RESUMO.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, des critiva e exploratória, realizada no Tratamento Fora de Domicílio, na cidade de Cuiabá-MT, Brasil, que objetivou levantar reflexões sobre os itinerários terapêuticos de pessoas trans, na busca pelo Processo Transexualizador. Participaram três homens trans, duas mulheres trans e uma mulher travesti, com faixa etária de 21 a 32 anos. Os da dos foram coletados por entrevistas semiestruturadas e analisados mediante análise de conteúdo. Os resultados mostram que essas pessoas trans seguem trajetórias diver sas, procurando serviços institucionalizados ou informais (redes de socialidade trans), para a afirmação de suas identidades de gênero. Destacam-se entraves atinentes à patologização, ao acolhimento, à continuidade do cuidado, à resolutividade e à referência na rede de atenção do processo transexualizador. Observaram-se importantes pontos críticos na assistência social, endocrinológica e para a psicologia, sendo a peregrinação pelos serviços de saúde demarcada por constantes discriminações institucionais, permitindo a compreensão de como o sistema de saúde se organiza em relação ao atendimento dessas pessoas, elencando questões para o trabalho da psicologia, nesse campo, a partir de uma perspectiva da experiência e materialidade do gênero.
Palavras-chave: Processo transexualizador; itinerários terapêuticos; pessoas trans
RESUMEN.
Esta es una investigación cualitativa, descriptiva y exploratoria realizada en el tratamiento fuera del domicilio en la ciudad de Cuiabá, Brasil, que tuvo como objetivo plantear reflexiones sobre los itinerarios terapéuticos de las personas trans en la búsqueda del proceso transexual. Participaron tres hombres trans, 2 mujeres trans y 1 mujer travesti de 21 a 32 años. Los datos fueron recogidos a través de entrevistas semiestructuradas y fueron analizados mediante el Análisis de Contenido. Los resultados muestran que estas personas trans siguen caminos divergentes en busca de servicios institucionalizados o informales (redes sociales trans) para afirmar sus identidades de género. Se destacan los obstáculos relacionados con la patologización, acogida, la continuidad de la atención, la resolución y la referencia en la red de atención del Proceso Transexualizador. Se observaron puntos críticos importantes en la asistencia social, la endocrinología y la psicología, em que la peregrinación por los servicios de salud es delimitada por la constante discriminación institucional que permite comprender cómo se organiza el sistema de salud en relación con la atención de estas personas que señalan los problemas para el trabajo de la Psicología en este campo desde una perspectiva de experiencia y materialidad de género
Palabras clave: Proceso transexualizador; itinerarios terapéuticos; personas trans
ABSTRACT.
This qualitative, descriptive and exploratory research conducted in the Away from Home Treatment (Tratamento Fora de Domicílio [TFD]), in Cuiabá, Brazil, aimed to raise reflections on the therapeutic process itineraries of trans people in the search for the Transsexualizer Process (Processo Transexual [PT]). Three transgender men, two transgender women and one transvestite woman participated. They were aged between 21 and 32 years. Data were collected through semi-structured interviews and analyzed using Content Analysis. The results show that trans people follow different itineraries, looking for institutionalized or informal services (trans sociality networks) to affirm their gender identities. Obstacles related to pathologization, reception, continuity of care, resolution and reference in the care network of the Transsexualizer Process stand out. Important critical points were observed in social, endocrinological and psychological care. The pilgrimage by health services was marked by constant institutional discrimination, allowing for the understanding of how the health system is organized concerning the care of these people, listing issues for the work of Psychology, in this field, from a perspective of the experience and materiality of gender.
Keywords: Transsexualizer process; therapeutic itineraries; trans people
Introdução
O presente artigo objetiva levantar reflexões sobre os itinerários terapêuticos de pessoas trans residentes na cidade de Cuiabá-MT, tendo como centralidade a produção de cuidado em saúde, a partir do Processo Transexualizador (PT), no Sistema Único de Saúde (SUS), e as questões que os itinerários percorridos colocam à psicologia. A fim de atingir esse objetivo, foi necessário compreender como as pessoas trans operam nas malhas do processo e suas manobras para garantia de demandas específicas, visto que o modo de viver, delineado pelo contexto onde cada pessoa está inserida, produz itinerários de cuidados diferenciados e que são relevantes para uma compreensão mais integral em saúde. Ao longo do artigo, empregamos a expressão ‘pessoas trans’, como estratégia linguística mais inclusiva, por referenciar as identidades em suas variadas relações com as identidades de gênero, evitando assim a essencialização da experiência, em função de um substantivo genérico que corriqueiramente é alocado num viés patologizante, seja pelas narrativas da sociedade e do estado, seja pelos discursos médico-jurídicos (Teixeira, 2012).
Nesse sentido, os saberes médico, jurídico, psiquiátrico e psicológico, ao não despatologizarem as identidades trans efetivamente, contribuem para a manutenção da patologia mental, sob a rubrica de transexualismo (1980) inscrita no Manual de diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, transformando-se posteriormente em um Transtorno de Identidade de Gênero (1994) ou Disforia de Gênero, mais recentemente (2013) (Favero & Machado, 2019). Tenório e Prado (2016) assinalam que a patologização das identidades trans tem sido referendada, historicamente, num viés de hierarquização de saberes-poderes, orientando-se por normatividades hegemônicas de gênero e negando-se a conhecer as experiências, subjetividades, trajetórias e demandas das pessoas trans. Verifica-se um hiato das ciências, como a medicina e a psicologia hegemônicas, do mundo vivenciado pelas pessoas trans, reduzindo-as a estereótipos, com a pretensa intenção de classificá-las, diagnosticá-las e patologizá-las.
Em junho de 2018 (World Health Organization [WHO], 2018), a Organização Mundial de Saúde movimentou a categoria diagnóstica da transexualidade como um transtorno mental, definindo-a como ‘condição relativa à saúde sexual’, o que ainda revela a manutenção da psicopatologização das experiências trans, mesmo que tenha sido uma grande conquista em termos de movimento. No Brasil, a Resolução nº 01 (2018) do Conselho Federal de Psicologia, surge como um marco pioneiro para a luta e defesa da despatologização dos gêneros e sexualidades, pois convoca a categoria no âmbito de seu campo de atuação e demais assistências, orientando profissionais da área para uma atuação ética, despatologizada e voltada à eliminação da transfobia e do preconceito direcionado às pessoas trans. Apesar disso, a resolução ainda enfrenta resistências à implementação, em constante negociação e embate social com uma cisgeneridade compulsória, a qual atua como estratégia de normalização dos corpos e modos de viver. Assim, faz-se importante (re)conhecer os movimentos estratégicos utilizados nas trajetórias e itinerários de pessoas trans, que, em sua maioria, atuam numa perspectiva de re(ex)sistência da vida e em face das soluções de fugas encontradas para evitar espaços onde sabidamente sofrerão violências. O intuito aqui é inverter a “[...] lógica da hierarquia do saber e suas formas de poder sobre o controle da vida” (Tenório & Prado, 2016, p. 44), de sorte a considerar os saberes trans sobre a própria saúde e corpo, a partir de dois aspectos: processo transexualizador e (des)patologização das identidades trans.
O conceito de itinerário terapêutico é adotado, aqui, para descrever e analisar as práticas individuais e socioculturais de saúde, em termos dos caminhos percorridos por pessoas trans, que se localizam fora da cis-heteronormatividade, na tentativa de atender a necessidades de saúde que se expressam singularmente. Conforme Alves (2015), ao longo da história das ciências sociais, o conceito tem recebido distintas acepções e nomeações: illness behavior, illness career e therapeutic itineraries. De fato, cada um desses termos denota ênfase em determinados aspectos dos processos pelos quais os atores sociais buscam respostas e soluções para as necessidades de saúde.
Desde a década de 1950, os trabalhos denominados illness behavior (comportamento na doença) tinham o foco voltado para a identificação de condutas das pessoas ou grupos sociais nos serviços de saúde. Denominava-se ‘carreira da enfermidade’ (career of illness), quando o foco era o processo sequencial de práticas que uma pessoa considerada ‘doente’ desenvolvia, a fim de buscar uma solução terapêutica. A partir dos anos 1980, as pesquisas sobre therapeutic itineraries (itinerários terapêuticos) ampliam o escopo analítico e dão mais atenção à existência de diferentes concepções médicas sobre tratamento e doença. As pesquisas sobre itinerários terapêuticos passam a se debruçar em temáticas que estão majoritariamente localizadas em três campos disciplinares (antropologia, sociologia e psicologia social) e balizadas, predominantemente, por metodologias qualitativas (Alves, 2015).
Aproximando-se desses trabalhos mais recentes, Cabral, Hemáez, Andrade e Cherchiglia (2014) apontam os itinerários terapêuticos como um valioso recurso para a apreensão das singularidades nos processos de atenção e cuidado em saúde, o que nos parece mais interessante para o objetivo proposto, pois “[...] referem-se a uma sucessão de acontecimentos e tomada de decisões que, tendo como objeto o tratamento da enfermidade, constrói uma determinada trajetória” (Cabral et al., 2014, p. 4434). No uso cotidiano, o termo ‘terapêutico’ pode estar ligado a enfermidades e doenças, de modo que merece ser explicitado que o emprego que se faz, ao longo do texto, é o da produção de saúde. Essa cautela é importante, uma vez que as experiências trans são apenas algumas das diversas formas de identidades de gênero e não uma patologia-doença alocada em uma saúde persecutória, fundamentada em escolhas individualizantes (Castiel & Dardet, 2007). A pesquisa sobre itinerários terapêuticos possibilita caminhar entre as singularidades e a representação homogeneizante dos corpos trans, para iniciar rupturas na predominância automática linguística que aprisiona corpos e subjetividades.
Notas sobre o processo transexualizador
Em 2008, por força dos movimentos sociais, o Processo transexualizador no SUS foi conquistado e instituído pela portaria nº 1.707 e nº 457, de agosto de 2008, sendo ampliado pela portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, garantindo-se o atendimento integral de saúde às pessoas trans. Atualmente, a rede de serviços no SUS para o Processo Transexualizador conta com dez serviços habilitados e em funcionamento, por iniciativas locais (Brasil, 2017), além de alguns ambulatórios instituídos e em processo de aparelhamento em determinados estados: Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro, Centro de Referência e Treinamento IST/AIDS de São Paulo, Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina (USP), Hospital Universitário Pedro Ernesto (UFRJ), CRE Metropolitana de Curitiba (PR), Hospital de Clínicas de Porto Alegre (UFRGS), Hospital das Clínicas de Goiânia (UFG), Hospital das Clínicas de Recife (UFPE) e Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes (UFES).
Por não haver habilitações de serviços em todos os estados brasileiros, ausentes os serviços de referência na região de residência da pessoa, este é feito através do Tratamento Fora de Domicílio - TFD - que fica responsável por encaminhar a pessoa para o acesso em alguma instituição de referência. De modo geral, o caminho do Processo Transexualizador do SUS pelas regiões de referência pressupõe o acesso pela atenção básica (porta prioritária de entrada) para diagnóstico que patologiza a identidade trans, interdependente do acompanhamento multidisciplinar por, no mínimo, dois anos. Após esse percurso, a pessoa pode iniciar seu processo nos ambulatórios e hospitais de referência, seguindo os critérios geracionais - idade mínima de 18 anos para terapia hormonal e 21 anos para procedimentos cirúrgicos, caso deseje (Brasil, 2013, 2015, 2017).
A resolução nº 2.265 (2019), em vigor, reduziu de 21 anos para 18 anos a idade mínima para procedimentos cirúrgicos. Uma diferença importante entre o novo texto e o anterior é que o atualizado passa a contemplar certas questões, como a interrupção da produção de hormônios sexuais na puberdade, a qual é considerada ainda experimental, e de hormonioterapia cruzada (forma de reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outras medicações hormonais são administradas às pessoas trans, para feminização ou masculinização), que antes não eram previstas (Resolução nº 2.265, 2019).
Quando a busca ocorre fora da região dos serviços de referência, o itinerário a ser percorrido implica abrir processo de solicitação via TFD, de sorte a seguir as etapas do itinerário previsto nas referidas portarias, porém, a pessoa pode adiantar a etapa do diagnóstico via laudo e acompanhamento multidisciplinar por dois anos, dando entrada pela atenção básica, ou fazer pelas vias particulares, caso esteja em condições socioeconomicamente favoráveis, esperando apenas a aprovação do processo por meio de TFD, para encaminhamento aos procedimentos ambulatoriais e hospitalares nos serviços de referência.
Assim, o laudo conjuga uma relação de poder restritivo para alguns acessos em saúde e avanço no Processo Transexualizador no SUS. Além disso, a portaria preconiza que a porta de entrada seja pela atenção básica, todavia, na prática, isso se apresenta de maneira distanciada, visto que muitos profissionais não possuem conhecimento dessas portarias e diretrizes, negando o atendimento já de antemão, a partir das suas crenças, ou seja, o usuário precisa se utilizar de outros itinerários para encontrar os caminhos capazes de auxiliar na garantia de seus direitos, conforme poderá ser percebido nas entrevistas.
De acordo com Rocon, Sodré e Rodrigues (2016), a história dos procedimentos transexualizadores, no Brasil, é amplamente marcada pela judicialização e medicalização da demanda. Desse modo, é importante questionar o que tem subsidiado a (in)compreensão sobre a experiência trans pelos saberes médico-jurídicos expressos nas normativas, resoluções e portarias, bem como as consequências produzidas na assistência em saúde. O viés normalizador e regulador tem sido eficiente, na garantia do acesso à saúde a todas as pessoas trans? Ademais, por que a psicopatologização é requisito crucial para o acesso ao Processo Transexualizador? Não podemos esquecer que o Conselho Federal de Medicina (CFM) reforça a tipificação de um paciente transexual, concebido como doente mental e potencial suicida, estabelecendo categorias diagnósticas para a aferição do ‘transexual verdadeiro’ (Rocon et al., 2016; Favero & Machado, 2019). Embora as regulamentações autorizem o processo transexualizador e o instituam, na assistência em saúde, a incoerência de uma vida no gênero fora das raias do binarismo, em que os corpos se tornam inteligíveis pelas suas genitálias, permanece inaceitável e sobrecodificada por categorias nosográficas (Bento & Pelúcio, 2012).
Vale ressaltar que, por mais que a diretriz estabeleça a idade de 18 anos para os serviços ambulatoriais, como a hormonioterapia, muitas pessoas trans já condicionaram sua transição e uso de hormônios por meios informais (redes de socialidade trans) muito antes dessa idade, sob o risco de adoecimento ou morte, por conta da dificuldade de acessar os serviços de saúde necessários para fazer as modificações, segundo já apontado em outros estudos, como os de Rocon et al. (2016) e Favero e Machado (2019), os quais aparecem nesta pesquisa. Ora, isso tem solicitado revisões nesse protocolo, que está sendo implantado timidamente, desde a resolução CFM nº 2.265/2019.
Em Mato Grosso, a atenção à saúde da população trans, especificamente no que tange ao processo transexualizador, se situa na competência do TFD, via Central de Regulação de Cuiabá (complexo regulador), vinculada à Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SES-MT). O processo de autorização de procedimentos, realizado por meio da ação regulatória, é baseado nos protocolos preestabelecidos. A central de regulação autoriza, previamente, os procedimentos. Essa autorização é concedida por equipe de médicos autorizadores, orientados pelos protocolos, e visa a garantir o acesso ordenado, respeitando critérios clínicos de necessidade dos usuários e de disponibilidade da oferta. A autorização de procedimentos para o processo transexualizador é morosa, com grande fila de espera, resultando em desistências ou não encaminhamento a unidades competentes, para prosseguimento. Nesse sentido, conforme enfatizam Rocon, Sodré, Zamboni, Rodrigues e Roseiro (2018), a luta pela universalização do processo transexualizador, desde um olhar despatologizante, está intimamente relacionada com a concretização do SUS e dos valores éticos e políticos da reforma sanitária, a qual é contra-hegemônica, de modo que se possa reforçar a integralidade da atenção, a equidade, a participação social e a autonomia das pessoas trans sobre seus corpos e vidas, perfazendo, assim, os caminhos para uma psicologia que cuida sem patologizar (Prado, 2018).
Psicologia e o processo transexualizador
Desde 1997, quando se inicia a regulamentação dos processos cirúrgicos de transgenitalização, a psicologia compõe a equipe multiprofissional do processo transexualizador (Resolução nº 1.482, 1997). Entretanto, esse processo é governado por uma racionalidade biomédica, com a equipe multiprofissional submetida e submetendo-se à ordenação de práticas enquadradas pelo diagnóstico e pelos procedimentos médicos. Note-se que as vinculações da psicologia com as sexualidades e gêneros dissidentes da cis-heteronormatividade, historicamente, vêm sendo caracterizadas por processos de normalização e controle, a partir de uma busca pelo ‘transexual verdadeiro’ (Borba, 2016; Bagagli, 2016), os quais perpetuam uma relação de profunda necessidade de intervenções hormonais e cirúrgicas, baseadas em binarismos de gênero (Mattos & Cidade, 2016).
É num campo de poder e disputa que a psicologia se encontra, ao problematizar e se opor à patologização das identidades de gênero, pois a ela são dirigidos endereçamentos diagnósticos, no contexto da assistência à saúde das pessoas trans, vendo-se majoritariamente subordinada às normativas patologizadoras, tecnicistas e objetiváveis para demandas subjetivas (Mattos & Cidade, 2016). Um exemplo do lugar reservado à psicologia, nesse processo, é a prescrição compulsória de psicoterapia por dois anos, como parte do processo transexualizador, compulsoriedade que a psicologia cumpre de modo normativo, na maioria da vezes, ao invés de utilizar o espaço dos dois anos para a subversão transfeminista. O transfeminismo, como horizonte ético-político, para a psicologia, implica questionar, inclusive, a normatização que exige dois anos de processo psicoterápico. Um olhar transfeminista pressupõe pensar o cuidado não somente focado na saúde, mas também em outros domínios, tais como os direitos humanos e as políticas públicas (Mattos & Cidade, 2016; Favero & Machado, 2019). Nas disputas e embates, profissionais de psicologia participam de processos de mortificação social de pessoas trans, quando concebem a diferença como demanda clínica e relegam à margem pessoas que não se enquadram num perfil psicopatológico clássico do gênero. Dos laudos e relatórios elaborados por psicólogos/as, espera-se que atestem o fato de que a pessoa vivencia ‘sintomas’ pelo período mínimo de dois anos (Favero & Machado, 2019). Assim, percebe-se que a atuação em psicologia segue orientada a um aprendizado sobre como atuar com um ‘transexual verdadeiro’, segundo aponta Borba (2016).
Através de uma revisão sistemática descritiva de literatura, objetivando identificar os discursos sobre as transexualidades que circularam e impactaram a produção científica da psicologia brasileira, no período de 1997 a 2015, Pacheco (2017) encontrou diversos trabalhos voltados para uma prática em psicologia centrada na investigação diagnóstica psicopatológica e autorizadora para intervenções no corpo. Além disso, a autora observou que a compulsoriedade da psicoterapia não parecia ser uma questão problematizada por alguns trabalhos, da mesma maneira que percebeu não sê-lo, também, para o CFP, a partir da análise da Nota técnica sobre o processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2013) e da ausência de posicionamento público contrário a essa clínica compulsória definida pelo CFM, sugerindo uma tentativa de conciliação (Pacheco, 2017).
Nesse sentido, levanta-se um paradoxo a ser superado. Conforme referenciado na Nota técnica do CFP (2013), é objetivo da assistência psicológica a promoção da autonomia dos(as) usuários(as), contudo, o CFP não se opõe à compulsoriedade da psicoterapia por dois anos e que esta seja um pré-requisito para a realização da transgenitalização. Como a psicologia pode contribuir para a autonomia das pessoas trans, se captura para si o poder de legitimar ou negar identidades de gênero, por meio de laudos e relatórios? Cabe, então, advogar por uma transautonomia expressa em mudanças efetivas nas exigências institucionais de confirmação diagnóstica, como pontuam Favero e Machado (2019). Poucas iniciativas despatologizantes de assistência psicológica, mesmo resguardados os critérios estabelecidos nas regulamentações, logram se efetivar e, quando o fazem, enfrentam resistências internas e externas aos serviços (Murta, 2011).
Método
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três mulheres trans e três homens trans, em torno da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e na Coordenadoria de Regulação de Cuiabá-MT, no período de maio a agosto de 2016, seguindo os parâmetros do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Área de Humanidades da UFMT. A pesquisa foi aprovada pelo parecer 1.487.878 e CAAE 53595615.7.0000.5690. As interlocutoras e interlocutores assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo respeitada a decisão voluntária de participar ou não da pesquisa e feita a garantia do anonimato, trocando-se os nomes sociais para nomes de deuses e deusas do panteão grego. O acesso às/aos participantes da investigação se deu através de um mapeamento inicial na Central de Regulação de Cuiabá e em coletivos organizados - LGBT - da UFMT da cidade de Cuiabá - estabelecendo uma pesquisa em rede.
Para a leitura dos dados, utilizou-se a análise temática de conteúdo (Bardin, 2011). Esse tipo de método prevê três fases basilares: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material e 3) o tratamento dos resultados, inferência e interpretação (Bardin, 2011). Na pré-análise, o material passou por uma leitura flutuante, com o objetivo de torná-lo operacional, sistematizando-se as ideias iniciais, para permitir sua categorização na fase de exploração. Posteriormente, a partir dos dados empíricos, foi possível constituir as categorias e unidades temáticas, na fase de exploração do material, a fim de realizar as interpretações e as inferências.
Na análise, foram construídas três categorias fundamentadas no roteiro da entrevista e nas análises das narrativas: a) decisão e busca pelo processo transexualizador (processos identitários, rede trans, imaginário social, primeiro local procurado, auto-hormonização); b) dificuldades e acesso ao processo transexualizador (local de acesso, recebimento de tratamento, discriminações institucionais, apoio social, qualidade e tipos de serviços procurados até a efetivação do cuidado, encaminhamentos realizados) e c) atuação das/os profissionais de psicologia (práticas na equipe de cuidado e políticas de assistência previstas pelo processo transexualizador).
O perfil das/dos participantes trans da pesquisa tem a seguinte caracterização: três homens trans, duas mulheres trans e uma travesti; dessas pessoas, quatro têm ensino superior incompleto e duas, ensino superior completo. Situam-se na faixa etária dos 21 aos 32 anos, definindo-se duas delas como heterossexuais, duas como bissexuais e duas como pansexuais. Quanto à cor, três se autoclassificam negras/negros e três, brancas/brancos. Em relação à ocupação, dois estão desempregado/as, dois estão empregados/as - enfermeira/servidora pública - e dois estão estudando: estudante de graduação/estudante de pós-graduação.
Resultados e discussão
Analisamos descritivamente os percursos de pessoas trans, na busca por cuidados em saúde. Ampla gama de atravessamentos e agenciamentos acarreta movimentos diversificados, na rede de atenção, visibilizando as trajetórias diante dos parcos recursos disponíveis, uma vez que, em Cuiabá, o processo transexualizador é realizado via TFD, ou seja, os usuários e usuárias são referenciados para cirurgias em outros estados. Os itinerários estão mais bem representados no Quadro 1.
Nos subtópicos seguintes, destacamos alguns aspectos dos itinerários seguidos pelos/as interlocutores/as, no processo transexualizador.
Decisão e busca pelo processo transexualizador
Todas/os as/os participantes da pesquisa relataram que, desde a infância, tiveram dificuldades no processo de transição do gênero, por conta da falta de apoio e reconhecimento da sociedade, representada pela carência dos núcleos familiares, interpessoais, políticos, instituições formais e informais, acrescidos das violências transfóbicas e de gênero que se fazem presentes, como desabafa Apolo: “A sociedade não é humanizada, esquecem que pessoas trans, acima de tudo, são pessoas” (Apolo, 25 anos).
As narrativas dos homens trans entrevistados sustentam uma busca por redirecionar as trajetórias, sempre que possível, procurando a resposta para o cuidado com sua saúde, muitas vezes, nos serviços particulares. Eles percebem, desde a primeira tentativa, uma barreira no atendimento, que já começa pela sua identificação, a qual desconsidera o nome social e o gênero identificado, além de se acentuarem olhares de desaprovação. Tais resultados já foram encontrados em outros trabalhos como o de Cerqueira-Santos, Calvetti, Rocha, Moura, Barbosa e Hermel (2010). Porém, adotam de táticas de cuidado, como, por exemplo, simular um casal heterossexual em consulta ginecológica: “Aí, que que eu faço, quando eu preciso ir, chamo minha melhor amiga, peço para me chamar pelo nome de registro, aí ela levanta e eu vou atrás, como se fosse tipo um casal, sabe? Aí é aceitável, né?” (Apolo, 25 anos).
Dionísio, quando aponta algumas das dificuldades de respeito ao nome social, chama atenção para o processo de afirmação das identidades trans, o qual, frequentemente, é sentido como “[...] uma bagunça que pode ser prazerosa, se não houver tentativas de controle de padronização” (Dionísio, 28 anos). Tal relato vai ao encontro do que narram Apolo e Zeus sobre o processo transexualizador, em Cuiabá: “Cuiabá, apesar de ser uma capital, não está preparada para atender pessoas trans em nenhuma área da saúde. Encontrei muita dificuldade para encontrar tratamento aqui” (Apolo, 25 anos). Sobre a atenção à saúde à pessoa trans: “Não tem. É inexistente” (Zeus, 21 anos).
Apolo tentou buscar o processo transexualizador, após dificuldades de protocolos seguros de hormonioterapia iniciada por meios informais (redes de socialidade trans).
Você não sabe o que que é que você tá aplicando, é made in Paraguay. Às vezes, é óleo mineral que você tá aplicando e você não sabe. Porque ela é oleosa, então, eles podem colocar qualquer tipo de óleo. [...]. Eu sei que eu não posso fazer isso, porém, eu vou fazer o quê? Vou ficar sem hormônio? Da mesma forma que agride eu tomar, da mesma forma agride se eu parar do nada, entendeu? (Apolo, 25 anos).
Já Zeus, por estar em constante contato com Apolo, optou por não procurar o processo transexualizador, ao saber das dificuldades vivenciadas por Apolo.
Diferentemente dos homens trans, as mulheres trans procuraram o processo transexualizador, apesar dos obstáculos. Relataram que, desde a infância, confrontavam uma concepção de gênero designado pela matriz cis-heteronormativa, conforme enuncia Atena: “De início, é confuso, pois você não se aceita e, depois, sua alma vai se encaixando no corpo. Depois disto é beijo de luz [...]” (Atena, 31 anos). Sobre esse processo de transição, Ártemis narra sua experiência:
O período de transição é o período mais difícil [...] As pessoas te olham, que que é isso? Que merda é essa? Você é isso ou aquilo, né? E você tem que mudar muita coisa, sua roupa, você tem que trocar todo o seu guarda-roupa. [...] E aí eu encontrei a Atena de novo e aí ela falou assim: Ártemis, você quer saber do remédio? Falei: É, quero saber do remédio. [...] Daí ela falou assim: Olha, o que os médicos me indicam é esse aqui. [...] Estrogênio? É estrogênio. [...] Aí eu comecei a comprar (Ártemis, 24 anos).
Dessa maneira, notamos que, antes da transição propriamente dita, os processos de buscas e itinerários já estavam em andamento. Alguns(as) participantes já estavam fazendo hormonioterapia por meios informais (redes de socialidade trans) e frequentavam terapia psicológica, seja pelo serviço particular, seja pelo serviço público, para cumprir as exigências do protocolo transexualizador e adiantar alguns percursos.
Vergueiro (2015) indica a importância da rede de socialidade, pois é através dela que se inscrevem (re)existências a um sistema o qual parte da perspectiva cisgênera binarista para decidir, desde saberes médicos, sobre os processos de vida das pessoas trans. As interlocutoras e os interlocutores trans desta pesquisa compreendem que saúde é algo que se constrói em diversos espaços, sobretudo na rede trans. Essa definição supera a visão estritamente vinculada aos processos de adoecimento, restrita às instituições de saúde, sem negá-los. Em realidade, as raras situações nas quais os serviços de saúde institucionalizados apareceram, nos itinerários dessas pessoas, não atingiram as suas expectativas e demandas e foram por elas considerados inadequados. Assim, observamos uma lacuna entre o que consta no texto das políticas de saúde e a prática nos serviços.
Faz-se importante notar, também, que a construção dos corpos das pessoas trans tem atravessamentos da produção de subjetividades que recorrem aos saberes já construídos nas experiências de outras pessoas trans, como, por exemplo, em relação à tomada de hormônios, modificação corporal e, por conseguinte, a afirmação de sua identidade de gênero. Trata-se de processos que, em geral, são realizados sem os acompanhamentos exigidos por esse tipo de intervenção, para a diminuição dos riscos e agravos para a saúde dessa população (Bento & Pelúcio, 2012; Brasil, 2015). É oportuno registrar ainda que os procedimentos médicos de hormonização e modificação corporal nem sempre são as estratégias escolhidas no processo de afirmação, pois, segundo assinala Bagagli (2016), não é a biologia que fala sobre a identidade de gênero, mas o sujeito.
Assim, a construção dos corpos se conecta à produção de uma subjetividade que funciona em trânsito, na produção dos gêneros, com certa subversão, embora, em alguns momentos, em função das pressões por normalização, venham carregadas de sofrimento. É relevante a consolidação de uma prática de atendimento em saúde extremamente focada na produção de cuidado, porque as experiências trans requerem pensar uma política da experiência, já que são experiências múltiplas, sendo urgente implementar estratégias que possibilitem a essas pessoas continuarem produzindo seus próprios saberes, criarem espaços outros de cuidado.
Dificuldades de acesso e seguimento do processo transexualizador
Todas(os) as(os) participantes relataram dificuldades de acesso ao processo transexualizador, as quais envolviam as complexidades e burocratizações do processo, local, recursos disponíveis, discriminações institucionais e falta de encaminhamento. Atena, única participante que efetuou todo o processo transexualizador através do TFD, destacou que buscou o processo para não morrer infeliz.
Eu via que era diferente, eu sentia necessidade de querer ser mulher, mas aflorou mesmo, que eu vi que não tinha como, foi na adolescência. [...] Aí onde fui que eu procurei pra fazer a cirurgia, porque eu não conseguia me relacionar com os homens. Eu não conseguia, do tipo, tirar a roupa essas coisas, então, foi super importante (Atena, 31 anos).
A despeito de toda a luta empreendida por Atena, a fim de efetivar o processo, e da consciência sobre o papel do estado em relação à saúde integral das pessoas trans, seu lugar social ocupado demonstra a dimensão da realização e concretização dessa conquista e direito: “Tipo, parecia que você ganhou na Mega Sena [...] Ah, não acredito [...] Foi uma notícia maior do mundo. Além de passar na faculdade, foi fazer a cirurgia” (Atena, 31 anos).
A ‘grande loteria’, entretanto, mostrou-se uma peregrinação e submissão a condições de hospedagem insatisfatórias, para realização do procedimento em outro estado. Depois de aprovado o recurso financeiro, ela foi encaminhada ao hospital de referência em Goiânia, com auxílio financeiro insuficiente para uma hospedagem de qualidade. Com qual rede de suporte contava Atena, hospedada num albergue, em processo pós-cirúrgico?
A hospedagem é em albergue, eles dão um valor bem simbólico pra você, um valor bem pouco. Não dá pra você sobreviver lá muito bem, não, aí você fica em albergue, não come muito bem não e a passagem, a única coisa boa, assim, que eu agradeço bastante, assim, foi a questão da passagem (Atena, 31 anos).
Já Afrodite, participante que deu início ao processo em Brasília, cidade onde residia antes de mudar para Cuiabá-MT, ainda aguarda os procedimentos cirúrgicos na fila de espera. A participante contou que procurou o serviço de referência do processo transexualizador, para iniciar a terapia psicológica e a hormonioterapia.
Nunca tive um acompanhamento endocrinológico, até porque as duas vezes que eu procurei endocrinologista pra ver, eles falaram que não queria me receitar isso, porque poderia dar muitos problemas pra mim no futuro e seria ele que teria me receitado, então, assim. Eu tinha muita dificuldade (Afrodite, 32 anos).
Apolo, ao retratar dificuldades semelhantes a Afrodite, no processo de hormonização, apontou que, para ter acesso à hormonioterapia com acompanhamento médico (a hormonização segura requer mensurações, por meio de exames de sangue periódicos), necessitou recorrer ao seu convênio particular, depois de enveredar pelas redes informais. Contudo, o participante salientou que, de início, fazia a terapia hormonal por meios informais (redes de socialidade trans), porque também não encontrava endocrinologistas que se dispusessem a atendê-lo. Cinco endocrinologistas, que procurou, recusaram atendimento, alegando que não entendiam desse procedimento e não queriam se envolver. O protocolo do processo transexualizador, em vigor, contempla homens transexuais e as demandas por cirurgias de histerectomia, mastectomia, neofaloplastia, além da hormonioterapia, entre outras.
Atena vê, no processo transexualizador, um percurso longo e moroso, burocrático e desprazeroso, que tem como efeitos as normalizações e as prescrições de práticas sexuais.
Uns cinco anos, o processo. E meu professor da faculdade, ele falou pra mim, ele falou assim: Pra você fazer a cirurgia de readequação sexual, é a partir dos 25 anos. Eu, gente, que palhaçada. Vou começar a transar depois dos 25 anos, porque as transexuais mesmo, as zero que eles falam, transexuais mesmo, que são transexuais que têm dificuldade, por isso que fazem a cirurgia, elas não conseguem se relacionar com os homens, devido a seu órgão. [...]. Imagine o baque que não vai ser para essa mulher deitar com o homem, transar com ele, ter confiança e ficar com ele e não se sentir mal, por estar usando, por estar mostrando seu órgão. (Atena, 31 anos).
A participante aborda dificuldades no pós-operatório e como essa experiência foi dolorosa, em função dos procedimentos e técnicas adotadas. De acordo com a entrevistada, apenas nos primeiros meses utilizou o molde acrílico para dilatação vaginal, passando a outro de qualidade inferior.
Quando eu mudei o molde, tava com outro molde, não entrava tão profundo, não fazia certinha, devido ao material ser ruim, diminui pra 15 cm de profundidade. Então, foi horrível, eu lembro de uma vez que eu fui enfiar o molde dentro dela [...], fez puf, não tem assim quando você rompe o hímen? [...] Pronto, rompeu alguma coisa, começou a sair sangue, sair sangue. Então, tipo assim, é superimportante você estar movimentando aquele orifício pra manter a profundidade (Atena, 31 anos).
Como asseveram Vergueiro (2015) e Bagagli (2016), para o sistema médico, do ponto de vista da garantia de direitos das pessoas trans em acessar os serviços, estas são colocadas, ora como invisíveis, ora como usurpadoras, pois a patologização de sua ‘condição médica’ passa necessariamente pelo aval de laudos psiquiátricos e psicológicos, a fim de determinar se se trata de uma transexualidade verdadeira. Dessa forma, podemos afirmar que o TFD, o qual é procedimento garantido pelo SUS a seus usuários, passa necessariamente por esse crivo, sendo este o caminho em que a transfobia opera, porque os contextos médico-jurídicos impõem às pessoas trans a categoria de subusuárias do SUS.
A psicologia no processo transexualizador
A partir das narrativas e itinerários terapêuticos das/dos participantes, a respeito do processo transexualizador, foi possível visualizar como essas pessoas percebiam a psicologia, nessa área, de modo a convocar tal disciplina para uma autocrítica em relação ao cuidado e à assistência dispensada a essa população, que predominantemente trabalha com base em categorias diagnósticas, conforme argumenta Afrodite.
Eu me questionava, já nessa época, sobre a minha sexualidade, se era bi, hétero, homo ou não. O que que eu era? Então, assim, eu já tinha visto já que eu também não era uma transexual normal. Sacou? Então, assim, no dia da minha entrevista final com a psicóloga, que ela é a detentora do poder, né, que vai dar o visto na sua cirurgia, e foi quando eu não fui aprovada, pela primeira vez que eu passei por esse teste, né, passei um ano fazendo a terapia, ela disse que eu não me enquadrava ao caso trans, porque, se eu tinha tendências bissexuais, isso não era coisa de mulher (Afrodite, 32 anos).
Essa forma de atendimento, subordinada às exigências institucionais de confirmação diagnóstica e patológica de gênero, irá refletir na decisão em percorrer ou não o PT, como pode ser verificado no Quadro 1, além de também influir na continuidade desse acompanhamento, segundo discutido nas outras categorias. Logo, os conceitos de saúde-doença precisam superar a lógica biomédica, para dar lugar a modos específicos e singulares do pensar e agir no mundo. Afinal, diagnósticos não avaliam apenas estruturas anatomo/fisio/psico/patológicas: eles são atravessados pela representação da norma, em contextos sociopolíticos específicos (Bento & Pelúcio, 2012).
O espaço de Tratamento Fora de Domicílio (TFD), onde se dá parte dos Itinerários Terapêuticos narrados pelos interlocutores e interlocutoras da pesquisa, encontra-se voltado, sobretudo, à perícia, de sorte a descobrir/produzir, por meio de práticas, o ‘transexual verdadeiro’ (Borba, 2016; Bagagli, 2016). O poder de julgar a veracidade de uma experiência, a qual se materializa no TFD, atualiza o poder psiquiátrico/psicológico/pericial na forma de uma pretensa intervenção terapêutica, valendo retomar o que comentava Foucault (2006) sobre o poder psiquiátrico:
[...] antes de mais nada certa maneira de gerir, de administrar, antes de ser como uma terapia ou uma intervenção terapêutica: é um regime, ou melhor, é porque é e na medida em que é um regime que se espera dele certo número de efeitos terapêuticos - regime de isolamento, de regularidade, emprego do tempo, sistema de carências medidas, obrigação de trabalho etc (Foucault, 2006, p. 218).
Apolo relata como a psicóloga que o atendia confundia identidade de gênero e orientação sexual, laicidade da profissão e moralização, remetendo-o a uma igreja.
Eu passei quatro meses indo nela [psicóloga] e comecei a reparar que ela tava confundindo identidade de gênero com orientação sexual. Ela chegou a me apresentar a um grupo da igreja católica chamado Ancoragem. Não me lembro como é que escreve. De gays e lésbicas dentro da igreja, e como é que eles se articulam. E eu tentava dizer pra ela. Mas eu não sou lésbica. Na época, eu me identificava enquanto um homem trans hétero. Eu só me relacionava com mulheres e ela falou: Não. Mas isso aqui é pra homossexuais, o sexo (Apolo, 25 anos).
No itinerário terapêutico de Afrodite, a psicologia foi requisitada pela usuária para ‘dar explicações à família’ quanto às razões pelas quais a participante ‘era do jeito que era’: uma pessoa trans. Relatou que, a partir do momento em que foi diagnosticada via laudo patologizante, a sua relação familiar melhorou significativamente, pois, desde aquele momento, era entendida como uma pessoa ‘TRANStornada’, o que a levou a ser a favor da patologização, por um período.
Uma das coisas que eles perguntavam muito para mim era: Mas por quê? Por que que você é assim? Eu falava Vó, porque eu não sei, sacou? Não vou saber o porquê eu nasci assim. Eu me sinto assim desde pequena, então eu não vou saber o porquê, sacou? [...] Quando eu cheguei na minha família com esse laudo médico, tudo mudou. Nossa! Ela é doente. Agora a gente entende. Tá aqui, oh! Transtorno de Gênero! É a doença dela! E aí facilitou toda a aceitação da minha família. É que isso era uma parada, na época, que pesou muito para eu ser a favor da patologização. Porque, cara, um dos maiores sofrimentos de todas nós, trans, é justamente esse. A perda com o contato familiar (Afrodite, 32 anos).
Verifica-se que, para Afrodite, o diagnóstico, mesmo com todo o viés estigmatizante e patológico, foi também uma forma, controversa, de promover o cuidado à saúde no contexto familiar. Ártemis, por sua vez, descreveu o acompanhamento psicológico como um espaço para o questionamento do processo, das cirurgias, da experiência e das normas de gênero que o atravessam.
Eu tava falando isso com a psicóloga e ela falou: Vamos ver com o tempo se você quer mesmo fazer. Eu sempre achei a necessidade de fazer a redesignação, porque é uma forma de você se sentir melhor, mais mulher. Mas eu já escutei tantas transexuais falando que não precisa disso pra se sentir mais mulher, que a gente precisa trabalhar isso consigo mesmo (Ártemis, 24 anos).
Pensar sobre as práticas profissionais da psicologia, no contexto da promoção de saúde das pessoas trans, nos leva à necessidade de considerar os atravessamentos epistemológicos, éticos, estéticos e conceituais, micro e macropolíticos, intersubjetivos e socioculturais que se fazem presentes no processo transexualizador, de modo a convergir para práticas que fortaleçam os direitos e a cidadania dessa parcela da população, a qual corriqueiramente segue enfrentando barreiras, estigmas e invisibilidade na atenção à saúde (Sales, Lopes, & Peres, 2016; Pocahy, 2016). Na verdade, no processo transexualizador, o que se enfatiza, inclusive na nomeação, é a genitália, quando, em contraponto, é preciso justamente compreender que,
[...] uma enorme quantidade de outras tarefas é necessária. Isso inclui levantar fundos; ter apoio pessoal, cuidados pós-operatórios, documentação legal; encontrar moradia; lidar com crises de relacionamentos; lidar com locais de trabalho ou arranjar trabalho; lidar com mudanças corporais; obter reconhecimento social; lidar com a hostilidade. Qualquer um desses fatores pode se tornar central (Connell & Pearse, 2015, p. 217).
Nas palavras de Bento e Pelúcio (2012, p. 576), questionar o protocolo do processo transexualizador, “[...] nos termos em que vem sendo implementado, é encarar a patologização do gênero e colocá-lo na arena de debates, situando-o como categoria científica, e por isso mesmo, histórica, o que significa considerar também seu caráter político”. Nesse sentido, certamente, para algumas pessoas trans, a clínica terapêutica é importante, sobretudo quando há espaço para a transautonomia. Por isso, o tempo da terapia e o direito de não se submeter a um tratamento psicológico como parte do processo transexualizador, igualmente, deveriam ser preservados. Uma prática psicológica pautada pela produção de saúde atenta à singularidade dos itinerários terapêuticos é fundamental, a fim de não incorrer na patologização das expressões e identidades de gênero das pessoas trans.
Indo ao encontro de uma perspectiva de atendimento psicológico traçado em função da experiência das pessoas trans, Prado (2018, p. 49) salienta que é preciso ver a despatologização a partir da noção de materialidades, visto que despatologizar/desdiagnosticar e desassistir/abandonar não são conceitos e palavras sinônimas. “Muito pelo contrário, é colocar o cuidado à saúde no lugar do cuidado co-responsável. [...] Ao revés, despatologizar é perceber que há uma diversidade corporal, de gênero, de sexualidade e essa diversidade legítima tem singularidades históricas e biográficas que precisam ser cuidadas”.
Considerações finais
Os itinerários terapêuticos percorridos pelas pessoas trans, na busca por cuidado em saúde e pelo processo transexualizador, revelaram percursos que vão dos serviços de referência a meios informais (redes de socialidade trans), passando também por serviços privados. Alguns pontos foram relatados como obstáculos nos itinerários de saúde: discriminação institucional, burocratização e complexidades da política do processo transexualizador, peregrinação por diversas instituições de saúde e profissionais, demora do encaminhamento do serviço de atendimento inicial para o serviço de referência, ausência de acolhimento das demandas, resultando na desistência de seguir o protocolo da política, de modo a se recorrer, portanto, aos meios informais (redes de socialidade trans).
É desde uma percepção do processo transexualizador não centrado no procedimento cirúrgico que cabe repensar a prática profissional da psicologia, porque os/as participantes narram uma série de fatores relacionados à sua afirmatividade de gênero, os quais, em sua maioria, se deslocam do campo da intervenção médica e chegam às relações sociais, compreendendo família, relacionamentos interpessoais e amorosos, mercado de trabalho, educação, moradia, discriminação e documentação legal, como determinantes do bem-estar e da autonomia dos itinerários terapêuticos. Nesse campo, a assistência em saúde precisa ser fortalecida, de sorte que o trabalho com o usuário seja guiado por um viés capaz de congregá-lo como protagonista na produção do seu processo de saúde.
Nesse cenário, as/os participantes convocam a psicologia para uma atuação efetivamente despatologizadora e que não seja baseada em normatizações e diagnósticos sociais de gênero, todavia, em uma produção de saúde. Práticas de cuidado não podem ser equiparadas às práticas violentas que incidem sobre corpos e vidas trans, relatadas ao longo da pesquisa. A busca pelo processo transexualizador é parte de um percurso de afirmação de modos de viver as identidades de gênero e as sexualidades. Os itinerários são tortuosos, pelas dificuldades enfrentadas durante esse processo, não havendo relato, entre as pessoas entrevistadas, de que as transfobias institucionalizadas produzem saúde.
A psicologia como uma das profissões envolvidas na emissão de laudos obrigatórios para autorização de procedimentos no processo transexualizador é atravessada por um caráter ambivalente já que esta prática lhe confere poder decisório. Assim, concordamos com as demandas das pessoas entrevistadas no sentido de interpelar a psicologia por práticas de cuidado atentas à diversidade e à diferença nos modos de viver os gêneros e as sexualidades procurando intervenções a partir do âmbito da materialidade e da experiência trans para um cuidado mais integral, além da contínua luta pela despatologização das identidades trans. E, num horizonte futuro próximo, atuar pela emancipação das(os) usuárias(os) trans que vivem suas identidades de gênero, o processo transexualizador, vivem a vida.
Referências
-
Alves, P. C. (2015). Itinerário terapêutico e os nexus de significados da doença. Revista de Ciências Sociais, 42, 29-43. Recuperado de: http://capacitasalud.com/biblioteca/wp-content/uploads/2017/05/ALVES-2015-Itinerarios-Terapeuticos.pdf
» http://capacitasalud.com/biblioteca/wp-content/uploads/2017/05/ALVES-2015-Itinerarios-Terapeuticos.pdf - Bagagli, B. P. (2016). Poder psiquiátrico e transgeneridade: em torno da verdade diagnóstica. In S. Messeder, M. Castro, & L. Moutinho (Orgs.), Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero (p. 235-248). Salvador, BA: EDUFBA.
- Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo São Paulo, SP: Edições 70.
- Bento, B., & Pelúcio, L. (2012). Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, 20(2), 559-568.
-
Borba, R. (2016). Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des)identificação no processo transexualizador. Trabalhos em Linguistica Aplicada, 55(1), 33-75. Recuperado de:http://dx.doi.org/10.1590/01031813502917631
» https://doi.org/10.1590/01031813502917631 - Brasil. (2013). Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais Brasília, DF: Ministério da Saúde.
-
Brasil. (2017). Processo transexualizador no SUS Recuperado de: https://www.saude.gov.br/atencao-especializada-e-hospitalar/especialidades/processo-transexualizador-no-sus
» https://www.saude.gov.br/atencao-especializada-e-hospitalar/especialidades/processo-transexualizador-no-sus - Brasil. (2015). Transexualidade e travestilidade na saúde Brasília, DF: Ministério da Saúde.
-
Cabral, A. L. L. V., Hemáez, A. M., Andrade, E. L. G., & Cherchiglia, M. L. (2014). Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 19(7), 2277-2286. Recuperado de:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232011001200016&script=sci_abstract&tlng=pt
» http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232011001200016&script=sci_abstract&tlng=pt - Castiel, L. D., & Dardet, C. A. A. (2007). Saúde persecutória: os limites da responsabilidade Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.
-
Cerqueira-Santos, E., Calvetti, P. U., Rocha, K. B., Moura, A., Barbosa, L. H., & Hermel, J. (2010). Percepção de usuários gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, transexuais. Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology, 44(2), 235-245. Recuperado de:https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28420641004
» https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28420641004 - Connell, R., & Pearse, R. (2015). Gênero: uma perspectiva global São Paulo, SP: NVersos.
- Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (2013). Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.
-
Favero, S., & Machado, P. S. (2019). Diagnósticos benevolentes na infância: crianças trans e a suposta necessidade de um tratamento precoce. Revista Docência e Cibercultura, 3. Recuperado de: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/article/view/40481
» https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/article/view/40481 - Foucault, M. (2006). O poder psiquiátrico: curso do Collège de France (1973-1974) São Paulo, SP: Martins Fontes.
-
Mattos, A., & Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periódicus, 5(1), 132-153. Recuperado de:http://dx.doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181
» https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181 - Murta, D. (2011). Os desafios da despatologização da transexualidade: reflexões sobre a assistência a transexuais no Brasil (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
- Pacheco, B. G. C. (2017). Psicologias e transexualidades: o estado da arte da produção teórica brasileira (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.
- Pocahy, F. (2016). (Micro)políticas queer: dissidências em pesquisa. Textura, 18(38), 8-25.
- Prado, M. A. M. (2018). Ambulare Belo Horizonte, MG: PPGCOM UFMG.
- Resolução nº 1, de 29 de janeiro de 2018 (2018). Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia .
- Resolução CFM nº 1.482, de 19 de setembro de 1997 (1997). Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo. Revogada pela Resolução CFM nº 1.652/2002. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina.
- Resolução CFM nº 2.265, de 20 de setembro de 2019 (2019). Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero e revoga a Resolução CFM nº 1.955/2010. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina.
-
Rocon, P. C., Sodré, F., & Rodrigues, A. (2016). Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública. Revista Katálysis, 19(2), 260-269. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/1414-49802016.00200011
» https://doi.org/10.1590/1414-49802016.00200011 -
Rocon, P. C., Sodré, F., Zamboni J., Rodrigues, A., & Roseiro, M. C. F. B. (2018). O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde? Interface - Comunicação, Saúde, Educação , ( 22)64, 43-53. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0712
» https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0712 -
Sales, A., Lopes, H. P., & Peres, W. S. (2016). Despatologizando as travestilidades e transexualidades: saúde mental e direitos. Revista Periódicus, 1, 56-72. Recuperado de:https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17176
» https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17176 -
Teixeira, F. B. (2012). Histórias que não têm era uma vez: as (in)certezas da transexualidade. Revista Estudos Feministas, 20(2), 501-512. Recuperado de:https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200011
» https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200011 - Tenório, L. F. P., & Prado, M. A. M. (2016). As contradições da patologização das identidades trans e argumentos para a mudança de paradigma. Periódicus, 5(1), 41-55.
- Vergueiro, V. (2015). Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal da Bahia, Salvador.
-
World Health Organization [WHO]. (2018). ICD-11: classifying disease to map the way we live and die Recuperado de: https://www.who.int/health-topics/international-classification-of-diseases
» https://www.who.int/health-topics/international-classification-of-diseases
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Ago 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
27 Jun 2019 -
Aceito
03 Jun 2020