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"Será que cegos sonham?": o caso das imagens táteis distais

Será que los ciegos sueñan?": el caso de las imágenes táctiles distales

"Could it be that blind people dream?": the case of distal tactile images

Resumos

O objetivo do artigo é identificar algumas características e a dinâmica estrutural das imagens mentais de pessoas cegas precoces e analisar os componentes da imagética não visual em lembranças e sonhos. As contribuições de Antônio Damasio, Gilbert Simondon e Francisco Varela estabelecem a base da discussão sobre o conceito de imagem mental, sublinhando sua dimensão processual e inventiva. Utilizando uma metodologia de primeira pessoa, quatro pessoas cegas precoces adultas foram entrevistadas com a técnica da entrevista de explicitação, tendo em vista a descrição de experiências pré-refletidas. O texto analisa extratos das entrevistas que apontam a existência de uma imagética multissensorial, a importância da plataforma tátil e a presença de imagens táteis distais - tanto nas lembranças como nos sonhos - que são descritas como próximas da experiência da visão. O artigo destaca o hibridismo visuotátil das imagens táteis distais, bem como a presença de elementos da linguagem dos videntes.

Deficiência visual; imagem mental; imagem tátil distal


El objetivo del artículo es identificar algunas características y la dinámica estructural de las imágenes mentales de personas ciegas precoces y analizar los componentes de la imagética no visual en recuerdos y sueños. Las contribuciones de Antônio Damasio, Gilbert Simondon y Francisco Varela establecen la base de la discusión sobre el concepto de la imagen mental, señalando su dimensión procesal e inventiva. Utilizando una metodología de primera persona, cuatro personas ciegas precoces adultas fueron entrevistadas con la técnica de la entrevista de explicitación, teniendo en cuenta la descripción de experiencias pre-reflexionadas. El texto analiza extractos de las entrevistas, que apuntan para la existencia de una imagética multisensorial, la importancia de la plataforma táctil y la presencia de imágenes táctiles distales - tanto en los recuerdos como en los sueños - que son descriptas como próximas de la experiencia de la visión. El artículo destaca el hibridismo visuo-táctil de las imágenes táctiles distales, así como la presencia de elementos del lenguaje de los videntes.

Deficiencia visual; imagen mental; imagen táctil distal


This paper aims to identify some of the characteristics and the structural dynamics of mental images of early blind persons, and to analyse the components of non-visual imaging in image-memories and dreams. Contributions by Antonio Damasio, Gilbert Simondon and Francisco Varela establish the base of the discussion on the concept of mental image, highlighting its processing and inventive dimensions. Using first-person methodology, four early blind adults were interviewed. The technique of explicitation interview was used for the description of pre-reflective experiences. The article analyses excerpts of the interviews that reveal the presence of multi-sensorial imaging, the importance of the tactile platform and the presence of distal tactile images- both in dreams and memories - that are described as close to the experience of vision. The article highlights the hybridity visuo-tactile of distal tactile images as well as the presence of elements of the language of the seers.

Visual disability; mental image; distal tactile image


ARTIGOS

"Será que cegos sonham?": o caso das imagens táteis distais1 1 Apoio e financiamento: CNPq e FAPERJ.

"Could it be that blind people dream?": the case of distal tactile images

Será que los ciegos sueñan?": el caso de las imágenes táctiles distales

Virginia KastrupI

I Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutorado em Ciências da Cognição pelo Centre National de Recherche Scientifique, França, e em Deficiência Visual pelo Consevatoire National des Arts et Métiers, França, professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua General Cristóvão Barcelos 280, ap. 603. Laranjeiras, Rio de Janeiro. CEP 22245-110. E-mail: virginia.kastrup@gmail.com

RESUMO

O objetivo do artigo é identificar algumas características e a dinâmica estrutural das imagens mentais de pessoas cegas precoces e analisar os componentes da imagética não visual em lembranças e sonhos. As contribuições de Antônio Damasio, Gilbert Simondon e Francisco Varela estabelecem a base da discussão sobre o conceito de imagem mental, sublinhando sua dimensão processual e inventiva. Utilizando uma metodologia de primeira pessoa, quatro pessoas cegas precoces adultas foram entrevistadas com a técnica da entrevista de explicitação, tendo em vista a descrição de experiências pré-refletidas. O texto analisa extratos das entrevistas que apontam a existência de uma imagética multissensorial, a importância da plataforma tátil e a presença de imagens táteis distais - tanto nas lembranças como nos sonhos - que são descritas como próximas da experiência da visão. O artigo destaca o hibridismo visuotátil das imagens táteis distais, bem como a presença de elementos da linguagem dos videntes.

Palavras-chave: Deficiência visual; imagem mental; imagem tátil distal.

ABSTRACT

This paper aims to identify some of the characteristics and the structural dynamics of mental images of early blind persons, and to analyse the components of non-visual imaging in image-memories and dreams. Contributions by Antonio Damasio, Gilbert Simondon and Francisco Varela establish the base of the discussion on the concept of mental image, highlighting its processing and inventive dimensions. Using first-person methodology, four early blind adults were interviewed. The technique of explicitation interview was used for the description of pre-reflective experiences. The article analyses excerpts of the interviews that reveal the presence of multi-sensorial imaging, the importance of the tactile platform and the presence of distal tactile images- both in dreams and memories - that are described as close to the experience of vision. The article highlights the hybridity visuo-tactile of distal tactile images as well as the presence of elements of the language of the seers.

Key words: Visual disability; mental image; distal tactile image.

RESUMEN

El objetivo del artículo es identificar algunas características y la dinámica estructural de las imágenes mentales de personas ciegas precoces y analizar los componentes de la imagética no visual en recuerdos y sueños. Las contribuciones de Antônio Damasio, Gilbert Simondon y Francisco Varela establecen la base de la discusión sobre el concepto de la imagen mental, señalando su dimensión procesal e inventiva. Utilizando una metodología de primera persona, cuatro personas ciegas precoces adultas fueron entrevistadas con la técnica de la entrevista de explicitación, teniendo en cuenta la descripción de experiencias pre-reflexionadas. El texto analiza extractos de las entrevistas, que apuntan para la existencia de una imagética multisensorial, la importancia de la plataforma táctil y la presencia de imágenes táctiles distales - tanto en los recuerdos como en los sueños - que son descriptas como próximas de la experiencia de la visión. El artículo destaca el hibridismo visuo-táctil de las imágenes táctiles distales, así como la presencia de elementos del lenguaje de los videntes.

Palabras-clave: Deficiencia visual; imagen mental; imagen táctil distal.

Às vezes pergunta-se se cegos sonham. A pergunta, ingênua e mesmo preconceituosa, traz consigo uma dúvida quanto a alguém que nunca enxergou ter imagens mentais. Ela subentende também a identificação de imagem mental com imagem visual, sem levar em consideração as imagens auditivas, táteis, olfativas, gustativas e cinestésicas que fazem parte da cognição de todos nós, sobretudo de quem não vê. A pergunta também não coloca o problema da profunda diferença que existe entre a cognição da pessoa que é cega congênita e daquela que se tornou cega, mas guarda memória visual. São muitas as representações equivocadas acerca das pessoas cegas. Ao contrário da abordagem negativa, pautada nas ideias de falta, imperfeição ou defeito, uma abordagem positiva da deficiência visual vem sendo hoje desenvolvida por vários autores (Bavcar, 2009; Claudet, 2011; Hatwell, Streri & Gentaz, 2000; Kastrup, 2010; Moraes & Kastrup, 2010; Verine, 2007, 2010, 2011; Weygand, 2008). A abordagem positiva segue o caminho aberto por Diderot (1749/1979), que enfrentou pela primeira vez o desafio de entender o efetivo funcionamento cognitivo das pessoas cegas baseado nos demais sentidos. É essa abordagem positiva que buscamos conferir à investigação das imagens mentais.

O estudo científico das imagens mentais foi desenvolvido nas décadas de 1970 e 1980 (Kosslyn, 1980; Shepard & Metzler, 1971, 1973) e logo repercutiu no campo da psicologia cognitiva da deficiência visual (cf. Cornoldi & Vecchi, 2000). A maior parte dos trabalhos segue a mesma linha das pesquisas desenvolvidas com pessoas videntes. Elas são consagradas ao problema da rotação das imagens mentais, da exploração de percursos espaciais complexos e do papel das imagens no desempenho da memória (Kerr, 1983). Segundo Cornoldi e Vecchi (2000), as imagens mentais espaciais resultam de um trabalho de elaboração que utiliza uma variedade de fontes de informação, sensoriais e conceituais, de curto e longo prazo. Há uma presença majoritária da experiências táteis na composição das imagens mentais espaciais de pessoas cegas. Estas possuem propriedades específicas, mas também traços isomorfos aos das imagens visuais. Estudos neurocientíficos sobre sonhos deram margem a uma forte discussão em torno da questão de ser apropriado afirmar que cegos "veem" nos sonhos (cf. Bértolo, Paiva, Pessoa, Mestre & Santos, 2003; Kerr & Domhoff, 2004).

O objetivo deste artigo é identificar algumas características e a dinâmica estrutural das imagens mentais de pessoas cegas precoces e analisar os componentes da imagética não visual. As contribuições de Antônio Damasio (2000), Gilbert Simondon (2008) e Francisco Varela (Varela, Thompson & Rosch, 2003) estabelecem a base da discussão sobre o conceito de imagem mental, sublinhando sua dimensão processual e inventiva. No contexto das investigações que utilizam metodologias de primeira pessoa (Petitmengin, 2009), entrevistamos quatro pessoas adultas (três mulheres e um homem) com idades entre 44 e 60 anos. Duas eram cegas congênitas (P1 e P2), uma ficou cega com um ano (P3) e uma aos dois anos de idade (P4). Para as entrevistas, foi utilizada a técnica da entrevista de explicitação para a descrição de experiências pré-refletidas (Vermersch, 2000). Tomamos como experiência de referência a descrição de um sonho e uma imagem-lembrança. O texto analisa extratos das entrevistas que apontam a existência de uma imagética multissensorial, a importância da plataforma tátil e a presença, tanto nas lembranças como nos sonhos, de imagens táteis distais que são descritas como próximas da experiência da visão.

Em relação aos relatos de sonhos, vale sublinhar que não foi nosso propósito seguir o caminho inaugurado por S. Freud (1900/1972). Sem negar a importância da lógica do sonho e sem recusar a participação do desejo em sua construção, concentramo-nos no problema da dinâmica estrutural e da composição da imagem a partir de experiências não visuais. O foco foi a imagem como elemento processual da paisagem cognitiva.

IMAGEM, REPRESENTAÇÃO E INVENÇÃO

Após o eclipse do problema provocado pela hegemonia do behaviorismo, o estudo científico da imagem mental foi retomado nos anos 1970 e 1980 com os experimentos de Shepard e Metzler (1971) sobre movimentos de rotação em espaço tridimensional que evidenciaram a analogia entre imagens mentais e imagens perceptivas. Em experimentos sobre a exploração de percursos espaciais, Kosslyn (1980) demonstrou que imagens visuais mentais podem ser exploradas como se fossem vistas, num tempo proporcional ao de exploração da imagem perceptiva. Dito de outro modo, as imagens seriam exploradas por uma espécie de olho interno. Para Pylyshyn, a imagem é distinta de um quadro visual. É mais próxima da descrição de uma cena e envolve códigos abstratos de natureza proposicional. As imagens são epifenômenos subjetivos de computações mentais simbólicas. A partir daí, delineia-se uma oposição entre a hipótese analógica (imagem-percepção) e a hipótese proposicional (imagem-linguagem), que ocupou um grande espaço nas discussões acerca das imagens mentais. Não obstante, os autores que defendem as duas hipóteses concorrentes se aproximam, no sentido de que consideram a imagem uma representação, ou seja, uma entidade cognitiva que mantém uma relação de correspondência com uma realidade preexistente e exterior a ela.

No campo das ciências cognitivas, Antonio Damasio (2000) refuta a ideia de uma realidade absoluta, que seria representada em imagens. As imagens mentais não são armazenadas como coisas ou fotografias das coisas. Evocar, por exemplo, exige a construção de uma nova versão da lembrança. As versões evoluem. Imagens são construções momentâneas de padrões cognitivos já experimentados e frequentemente são passageiras, imprecisas e incompletas. As imagens são construídas com sinais provenientes de cada uma das modalidades sensoriais. Existem imagens visuais, auditivas, olfativas, gustativas e somatossensitivas (relativas ao tato, à temperatura e à dor, bem como aos sistemas muscular, visceral e vestibular). Damasio não chega a abandonar completamente o termo representação, mas é enfático na crítica à ideia de um mundo externo independente. A construção da imagem é efeito da ação. Afirma: "As imagens não são cópias dos objetos, mas imagens de interações entre cada um de nós e o objeto que mobiliza nosso organismo, constituídas na forma de um padrão neural, segundo a estrutura do organismo." (Damasio, 2000, p. 405). Sublinha ainda que os padrões neurais correspondentes podem ser apreendidos por métodos de terceira pessoa, mas as imagens mentais conscientes só podem ser acessadas numa perspectiva de primeira pessoa.

Gilbert Simondon (2008) considera que o estudo da imagem é indissociável do da invenção. Para Simondon, o termo imaginação é ambíguo. Por um lado, ele chama a atenção para o processo de produção de imagens, por outro, porta uma referência subjetiva muito acentuada. Para Simondon, as imagens estão a meio caminho entre o subjetivo e o objetivo. Elas possuem um tipo de objetividade e autonomia em relação à unidade pessoal da consciência. Há uma espécie de exterioridade primitiva da imagem em relação ao sujeito. Ela é como um intruso que invade a cena sem ser convidado, como uma espécie de aparição. É capaz de resistir ao livre arbítrio e é dotada de forças próprias. Além disso, Simondon sublinha que a transformação é algo próprio da imagem, mesmo aquela que parece mais estática. Sua tese é que não se pode separar a percepção da imaginação. Não é possível perceber sem imaginar e, na maior parte das vezes, a imagem é dotada de qualidades análogas àquelas da percepção. Todos os sentidos geram suas imagens.

A imagem possui uma dinâmica e um ciclo. Evolui em etapas, passando da imagem motora para a imagem perceptiva, em seguida para a imagem afetivo-emotiva ou simbólica e por fim chegando à invenção. A imagem motora espontânea é a base da construção das demais. A motricidade precede a sensorialidade. A imagem perceptiva é a primeira que possui dimensão de experiência e acolhe signos e informações do meio, tornando-se fonte de esquemas de resposta. A imagem afetivo-emotiva ou simbólica é caracterizada pela presença de valências, tensões, constrangimentos e ressonâncias. O conjunto dessas imagens forma um verdadeiro mundo mental, do qual fazem parte as imagens-lembranças e as imagens oníricas. Por fim, a invenção se produz quando a imagem dá lugar a uma obra, seja ela técnica ou artística. Enfim, tal imagem é lançada no mundo e, num processo de causalidade circular, vem a participar do processo de formação de novas imagens. Imaginação e invenção formam um ciclo, fundado no dinamismo da imagem.

Francisco Varela é um dos mais enfáticos críticos do conceito de representação. Para Varela, a cognição é enativa, o que significa que ela põe o mundo ao invés de representá-lo. A ação é a base da enação do mundo, bem como a do sistema cognitivo. São as ações do organismo e a história de seus acoplamentos que configuram a cognição. Tendo em vista a dificuldade que muitas vezes temos de dispensar o conceito de representação, Varela et al. (2003) distinguem a representação em sentido forte e a representação em sentido fraco. A primeira é fundada ontológica e epistemologicamente. O mundo é predeterminado e suas características podem ser especificadas antes de qualquer atividade cognitiva. Trata-se da posição adotada pelo cognitivismo computacional. Embora conceda que a representação é construída, o cognitivismo considera que o processo é de recuperação ou de reconstrução. Por sua vez, noção de representação em sentido fraco tem um alcance apenas pragmático e semântico e pode ser eventualmente mantida. Lançando mão de sua história de acoplamentos, o organismo age como se representasse o objeto externo. A criação das imagens é um caso de enação, sendo explicada em função das interações e da conduta efetiva do organismo. Cabe destacar ainda que, entendida no contexto da abordagem da cognição inventiva (Kastrup, 2007), a imagem mental é, ao mesmo tempo, um produto e um processo. Mesmo quando assume uma forma determinada, ela guarda uma dimensão processual, continuando seu processo de produção.

Ao sublinharem que a ação tem papel fundamental na constituição do sistema e do domínio cognitivo, Varela et al. (2003) referem-se a um experimento realizado com cegos na década de 1960. Paul Bach-y-Rita criou o dispositivo TVSS (Tactile-Vision-Substitution-System), que transforma estímulos visuais em estímulos elétricos por meio de uma matriz de estimulação tátil. O dispositivo é hoje composto de quatro elementos : 1) uma microcâmera que capta o sinal visual; 2) um computador; 3) um conversor que transforma a energia luminosa em sinais elétricos; e 4) uma matriz de estimulação elétrica ou mecânica sobre a língua. A imagem tátil é explorada com a língua (Bach-y-Rita, 1962; Segond, Weiss & Sampaio, 2007). Os padrões estimulados na pele formam imagens que são percebidas no exterior, na frente do percebedor, como uma espécie de visão. Com o aprendizado, o sujeito passa a ver uma imagem na sua frente, ou seja, uma imagem tátil distalizada. Tais imagens só são formadas se o sujeito experimental é ativo, ou seja, quando ele próprio assume o controle da estimulação cutânea e da própria câmera. O fenômeno se realiza quando o sujeito é capaz de interpretar as sensações da língua como imagens perceptivas projetadas no espaço. Pelo caráter polêmico de seus achados, o estudo foi bastante debatido no meio científico (Proust, 2009), destacando-se a discussão, travada no contexto da abordagem da enação, acerca da adequação do termo "visão" para nomear a experiência produzida com o TVSS (Gapenne, 2011).

No caso do dispositivo TVSS, a imagem tátil distal se apresenta como imagem perceptiva, que emerge na presença do objeto. Nas entrevistas que realizamos ela comparece em lembranças e em sonhos. Os objetivos do nosso estudo são: 1) atestar a existência de imagens táteis distais em sonhos e lembranças de pessoas cegas congênitas e precoces; 2) compreender a estrutura das imagens táteis distais; e 3) analisar os elementos que constituem as imagens táteis distais nos sonhos e lembranças, entre eles a linguagem dos videntes.

IMAGENS DE MOVIMENTO, IMAGENS EM MOVIMENTO

Uma das pessoas que entrevistamos (P2) era cega congênita e, quando criança, todos os anos passava seus meses de férias numa casa de praia que o pai tinha numa cidade próxima. Já adulta, numa visita a uma exposição para deficientes visuais, foi convidada a tocar uma concha, que possuía um formato de linha sinuosa e que lhe disseram trazer a representação de uma onda do mar. Ela afirmou que "não bateu" e percebeu rapidamente que aquela era uma representação típica de videntes. Pedimos então a ela que descrevesse a imagem de uma onda do mar:

A onda vai chegando e é nesse momento que eu mergulho. Porque eu imagino. Eu imagino. Eu sei até. Quando eu mergulho, eu sinto que muita água passou por mim, por cima de mim. ... Eu tenho a impressão de que ela é muita. Eu só tenho a impressão, só sei que a onda é grande quando eu consigo entrar naquele lugar depois da arrebentação - que por sinal eu adoro - e aquela onda me leva lá no alto, sabe? Uh! Sabe, aquela que você vai lá em cima?!

A descrição é marcada por componentes tátil-cinestésicos, como atestam as referências ao movimento da água passando, ao mergulho e à experiência de subir com o movimento da onda. Revela também componentes auditivos:

Eu sei quando tem uma onda no fundo. É uma coisa muito sonora, né, a onda no fundo do mar. Eu, então, eu sei que é um negócio, né? Faz um barulhinho também, né?! Então eu faço essas correspondências. ... Eu ouvia o barulho da onda - "Pá!" Ela quebrou lá dentro. Depois é que eu fui entender que a onda tinha passado por cima de mim e quebrado "Xuá!". ... Nas primeiras vezes eu não entendia muito bem, eu não fazia a conexão que essa onda era a mesma onda que batia lá e "Pum!" Depois, com o tempo, eu fui começando a perceber que imediatamente depois ela batia lá e se espalhava... Se ela fosse mais violenta, ela demorava mais e fazia um barulho maior, né? ... Quando ela vai embora também ela faz "Shiiii" Encolhe, encolhe. A água também faz um barulhinho quando devolve. ... Quando o mar está bravo existe um bramir - zzzzz. ... A onda começa a vir lá de dentro e faz muito barulho. E quando o mar está manso, ele quebra logo na beirinha - tcchhhiii... A onda vem, ela se espalha rápido, ela não faz aquele bramir, aí ela vem - tcchhhiii... Ih, caramba! O mar tá mansinho.

O caráter de maleabilidade e transformação das imagens já havia sido bem estabelecido nos experimentos de rotação tridimensional. Em estudos realizados com cegos, Carpenter e Eisemberg (1978) e Marmor e Zaback (1976) transpuseram o experimento de Shepard e Metzler (1971) para o domínio tátil, encontrando como resultado desempenhos equivalentes àqueles dos videntes com as imagens visuais. Nas entrevistas os participantes desempenham um papel ativo, escolhendo as experiências da vida cotidiana que vão descrever. Um participante (P3) realizou e descreveu o seguinte experimento mental:

Eu agora lembrei de uma bola. Uma bola de couro cheia de retângulos com umas linhas. ... Lembro dela cheia, mas eu sou capaz de lembrar dela vazia também, de imaginar. Eu lembro dela cheia e - pronto - eu já consegui, estou me lembrando. Estou falando com você e me lembrando. Já consegui esvaziar, na minha mente ela já tá vazia. E posso encher de novo.

O movimento da imagem ocorre naquele momento sem a presença do toque: "Eu não preciso, eu não uso. Já está construído. Então eu posso fazer dela na minha cabeça o que eu quiser". Ela surge com características táteis, mas, ao mesmo tempo, com o caráter de totalidade. "Eu lembro do todo". Os fragmentos serão agora resultantes de uma análise da imagem de totalidade. "Eu posso até partir a bola, lembrar de um pedaço, tirar um pedaço dela".

Outra participante (P4) descreveu a imagem do namorado:

Eu me lembro, realmente, a primeira vez que eu percebi o rosto dele, eu comecei daqui do queixo, daqui dessa parte aqui e fui... Eu vou falando isso pra você, mas é como se na minha cabeça já estivesse... Eu me lembro perfeitamente. Depois eu vi os olhos, a sobrancelha e tudo... ... Me lembro do nariz. Assim, porque eu já toquei, né? Então eu lembro de tudo, da sobrancelha, do cabelo, eu me lembro assim. ... Mas quando eu me lembro, eu não me lembro passando a mão pra me lembrar. Eu não uso o passar a mão na minha lembrança. É isso. ... Quando eu me lembro sem passar a mão, ele não vem assim, nesses pedaços, ele já vem todo.

Quando lhe foi perguntado se era capaz de perceber, em imagem, mudanças e transformações na fisionomia do namorado, respondeu:

Se eu percebo a passagem no meu pensamento? Sim. Quando você falou, imediatamente eu já imaginei. Ele sério e quando você foi falando... É mais ou menos assim. É engraçado. É como se você tivesse feito um retrato e daqui a pouco você olhasse e é um retrato da mesma pessoa, mas já tava assim rindo. Mas eu posso conseguir... Eu posso fazer mais lento. No caso dele... Eu tô falando assim porque no que você fala, eu já começo a imaginar. ... Quando você fala mais lento, eu já começo a imaginar... É como se tivesse um rosto fazendo esse movimento aqui... Você fala lento e eu já imagino.

A fala lenta da entrevistadora convida à lentificação do processo de transformação da imagem, que pode então ser percebido por meio de uma atenção a si.

Outra pessoa que entrevistamos (P1) falou sobre a imagem mental que tinha de uma banana: "É como se o cérebro forjasse uma banana na minha frente que eu posso palpar". Perguntei se ela tocava na banana com a mão quando a imaginava, e ela respondeu: "Não, são como mãos invisíveis, vamos dizer assim, são mãos cerebrais, são mãos neurossensíveis, sei lá o que a gente poderia dizer". Perguntei se elas pegavam a forma da banana inteira e ela respondeu convicta: "Inteira"; e continuou: "É muito complexo. Será que todas as pessoas cegas pensam nessas coisas dessa maneira? Porque, na verdade, hoje eu estudo isso, trabalho com isso. Já estou fazendo um recorte mais ou menos científico do problema". E acrescentou: "Há uma plataforma tátil, eminentemente tátil. É um tátil construído, vamos dizer assim, mentalmente. É um tátil impalpável. Vamos pensar numa sombra, numa película, sei lá o quê. Mas é muito concreto ao mesmo tempo"; d continuou:

Bem, o tato vai me dar uma experiência recente de banana e ela vai se sutilizar. Obviamente, a mente não para, então a imagem também vai se transformando. ... Ela pode se modificar, ela pode se desfazer, ela pode se estender. Ela é plástica, eu posso moldá-la, está entendendo? ... Enquanto que, para quem enxerga, provavelmente, se forma um instantâneo visual, para o cego se forma um instantâneo tátil. Depois ele ganha outros atributos. Mas ele ganha outros atributos se ele tiver o esteio da experiência tátil. Há o atributo do olfato, do paladar... Mas a preponderância, para mim pelo menos, quando eu me observo imaginando, produzindo, a preponderância é da experiência tátil. Talvez porque eu seja cega congênita, seja cega de nascença.

Insisti se a experiência era de fato de uma imagem tátil instantânea.

Olha, é bem instantâneo. Você pensa que não, mas é. E eu acho que existe alguma similaridade com o processo visual; porque eu já li, por exemplo, que na visão o cérebro faz um escaneamento do ambiente, mas ele te dá uma imagem atualizada. O tato também vai me dar uma imagem da minha experiência.

As imagens parecem guardar um movimento semelhante ao de um filme, assistido no momento em que elas são evocadas. Oliver Sacks (2010) discute longamente este tema, referindo-se a ele como o olhar da mente ou olhar interior. Os participantes afirmam que a imagem de totalidade emerge sem a presença do toque. Eles não exploram a imagem com as mãos. As descrições indicam que a imagem de totalidade é construída por acoplamentos sensório-motores, como apontam Damasio, Simondon e Varela. Estudos atuais de Spence e Gallace (2008) corroboram essa mesma perspectiva. Nas lembranças, e também nos sonhos, ela é apoiada sobre movimentos das mãos e do corpo, adquirindo a dimensão de experiência. Foi possível identificar dois mecanismos no processo de individuação da imagem. No primeiro, através de um processo sucessivo, pedaço por pedaço, a imagem é composta e torna-se uma unidade. O mecanismo é característico da percepção háptica e é evidente na descrição da imagem do rosto. Trata-se da associação por contiguidade espacial de partes sucessivas. O segundo é a associação por contiguidade temporal. É o exemplo da imagem da onda, onde é descrita a construção de uma correspondência entre as imagens sonoras dos ruídos do mar e as imagens táteis. Podemos dizer ainda, com Simondon, que mesmo após a individuação a imagem fica dinâmica e se presta à manipulação mental.

UMA IMAGÉTICA MULTISSENSORIAL: O SONHO DA TROPA DE BOIS

Os relatos de sonhos também evidenciam a construção de imagens com base na percepção não visual. Segue um extrato do relato de um homem (P3):

Eu tenho sonhos com animais, sonho muito com animais, porque eu passei muito tempo trabalhando com esse tipo de coisa. Eu trabalhava criando gado, cuidando de gado. Criação de bode, ovelha, essas coisas assim. Tem muito tempo. Quando eu morava em Canindé, no Ceará. ... Até hoje eu ainda sonho com eles. Outro dia eu sonhei que tinha alguma coisa acontecendo aqui no Instituto [Benjamin Constant], estava acontecendo alguma coisa... Aí eu ia pro Instituto com umas pessoas. Quando eu ia, eu encontrava alguém levando um bocado de gado. ... Então, tinha uma... uma... tinha uma vaca que ficava... Ela chegava assim... Tinha uns touros muito valentes querendo brigar com a pessoa que vinha trazendo eles. E a vaca falava assim: "Vem comigo que eu passo com você." Aí eu me debruçava, assim, em cima da vaca como se fosse, no sentido... Cruzando ela, entende? Encontrei com a vaca assim, ficava debruçando nela assim com os meus pés no alto do chão, e ela voltava comigo, até passar pelos touros. E quando ela chegava na esquina, aqui na esquina, ela parava. Aí, eu descia e ela voltava a acompanhar o gado. E ia embora. ... Na verdade, ela não passou de frente. Ela voltou de ré, sabe, assim, porque ela não tinha como virar. Agora eu lembrei que ela voltava de ré. Do jeito que ela tava, ela ia. Não dobrou, ela voltou de ré. E eu fiquei debruçado nela até chegar aqui na esquina. E daqui eu desci e ela voltou, seguiu pra acompanhar o gado.

O sonho é pleno de imagens dotadas de componentes táteis, sonoros, olfativos e cinestésicos. Quando descreve a experiência de estar deitado sobre a vaca, trata-se da descrição de uma imagem tátil. Imagens sonoras surgem na fala da vaca, que oferece ajuda. Aparecem também quando ele afirma, ao longo do relato, que sabe que a tropa está vindo na sua direção pelo barulho das patas dos animais e de sua respiração. Sublinha que a respiração do boi é bem forte, podendo ser ouvida de longe. Conclui: "Você sabe que é um bando de animais porque o barulho dos pés é diferente de se fosse só um, o barulho da respiração de vários animais é diferente se fosse só de um". Comparece ainda uma imagem olfativa quando menciona que o bafo do boi é muito cheiroso. Em relação às imagens cinestésicas, descreve que é carregado pela vaca, que o ajuda a passar pela tropa. O deslocamento se faz com os pés pendurados, sendo ainda referida a imagem da marcha a ré e de descer da vaca após a travessia. Como as imagens-lembranças, as imagens oníricas parecem derivadas da motricidade. No contexto de uma cena mais complexa, e mesmo de uma história, a carga afetiva e o valor simbólico das imagens são ainda mais claros. A multissensorialidade apontada pelos autores é bem evidente aqui.

A PLATAFORMA TÁTIL: O SONHO DO ENCONTRO NO ÔNIBUS

Outro dia sonhei que estava indo para a minha antiga casa, num ônibus muito lotado. De repente a pessoa ao meu lado me tocava insistentemente no braço. Não sei como, soube logo que era o meu amigo. Nos demos as mãos e nos pusemos a conversar animadamente. Não me lembro da conversa, mas do toque da sua mão, que estava trêmula, o que me deu a entender que ele continuava doente. Descemos e me dei conta de que estávamos na parada errada. Nós andávamos conversando, as mãos dele ainda tremiam. Subimos uma ladeira íngreme. São as recordações táteis que eu guardei do sonho. As experiências de sonho são muito vagas, fugidias mesmo. Mas penso que o que prepondera como recordação, para mim, é a experiência tátil.

Relatado por uma pessoa cega congênita (P1), o tato envolve diversos elementos do corpo e comparece em diferentes momentos do sonho. As imagens táteis se fazem presentes na menção ao toque no braço, às mãos trêmulas, às mãos dadas e aos pés subindo a ladeira íngreme. Estão subentendidas também na imagem do ônibus cheio, por certo construída pela imagem do corpo apertado. As imagens auditivas, que dizem respeito às conversas travadas com o amigo, restam em segundo plano, não ganhando importância no relato.

O TATO DISTAL VERSUS O TATO PROXIMAL: O SONHO DO VESTIDO DE NOIVA

O sonho seguinte foi narrado por uma mulher (P4):

Eu ia casar na época e sonhei que eu estava vendo um vestido de noiva que não era o meu, mas era assim... Eu estava chegando perto de numa vitrine, mas esse vestido não estava na vitrine, no espelho, naquela coisa que a gente não pode tocar... Ele não estava no vidro, mas era como se estivesse. Ele estava pendurado. Eu estava chegando, e ele tava pendurado. E eu ficava parada, de frente pro vestido. E eu tinha certeza... Eu falava assim: "É um vestido de noiva e ele é branco, é branquinho, ele é muito branco." Eu ficava dizendo pra alguém que estava do meu lado: "Que vestido lindo!"

Quando lhe foi perguntado se ela percebia a forma do vestido, respondeu: "Daqui do tórax até aqui na altura da cintura mais ou menos, ele era bem fininho, bem justinho. Tinha uma coisa, ele tava vestindo alguma coisa, porque eu via como se ele estivesse armado". A sua impressão era que o vestido estava exposto num manequim.

Depois ele ia abrindo, bem aberto. E nessa parte aqui da blusa tinha uma renda bem fininha. Mas não era assim uma renda reta. Sobrava assim um pouquinho, um babadinho e aqui era fininho também, muito fininho. Ele tinha uma manga que era... Como chama quando é presinha no braço?

Sugiro manga bufante, e ela concorda: "Isso. Isso mesmo. Bem bufante. E embaixo ele era todo plissado". Pergunto se a imagem que ela tinha do bufante, da renda, do babado, do plissado, do corpete vinha da percepção tátil e ela responde prontamente:

Não, não. Eu não peguei em nada. Naquele momento eu não peguei em nada. Eu fiquei ali, vendo o vestido - vendo entre aspas, tem que frisar bem. Depois eu acordei. Quando eu acordei, eu acordei muito contrariada, porque eu queria ao menos pegar, né, pra saber se era... Se o que estava na minha frente era realmente o que eu sentiria se eu tivesse pegado.

No caso do TVSS, a imagem tátil distal se apresenta como uma imagem perceptiva, que depende da presença do objeto. Nas entrevistas que realizamos, ele aparece em lembranças e sonhos. No caso do relato de sonhos, o fenômeno ganha ainda mais evidência e novas nuanças.

DISCUSSÃO: O HIBRIDISMO DAS IMAGENS TÁTEIS DISTAIS

Os relatos de pessoas cegas precoces presentes nas entrevistas realizadas corroboram os resultados dos estudos existentes sobre imagens mentais táteis de tipo perceptivo que utilizam métodos em terceira pessoa. As experiências narradas pelos participantes atestam a presença da imagem como uma estrutura dinâmica, como aparece nos casos de rotação mental. O estudo em primeira pessoa evidencia a existência de imagens mentais táteis em lembranças e sonhos, ampliando o alcance ecológico da investigação. Traz relatos de imagens da vida cotidiana, como a lembrança do rosto do namorado, dos ruídos das ondas do mar, de uma banana e de uma bola de futebol. As experiências narradas revelam que as imagens possuem um caráter híbrido. Por um lado, elas são dotadas de um forte elemento tátil; por outro, em função de sua unidade instantânea e de sua aparição na frente das pessoas, são descritas como semelhantes à visão. A impressão da existência de uma espécie de olho interno, já apontada por Kosslyn (1980) e Sacks (2010), aparece de modo consistente nos sonhos descritos pelos participantes. Esses trazem também, de modo preeminente, imagens com elementos multissensoriais, como exemplifica o odor do bafo do boi, a fala da vaca, o ruído das patas da tropa de bois, mãos trêmulas e a imagem tátil de um ônibus cheio.

A referência a imagens com características que são táteis mas, não são tocadas quando são evocadas parece estar no centro da discussão sobre sua semelhança com a experiência da visão. Isto surge nas entrevistas do participante que descreve a rotação da banana. Há também indícios suficientemente claros de que o tato desempenha um papel de base e que a forma individuada resulta em grande parte da exploração háptica. Um exemplo é a descrição da maneira como foi construída a imagem do rosto do namorado.

Nos relatos dos participantes aparecem indicações de que a associação de elementos sucessivos pode se dar por contiguidade espacial, como nos casos do rosto e da banana, ou de elementos simultâneos por contiguidade temporal, como no caso da experiência narrada sobre as ondas do mar que batem na praia. Por ambos os caminhos, a imagem parece ganhar uma densidade objetiva. Além dessa densidade, a imagem torna-se dinâmica e é objeto de modulações e nuanças qualitativas. Os exemplos da descrição da bola, da banana e, sobretudo, da passagem do rosto sério ao sorridente são bastante reveladores.

Nas experiências narradas, as imagens oníricas são particularmente dotadas de grande densidade afetivo-emocional. Relava-o muito bem o relato do vestido de noiva, marcado por adjetivos e interjeições. A presença da linguagem dos videntes é igualmente notável. Vale lembrar que na cultura brasileira, como em muitas culturas ocidentais, a imagem do vestido de noiva, com sua cor branca característica, é plena de valor simbólico. Para muitas mulheres, é uma imagem carregada de ressonâncias afetivas e emotivas. No início da entrevista, quando a mulher decidiu falar do sonho de vestido de noiva, ela disse que ia contar um sonho curioso, porque incluía a cor. A cor branca fazia parte da imagem. Ao final da entrevista, após uma exploração lenta e detalhada da imagem, ela conclui: "Todo mundo fala que vestido de noiva, na maioria das vezes, é branco. Então eu posso ter associado. Porque era um vestido de noiva, eu associei ao branco". Procuramos confirmar se a cor não fazia parte da imagem e ela respondeu: "Não, não". Observamos então que a descrição durante a entrevista de explicitação havia modulado a imagem. O trabalho de autoobservação foi mais do que um scanner. A ação de descrever e os gestos cognitivos empregados podem fazer mudar as imagens. Somos levados a considerar que a imagem do vestido de noiva mudou após a explicitação. Num primeiro momento o hibridismo parecia completo, mas uma exploração mais fina revelou que havia duas camadas diferentes: a tátil e a verbal, das quais a primeira lhe parecia mais concreta.

CONCLUSÃO

Com base nos objetivos propostos e no estudo realizado, verificamos a presença de imagens táteis distais em lembranças e sonhos de pessoas cegas precoces. Tais imagens são estruturadas e ganham uma unidade dinâmica, ultrapassando o caráter fragmentário e analítico da percepção háptica que participa de sua construção. As imagens táteis distais podem parecer constituídas também por elementos inacessíveis ao tato, como no caso da cor branca no vestido de noiva; porém a referência dominante parece ser aquela fornecida pelo tato. Em situação de conflito cognitivo, há alguns indícios de que a experiência tátil predomina sobre informações verbais recebidas dos videntes, mas a presença de elementos da linguagem do vidente na fala das pessoas cegas ainda exige estudos complementares.

Os participantes da pesquisa são cegos precoces e não possuem memória visual, mas suas imagens são várias vezes descritas como se fossem objetos de visão. Com base no presente estudo, não devemos concluir que cegos veem em sonhos; no entanto, os relatos sugerem evidências que vão bem além da mera ideia de que cegos sonham que veem como nós, videntes, podemos sonhar que voamos. Os relatos que analisamos dão testemunho de que eles têm em seus sonhos a experiência de uma totalidade distal instantânea que creem ser próxima do que lhes costuma ser descrito como a experiência de ver.

As entrevistas realizadas trouxeram momentos concretos nos quais se revelou a exterioridade e a autonomia da imagem de que fala Simondon. Descrevendo imagens de lembranças e sonhos, certos cegos afirmam que a experiência é próxima daquilo que eles imaginam ser a visão. "Era como se eu estivesse vendo. Eu sei que não é, porque a gente que é cega não vê, mas era como se eu estivesse vendo". Pelo fato de serem cegos precoces, a comparação com a visão é aproximativa e fortemente baseada na descrição e no discurso dos videntes. Vale notar o uso de um vocabulário que remete a uma visão turva, como a sombra, bem como da expressão "ver entre aspas".

Por certo, elementos da cognição do vidente entram na composição das imagens mentais de pessoas cegas precoces. Os elementos verbais visuais tendem a compor-se com elementos táteis e com outros sentidos. A afirmação de que a experiência é próxima da visão é normalmente acompanhada de muito cuidado com as palavras, e às vezes deixa transparecer o receio de parecer pretensioso, ingênuo ou mesmo mentiroso. "Era como se eu estivesse vendo entre aspas, né, porque eu não sei usar a palavra" (P4). Uma das participantes insistiu em dizer que a afirmação de que vê no sonho é controvertida entre os próprios cegos. Referindo-se ao amigo que contesta a ideia, ela pondera: "ele tem razão em dizer que não vê com o olho"; mas reafirma: "Eu sei... Mas é como se eu visse"; e conclui: "Eu acho que eu cometo esse erro. Porque eu digo pras pessoas que eu vejo no sonho. E talvez não seja ver; talvez seja construir uma imagem mental". Por outro lado, é compreensível que o tom de incerteza esteja presente na fala de quem nunca viu. Como comentou uma das pessoas entrevistadas, "essa história da visão é sempre um mistério".

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Recebido em 08/04/2012

Aceito em 08/08/2013

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2015
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Abr 2012
    • Aceito
      08 Ago 2013
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