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Escolha conjugal feminina: uma análise intergeracional segundo uma perspectiva crítica em psicologia

Female marital choice: an intergenerational analysis from a critical psychological approach

Elección conyugal femenina: un análisis intergeneracional según una perspectiva crítica en psicología

Resumos

A presente pesquisa teve como objetivo geral identificar e analisar as variáveis envolvidas na escolha do primeiro cônjuge de mulheres residentes no Interior de Goiás, pertencentes a duas gerações (avós e netas), e como estas afetam sua esfera subjetiva. O referencial teórico adotado constitui-se de obras com ênfase nos aspectos históricos da mulher e das relações amorosas, à luz de uma perspectiva crítica em Psicologia. A amostra foi composta por dez avós que se casaram (incluindo coabitação estável) pela primeira vez até a década de 1960 e suas respectivas netas que nasceram após 1980 e se casaram (incluindo coabitação estável) pela primeira vez após o ano de 2000. Como instrumento de pesquisa utilizou-se entrevista individual semiestruturada. A análise objetivou captar os sentidos expressos pelos sujeitos acerca dos fatores relacionados à escolha do primeiro cônjuge e suas determinações constitutivas. Os resultados apontam que o processo de escolha conjugal sofreu mudanças significativas ao longo das duas gerações pesquisadas, porém mais no sentido de incorporação de novos valores do que de abandono dos antigos.

Escolha conjugal feminina; estudo intergeracional; Psicologia


This study aims to identify and analyze the variables involved in the selection of the first spouse of women of two generations (grandmothers and granddaughters) in a city located in Goiás state, Brazil, and how these variables affect their subjective choice. The theoretical reference adopted was based on works with emphasis on historical aspects of women and love relations, from a critical perspective in psychology. The sample comprised 10 grandmothers who married (including stable cohabitation) for the first time before 1961, and their granddaughters who were born after 1980 and married (including stable cohabitation) for the first time after the year 2000. The research instrument was a semi-structured individual interview. The analysis aimed to infer from each participant's responses their perceptions related to the importance of the variables and how these were determined. The results obtained show that the marital selection process has changed markedly in the time between the two generations (grandmothers and granddaughters), but more in the sense of incorporation of new values than the abandonment of the old ones.

Female marital choice; intergenerational study; psychology


Esta investigación tuvo como objetivo general identificar y analizar las variables involucradas en la elección del primer cónyuge en mujeres residentes en el interior de Goiás, que pertenecen a dos generaciones (abuelas y nietas), y cómo éstas afectan su esfera subjetiva. El marco teórico adoptado se basó en trabajos con énfasis en los aspectos históricos de la mujer y de las relaciones amorosas, a la luz de una perspectiva crítica en psicología. La muestra fue compuesta por 10 abuelas que se casaron (incluyendo cohabitación estable) por primera vez hasta la década de 1960 y sus respectivas nietas que nacieron después de 1980 y se casaron (incluyendo cohabitación estable) por primera vez después del año 2000. El instrumento de investigación utilizado fue la entrevista individual semiestructurada. El análisis tuvo el objetivo de capturar los sentidos expresados por los sujetos sobre los factores relacionados a la elección del primer cónyuge y sus determinaciones constitutivas. Los resultados señalan que el proceso de elección conyugal sufrió cambios significativos a lo largo de las dos generaciones investigadas, pero más en lo que se refiere a la incorporación de nuevos valores que el abandono de los antiguos.

Elección conyugal femenina; estudio intergeneracional; psicología


ARTIGOS

Escolha conjugal feminina: uma análise intergeracional segundo uma perspectiva crítica em psicologia

Female marital choice: an intergenerational analysis from a critical psychological approach

Elección conyugal femenina: un análisis intergeneracional según una perspectiva crítica en psicología

Isabella da Silva Arantes PereiraI; Janaina Cassiano SilvaII

I Mestre em Educação pela Universidade de Jaén, Espanha.

II Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, professora adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Sanito Rocha, 225, ap. 903, Bairro: Cristo Rei CEP: 80050-380, Curitiba-PR E-mail: bella_arantes@hotmail.com

RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo geral identificar e analisar as variáveis envolvidas na escolha do primeiro cônjuge de mulheres residentes no Interior de Goiás, pertencentes a duas gerações (avós e netas), e como estas afetam sua esfera subjetiva. O referencial teórico adotado constitui-se de obras com ênfase nos aspectos históricos da mulher e das relações amorosas, à luz de uma perspectiva crítica em Psicologia. A amostra foi composta por dez avós que se casaram (incluindo coabitação estável) pela primeira vez até a década de 1960 e suas respectivas netas que nasceram após 1980 e se casaram (incluindo coabitação estável) pela primeira vez após o ano de 2000. Como instrumento de pesquisa utilizou-se entrevista individual semiestruturada. A análise objetivou captar os sentidos expressos pelos sujeitos acerca dos fatores relacionados à escolha do primeiro cônjuge e suas determinações constitutivas. Os resultados apontam que o processo de escolha conjugal sofreu mudanças significativas ao longo das duas gerações pesquisadas, porém mais no sentido de incorporação de novos valores do que de abandono dos antigos.

Palavras-chave: Escolha conjugal feminina; estudo intergeracional; Psicologia.

ABSTRACT

This study aims to identify and analyze the variables involved in the selection of the first spouse of women of two generations (grandmothers and granddaughters) in a city located in Goiás state, Brazil, and how these variables affect their subjective choice. The theoretical reference adopted was based on works with emphasis on historical aspects of women and love relations, from a critical perspective in psychology. The sample comprised 10 grandmothers who married (including stable cohabitation) for the first time before 1961, and their granddaughters who were born after 1980 and married (including stable cohabitation) for the first time after the year 2000. The research instrument was a semi-structured individual interview. The analysis aimed to infer from each participant's responses their perceptions related to the importance of the variables and how these were determined. The results obtained show that the marital selection process has changed markedly in the time between the two generations (grandmothers and granddaughters), but more in the sense of incorporation of new values than the abandonment of the old ones.

Key words: Female marital choice; intergenerational study; psychology.

RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo general identificar y analizar las variables involucradas en la elección del primer cónyuge en mujeres residentes en el interior de Goiás, que pertenecen a dos generaciones (abuelas y nietas), y cómo éstas afectan su esfera subjetiva. El marco teórico adoptado se basó en trabajos con énfasis en los aspectos históricos de la mujer y de las relaciones amorosas, a la luz de una perspectiva crítica en psicología. La muestra fue compuesta por 10 abuelas que se casaron (incluyendo cohabitación estable) por primera vez hasta la década de 1960 y sus respectivas nietas que nacieron después de 1980 y se casaron (incluyendo cohabitación estable) por primera vez después del año 2000. El instrumento de investigación utilizado fue la entrevista individual semiestructurada. El análisis tuvo el objetivo de capturar los sentidos expresados por los sujetos sobre los factores relacionados a la elección del primer cónyuge y sus determinaciones constitutivas. Los resultados señalan que el proceso de elección conyugal sufrió cambios significativos a lo largo de las dos generaciones investigadas, pero más en lo que se refiere a la incorporación de nuevos valores que el abandono de los antiguos.

Palabras-clave: Elección conyugal femenina; estudio intergeneracional; psicología.

O processo de escolha do cônjuge no Brasil, assim como em outras culturas ocidentais, tem sofrido mudanças ao longo da história, especialmente no tocante à esfera feminina. Podemos dizer que essa evolução resulta de transformações nos âmbitos político, econômico, cultural e social que proporcionaram à mulher a adoção de novos papéis, além de autonomia e liberdade nas decisões envolvendo as relações conjugais.

Conforme Levy (2009), no Brasil, no período colonial, os arranjos matrimoniais, especialmente entre as classes mais privilegiadas, originavam-se a partir de interesses do genitor do sexo masculino, tendo a mulher uma postura passiva na escolha de seu cônjuge, uma vez que sua vontade era desconsiderada. Nessa época a sociedade era regulada fortemente pelos princípios morais da Igreja, havendo assim uma grande valorização da virgindade e honra feminina. A autora destaca que, com o progresso da industrialização, da urbanização, dos meios de comunicação e da tecnologia, e com o aumento da importância dos indivíduos, as escolhas foram se modificando, diminuindo a influência da família e aumentando as decisões de ordem individual e afetiva.

Não obstante, cumpre destacar que as mudanças mais notáveis envolvendo o universo feminino e as relações amorosas aconteceram a partir da segunda metade do século XX. Tais transformações foram impulsionadas por fatores como o desenvolvimento científico-tecnológico, o êxodo rural, a modernização das cidades e a revolução sexual iniciada na década de 1960, assinalada pela introdução da pílula contraceptiva, que contribuiu para o afrouxamento de princípios morais cristãos ligados à sexualidade e aos deveres familiares (Del Priore, 2006).

Assim, apresentamos neste artigo os resultados de uma pesquisa que objetivou identificar e analisar as variáveis envolvidas na escolha do primeiro cônjuge por parte de mulheres de uma cidade localizada no interior de Goiás, pertencentes a duas gerações (avós e netas), e como estas afetam sua esfera subjetiva. Ademais, buscamos refletir acerca do processo de escolha conjugal da mulher, mostrando sua evolução ao longo dos anos, além de verificar as diferenças e semelhanças entre as duas gerações quanto ao grau de importância das variáveis pesquisadas na escolha do primeiro cônjuge e discutir os fatores sócio-histórico-culturais ligados à escolha conjugal da mulher e como estes afetam sua esfera subjetiva.

O texto se subdivide em quatro partes. Na primeira fazemos uma breve exposição sobre a história da mulher no Mundo Ocidental e no Brasil e sua interface com o processo de escolha conjugal e descrevemos estudos recentes sobre esta temática; na segunda apresentamos o percurso metodológico da pesquisa; no terceiro analisamos os dados; e na quarta parte trazemos algumas considerações acerca do estudo.

A HISTÓRIA DA MULHER NO OCIDENTE E NO BRASIL: BREVE RESGATE.

Na sociedade feudal europeia (consolidada entre os séculos IX e XIII), durante a Idade Medieval, predominava a importância da religiosidade, de modo que a Igreja Cristã exercia forte influência e poder social, especialmente na difusão e manutenção de valores relacionados ao matrimônio. Através do casamento transformado em sacramento, buscava-se controlar o comportamento dos indivíduos, inclusive em termos sexuais. O amor excessivo e o prazer carnal eram fortemente recriminados pelos moralistas cristãos, devendo a sexualidade ter como finalidade única a procriação. Quanto à esposa, esta deveria venerar o marido e submeter-se às suas ordens, sendo sua importância no meio familiar diretamente relacionada à capacidade de gerar filhos (Bauer, 2001).

Kolontai (2008) acrescenta que na época do feudalismo imperavam na escolha do cônjuge os interesses familiares e o cumprimento de suas tradições. A moça não tinha liberdade de escolha, enquanto o rapaz que preferisse uma mulher cujas características fossem destoantes daquelas almejadas pela família, teria que enfrentar censuras e reprovações seríssimas. Os sentimentos de caráter pessoal não deveriam se sobrepor à vontade familiar, uma vez que, na ideologia da sociedade feudal, amor e matrimônio não podiam estar ligados. Sendo assim, as relações sexuais ficavam restritas ao ato físico.

Com a formação da moral burguesa, a partir dos séculos XIV e XV, os ideais da cultura feudal passaram a perder força, dando espaço para novas condutas nas relações sexuais, através da indissociação entre casamento e amor. Esse novo ideal burguês de amor, representado pela união entre atração física e afinidade psíquica, embora fosse violado, colocava-se como um forte instrumento para consolidação do núcleo familiar como base da unidade econômica burguesa, fundada no consumo e no acúmulo de capital. O amor passou a ser considerado como sentimento legítimo apenas no matrimônio, com a finalidade de fortalecer a família enquanto instituição geradora de riquezas, isolada e alheia ao restante da sociedade, atendendo assim aos interesses burgueses (Kolontai, 2008).

A Idade Moderna (século XVI até finais do século XVIII), conforme Bauer (2001), foi marcada por muitas transformações, especialmente nos âmbitos econômico e cultural, como: expansão do comércio internacional e das cidades; ascensão da classe burguesa, detentora dos meios de produção; crescimento do poder centralizador do Estado através das monarquias absolutistas; enfraquecimento do monopólio da Igreja Católica a partir da ascensão do protestantismo; paulatina substituição do teocentrismo (explicação e visão do mundo baseada nos saberes religiosos) pelo humanismo (exaltação de aspectos humanos); e o consequente fortalecimento da ciência empírica. Não obstante, de acordo com esse autor, tais mudanças não trouxeram progresso ao universo feminino, ocorrendo o distanciamento gradativo da mulher do trabalho institucional, sendo seu papel cada vez mais limitado ao serviço doméstico e cuidado dos filhos.

Em meados do século XVIII, com o triunfo da burguesia e fortalecimento do mercantilismo na Europa, especialmente na Inglaterra, a configuração nuclear de família passou a ganhar força no seio social. Nessa fase houve uma clara definição dos papéis desempenhados por homens e mulheres na classe burguesa. Estas passaram a se dedicar prioritariamente às tarefas domésticas e à educação e cuidado dos filhos, enquanto os primeiros se encarregavam de trabalhar fora e garantir o sustento financeiro da família. O conceito de trabalho nesse momento passou a ser utilizado como referência exclusiva às atividades realizadas fora do lar pelo homem. Nessa conjuntura, o principal objetivo da educação das jovens burguesas era prepará-las para o matrimônio, a união conjugal e o cuidado com os filhos. Tais ideais burgueses referentes à figura feminina e à família passaram a adquirir ainda mais força ao longo do século XIX, difundindo-se por todos os estratos da sociedade (Bauer, 2001).

O rápido crescimento industrial do século XVIII, as novas ideologias e a configuração da sociedade de classes, marcada pela desigualdade social, impulsionaram o surgimento de uma nova era: a Idade Contemporânea. Embora na primeira metade do século XX a participação feminina no mercado de trabalho começasse a ganhar maior impulso, foi apenas a partir da segunda metade desse século que ocorreram mudanças expressivas geradoras de avanços mais duradouros para o universo feminino em termos sociais, culturais e ideológicos. Na década de 1960 iniciam-se vários movimentos sociais que questionavam os valores e ideologias existentes, liderados por mulheres estudantes, pacifistas e antirracistas, trazendo à tona as contradições de uma sociedade dita igualitária (Bauer, 2001).

Já no tocante ao Brasil-Colônia, Araújo (2009) relata que a sexualidade feminina, exceto em sua função exclusivamente procriadora, foi alvo de forte repressão por parte da Igreja, das leis do Estado e também da sociedade, todos tomados por preconceitos e sentimentos de aversão à figura da mulher. Essa contenção à expressão da sexualidade feminina estava no fato de que esta representava uma ameaça significativa ao equilíbrio do lar, às regras da moral e dos bons costumes que garantiam a estabilidade do grupo social, assim como às próprias instituições civis e religiosas.

No período colonial, conforme destaca Levy (2009), as alianças matrimoniais visavam predominantemente aspectos econômicos, continuando a decisão quanto ao casamento e à escolha do futuro marido uma atribuição do pai da moça, excluindo-se a paixão, atração física e o amor dos critérios de seleção. A mulher desempenhava um papel passivo, e sua virgindade enquanto sinônimo de honra era fortemente valorizada, o que não se observava em relação ao homem. A autora destaca que nessa época os casamentos de pessoas de idades diferentes eram bastante comuns, especialmente entre moças jovens e homens mais velhos, enquanto a desigualdade do ponto de vista social ou religioso era desaprovada e malvista.

De acordo com D'Incao (2009), o século XIX no Brasil, acompanhando as transformações ocorridas na Europa Ocidental, caracterizou-se por um amplo leque de significativas mudanças no cenário social, como o progresso da urbanização e posterior modernização das grandes cidades, a consolidação do sistema capitalista e ascensão da burguesia, que propunha novos valores, padrões de comportamento e concepções acerca da instituição familiar, do papel feminino e do amor. Segundo a autora, surgiu nesse período uma nova imagem de mulher na família burguesa, agora ligada exclusivamente à maternidade, aos cuidados domésticos e à dedicação ao marido. Ocorreu também uma separação entre o público e o privado, de modo que o lar burguês tornou-se espaço de intimidade, privacidade e expressão de emoções, reservado exclusivamente ao núcleo familiar, o qual passou a se constituir cada vez mais isolado do restante da sociedade.

A mulher burguesa, ao ser tomada como exemplo moral para a sociedade, deveria exercer controle sobre as manifestações de sua sexualidade e de suas emoções, de modo a preservar sua imagem. A escolha do cônjuge nesse período era de responsabilidade do pai, sendo a virgindade uma exigência que garantiria à futura esposa valor financeiro e político, já que as uniões se estabeleciam por conveniência. Durante o namoro, o contato físico entre os namorados era bastante limitado nas camadas mais abastadas, onde o controle familiar tinha uma maior rigidez (D'Incao, 2009).

Sohiet (2009) destaca que as mulheres das camadas populares que habitaram o Brasil do final do século XIX e início do XX, embora sofressem as pressões da cultura dominante - de traço burguês -, apresentavam características e condutas peculiares. Devido a sua realidade específica, as camadas populares do começo do século XX não introjetaram com rapidez o modelo da família nuclear burguesa, assumindo por muito tempo na história uma multiplicidade de configurações de vida familiar (concubinato, ajuda dos filhos no sustento do lar, mães solteiras e chefes de família, família extensa) (Fonseca, 2009).

Assim como no restante do Mundo Ocidental, no Brasil o século XX, especialmente a segunda metade deste, caracterizou-se como palco de profundas transformações no cenário social, moral, econômico e político, as quais contribuiriam para o processo de emancipação feminina, associado a novas posturas e perspectivas nas relações entre os sexos.

De acordo com Del Priore (2006), nesse momento o mundo presenciou uma grande revolução científico-tecnológica, gerada pela ampliação do capitalismo, a qual resultaria em mudanças de hábitos, crenças e percepções, especialmente no fim do século. Cada vez mais a mulher passou a reivindicar liberdade e igualdade de direitos em relação ao homem. A influência da religião e o controle familiar iam perdendo força, dando espaço para condutas sexuais mais liberais e para o culto ao amor e busca prioritária do prazer e da satisfação pessoal.

Por outro lado, apesar de tantas mudanças, Del Priore (2006) destaca que, em plena década de 1970, valores e padrões de comportamento que perduraram durante gerações anteriores continuavam presentes. Da mulher continuavam a ser exigidos atributos de boa esposa e mãe e sua imagem continuava a se relacionar à esfera doméstica.

Diante o exposto, é importante reconhecermos que a instituição familiar, a dinâmica das relações de gênero, amorosas e conjugais contemporâneas e de outras épocas não são fenômenos naturais, mas sim, construções históricas que se estabeleceram sob impacto de fatores culturais, políticos, econômicos e sociais.

Após esse breve resgate da história da mulher no Ocidente e no Brasil, consideramos relevante destacar alguns estudos brasileiros recentes referentes à temática da escolha conjugal, antes de apresentarmos nosso percurso metodológico.

No que diz respeito aos fatores envolvidos na escolha conjugal, pesquisas recentes trazem resultados que apontam diferentes aspectos. Guelfi, Frasson e Baltazar (2006), em uma pesquisa com 25 homens e 25 mulheres objetivando analisar quais os critérios que predominam na escolha do parceiro amoroso na atualidade, verificaram que fatores ligados a paixão, afetividade e compatibilidade exercem significativa importância. Silva, Menezes e Lopes (2010), para investigar os fatores motivadores da escolha do cônjuge, realizaram um estudo com casais não coabitantes que se encontravam no momento prévio ao seu primeiro casamento. Os resultados evidenciaram a existência de motivações transgeracionais, pautadas no modelo de relação conjugal dos pais, bem como uma maior procura, no parceiro, por semelhanças do que por complementaridades.

Dias e Alves (2004), buscando respostas relacionadas aos fatores nos quais os sexos se baseiam para a escolha do parceiro conjugal, fizeram um estudo bibliográfico do tema, além de uma pesquisa de campo com 238 sujeitos casados, de ambos os sexos. No grupo de mulheres, os critérios considerados mais importantes na ocasião da escolha do cônjuge foram: modo de ser, valores morais/éticos e ser trabalhador; já no grupo do sexo masculino os três fatores mais importantes foram: modo de ser, valores morais/éticos e aparência. Tais achados apontam aproximações dos critérios em relação ao gênero, trazendo à tona a influência de aspectos subjetivos e de cunho moral na seleção do cônjuge. Outro estudo, realizado por Garcia e Maciel (2008), indicou que a religião influenciou as estratégias utilizadas na procura do futuro cônjuge no grupo de sujeitos pesquisados.

O PERCURSO METODOLÓGICO

A amostra foi composta por dez avós que se casaram (incluindo coabitação estável) pela primeira vez até a década de 1960 e suas respectivas netas que nasceram após 1980 e se casaram (incluindo coabitação estável) pela primeira vez após o ano de 2000, residentes em uma cidade do Interior de Goiás. Foi selecionada uma neta para cada avó, porém o intuito do estudo não foi fazer uma análise comparativa de cada dupla isoladamente, mas sim, uma análise do processo de escolha nas diferentes gerações.

Como instrumento de pesquisa utilizamos entrevista individual semiestruturada, guiada por um roteiro de perguntas abertas e um cabeçalho para identificação de dados sociodemográficos. Nas entrevistas, que foram gravadas com a prévia autorização dos sujeitos, estes foram questionados sobre a existência de liberdade na escolha conjugal, os principais motivadores dessa escolha e o grau de importância de diferentes variáveis na seleção do primeiro marido, como religião, aspectos físicos, fatores financeiros e afetivos, entre outros.

Os participantes foram recrutados por intermédio dos alunos de uma instituição de ensino superior, aos quais os pré-requisitos da pesquisa foram informados oralmente, durante visitas em sala de aula. Caso não atendessem ao perfil apontado, os alunos foram encorajados a indicar familiares ou conhecidos. Os dados foram coletados nas residências dos sujeitos em horários pré-agendados pessoalmente ou por telefone, após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantir o sigilo quanto à identidade dos participantes e possibilitar a distinção das falas no texto, as duplas de avós e netas foram numeradas de 1 a 10, de acordo com a ordem das entrevistas.

Na análise buscamos captar, através das falas, os sentidos expressos pelos sujeitos acerca dos fatores relacionados à escolha do primeiro cônjuge e suas determinações constitutivas. Para tanto, as respostas dos dois grupos (avós e netas) foram inicialmente categorizadas e organizadas em núcleos de significação, os quais expressam o significado atribuído pelos indivíduos a suas vivências - este caso, as referentes às variáveis envolvidas na seleção da primeira parceria conjugal. Posteriormente, os discursos reunidos em núcleos foram articulados com o processo sócio-histórico que os constituiu (Aguiar, 2002).

ANÁLISE DOS DADOS: ENTREVISTAS COM AS AVÓS E NETAS

A partir dos resultados da análise das entrevistas com as avós, concluímos que a maioria das entrevistadas não se sentiu coagida pela família de origem no momento da escolha, porém 30% reconhecem que sua decisão não foi totalmente autônoma: "Não senti pressionada não, ... Antigamente a mulher foi criada pra ser casada" (avó D1); "Eu era muito criança, tinha 15 anos, morava na fazenda, era boba, não tinha experiência, ..." (avó D6).

Os fatores que mais pesaram na escolha conjugal da maioria das avós foram: aprovação familiar, atributos ligados ao caráter e conduta moral (honesto, respeitador, trabalhador) exceto fidelidade, fatores econômicos e o controle de ciúme por parte do futuro cônjuge. As demais variáveis apontadas, para a maior parte das entrevistadas, não tiveram nenhuma importância na escolha, menos o status social, cujo peso foi muito relevante para 50% das avós e nada importante para a outra metade.

Conforme Del Priore (2006), por volta da década de 1950, teoricamente, a escolha do cônjuge deveria ficar a cabo dos partícipes, pois o casamento arranjado, baseado unicamente na vontade dos pais, havia se tornado obsoleto; mas na prática, a interferência da família de origem continuava a ter um peso fortíssimo. A aprovação dos genitores era vista como condição essencial para a concretização e sucesso do matrimônio. O esposo ideal deveria ter bom caráter, ser sério, íntegro, respeitador, honesto e ter capacidade de garantir o sustento financeiro da família.

Os depoimentos coletados revelam que as avós se viam como muito novas, despreparadas e imaturas no momento da escolha, não tendo postura crítica e exigente com relação aos critérios de seleção do cônjuge, o que as tornava mais suscetíveis à influência familiar. Segunda elas, essa conduta de passividade e conformidade era atribuída, em grande parte, à idade.

Diante do exposto, pudemos perceber dificuldades das entrevistadas em identificar os reais motivadores de suas ações e formas de pensar, agir e estabelecer um nexo crítico entre sua ação, a finalidade desta e suas consequências reais. Partindo da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, podemos analisar esse contexto de passividade como reflexo de um processo de alienação. Martins (2004) aponta que esse fenômeno impede que o indivíduo se manifeste livremente, realize seu potencial criador e assuma um papel ativo na construção de sua própria vida e em atividades que promovam a quebra de preconceitos e relações de dominação. Segundo a autora, a superação da alienação inerente às relações sociais capitalistas de produção requer do indivíduo uma reflexão crítica sobre seus atos, que aponte para os aspectos sócio-históricos e culturais mais amplos que os integram. A educação, neste sentido, coloca-se como instrumento fundamental para se atingir esse propósito.

Assim, além da faixa etária, podemos dizer que outros fatores contribuíram para essa postura passiva e acrítica das entrevistadas, como o baixo acesso à educação formal e a vida rural, das quais esta última representava obstáculos à socialização e mobilidade dos sujeitos. Ademais, Bassanezi (2009) relata que uma "boa moça", nesta época, deveria ter autocontrole, respeitar e obedecer a seus pais, ser dócil, pura, resignada, recatada e submissa, características apreciadas por rapazes em uma esposa. Assim, como o matrimônio era o destino principal da mulher e instrumento importante de ascensão social e segurança financeira, atitudes transgressoras, revolucionárias ou questionadoras dos valores e da moral vigente eram fortemente reprimidas.

A importância dada aos fatores financeiros pelas entrevistadas, especialmente à capacidade de provimento material do futuro marido, pode ser explicada a partir dos papéis ocupados pela mulher nesse período, nitidamente distintos das funções masculinas. Del Priore (2006) ressalta que, na primeira metade do século XX, a Igreja, o Estado e a mídia, por meio do rádio e de revistas femininas formadoras de opinião, preconizavam uma imagem de mulher ligada exclusivamente à maternidade, aos cuidados domésticos e do marido, seu destino "natural"; portanto era esperado da mulher que se dedicasse prioritariamente à esfera privada, ou seja, ao lar. Ao homem caberiam a responsabilidade pelo sustento financeiro, a ocupação da esfera pública e a função de chefe da família, detentor do poder e gerenciador das decisões nesse âmbito. A autora destaca ainda que o Código Civil de 1916, em consonância com os princípios religiosos, mantinha a indissolubilidade do matrimônio, com a proibição do divórcio, e retratava a mulher como um ser frágil, inferior e dependente do marido. Não havia defesa de igualdade entre os sexos, estando as ações femininas totalmente subordinadas à aceitação e permissão do esposo.

As falas dos sujeitos também ressaltam a forte repressão à sexualidade feminina e suas formas de manifestação:

... Meu pai era muito severo, ele não deixava a gente sair com o namorado, .... Ele [futuro marido] ia namorar em casa, eu não ficava só com ele, sempre meu pai e meu irmão ficava comigo, .... Fui beijar no dia do meu casamento (avó D3).

Uma vez que eu fui sentar perto dele [futuro cônjuge] na sala, o meu irmão veio e montou a maior briga, porque disse que ele tava com a mão no meu ombro. Nós não teve contato de namoro não (avó D10).

Na fase de namoro o contato físico era restrito e supervisionado pela família da moça, e as expressões de afeto não existiam ou eram fortemente contidas, uma vez que a virgindade deveria ser preservada a qualquer preço. Até mesmo a única entrevistada que declarou ter transgredido essa última norma, não escapou do peso da moral sexual vigente, manifestado por seu relato de profundo pesar e arrependimento após o ato:

... eu tinha medo, mas ele [futuro cônjuge] foi amansando até que eu dei na ideia [pausa]. Depois eu chorei, achei ruim, porque eu falei: "Por que que eu fui fazer um trem desse?". ... eu pensava: "Agora os outro vai falar mal de mim e descobrir, ... (avó D9).

Ao discorrer sobre a questão da sexualidade na década de 1950, Bassanezi (2009) aponta que a moral desse período estabelecia que para a mulher o sexo não deveria estar ligado ao prazer, mas sim, à procriação e à satisfação das necessidades do marido. A autora ressalta que durante o namoro e noivado a moça deveria evitar intimidades com o rapaz, conter seus desejos e preservar sua virgindade, a qual representava a manutenção de sua honra e pureza, atributos essenciais para uma futura esposa. Por ser tratado como tabu, sexo era assunto que não deveria ser comentado explicitamente, o que culminava na desinformação, despreparo e ignorância das mulheres sobre esse tema.

Outro fator importante verificado nas entrevistas foi a irrelevância da fidelidade masculina no momento da escolha. Muitas avós relataram ter tido conhecimento de traições do noivo, o que não se colocou como obstáculo à união conjugal: "Antigamente parece que ser infiel era normal, ... Era normal pro homem, pra mulher, nossa senhora! [pausa]. Antigamente a mulher não podia fazer nada, o homem podia fazer tudo, ... e podia voltar pra casa e continuar marido" (avó D2); "... a gente não era marido e mulher, então eu não podia exigir dele [futuro cônjuge] que ele ficasse sem mulher, eu não dormia com ele, ... não era casada ainda ..." (avó D5).

Del Priore (2006) e Bassanezi (2009) salientam que nessa fase histórica a tolerância e a aceitação do adultério masculino eram reforçadas pela crença de que o homem, diferentemente da mulher, possui demanda frequente de satisfação de seus impulsos sexuais, estes caracterizados como necessidade de ordem instintiva e biológica. Opostamente, conforme as autoras, a infidelidade feminina era fortemente condenada pela sociedade, a ponto de homens agentes de crimes passionais e ações violentas serem perdoados e inocentados pela lei, sob a alegação de defesa da honra. Além disso, a imprensa da época associava o comportamento adúltero feminino à baixa aptidão e capacidade para maternidade.

Embora a presença de romantismo, afetividade e atenção fosse valorizada, a maioria das avós relatou que esses fatores não tiveram peso na seletividade marital. Apenas dois sujeitos relataram ter se casado "por amor". Bassanezi (2009) relata que nos "Anos Dourados" o amor no casamento era valorizado, porém não de forma prioritária. Segundo a autora, o amor romântico defendido se pautava na razão, e não em atos passionais que colocassem em risco a ordem e a moral vigente. Romantismo e sensibilidade eram vistos como atributos particularmente femininos e não masculinos, cabendo à esposa a expressão de comportamentos ligados à expressão de afeto.

A partir de todo esse panorama, percebe-se que as mulheres dessa geração eram menos criteriosas na seleção conjugal do que os homens. Del Priore (2006) ressalta que a iniciativa da escolha partia destes últimos, norteados pelos padrões sociais que ditavam as qualificações exigidas de uma futura esposa, ou seja, docilidade, obediência, submissão e habilidades relacionadas ao cuidado doméstico e dos filhos.

Para a Psicologia Histórico-Cultural, a compreensão da realidade concreta dos indivíduos é imprescindível para a investigação acerca de sua dimensão psicológica. Martins (2004) ressalta que, na visão dessa vertente, a personalidade não é um fenômeno natural, mas se constitui nas relações dialéticas que o sujeito estabelece com a realidade externa e objetiva, internalizando aspectos desta, ao mesmo tempo em que atua sobre ela e a transforma em um movimento dinâmico e contínuo.

Na análise dos dados coletados nas entrevistas com as netas destacamos que a maioria destas, ao contrário das avós, teve liberdade na eleição do primeiro cônjuge: "Tive total liberdade para namorar, escolher com quem namorar, com quem casar, tudo normal, espontâneo" (neta D7); "Totalmente, foi escolhido a dedo" (neta D10).

Embora cerca de 50% das entrevistadas tenham se casado principalmente por estarem grávidas, fatores secundários relacionados a atributos do parceiro também exerceram influência em sua decisão. De forma geral, as netas se mostraram significativamente mais seletivas e exigentes que as avós. Todas as variáveis apontadas tiveram algum grau de importância na escolha para pelo menos 50% das netas entrevistadas, exceto a aprovação dos amigos, religião e senso de humor; entretanto, em ordem hierárquica decrescente, os fatores que tiveram peso maior para a maioria das netas foram: controle de ciúme, honestidade e fidelidade, fatores econômicos, atenciosidade, fatores sexuais, afetividade, e compatibilidade de ideais.

Os avanços da industrialização, urbanização e tecnologia advindos da ascensão do capitalismo promoveram mudanças importantes no âmbito social, econômico, político e cultural, especialmente na segunda metade do século XX. Conforme Hime (2008), nas últimas décadas o Mundo Ocidental tem sofrido transformações rápidas, que se refletiram também nas relações de gênero: profissionalização feminina1 1 Aqui se faz referência principalmente à mulher de classe média/alta, pois nas classes menos privilegiadas o trabalho externo feminino se instalou mais precocemente, como resultado de necessidades financeiras. , separação entre sexualidade e maternidade com a introdução dos métodos contraceptivos, legalização do divórcio, entre outros fatores. Nesse contexto surge uma nova imagem de mulher, a qual busca ao mesmo tempo liberdade, independência e realização pessoal, social e profissional. A autora aponta ainda que a partir da década de 1980 surgiram estudos científicos propondo uma reflexão crítica em torno da imagem e dos papéis das mulheres, desmistificando crenças e rompendo com concepções estereotipadas e naturalizantes acerca do universo feminino.

O controle de ciúme por parte do cônjuge foi apontado pelas netas como condição fundamental para a concretização da escolha. Essa postura pode ser explicada a partir do ideal feminino presente na contemporaneidade, advindo das conquistas e transformações acima referidas: mulher forte, autônoma e "dona de seu nariz". Esse panorama revela um enfraquecimento das relações de submissão e dominação, típicas de uma sociedade patriarcal.

A honestidade, assim como na geração das avós, continua sendo um atributo fortemente valorizado pelas netas, porém aparece na fala destas associada à ideia de fidelidade: "Pesou MUITISSIMO, porque se não for fiel, acabou o respeito, acabou tudo, ..." (neta D4).

Diferentemente das avós, as netas atribuíram grande relevância à fidelidade, o que pode estar relacionado a novos valores e padrões de comportamento envolvendo a fase do namoro. Levy (2009) destaca que o namoro atual se baseia em uma relação afetiva, amorosa, que implica comprometimento entre as partes. Ademais, o sexo passou a ser uma prática comum antes do casamento, invalidando as justificativas anteriores para o adultério masculino.

No tocante aos fatores financeiros, a renda do cônjuge e a estabilidade financeira trazida por ele foram critérios de grande peso no processo de escolha de quase todas as netas. Muitas delas, mesmo aquelas inseridas no mercado de trabalho e possuidoras de diploma de curso superior, demonstraram crenças de que o homem é o principal responsável pelo sustento da casa e da família, o que reflete a tradicional divisão de papéis sociais:

Eu não ia casar com uma pessoa que não tinha condição de me sustentar, de sustentar uma casa, .... Eu acho que a questão de casa tem que ser o homem - contas, comida, essas coisas, ... acho que mulher tem que ajudar, mas a maior parte, coisas básicas, quem deve fazer é o homem ... (neta D7).

Eu acho que nós dois trabalhamos, o dinheiro é nosso, ... mas as despesas que são básicas de casa - água, comida, luz, alimentação - isso tudo é despesa fixa dele. Eu, mulher, entro na hora de comprar um presente, na hora de comprar uma roupa ... (neta D10).

O discurso da neta da D10 apontado anteriormente mostra que a divisão das despesas não se dá de forma igualitária, mas segue a antiga divisão sexual do trabalho: o homem se encarrega do pagamento das contas fixas (água, luz, aluguel, etc.), enquanto a mulher contribui com itens mais supérfluos, como roupa e presentes.

Apesar da crescente profissionalização e escolarização feminina, percebe-se que o papel do homem como provedor prioritário do sustento familiar e doméstico continua fortemente enraizado em nossa sociedade. Em sua dissertação de mestrado, Rodrigues (2008) buscou investigar o impacto do ganho financeiro feminino no casamento contemporâneo, bem como a percepção da mulher quanto às tomadas de decisões econômicas do casal. Seus resultados apontam que o trabalho, para a mulher de classe média/alta, coloca-se como meio de realização pessoal, obtenção de autonomia em suas decisões e satisfação de necessidades de gastos individuais.

Os fatores ligados à esfera afetiva também foram bastante relevantes na eleição do cônjuge, porém o atributo atenciosidade teve um peso ligeiramente maior que a afetividade: "O [nome do marido] é carinhoso, muito prestativo, muito atencioso, sempre preocupado com detalhes, sempre preocupado com meu bem-estar, o que me agrada ou que não me agrada ..." (neta D10).

Podemos dizer que a liberdade e independência conquistada pela mulher propiciou a procura por maior igualdade entre os gêneros, além de satisfação e bem-estar pessoal, de modo que amor, afeto e prazer tornaram-se fatores muito valorizados nas relações conjugais contemporâneas e, consequentemente, na eleição do parceiro. Conforme Rodrigues (2008), os indivíduos passaram a buscar uns nos outros a satisfação de suas necessidades afetivas e sexuais, já que o sexo abandonou sua função única de reprodução e se transformou em instrumento de prazer. Assim, a segunda metade do século XX consolida a união entre matrimônio, amor e prazer.

Araújo (2002) assinala que a aliança entre amor, casamento e sexualidade surge como ideal criado pela ordem burguesa, adquirindo forma a partir do século XVIII. A autora destaca que esse ideal de conjugalidade acarretou nos dias de hoje a criação de expectativas e idealizações em torno dos relacionamentos amorosos. Assim, na busca incessante por paixão e prazer, o ser humano se frustra e as relações conjugais tornam-se cada vez mais descartáveis.

As considerações acima também servem para explicar a grande ênfase dada pelas netas à atração sexual no processo de escolha. Conforme mostra Del Priore (2006), o afrouxamento dos princípios morais religiosos, a maior socialização advinda do processo de modernização e urbanização e a inserção dos métodos contraceptivos resultaram na busca de ambos os sexos por liberdade e satisfação sexual. A autora pontua que entre as décadas de 1960 e 1970 eclodiu a chamada "revolução sexual", com a introdução da pílula anticoncepcional. Iniciou-se a era do culto ao amor, à liberdade sexual, ao prazer e, sobretudo, à realização pessoal. O forte pudor, que outrora marcava as relações amorosas, vai se esvanecendo, abrindo espaço para expressões mais explícitas de desejos e afetos.

Diferentemente das avós, a compatibilidade de ideais foi outro fator muito importante apontado pelas netas no processo de seleção marital. Boa parte delas relatou ter buscado nos parceiros semelhanças nos valores relacionados à criação dos filhos, à importância dada à família e a planos futuros: "Tem que ter compatibilidade com as suas ideias, quando pensa em arrumar filho, trabalho, sei lá, tudo eu acho que tem que ser um compatível" (neta D7).

Além das questões culturais, a distinção observada entre as gerações quanto ao peso dessa variável na escolha pode ser compreendida também pela duração do namoro, significativamente maior no caso das netas. O contato restrito e o pouco diálogo estabelecido com o futuro cônjuge na época precedente ao casamento impossibilitavam as avós de conhecer melhor os valores, crenças e atitudes de seus parceiros, a fim de identificar pontos comuns e divergentes dos seus.

Diante desses resultados verificamos que, embora tenham ocorrido transformações significativas em termos culturais, sociais, econômicos e políticos ao longo das gerações estudadas, muitos valores e padrões de antes ainda se encontram presentes nos dias de hoje. O processo de emancipação feminina resultou na redução da influência da família de origem na escolha conjugal das netas. Na busca pelo pleno exercício de sua liberdade, estas abandonaram a postura de obediência e submissão aos genitores adotada pelas gerações anteriores. Por outro lado, ainda persistem as crenças relacionadas ao papel do homem como principal provedor do lar e à valorização de atributos ligados à conduta moral do cônjuge, observadas nas avós.

Todas essas reflexões sobre o percurso histórico da mulher e seus desdobramentos são fundamentais para uma compreensão ampla acerca dos aspectos subjetivos motivadores da escolha, pois, conforme Martins (2004), o processo de formação da personalidade ocorre em intercâmbio com o contexto social objetivo da vida do sujeito. Assim temos que as escolhas individuais, as quais refletem a dimensão subjetiva humana, são estabelecidas a partir de um processo histórico-social, não sendo conteúdos inerentes ao indivíduo. Buscar essa análise crítica sobre os fenômenos psicológicos representa um grande desafio, que sem dúvida resultará em enormes avanços para a Psicologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória histórica da mulher e dos relacionamentos amorosos nos mostra que crenças, valores e padrões de comportamento relacionados à seletividade marital não são conteúdos estáticos e muito menos pertencentes à natureza humana. São processos que se constituem nas relações que o indivíduo estabelece com a realidade objetiva e, sendo assim, refletem os aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais a ela relacionados.

Destacamos, na análise dos resultados das entrevistas, que o processo de eleição do cônjuge sofreu mudanças significativas ao longo das duas gerações (avós e netas), porém mais no sentido de incorporação de novos valores do que de abandono dos antigos. As netas passaram a buscar mais autonomia em suas ações, rejeitando a postura submissa à família de origem assumida pelas avós; contudo, a influência familiar ainda permanece, mesmo que de forma suavizada.

As netas se mostraram significativamente mais exigentes e criteriosas em suas escolhas que suas avós, especialmente aquelas com nível maior de escolarização e já inseridas no mercado de trabalho. Por outro lado, a presença de fatores como gravidez e dependência financeira limitou a autonomia de escolha de algumas netas, porém não totalmente, na maioria dos casos.

O percurso histórico da família nos aponta a passagem de um modelo patriarcal, caracterizado pelo imperativo da autoridade paterna, para a família nuclear contemporânea, na qual os membros buscam cada vez mais igualdade de direitos e respeito mútuo em suas relações. A escolha matrimonial, antes realizada pelo pai a fim de garantir o patrimônio financeiro e o status familiar, passou gradualmente a ser de responsabilidade dos parceiros. Não obstante, a mudança de crenças e padrões de comportamento entre as gerações não se dá de forma breve, linear e bem-definida. É um processo marcado por contradições e paradoxos, com rupturas e a permanência de valores ocorrendo paralela e concomitantemente. Nesse cenário, crenças antigas e novos padrões de conduta se misturam e se interpenetram, gerando uma multiplicidade de configurações e modelos, com limites difíceis de estabelecer.

Todo esse panorama acaba gerando as incoerências e ambiguidades que hoje presenciamos. A mulher busca constantemente independência financeira, mas ainda espera que o homem a sustente e continue sendo o principal financiador dos gastos familiares e domésticos. Deseja se desenvolver e se igualar ao sexo masculino no campo profissional, porém continua priorizando a maternidade. Não quer mais adotar uma postura submissa ao homem, entretanto queixa-se quando este não se impõe e deixa de assumir as rédeas do relacionamento.

No tocante à escolha conjugal, percebemos que a liberdade conquistada pela mulher, especialmente nas últimas décadas, resultou em fortes exigências com relação aos critérios fixados para a seleção do parceiro. Com algumas variações no grau de importância de cada fator, busca-se tudo simultaneamente: afeto, estabilidade financeira, autonomia, fidelidade, honestidade, beleza, inteligência, satisfação sexual, compatibilidade de ideais, etc. A busca pelo prazer e bem-estar individual tornou-se algo imprescindível, diminuindo a tolerância dos sujeitos a qualquer frustração que possa ocorrer na convivência entre duas pessoas diferentes.

Na verdade, a intenção do estudo não foi levantar posicionamentos a favor ou contra uma geração ou outra, mas sim, trazer à tona uma reflexão crítica sobre as mudanças ocorridas ao longo do século e o impacto dessas nas relações de gênero, na organização familiar, na imagem da mulher e também nos critérios envolvidos na escolha conjugal feminina.

A história da mulher e o processo de escolha conjugal das mulheres são marcados por contradições, lutas, avanços e retrocessos. Entender o indivíduo como ser que se constitui subjetivamente em um processo histórico e dialético é imprescindível para que ocorram transformações sociais efetivas, geradoras de bem-estar e relações pautadas na solidariedade, colaboração e respeito mútuo entre os seres humanos.

Recebido em 22/03/2012

Aceito em 09/06/2013

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    Aqui se faz referência principalmente à mulher de classe média/alta, pois nas classes menos privilegiadas o trabalho externo feminino se instalou mais precocemente, como resultado de necessidades financeiras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2015
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      22 Mar 2012
    • Aceito
      09 Jun 2013
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