós, vigotskianos, que temos um legado, uma ótima teoria que nos ajuda a fazer ótimas pesquisas, e a entender coisas que as outras teorias talvez não entendam tão profundamente quanto nós... por que a comunidade acadêmica vigotskiana é marginalizada?” Há muitas, muitas razões que explicam isso. Eu não quero discutir todas elas, senão eu vou dar outra palestra de 50 minutos. Eu vou só lhe dar alguns exemplos. Vamos brincar um pouco com esse assunto.

O jogo é: você consegue imaginar que um professor que faz algo no campo da psicologia mainstream está sentado aqui conosco? E que nós estamos tentando convence-lo de que a Teoria Histórico-Cultural, a abordagem, a tradição Histórico-Cultural é muito boa, profunda, nos ajuda a compreender o desenvolvimento em um nível profundo, etc... só para convence-lo. Podemos fazer isso? Só para promover um tipo de entretenimento para os nossos leitores.

Bem, então ele pode dizer “ei, pessoal, vocês estão fazendo pesquisa na abordagem Histórico-Cultural, mas eu sou muito cético em relação a ela - e tenho ao menos três razões para o meu ceticismo: eu tentei entender o que é a Psicologia Histórico-Cultural, e comecei a ler alguns livros-chave de vigotskianos. Eu não quero lhes dizer o nome, mas vocês conhecem todos eles. De repente, eu descobri que não há concordância entre eles! O meu primeiro ponto é: eu não entendi... por quê há tantas terminologias?! Algumas pessoas dizem Teoria Histórico-Cultural, outros dizem Teoria Sócio-Cultural, outros ainda abordagem Sócio Histórico-Cultural Social (Social Cultural Historical Approach), outros Teoria da Atividade Histórico-Cultural (Cultural-HistoricalActivityTheory)... ao lê-los, a minha dúvida é: eles estão falando da mesma teoria? Ou são teorias diferentes? Se são teorias diferentes, como elas se relacionam? Se tratam da mesma teoria, por que parecem tão diferentes? Isso traz muita bagunça! Como eu posso me interessar por THC, como eu posso acreditar nesta teoria se os próprios vigotskianos não têm um acordo sobre o nome correto dessa teoria? Me parece que não há uma teoria do Vigotski, e sim, apenas suas interpretações contemporâneas.

Em segundo lugar: esse professor pode perguntar “Carol, Nikolai, eu amo vocês, eu os aprecio e os respeito muito. Mas eu tentei entender, e não consigo sequer ter uma ideia... qual é o objeto da Teoria Histórico-Cultural? Sobre o que é essa teoria? Eu li muitos livros de vigotskianos, eles estão discutindo, publicando... por exemplo, Cambridge companionto Vygotsky, introductionto Vygotsky, essentialVygotski… mas, quando eu li, percebi que ninguém mencionou qual é o objeto da Teoria Histórico-Cultural. De quê essa teoria trata?!?

Alguém diz que é sobre construção do conhecimento, mas se é sobre construção do conhecimento eu não preciso dela, porque já há muitas pesquisas interessantes sobre construção de conhecimento, e elas não têm nada a ver com THC; por que eu deveria troca-las? Outra pessoa disse que é sobre Zona de Desenvolvimento Proximal. Ok, eu dei uma olhada em ZDP na Internet e vi que ZDP é a diferença entre aquilo que a criança realiza individualmente, e aquilo que a criança pode fazer em cooperação com os outros. Que grande novidade! Todo mundo sabe que crianças podem fazer algumas coisas de forma independente, e outras colaborativamente. O que é, de fato, novo aqui? É isso que a THC sugere? Todos pais sabem disso, todo professor sabe disso... por que você precisa levantar isso como uma bandeira? Vamos lá, pessoal! Ok, outro vigotskiano disse que ZDP é sobre aprendizagem. Mas nós temos muitas teorias da aprendizagem! A teoria da aprendizagem social de Bandura é muito clara, muito boa, funciona... me digam por que eu deveria usar a THC? O que essa teoria me traz se comparada com a teoria de Bandura?

Então, esse professor poderá nos dizer: “Carol e Nikolai, sua tentativa de me convencer a utilizar uma teoria que não tem um nome claro, que não apresenta um objeto de estudo claro, que introduz algumas coisas que todo mundo já sabe... vocês realmente acham que podem me convencer?”

É claro, nós podemos responder a esse professor lhe dizendo que o nome da teoria de Vigotski é ‘Teoria Histórico-Cultural’ (e esse nome o próprio Vigotski utilizou) e nós podemos dizer também que THC tem um objeto de estudo que é claro e se consiste no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores (e esse objeto é como o próprio Vigotski o identificou). Mas isso não ajuda a convence-lo...

Por exemplo, esse professor pode perguntar: “me diga, como a Teoria Histórico-Cultural compreende as funções psicológicas superiores? Esse é um termo que vem do século XIX, de WilhemWundt. Qual é a diferença entre o entendimento de funções psicológicas superiores na teoria de Wundt e na teoria de Vigotski? Ele pode ainda continuar e dizer algo como: “quando eu leio os vigotskianos eu vejo que as funções psicológicas superiores são a continuação e a transformação das funções psicológicas elementares. Vamos lá! Isso contradiz as pesquisas contemporâneas em neuropsicologia! Há milhares de pesquisas mostrando que as funções superiores não podem se desenvolver e se tornarem funções psicológicas superiores. Mas os vigotskianos continuam repetindo todas essas ideias de que as funções psicológicas superiores se constituem através das funções elementares, e que as funções elementares se transformam em funções psicológicas superiores. Isso é absolutamente ultrapassado! Então, a teoria de Vigotski está absolutamente equivocada e não corresponde à pesquisa contemporânea, e depois disso você, Carol e Nikolai, estão tentando me convencer de utiliza-la? Não, eu não quero!

Em outras palavras, o que eu quero dizer através desta discussão imaginária com esse professor é que existe o Vigotski, e existem os vigotskianos. Aquilo que nós não podemos encontrar nos textos dos vigotskianos, nós encontramos nos textos de Vigotski. Por exemplo, Vigotski postulou com clareza que as funções psicológicas superiores não são resultado do desenvolvimento das funções elementares, e mais ainda, ele explicou o porquê!

Vocês podem então perguntar: por que os vigotskianos então repetem o oposto? Eu não sei. Provavelmente porque a representação que eles fazem da THC é baseada naquele quadro que apareceu no final da década de 1970, quando apenas alguns trabalhos originais de Vigotski haviam sido publicados de forma nem um pouco sistematizada.

Ao mesmo tempo, a opinião comum era a de que Vigotski não criou uma teoria holística, sistemática, e que a THC não existia como teoria, mas como algumas ideias interessantes.

No entanto, agora nós temos uma situação diferente. Eu a chamo de “uma nova realidade do legado de Vigotski”. Os últimos 30 anos foram o período em que mais e mais textos do Vigotski, desconhecidos até pelos pesquisadores russos, foram publicados. Isso nos ajudou a compreender que a THC era uma teoria, uma teoria holística, embora Vigotski não tenha tido tempo de publica-la separadamente em um livro. Há agora a possibilidade de reconstruir a THC, em sua completude, como uma teoria holística. E aqui eu venho responder a sua questão. A THC contribui com a psicologia geral, com o mundo da Psicologia, em algumas direções.

Primeiramente, essa é a teoria que toma o processo de desenvolvimento como seu objeto de estudo. Em outras palavras, a THC é sobre o processo de desenvolvimento psicológico, do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Sim, há outras teorias que versam sobre o desenvolvimento psicológico, por exemplo, a teoria de Piaget. Mas a diferença é que a THC compreende o processo de desenvolvimento psicológico como um complexo processo dialético, guiado por uma compreensão dialética de desenvolvimento, advinda do grande filósofo alemão G. Hegel. A THC não tem o objetivo de descrever o desenvolvimento, mas sim de ‘explica-lo’,a fim de compreender o desenvolvimento com vistas à mudança na prática social e educacional!

Em segundo lugar, para realizar esta tarefa a psicologia precisa de um tipo especial de teoria (como Vigotski disse, de uma teoria intermediária) em que, de um lado, inclui conceitos psicológicos, leis e princípios, para permanecer como uma teoria psicológica, mas que ao mesmo tempo consiga descobrir a dialética universal do desenvolvimento, as leis dialéticas do desenvolvimento, e explicar como elas se manifestam em relação com o desenvolvimento psicológico. E a THC é esse tipo de teoria.

Terceiro, a THC é a teoria, o sistema de conceitos teóricos, leis e princípios que são interrelacionados e criam um sistema teórico. Foi isso o que Vigotski fez e é essa a sua contribuição.

Quarto: como qualquer outra teoria científica, a THC é baseada em leis que existem objetivamente, e que definem a natureza do objeto de estudos da teoria. Assim como nas leis da Física (Newton e Einstein), e nas leis da evolução biológica (Darwin), que existem objetivamente, Vigotski descobriu as leis psicológicas que existem objetivamente - elas são as leis de desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Ele introduziu a solução para o problema mais fundamental da psicologia. Qual é esse problema? Todos nós, do ponto de vista psicológico, somos diferentes - em nossos pensamentos, emoções, características subjetivas, memória, imaginação, etc. Todos os processos psicológicos são subjetivos. Mas a ciência não pode ser subjetiva! Então, isso significa que a psicologia é impossível como uma disciplina científica? A resposta de Vigotski foi um tipo de revolução - sim, nossos processos psicológicos são subjetivos, mas ao invés de tentar procurar as similaridades ou as diferenças entre eles (o que é muito popular na psicologia contemporânea), nós precisamos mudar o foco. Nossa consciência é absolutamente subjetiva - mas cada função psicológica que nós temos é resultado de um processo de desenvolvimento. E esse processo de desenvolvimento apresenta leis objetivas, e que se dá de acordo com essas leis objetivas. E se nós compreendemos essas leis, nós podemos então explicar porque nós temos nosso próprio sistema subjetivo de funções psicológicas. A THC descobriu uma série de leis objetivas do desenvolvimento psicológico - essas leis são universais, e elas funcionam com todas e quaisquer funções psicológicas superiores, com todos os seres humanos, em todas as culturas, elas funcionaram séculos atrás e funcionarão também no futuro. Eu posso lhe dar um exemplo: todas as folhas de uma árvores são diferentes; você não consegue encontrar duas folhas exatamente iguais em uma árvore. Nesse sentido, toda folha é única. Mas eles são todos produtos únicos, o resultado das leis objetivas da botânica no que diz respeito ao crescimento completo da árvore. Esta é apenas uma ilustração, por favor, não a tome diretamente.

E, finalmente, mais uma de suas contribuições é a introdução de um novo princípio fundamental à psicologia. A psicologia tradicional é baseada no princípio do reflexo (conhecido como S-R). A THC introduz o princípio da refração (relacionado à vivência) - tudo não é refletido em nossa vida psíquica, mas sim, refratado pelo prisma da vivência.

Vocês podem se perguntar: e a questão das ferramentas culturais e mediação, ou da construção social da mente - as coisas que são consideradas como as maiores contribuições de Vigotski e da Teoria Histórico-Cultural. A minha resposta é essa: essas ideias já eram conhecidas muito antes de Vigotski! Não são elas que fazem da THC única. O que a faz única é que essas ideias são reconceptualizadas dentro da Teoria Histórico-Cultural, e para entende-las nós precisamos relaciona-las com aquilo que nós acabamos de discutir sobre as 4 maiores contribuições da THC. Sem essas relações, elas estarão condenadas a permanecer fracas e superficiais.

O que eu tentei fazer no artigo que você mencionou em sua questão é minha primeira tentativa de apresentar a THC de forma sistemática. Estou tentando fazer isso, e meus colegas também estão no começo desse processo... nós estamos tentando retornar, reencarnar, reconstruir, trazer de volta à vida as ideias originais e profundas de Vigotski que em muitos casos foram perdidas, mal compreendidas e mal interpretadas.

Então, resumindo: A teoria e a metodologia histórico-cultural tem um enorme potencial. Mas o problema é que a profundidade desta abordagem foi perdida. Ninguém especificamente fez isso, não há más pessoas que estão fazendo isso. Há muitas, muitas razões para isso. Razões históricas, acadêmicas, e até políticas. Eu não quero dizer que alguém é culpado por isso. O problema é que, embora ninguém seja culpado, todos nós somos vítimas. E para explorar esse potencial, para mostrar como utilizando a THC e sua metodologia nós podemos mudar o sistema, a prática social, nós podemos mudar os sistemas educacionais, podemos fazer pesquisa de alta qualidade, podemos entender o processo de desenvolvimento de crianças e adultos de maneira mais profunda e em uma melhor comparação com as outras teorias. Nós não podemos fazer isso sem uma reencarnação, sem voltar às raízes e sem uma compreensão prática que foi perdida, que foi mal compreendida... que foi mal interpretada. É claro que a THC precisa de aprimoramento. Mas eu não posso aprimorar coisas que foram compreendidas erroneamente. Esse é o jeito errado de aprimorar. Eu posso aprimorar coisas que eu compreendi corretamente. Aí eu posso aprimorar. Se eu não entendi, meus aprimoramentos não me levaram a nada. Eu só posso aprimorar minha incompreensão. A THC não é uma teoria morta. Ela não está escondida em algum lugar na história da psicologia. Ela só foi vítima de leituras equivocadas, incompreensões, más interpretações... e agora nesse momento, no século XXI, nós temos todas as fontes disponíveis, todos os trabalhos-chave de Vigotski estão à disposição. Nós não precisamos mais seguir intepretações estreitas baseadas em uma quantidade super limitada de recursos que foi criada no final da década de 1970. Agora nós temos muito mais publicações, recursos e as ferramentas de Vigotski. E nós podemos reconstruir toda a teoria. Agora nós podemos fazer isso. E nós temos muitos desafios na vida: nós temos mudanças sociais, diversidade cultural, temos muitos problemas, tensões, conflitos políticos e sócio-econômicos, culturais, educacionais. E a THC, a pesquisa histórico-cultural pode contribuir na resolução desses problemas, pode apresentar resultados práticos auxiliando pessoas em situações difíceis de vida, em crise, em muitas, muitas coisas. Pessoas que têm atraso em seu desenvolvimento, crianças, pessoas com necessidades especiais, muita coisa....e é por isso que a ênfase na cultura está agora em pauta. Agora nós compreendemos mais e mais como a diversidade cultural é importante! E a única teoria que responde à diversidade cultural, explicando o desenvolvimento histórico-cultural em sua importância é a Teoria Histórico-Cultural. É uma exigência de vida. A vida exige isso! Quão forte, poderoso isso pode ser para nos ajudar - não apenas a fazer nossa pesquisa, mas para contribuir com as mudanças na sociedade no futuro. O tempo da THC está chegando! (risos). Vigotski esteve muito à frente de seu tempo, e previu todos esses problemas! Há quase 100 anos atrás... mas agora esse tempo está chegando, e eu espero que os vigotskianos entendam isso - e então entendam que a primeira coisa que eles têm a fazer é apenas voltar às raízes com o objetivo de compreender sobre de que se trata essa teoria. Essa é a tarefa.

Como mencionamos na primeira parte da entrevista, publicada nesta revista durante o mês de Novembro de 2020, prestamos ao professor Nikolai Veresov nossos mais sinceros agradecimentos tanto pela disponibilidade e atenção às nossas perguntas, quanto pela larga contribuição aos estudos da doutoranda Ana Caroline em seu período Sanduíche e também do grupo de pesquisadores pós-graduandos conduzido pela Dra. Adriana de Fátima Franco na Universidade Estadual de Maringá (UEM).

  • van der Veer, R. VALSSINER J. Vygotsky: uma síntese, Sao Paulo, Edições Loyola, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    04 Set 2020
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