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UMA LEITURA METAPSICOLÓGICA SOBRE A COMPULSÃO À REPETIÇÃO E SUAS POTENCIALIDADES TERAPÊUTICAS

LAS POTENCIALIDADES TERAPÉUTICAS INSCRITAS EN LA COMPULSION A LA REPETICIÓN Y ALGUNAS JUSTIFICACIONES METAPSICOLOGICAS.

RESUMO

Fenômenos associados à compulsão à repetição apresentam-se na clínica psicanalítica como reveladores de uma dor da qual o paciente nada sabe dizer, mas que se impõe como um destino implacável. Partilhando da opinião de alguns psicanalistas sobre as potencialidades terapêuticas inscritas na compulsão à repetição e cientes das dificuldades que envolvem a sua justificação teórica, este artigo busca aclarar a trama conceitual da metapsicologia que pode vir a embasar tal compreensão. Desse modo, partindo de uma pesquisa conceitual, objetivamos explicitar os fenômenos metapsicológicos que estão inscritos na repetição, propiciando uma releitura de aspectos importantes da obra freudiana. Assim, o artigo desenvolve a ideia de que as energias disruptivas presentes na compulsão à repetição, ao serem submetidas ao trabalho de ligação realizado pelo ‘Eu’, um processo secundário por excelência, articulado às noções de fusão e desfusão pulsionais, presentes em textos da etapa madura das reflexões de Freud, permite lançar alguma luz sobre processos obscuros subjacentes aos fenômenos em tela.

Palavras-chave:
Compulsão à repetição; ligação; clínica psicanalítica

RESUMEN

Fenómenos asociados a la compulsión a la repetición se presentan en la clínica psicoanalítica como reveladores de un dolor del cual el paciente nada sabe decir, pero que se impone como un destino implacable. Compartiendo la opinión de algunos psicoanalistas en las potencialidades terapéuticas inscritas en la repetición y conscientes de las dificultades que envuelven su justificación teórica, este artículo busca explicitar la trama conceptual metapsicológica que puede venir a embasar su comprensión. Así, empiezando desde una búsqueda conceptual, tenemos como objetivo demuenstrar a los fenómenos metapsicológicos que se encuentran inscritos en la repetición, proporcionando una reinterpretación de importantes aspectos de la obra de Freud. Por lo tanto, este articulo desarrolla la idea de energías disruptivas encuentradas en la compulsión hacia la repetición cuando se las envían al trabajo de ligación realizado por el ‘Yo’, un procedimiento secundario por excelencia, enlazados a la comprensión de fusión y desfusion pulsionales, que están presentes en textos de la etapa madura de las relfexiones de Freud, permitiendo tirar alguna luz sobre procesos oscuros subyacentes a los fenómenos en discusión.

Palabras clave:
Compulsión a la repetición; conexión; clínica psicoanalítica

ABSTRACT

Phenomena associated with repetition compulsion appear in the psychoanalytic clinic revealing a pain the patient knows nothing about, but which imposes as a relentless fate. Sharing the opinion of some psychoanalysts about therapeutic potentialities inscribed in the compulsion repetition and aware of the difficulties involved in their theoretical justification, this article sought to explain the conceptual framework necessary to understand the process underlying such phenomena. Thus, starting from a conceptual research, we aimed to explain the metapsychological phenomena inscribed in repetition, providing a new understanding of important aspects of the Freudian work. Therefore, the article develops the idea that disruptive energies present in repetition compulsion when subjected to connection carried out by the ‘Self’, a secondary process par excellence, articulated to the notions of drive fusion and defusion, available in texts from the mature stage of Freud’s reflections, allows to shed light on obscure processes underlying the phenomena in question.

Keywords:
Repetition compulsion; binding; psychoanalytic clinic

Introdução

A clínica psicanalítica na atualidade apresenta-nos uma crescente queixa de sintomas relacionados ao indizível da pulsão de morte, sintomas que trazem a compulsão e o vazio como marcas. Essa escuta remete-nos ao sofrimento das patologias referentes à adicção, anorexia, ao transtorno do pânico, entre outros. Escutamos pacientes queixosos de tropeçarem na mesma pedra e que disso nada sabem nos dizer. A repetição aparece, assim, revelando uma dor incontida que parece impor-se como um destino implacável, o que parece levar ao limite o potencial da análise.

Nas fronteiras dessa clínica, Marucco (2007Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: a repetição. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(1), 121-136. ) defende que é a análise que pode abrir caminho para a criação de representações sobre o indizível das pulsões de morte associadas à compulsão à repetição. A partir das sugestões desse autor e partilhando da leitura de outros psicanalistas contemporâneos como Green (1986Green, A. (1986). A pulsão de morte. São Paulo, SP: Escuta. Trabalho original publicado em 1984.) e Paim Filho (2010Paim Filho, I. A. (2010). Compulsão à repetição: pulsão de morte “trans-in-vestida” de libido.Revista brasileira de Psicanálise, 44(3),117-126.), visualizamos uma reflexão acerca das possibilidades de abertura ao novo contidas nos fenômenos repetitivos que nos levam a pensar sobre a questão da potencialidade terapêutica presente nesses processos, reflexão esta que, de partida, depara-se com um questionamento aparentemente paradoxal: como poderia um fenômeno como a compulsão à repetição, costumeiramente entendido como demoníaco, oferecer a possibilidade de algum aproveitamento terapêutico? Paradoxo aparente, pois, conforme esclarece Paim Filho (2010Paim Filho, I. A. (2010). Compulsão à repetição: pulsão de morte “trans-in-vestida” de libido.Revista brasileira de Psicanálise, 44(3),117-126.), a pulsão de morte não deve ser tomada apenas como a vilã dos processos psicopatológicos, já que, ao pulsar, via repetição, tem-se a possibilidade de ser escutada e posteriormente simbolizada.

Assim tendo em vista que há, na obra de Freud, menção à compulsão à repetição como “[...] um destino maligno no qual as pessoas parecem possuídas por algum poder ‘demoníaco’” (Freud, 2017aFreud, S. (2017b). Análise terminável e interminável (Obras Completas, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1937., p. 09; grifo do autor), ou como uma “[...] perpétua recorrência da mesma coisa” (Freud, 2017aFreud, S. (2017b). Análise terminável e interminável (Obras Completas, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1937., p. 05), entendemos que em muitos momentos a repetição associada à pulsão de morte pode assumir um caráter caótico refratário às formas tradicionais de intervenção. Mas, ao mesmo tempo, o autor nos adverte que a psicanálise é de opinião de que o destino é, na maior parte, arranjado pelo próprio sujeito e determinado por influências infantis primitivas, assim como pontua que seria uma questão de técnica analítica o fato de se conseguir ou não trazer à luz aquilo que está oculto e sendo repetido (Freud, 2017bFreud, S. (2017b). Análise terminável e interminável (Obras Completas, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1937.).

Nessa linha de raciocínio, Freud nos apresenta em 1920 os sonhos traumáticos. O autor dá-se conta de que nesse tipo de sonho estariam sendo repetidas situações de horror outrora já vividas, o que, aparentemente, não possuiria nenhuma explicação, pois o sonho vinha sendo entendido como realização alucinatória de desejo. Em suas investigações, que abarcaram além dos sonhos, também as brincadeiras de crianças e a dinâmica de neuróticos na transferência, o autor chega à conclusão de que a repetição guardaria íntima relação com o excesso do trauma, que parecia se reatualizar em uma tentativa de ligação das energias livres e ordenamento do caos. Assim, Freud levanta a hipótese de que a repetição parecia cumprir com o objetivo de dar cabo ao excesso, sendo possível vislumbrar já nas ideias do próprio fundador da psicanálise alguma potencialidade inscrita na compulsão à repetição, potencialidade esta não apenas cogitada, mas defendida por alguns autores, como os mencionados acima.

Dessa maneira, partilhando da crença nas potencialidades terapêuticas inscritas na compulsão à repetição, mas ao mesmo tempo cientes das dificuldades que envolvem a sua justificação ou fundamentação teórica, a proposta deste artigo é buscar explicitar a trama conceitual necessária à compreensão dos processos subjacentes aos fenômenos clínicos denominados compulsivos repetitivos. Em outras palavras, a intenção é explicitar alguns elementos que poderiam auxiliar na circunscrição das bases metapsicológicas dessa modalidade de fenômenos clínicos e que parece encontrar ressonância em algumas hipóteses formuladas pelo próprio fundador da psicanálise. Isso porque, sendo correto afirmar que na base dos processos repetitivos encontrar-se-iam quantidades intensas de excitação desligadas, nunca antes simbolizadas, parece que o seu aproveitamento clínico pressupõe algum tipo de ligação ou simbolização que precisa ser esclarecido teoricamente. Trata-se, portanto, de uma discussão acerca dos fundamentos metapsicológicos de uma clínica psicanalítica que concebe a potencialidade terapêutica da compulsão à repetição.

A discussão está organizada em quatro seções: na primeira seção, à guisa de contextualização, apresentamos alguns esclarecimentos sobre o fenômeno da repetição na psicanálise freudiana e sua importância na clínica psicanalítica. A segunda seção é dedicada à explicitação do estatuto conceitual novo adquirido pela compulsão à repetição, com o advento da pulsão de morte, caracterizado pela sua negatividade. A terceira seção entra na discussão principal ao introduzir alguns conceitos que justificariam o questionamento da visão predominante acerca do caráter demoníaco da compulsão à repetição. A consideração de conceitos como os de processos primários e processos secundários possibilita-nos explicitar o papel do Eu no trabalho de ligação (Bindung) de excitações não ligadas, que caracterizariam os processos compulsivos repetitivos. Por fim, a quarta seção visa aprofundar a análise sobre os processos de ligação egoicos, mediante sua articulação com as noções de fusão e desfusão das excitações pulsionais, introduzidas por Freud na etapa madura de suas reflexões. Tentaremos mostrar que a tarefa de ligação própria ao Eu, articulada à noção de fusão pulsional pode lançar luz sobre processos obscuros subjacentes aos fenômenos repetitivos compulsivos. Espera-se com isso contribuir para o avanço rumo à compreensão de alguns dos fundamentos metapsicológicos que legitimariam uma modalidade de clínica da compulsão a repetição.

Da repetição à compulsão à repetição na clínica freudiana: uma aproximação metapsicológica

Ao longo dos seus primeiros textos sobre a histeria e os casos clínicos apresentados, como Emmy von N., o termo repetição figura na obra de Freud (2017cFreud, S. (2017c). Estudos sobre a histeria(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895.) aliado à reaparição dos sintomas. Ao autor parecia notório que as pacientes repetiam situações e sintomas que em si mesmo não se explicavam, mas que desapareciam quando associados a histórias esquecidas, aquelas cujo acesso não podia se dar por meio da fala ou da recordação em estado de vigília, mas somente pela hipnose.

É no texto A interpretação dos sonhos que Freud (2017dFreud, S. (2017d). A interpretação dos sonhos (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1900.) explicita sua primeira tópica do aparelho psíquico, sendo este formado pelas instâncias Inconsciente e pré-consciente/consciente. A partir desse modelo, entende-se que desejos não aceitos moralmente são barrados em seu acesso à consciência e levados ao inconsciente por meio das repressões, de modo que o excesso que se encontraria na formação de sintomas na histeria e agora também na formação dos sonhos habitariam o Inconsciente. Assim, o Inconsciente passa a ser considerado a fonte da qual jorrariam fenômenos repetitivos que se manifestariam, por exemplo, em forma de sintomas, sonhos, atos falhos etc. Além disso, o conhecimento acerca do Inconsciente teria permitido a Freud compreender igualmente a transferência como um fenômeno da ordem da repetição, isto é, da manifestação no aqui e agora da situação clínica do desejo reprimido, possibilitando assim fundamentar metapsicologicamente a prática analítica.

Nesse momento, como fenômeno repetitivo, a transferência figura como grande aliada do trabalho clínico. Fundamentado na concepção de psiquismo conhecida como primeira tópica do aparelho psíquico, o tratamento psicanalítico consistiria em trazer à tona o material reprimido que se constituiria como um excesso de conteúdos inconscientes, responsáveis pela manifestação repetitiva de formações como sintoma, sonhos, atuações transferenciais etc. (Freud, 2017dFreud, S. (2017d). A interpretação dos sonhos (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1900.).

Freud (2017eFreud, S. (2017e). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Edição Standard Brasileira das obras completas, Vol. 7). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1905.) dá atenção especial à repetição no sentido clínico de revelação do desejo inconsciente, e considera sua relação com a resistência, que visaria barrar o retorno desse material, concluindo, dessa forma, que aquilo que é barrado pela resistência e não pode ser relembrado seria repetido. Em outras palavras, uma parte consideravelmente importante dos conteúdos inconscientes manifestar-se-ia não mais pela palavra, mas pela atuação na relação com o analista, por meio da transferência. Segundo Freud (2017eFreud, S. (2017e). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Edição Standard Brasileira das obras completas, Vol. 7). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1905.), repetiam-se na transferência vivências relativas ao montante inconsciente dos instintos reprimidos e o analista tornar-se-ia objeto de investimento erótico por parte do paciente, o que poderia ser manejado durante o tratamento. Ainda segundo o autor, quanto maior a resistência, mais a atuação substituiria o recordar, e as resistências determinariam a sequência do material que seria repetido. Assim sendo, o repetir reatualizaria uma parte da vida real, e o manejo da transferência visaria transformar a compulsão do que se repete em recordação. Estando a resistência no seu auge, o analista junto ao paciente teria a chance de descobrir os impulsos instintuais reprimidos que a alimentariam.

Assim durante esse período das elaborações teórico-clínicas de Freud, o fenômeno já designado como da ordem de uma compulsão à repetição surge como aliada no processo de análise e a potencialidade terapêutica apresentada parece ser aquela de colocar em ato aquilo que não se pode, por conta da repressão, figurar na mente consciente vinculado à palavra. Na medida em que o objetivo da clínica freudiana consistia em desvendar o material inconsciente que se repetia em forma de sintomas e atuações na transferência, isto é, conteúdos desiderativos que já teriam em algum momento adquirido algum grau de simbolização, mas tendo sua livre expressão simbólica captada pela repressão, Freud estaria trabalhando, conforme indica Marucco (2007Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: a repetição. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(1), 121-136. ), dentro de um modelo que se poderia denominar de clínica das representações, em que as repetições de conteúdos reprimidos são consideradas sob o domínio do princípio do prazer.

O novo estatuto da compulsão à repetição após o advento da pulsão de morte

Se ao longo da vigência da primeira tópica a repetição podia ser vista como predominantemente a serviço do princípio do prazer, como a atualização na transferência de conteúdos inconscientes reprimidos, a partir de 1920 Freud depara-se com repetições que parecem não obedecer a esse princípio, já que não trariam à tona nada de prazeroso, revelando-se como um destino demoníaco que arrasta o sujeito. Essa maneira nova de compreender a repetição teria sido observada em diferentes fenômenos: na neurose traumática em que se repetiam nos sonhos situações desagradáves; na repetição desprazerosa identificada nas brincadeiras de crianças, na transferência dos neuróticos; entre outras. Entendendo que se trataria nesses casos de conteúdos cujos processos escapariam à regulação pelo princípio do prazer, o autor chega à ideia de pulsão de morte e assim também à formulação de uma nova tópica do aparelho psíquico, como veremos abaixo. Nesse momento estaria sendo colocada em xeque justamente a aliança ou a potencialidade antes vista como associada à compulsão à repetição no tratamento, já que agora esta passa a ser vinculada à pulsão mortífera, cujos conteúdos parecem, ao menos à primeira vista, não encontrar e nem ter encontrado nenhuma forma de expressão representacional ou simbólica.

As primeiras definições da pulsão de morte em Freud encontram-se mais no plano biológico do que no psicológico, tanto que em Mais além do princípio do prazer, Freud (2017a) começa a tratar desse tema apoiando-se em teorias biológicas que justificariam conceber uma tendência a retornar ao estado inorgânico anterior à emergência da vida. Anteriormente no âmbito da primeira concepção sobre as pulsões, o autor reconhecia na pulsão em geral, e em particular, na pulsão sexual, um caráter progressivo que impelia à mudança, à união entre as partículas vivas e à complexificação da vida; agora, além das forças condutoras da vida, o autor reconhece uma força conservadora extrema que buscaria trazer de volta estados arcaicos da substância viva, realizando desligamentos. Entendemos, assim, que em suas especulações, Freud chega à hipótese da pulsão de morte.

Correlativa à postulação da hipótese da pulsão de morte, o autor propõe no texto de O eu e o id de 1923 a segunda tópica do aparelho psíquico, na qual reconhece que o reprimido que formava o Sistema Inconsciente não recobriria inteiramente o território agora reconhecido como Id, mas que haveria uma dimensão inconsciente que ultrapassaria as designações conceituais que constituem a metapsicologia vigente até esse período. Considerando o novo dualismo pulsional, essa dimensão inconsciente passa a ser reconhecida não apenas como o reservatório inicial da libido mas como a sede das pulsões de vida e de morte. Por isso, em particular, a compulsão à repetição adquire um estatuto novo, passando a ser compreendida como impulsionada por tendências próprias à pulsão de morte.

Na medida em que estaria além da regulação pelo princípio do prazer, as forças associadas à pulsão de morte operariam de forma muda, intensificando processos regressivos e reduzindo a possibilidade de ligação pela palavra. Talvez por isso, por serem tão intensas e desorganizadas, as compulsões repetitivas associadas a essas excitações sem qualquer ligação simbólica pareceriam tão imbatíveis e fora de qualquer possibilidade de controle pelo aparelho psíquico, de forma que propriamente falando o sujeito não as experienciaria, mas atuaria de forma repetitiva em compulsões incoercíveis.

Assim o novo estatuto da compulsão à repetição, a partir de 1920, atrelado ao caráter mudo da pulsão de morte, referir-se-ia à uma repetição mais arcaica do que a repetição do reprimido, o que evidenciaria os limites da ação terapêutica da psicanálise, colocando impasses a uma clínica ainda pautada pela interpretação, ou seja, uma clínica ainda centrada no predomínio das representações de alguma forma associadas à palavra.

O processo primário, o processo secundário e o papel do Eu no trabalho de ligação (Bindung) de excitações não ligadas

Para tentar avançar na discussão, retomaremos no início desta seção algumas ideias apresentadas por Freud em Projeto de uma psicologia de 1895 que podem nos auxiliar a compreender o processo de ligação pulsional e seus desdobramentos, questões fundamentais à metapsicologia dos fenômenos subjacentes à compulsão à repetição.

Freud (2003Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895.) concebe o aparelho neuropsíquico como um sistema de neurônios que precisa lidar com quantidades de excitação (indicadas pela letra Q) que lhe chegam desde fora (percepções) ou a partir do interior do corpo (excitações endógenas), ao passo que os neurônios ora estão carregados, ora esvaziados de Q. Observa-se entre os neurônios certo automatismo que faz com que se busque sempre a eliminação de Q, a fim de manterem-se livres de excitação. O princípio que regula o funcionamento do aparelho neuropsíquico foi inicialmente denominado por Freud como princípio da inércia, válido para o comportamento fictício de organismos simples, como organismos unicelulares que receberiam estímulos apenas externos e os eliminariam, mantendo-se livres de Q. Nos organismos complexos, porém, dado que estes recebem também excitações a partir do interior do próprio corpo, a tendência à inércia não teria lugar, mas seria modificada para uma tendência à constância. Ou seja, esses organismos teriam que tolerar certo armazenamento de Q, em nível constante, a fim de custear a realização de ações específicas mais complexas para a satisfação de necessidades corporais específicas, como a fome e a sexualidade, por exemplo.

Dada suas características, a excitação correspondente às necessidades corporais apresentar-se-iam de forma contínua e, no caso de um recém-nascido, estas só cessariam quando através do auxílio externo (o outro), uma vivência de satisfação colocasse fim, ao menos temporariamente, à fonte de estímulo interno. Um componente essencial dessa vivência de satisfação consistiria na percepção de um objeto, cuja imagem mnêmica ficaria associada, daí por diante, aos traços mnêmicos da tensão correspondente à excitação produzida pela necessidade. Assim, pelo vínculo mnêmico estabelecido na vivência de satisfação, restaria uma associação entre as representações correspondentes à tensão resultante das excitações endógenas, a percepção do objeto auxiliar e a satisfação da necessidade.

Baseada nessa associação, que em ‘Projeto’ é vista pelo autor como uma trilha neuronal facilitada, quando do ressurgimento do estado de carência corporal, a tensão correspondente seguiria de forma imediata e automática pelas trilhas facilitadas em direção à imagem do objeto auxiliar, visando a satisfação. Esse processo psíquico que consiste em percorrer o caminho mais curto para solucionar o estado de necessidade é denominado por Freud como realização alucinatória de desejo, pois a via que conduzia diretamente a excitação produzida pela necessidade para um completo investimento da percepção culminaria em alucinação, uma vez que a realização do desejo seria executada independentemente da presença real do objeto. Dessa maneira, pela vivência de satisfação, restaria no aparelho a tendência à realização de desejos sem considerar a realidade do objeto, ou seja, a tendência a livrar-se a todo custo do desprazer associado à tensão de necessidade.

Além da tendência a realizar desejo, Freud também considera que há situações em que há uma falha no aparelho psíquico, rompendo com a tendência à constância, momentos denominados vivências de dor, caracterizados pelo impacto provocado por enormes quantidades de Q exógena nos neurônios. Nesses casos, dada a tendência à constância, que regularia o funcionamento do aparelho neuropsíquico, seriam desencadeadas reações imediatas visando livrar-se da Q invasora. Como no caso das vivências de satisfação que geram uma atração pela imagem recordativa do objeto auxiliar (objeto de desejo), as vivências dolorosas deixariam como tendência de funcionamento: uma repulsa a manter investida a imagem recordativa do objeto hostil, objeto que causou a dor. A esta última tendência de funcionamento, o autor denomina repressão em ‘Projeto de uma psicologia’.

De acordo com essas hipóteses, no ressurgimento do estado de desejo pelas trilhas facilitadas deixadas pela vivência de satisfação, a tensão é conduzida em direção ao investimento da imagem do objeto de desejo e no caso da vivência dolorosa, haveria aumento no nível da excitação, sentido agora não como dor, mas como desprazer; assim também pelas trilhas bem facilitadas entre a imagem do objeto hostil e as vias de inervação para a descarga da excitação, quando da reativação de sua imagem a tensão aí em jogo tende a seguir pronta e automaticamente pelos caminhos de descarga, eliminando as quantidades de excitação da representação do objeto que provocou a dor.

Desde o texto de Projeto de uma psicologia’, a esse tipo de funcionamento compulsivo, Freud denomina processos primários. Em obras posteriores, o processo primário será visto como característico do funcionamento inconsciente, parecendo ser guiado pelo princípio de inércia, aquele cogitado como característico de organismos simples. Nesse tipo de funcionamento, a excitação seguiria sem qualquer interferência, pela via mais facilitada, de forma livre e automática independente do objeto ou do mundo externo.

No caso de organismos complexos, porém, como seres humanos, as necessidades da vida impõem a transformação dessa atividade primitiva em uma atividade secundária mais adequada, que levaria em conta as exigências da realidade. A essa nova forma de funcionamento psíquico, Freud (2003Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895.) denomina de processos secundários. Essa mudança no regime de funcionamento mental seria possibilitada pelas ações inibitórias realizadas pelo Eu, por isso aos processos secundários implicam retardamentos na eliminação de excitações que, passando por uma mediação por parte do Eu, visa controlar o nível de investimento em uma imagem recordativa, como a do objeto de desejo, por exemplo, enquanto não houver sinais de um auxílio real por parte deste.

Antes de prosseguir convém apresentarmos alguns esclarecimentos sobre o Eu e o processo da Bindung, esclarecimentos necessários para a discussão apresentada na seção seguinte. O Eu é, no texto de ‘Projeto de uma psicologia’, concebido por Freud como uma organização neuropsíquica constantemente investida e por isso entendida como capaz de efetuar inibições sobre a livre circulação de Q pelos neurônios. Ou seja, por encontrar-se constantemente preenchido por excitações em estado quiescente ou ligado, conforme se esclarece abaixo, o Eu seria capaz de interferir sobre cursos quantitativos que seguiriam livremente pelas trilhas melhores facilitadas, retardando ou mesmo impedindo o livre fluxo de excitações. Conforme a definição de Freud (2003Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895., p. 200, grifo do autor):

Esta organização chama-se o ‘eu’ e pode facilmente ser apresentada pela consideração de que com regularidade se repete a recepção de Q(’s endógenas em determinados neurônios (do núcleo), e de que o efeito de facilitação decorrente daí resulta em um grupo neurônico, cuja ocupação é constante e corresponde, por conseguinte, ao ‘portador de armazenamento’ exigido pela função secundária.

Por esse entendimento sobre o Eu e seus desempenhos, caberia, portanto, a ele a função de inibir a ocorrência de processos primários como são considerados os processos repetitivos que seguem o automatismo, introduzindo assim um novo regime de funcionamento no psiquismo. Por isso, o autor considera: “Assim, se existir um eu, ele tem que inibir processo psíquicos primários” (Freud (2003Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895., p. 201).

Essa capacidade do Eu seria possibilitada pelo estado em que se encontraria a energia constante nele investida. A esse estado energético Freud denomina energia ligada, que se distinguiria do estado livre; e esse processo executado sob a coordenação do Eu seria denominado ligação [Bindung]. Isso quer dizer que a transformação de processos primários em processos secundários, a modificação de um funcionamento caracterizado pelo automatismo para um regulado pela consideração da realidade, pressupõe a capacidade do Eu em ligar a energia livremente fluente e transformá-la em energia ligada.

Embora os esclarecimentos presentes nos textos não sejam suficientes para tornar claro o processo metapsicológico pelo qual o Eu seria capaz de transformar energia livre em energia ligada, ou seja, embora permaneça obscuro o próprio processo de ligação [Bindung] efetuado pelo Eu, essas considerações baseadas em textos dos primórdios da psicanálise parecem auxiliar-nos a compreender que as excitações em jogo nos fenômenos repetitivos compulsivos associados à pulsão de morte, proposta em 1920, obedeceriam a um funcionamento análogo aos descritos como processos primários, que teriam como característica trabalhar com excitações em grande volume e livremente móveis em direção à descarga.

No caso da compulsão à repetição, portanto, a tarefa dos sistemas psíquicos superiores, ou melhor dizendo, do Eu, seria ligar essas excitações pulsionais livres, visando impor um novo regime de funcionamento, ou seja, transformar processos primários em secundários. Destarte, como concebe Freud (2017aFreud, S. (2017a). Mais além do princípio do prazer (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1920.), somente após a ligação da excitação até então livre é que seria possível a dominância do princípio do prazer e, por isso, frente ao estatuto novo atribuído pelo autor aos fenômenos compulsivos repetitivos, a tarefa de ligação [Bingung] implícita na compulsão à repetição seria anterior à regulação do funcionamento psíquico pelo princípio do prazer e independente dele.

Poder-se-ia talvez objetar aqui que os processos primários tematizados em ‘Projeto de uma psicologia’ (Freud, 2003Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895.) e posteriormente em A interpretação dos sonhos (Freud, 2017d) estariam ainda, rigorosamente falando, sendo considerados como regidos pela tendência à constância ou pelo princípio do prazer, enquanto que os fenômenos relacionados à compulsão à repetição estariam justamente para além do princípio do prazer, o que não daria legitimidade à hipótese de trabalho que orienta nossa discussão. Tal objeção parece justa, por isso tentaremos na seção seguinte oferecer alguns argumentos adicionais que talvez nos auxiliem a avançar um pouco na compreensão do processo de ligação.

Fusão e desfusão de excitações pulsionais: justificativas metapsicológicas e possibilidades clínicas frente à compulsão à repetição

Ao retomar em 1923 a hipótese das duas novas classes de pulsão, Freud (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.) considera que a cada uma delas corresponderiam processos fisiológicos específicos. Assim sob esse ponto de vista, o trabalho de ligação [Bindung] e assimilação próprio às pulsões de vida estaria relacionado com o que denomina anabolismo, enquanto que o desligamento e desassimilação atribuída à pulsão de morte corresponderia a processos catabólicos. Freud reconhece, no entanto, que as tendências anabólicas e catabólicas estariam presentes em cada partícula viva, o que significa que ambas as classes de pulsão estariam presentes de forma amalgamada, fusionada uma à outra, o que culminaria, em última instância, no reconhecimento de uma ambivalência presente em tudo que somos e fazemos.

Analogamente às dificuldades em esclarecer o trabalho de ligação realizado pelo Eu, ao ligar excitações livremente fluentes e assim transformar processos primários em secundários, Freud (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.) também não oferece esclarecimentos suficientes sobre o processo de fusão pulsional que supõe ocorrer entre pulsões de vida e de morte. Apesar das obscuridades remanescentes, nosso esforço consiste em tentar mostrar como as considerações antes apresentadas sobre o trabalho de ligação efetuado pelo Eu ao serem articuladas às hipóteses sobre os processos de fusão pulsional podem auxiliar-nos a galgar alguns degraus no esclarecimento da questão em tela neste artigo.

Antes de tratar dos processos de fusão, convém notar que correlativamente à suposição de processos de fusão pulsional, Freud reconhece a possibilidade de ocorrer o processo inverso, a saber, processos de desfusão de pulsões até então fusionadas. Leiamos suas palavras:

As pulsões eróticas e as de morte estariam em misturas, fusões regulares; mas ‘desfusões’ também estariam sujeitas a ocorrer. A vida consistiria nas manifestações do conflito ou da interação entre as duas classes de pulsões. A morte significaria para o indivíduo a vitória das pulsões destrutivas, mas a reprodução representaria para ele a vitória de Eros (Freud, 2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923., p. 312, grifo nosso).

Correlativa à hipótese da fusão pulsional é preciso, portanto, supor que possa ocorrer processos de desfusão de pulsões. Isto é, pulsões de vida e de morte até então fusionadas ver-se-iam desvinculadas e atuando conforme suas próprias tendências. O autor nos fala sobre a crise epilética, a neurose obsessiva e sobre a ambivalência como exemplos de processos de fusão que não teriam sido completados. Nesses casos, apesar da tendência vinculante das fusões e ligações promovidas por Eros ao garantir a vida, poder-se-ia pensar a autodestrutividade da pulsão de morte enquanto desfusionada como tendência paralela, atuando solitariamente, mas em sentido contrário à vida.

Embora considere as dificuldades envolvidas nessas hipóteses, a partir desse momento de suas reflexões, Freud (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.) as defende como indispensáveis para entendermos a continuidade da vida. Conforme a citação acima, se o predomínio das pulsões destrutivas leva à morte, o erotismo envolvido na reprodução humana precisa ser compreendido como vitória de Eros, ou seja, pelo predomínio dos processos de fusão frente aos de desfusão pulsionais; pois, segundo ele, é por meio de fusões que a libido proveniente das pulsões de vida pode utilizar sua força para neutralizar a energia disruptiva e livremente móvel da pulsão de morte. Assim, quando ligadas ou fusionadas às excitações eróticas, a agressividade e autodestrutividade das pulsões de morte poderiam, em nome de interesses vitais, ser aproveitadas e redirecionadas a um destino novo; por meio de uma ação muscular paulatinamente coordenada pelo Eu, por exemplo, poderiam ser destinadas para o mundo externo. A pulsão de morte, que é reconhecida como silenciosa, ganharia assim um trajeto e clamor próprio às pulsões de vida, podendo ser escutada.

Esse direcionamento para o exterior da pulsão de morte é geralmente tido como tendência destrutiva, no sentido de contrariar a vida, sobretudo, quando resulta em destrutividade dirigida a outra pessoa, como o exemplo do sadismo propriamente dito (Freud, 2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.). No entanto, pode também ser vista como uma tendência construtiva, por exemplo, quando a força muscular é destinada à transformação da natureza e construção de bens culturais que favorecem avanços no processo civilizatório. Vale observar que as ações voltadas ao exterior com fins de construção se dão em razão de uma agressividade externada e aceita socialmente, já que parte da energia da pulsão de morte resta no interior do organismo, e esse resto fusionado pela pulsão de vida torna-se útil para a manutenção e evolução dos processos vitais e culturais.

Para destacar o que nos interessa no artigo, pode-se dizer, de acordo com as hipóteses freudianas, que é pelo mecanismo de fusão que a energia destrutiva das pulsões de morte ver-se-ia amalgamada com a energia das pulsões de vida e, então, por meio da ação muscular destinadas ao mundo externo. Por sua vez, a ação muscular pressupõe um Eu relativamente organizado, já que desde os primórdios da psicanálise a instância egoica é considerada a responsável pelo controle sobre a motilidade guiada para fins vitais (Freud, 2003Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895., 2017dFreud, S. (2017d). A interpretação dos sonhos (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1900., 2017fFreud, S. (2017a). Mais além do princípio do prazer (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1920.). No texto de Mal estar na civilização, por exemplo, Freud (1996Freud, S. (1996).O mal-estar na civilização(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Originalmente publicado em 1929).) discorre sobre o domínio do homem sobre a natureza, e oferece como exemplo a exploração da terra e ações construtivas que exigiriam para sua realização certa quota de agressividade. Acerca da transposição de parte da autodestrutividade para o exterior, Freud é explícito ao considerar que ocorreria pela ação de Eros, pela ligação libidinal, já que esta “[...] tem a tarefa de fazer inócuo essa pulsão destruidora, e a cumpre desviando-a em boa parte - e logo com ajuda de um sistema orgânico particular, a musculatura - para fora, para os objetos do mundo exterior” (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923., p. 191).

Foi mencionado acima que a finalidade para a qual a pulsão de morte se esforça vai no sentido do retorno ao inanimado. Contudo, ao ser fusionada e receber outro destino, não poderíamos falar de uma espécie de sublimação dessa pulsão? Isso porque tais processos parecem poder, sobretudo, ser vistos como construtivos nos casos em que a energia mortífera vinculada por Eros puder ganhar elaboração psíquica e ser direcionada para atividades mais adequadas aos fins e valorizadas pela cultura, sublimadas, enfim.

Parece-nos assim possível pensar em uma via aberta para conjecturarmos sobre a potencialidade inscrita no fenômeno da compulsão à repetição. Entendendo a pulsão de morte como não ligada, energia capaz de curto-circuitar a dinâmica psíquica, vislumbramos que esta também guardaria a potencialidade de fazer surgir o novo, o que pode ser possibilitado por transformações terapêuticas na capacidade egoico-libidinal. Assim, a partir da ligação dessa pulsão haveria a possibilidade de um novo destino para a agressividade, um destino construtivo e criativo.

A consideração do que foi dito acima sobre os processos primários parece ajudar a compreender um pouco melhor o tipo de transformação no regime econômico do psiquismo possibilitado pelos processos fusionais. Enquanto que a desfusão parece poder ser relacionada aos processos primários, aos desligamentos (Entbindungen) e ao caos pulsional que caracteriza as compulsões e a pulsão de morte, ao neutralizar desligamentos por meio da vinculação de excitações livremente móveis, os processos fusionais criam condições para a emergência e desenvolvimentos de processo secundários. Logo, o processo de ligação impulsionado pela necessidade de dar cabo ao excesso, ao caos, pode ser entendido como um trabalho custeado pelas pulsões de vida investidas no Eu, uma atividade secundária que pode ser compreendida como condição para o desenvolvimento do psiquismo. Em outras palavras, intimamente relacionada à Bindung, a fusão de pulsões precisa ser compreendida como um processo tipicamente secundário, condicionado à capacidade inibitória egoica como a adquirida ao longo do desenvolvimento infantil (Freud, 2017eFreud, S. (2017e). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Edição Standard Brasileira das obras completas, Vol. 7). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1905.), parece passível de ser levada em conta em uma clínica que considere as potencialidades terapêuticas da compulsão à repetição.

Para finalizar essas cogitações, vale tentar articular as considerações conceituais apresentadas com algumas possibilidades terapêuticas aventadas por alguns autores mencionados na introdução deste artigo. André Green (1986Green, A. (1986). A pulsão de morte. São Paulo, SP: Escuta. Trabalho original publicado em 1984.), por exemplo, propõe que a meta principal das pulsões de vida é garantir a função objetalizante, isto é, realizar ligações com o objeto e, ao mesmo tempo, a transformação de estruturas em objetos mesmo quando este não está mais presente, de modo tal que o investimento se torna objetalizado. Nesse sentido, esse autor ainda afirma que os processos de simbolização podem se proliferar e enriquecer o psiquismo mesmo quando em vazios causados pelos desligamentos das pulsões de morte.

Já para Paim Filho (2010Paim Filho, I. A. (2010). Compulsão à repetição: pulsão de morte “trans-in-vestida” de libido.Revista brasileira de Psicanálise, 44(3),117-126.), a pulsão de morte deve ser compreendida como força pulsional não enlaçada, não ligada, que está nas origens do sujeito psíquico, não apresentando qualidade, não estando subordinada à função ordenadora do aparelho psíquico. Na linguagem conceitual considerada acima, poder-se-ia dizer que se trataria de um funcionamento mental dominado por processos primários, guardando íntima relação com a tendência à inércia. No entanto, esse autor considera igualmente que as repetições compulsivas a ela associadas podem ser entendidas como potencialidade de um devir determinado pela capacidade de ligação das pulsões de vida. Por essa razão, parece plausível considerar a pulsão de vida como uma força protagonista frente às tendências compulsivas repetitivas, na medida em que seria a força vital da libido disponível para fusão/ligação que decidiria o destino das repetições compulsivas.

A compulsão à repetição quando no tratamento permite, como considera Paim Filho (2010Paim Filho, I. A. (2010). Compulsão à repetição: pulsão de morte “trans-in-vestida” de libido.Revista brasileira de Psicanálise, 44(3),117-126.), que tendências destrutivas ganhem um clamor e possam ser escutadas, estabelecendo-se no trabalho terapêutico um esforço no sentido de criar condições favoráveis para o nascimento e/ou consolidação de processos secundários, possibilitados pela fusão pulsional e ligações libidinais, Bindungen. Dessa forma, poder-se-ia conjecturar sobre a possibilidade de vislumbrar o espaço terapêutico como um campo para o encontro com o outro, com o mundo externo, que desde os estágios iniciais da formação do psiquismo é aquele que propicia objetos de investimento, de ligação libidinal, potencializando uma espécie de recomeço e retomada aos processos de fusão pulsional e ligação libidinal, processos criativos esses ao mesmo tempo dependentes de Eros e favorecedores dos processos vitais, das pulsões de vida.

Uma importante contribuição de Freud (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.) vem em nosso auxílio nessas conjecturas, quando o autor menciona que se faz necessário considerar o terapeuta atuando como um instrumento que capacita o Eu para conseguir uma progressiva conquista do Id. Em outras palavras, como palavras do autor: “De fato, ele [o Eu] se comporta como o médico durante um tratamento analítico: oferece-se, com a atenção que concede ao mundo real, como um objeto libidinal para o Id, e visa ligar a libido do Id a si próprio” (Freud, 2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923., p. 61; entre colchetes esclarecimentos nossos). Mais: nosso autor assinala que a força das pulsões é uma das mais decisivas para o sucesso da análise, sendo necessário amansá-las e torná-las acessíveis às influências do Eu (Freud, 2017gFreud, S. (2017g). Construções em análise (Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1937.).

Parece assim que mesmo frente a fenômenos clínicos tidos tradicionalmente como refratários ao trabalho clínico ou ao menos de difícil manejo, como a compulsão à repetição, a temperatura afetiva que caracteriza uma relação transferencial positiva pode desempenhar papel chave no favorecimento de uma progressiva transformação na economia e dinâmica psíquica rumo ao desenvolvimento de capacidades para o advento de ligações, abertura de possibilidades novas de sentido e existência. É nesse sentido que Marucco (2007Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: a repetição. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(1), 121-136. ) considera que é pela força da pulsão de vida que o encontro entre analista e paciente pode transformar o que é repetido em algo diferente. Escreve ele: “[...] penso que a análise é uma possibilidade inédita de ligamento, de mudança de rumo diante da repetição do destino. Para o analista, implica uma aposta pulsional com resultados imprecisos” (p. 05). Mais segura sobre o papel vital desempenhado pela análise mostra-se Zygouris (1999Zygouris, R. (1999). Pulsões de vida. São Paulo, SP: Editora Escuta., p. 52), que conclui: “[...] a única coisa que ‘cura’, que reanima o humano mal tratado por si mesmo ou por aqueles que o cercam, é a presença”. De todo modo, independente do grau de otimismo de cada autor sobre as potencialidades próprias ao processo terapêutico, parece plausível a advertência do próprio Freud (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.) quanto à consideração do embate entre vida e morte, conforme concebida pela psicanálise: considerar somente as desordens e o caos seria desvalorizar o papel desempenhado pelas pulsões de vida.

Considerações finais

A compulsão à repetição parece colocar um limite à análise psicanalítica pautada no método interpretativo à medida que este até 1920 parece se centrar na ideia de representação. A compulsão à repetição faz também atualizar marcas que não estão representadas, isto é, inscritas no psiquismo, mas que fogem de seu domínio. Associada ao demoníaco da pulsão de morte e potencial de desligamentos situa-se de forma mais arcaica que as repetições do reprimido, e prolifera-se nos sintomas da clínica contemporânea, o que torna urgente pensarmos em caminhos que favoreçam a análise nesse campo.

Tendo em vista nosso objetivo de clarear elementos que pudessem dar base metapsicológica para a noção de potencialidade clínica referente à compulsão à repetição traçamos um paralelo entre o processo de fusão pulsional cunhado por Freud a partir de 1924, com o processo de Bindung já descrito nos seus primeiros textos, tais como o ‘Projeto de uma psicologia’. Assim, na medida em que a tarefa de realizar ligações e ordenar o caos pulsional (Bindung) é atribuída à pulsão de vida, quando em fusão com as pulsões de morte, podemos vislumbrar a compulsão à repetição como um campo potencial para o encontro pulsional, para criação e ressignificação.

A compulsão à repetição entendida como um fenômeno que faz vir à tona as pulsões de morte, quando circunscrita no setting terapêutico e envolta no clima afetivo de uma sessão analítica pode, ao nosso ver, colocar-se como potencialidade à medida que a energia disruptiva das pulsões de morte ao ganharem clamor possam ser fusionadas às pulsões de vida, o que nos remete ao potencial analítico de favorecer processos de fusão e a busca de novos sentidos para a existência, assim como o favorecer da passagem dos processos primários para processos secundários e o desenvolvimento do psiquismo.

Considerando que Freud (2017fFreud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.) também nos apresenta a análise como um campo de fortalecimento do eu para lidar com as pulsões, os resultados de nossas reflexões sobre a prática analítica exigem o estudo de autores contemporâneos que se dedicam ao aprimoramento da técnica analítica e abrem a possibilidade de uma análise ativa e interessada na vida que possam favorecer a presença como termômetro para o encontro pulsional e o desenvolvimento de um Eu capaz de realizar ligações/ criações.

Referências

  • Freud, S. (2017b). Análise terminável e interminável (Obras Completas, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1937.
  • Freud, S. (2017g). Construções em análise (Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1937.
  • Freud, S. (2017f). O ego e o id(Edição Standard Brasileira das O.ras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1923.
  • Freud, S. (2017c). Estudos sobre a histeria(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895.
  • Freud, S. (2017d). A interpretação dos sonhos (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1900.
  • Freud, S. (2017a). Mais além do princípio do prazer (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1920.
  • Freud, S. (1996).O mal-estar na civilização(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Originalmente publicado em 1929).
  • Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. GabbiJr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise (Osmyr Gabbi Jr., trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Originalmente publicado em 1895.
  • Freud, S. (2017e). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Edição Standard Brasileira das obras completas, Vol. 7). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Originalmente publicado em 1905.
  • Green, A. (1986). A pulsão de morte São Paulo, SP: Escuta. Trabalho original publicado em 1984.
  • Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: a repetição. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(1), 121-136.
  • Paim Filho, I. A. (2010). Compulsão à repetição: pulsão de morte “trans-in-vestida” de libido.Revista brasileira de Psicanálise, 44(3),117-126.
  • Zygouris, R. (1999). Pulsões de vida São Paulo, SP: Editora Escuta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2019
  • Aceito
    20 Set 2021
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