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ENSINO, CUIDADO E SUBJETIVIDADE NO CAMPO DA MEDICINA: UM ESTUDO DE CASO

ENSEÑANZA, CUIDADO Y SUBJETIVIDAD EN LA MEDICINA: UN ESTUDIO DE CASO

RESUMO

Considerando as atuais dificuldades enfrentadas em serviços de saúde mental e suas possíveis relações com a formação de profissionais de saúde, este artigo visa discutir como o ensino de medicina foi configurado subjetivamente por uma estudante universitária e as possíveis relações desse processo com alguns dos atuais desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Este trabalho baseou-se num estudo de caso realizado ao longo de quatro meses com uma estudante de medicina de uma faculdade pública do Distrito Federal, onde se faz uso de metodologias ativas de aprendizagem. Foram utilizadas como referenciais a Teoria da Subjetividade, a Epistemologia Qualitativa e a metodologia construtivo-interpretativa de González Rey. Os resultados da pesquisa apontam para a organização de uma subjetividade social do ensino de medicina marcada por processos relacionados ao modelo biomédico, apesar das mudanças institucionais que visam promover um ensino pautado num modelo de atenção biopsicossocial. A participante expressa uma configuração subjetiva em que o cuidado articula-se ao controle e à medicalização, cujo desenvolvimento parece ter sido favorecido pela subjetividade social de seu contexto de ensino. Além disso, pode-se dizer que a subjetividade social do ensino de medicina está possivelmente relacionada a uma subjetividade social manicomial, ainda presente em serviços substitutivos, como os Centros de Atenção Psicossocial, dificultando as mudanças propostas pela reforma psiquiátrica. Por fim, este trabalho enfatiza o caráter subjetivo da aprendizagem, por meio do qual se articulam processos relacionados a diferentes âmbitos de vida da pessoa, como o educacional, o familiar e o cultural.

Palavras-chave:
Ensino de medicina; atenção à saúde mental; subjetividade

RESUMEN

Teniendo en cuenta las dificultades actuales que enfrentan los servicios de salud mental y sus posibles relaciones con la formación de profesionales de la salud, este artículo tiene como objetivo discutir cómo la enseñanza de la medicina fue configurada subjetivamente por un estudiante universitario y las posibles relaciones de este proceso con algunos de los desafíos actuales de reforma psiquiátrica brasileña. Este trabajo se basó en un estudio de caso realizado durante cuatro meses con una estudiante de medicina de una universidad pública del Distrito Federal, donde se utilizan metodologías activas de aprendizaje. La Teoría de la Subjetividad, la Epistemología Cualitativa y la metodología constructivo-interpretativo de González Rey fueron utilizados como referentes. Los resultados de la investigación apuntan a la organización de una subjetividad social en la educación médica marcada por procesos relacionados con el modelo biomédico, a pesar de los cambios institucionales que tienen como objetivo promover una enseñanza basada en un modelo de atención biopsicosocial. La participante expresa una configuración subjetiva en la que el cuidado está vinculado al control y a la medicalización, cuyo desarrollo parece haber sido favorecido por la subjetividad social de su contexto de enseñanza. Además, se puede decir que la subjetividad social de la educación médica posiblemente esté relacionada con la subjetividad social manicomial, aún presente en servicios comunitarios, como los Centros de Atención Psicosocial, lo que dificulta los cambios propuestos por la reforma psiquiátrica. Finalmente, este trabajo expone el carácter subjetivo del aprendizaje, a través del cual se articulan procesos relacionados con diferentes áreas de la vida de la persona, como la educación, la familia y la cultura.

Palabras clave:
Enseñanza de la medicina; atención a la salud mental; subjetividad

ABSTRACT

Considering the current challenges faced in mental health services and their possible relationships with the training of health professionals, this article aimed to discuss how the teaching of medicine was subjectively configured by an undergraduate and the possible relationships of this process with some of the current challenges of the Brazilian psychiatric reform. This study was based on a case study carried out over four months with a medical student from a public college in the Federal District, where active learning methodologies are used. The Theory of Subjectivity, Qualitative Epistemology and the constructive-interpretative methodology of González Rey were used as framework. The results indicate the organization of a social subjectivity of medicine teaching marked by processes related to the biomedical model, despite institutional changes that aim to promote teaching based on a biopsychosocial care model. The participant expresses a subjective configuration in which care is linked to control and medicalization, whose development seems to have been favoured by the social subjectivity of her teaching context. In addition, it can be said that the social subjectivity of medical education is possibly related to a mental hospital social subjectivity, still present in substitute mental health services, such as Psychosocial Care Centers, making the changes proposed by the psychiatric reform more difficult to be accomplished. Finally, this study emphasizes the subjective aspect of learning, through which processes related to different areas of a person's life are articulated, such as education, family and culture.

Keywords:
Medical training; mental health care; subjectivity

Introdução

Os processos educativos expressam as representações de indivíduo e sociedade que se pretende formar. A atual forma de ensino é predominantemente conteudista, de modo a priorizar a aquisição de conhecimentos de forma pouco reflexiva, e pode ser vista como desdobramento de uma cultura em que se valoriza mais a repetição do que o exercício do pensamento crítico. Essa forma de ensino, pautada na passividade do educando, dificulta a aprendizagem criativa, na qual, diferente da simples obtenção de um determinado saber, aquilo que é aprendido passa a funcionar como recurso subjetivo para a geração de novas ideias que confrontem o estabelecido5 5 A aprendizagem criativa representa um processo que tem relação com o conceito de sujeito na perspectiva da teoria da subjetividade, que será apresentado e discutido no decorrer deste artigo. (Muniz & Mitjáns Martínez, 2015Muniz, L. S., & Mitjáns Martínez, A. (2015). A expressão da criatividade na aprendizagem da leitura e da escrita: um estudo de caso. Revista Educação e Pesquisa, 41(4), 1039-1054. https://doi.org/10.1590/s1517-97022015041888
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). Tal situação pode ter como desdobramento a manutenção de situações sociais problemáticas, já que não promove o questionamento por parte daqueles que aprendem e sim a adaptação (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido (17a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.). No intuito de gerar alternativas a tais práticas de ensino reprodutivas, diversas instituições têm adotado metodologias ativas6 6 Metodologias ativas de aprendizagem consistem em formas de ensino que buscam promover a autonomia do aluno em seu processo de aprendizagem, sendo, portanto, metodologias mais centradas na participação do aluno do que na do professor (Prevedello et al., 2017). na formação de seus alunos, o que, todavia, não implica necessariamente na ruptura com formas de ensino hegemônicas (Prevedello, Segato, & Emerick, 2017Prevedello, A., Segato, G., & Emerick, L. (2017). Metodologias de ensino nas escolas de medicina e da formação médica atual. Revista Educação, Cultura e Sociedade, 7(2), 566-577.).

Essa discussão é relevante no contexto da reforma psiquiátrica, pois pode auxiliar a compreender alguns desafios que vêm surgindo com as mudanças dos serviços de saúde mental. A desconstrução de práticas e saberes psiquiátricos dominantes são a base da reforma psiquiátrica e implicam uma ruptura com o paradigma doença-cura, dando lugar a projetos de invenção de saúde e a novas formas de sociabilidade, menos pautadas na lógica de dominação e controle (Rotelli, Leonardis, & Mauri, 2001Rotelli, F., Leonardis, O., & Mauri, D. (2001). Desinstitucionalização, uma outra via. In F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (pp. 17-60). São Paulo: Hucitec.). Contudo, a formação de médicos, enfoque deste trabalho, ainda se baseia principalmente no modelo biomédico, centrado na doença, na medicalização e na relação hierárquica entre profissional e usuário de saúde, distanciando-se das propostas da reforma psiquiátrica (Daltro, Jesus, Bôas, & Castelar, 2018Daltro, M. R., Jesus, M. L. S., Bôas, L. M. V., & Castelar, M. (2018). Ensino da psicologia em cursos de medicina no Brasil. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(2), 38-48.).

A reforma psiquiátrica tem culminado, dentre outros processos, na substituição de hospitais psiquiátricos por outros dispositivos de cuidado, que visam a reinserção social dos usuários, em contraposição à lógica manicomial de exclusão. Porém, essa lógica manicomial pode ainda estar presente nesses serviços substitutivos, expressando-se através de formas de cuidado hierárquicas, medicalizantes e disciplinadoras (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Daí a reivindicação por uma reforma psiquiátrica ‘antimanicomial’, pois a criação de serviços substitutivos ao manicômio não implica, necessariamente, numa forma de relação diferente com as pessoas em sofrimento psíquico (Ornellas, 2007Ornellas, C. (2007). Por uma reforma psiquiátrica antimanicomial: desafios e impasses atuais. In A. M. Lobosque (Org.), Caderno de saúde mental (Vol. 1, p. 109-114). Belo Horizonte, MG: ESP-MG.).

Considerando que mediante uma formação diferenciada dos profissionais seja possível transformar práticas de cuidado no âmbito da saúde mental, este artigo visa discutir o papel da formação universitária de medicina no processo de reforma psiquiátrica, a partir de um estudo de caso realizado com uma estudante de uma faculdade do Distrito Federal onde se faz uso de metodologias ativas, tendo como referenciais a Teoria da Subjetividade, a Epistemologia Qualitativa e a metodologia construtivo-interpretativa de González Rey (2001González Rey, F. (2001). A pesquisa e o tema da subjetividade em educação. Psicologia da Educação, 13., 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros., 2012bGonzález Rey, F. (2012b). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes., 2014González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea., 2015González Rey, F. (2015). A saúde na trama complexa da cultura, das instituições e da subjetividade. In F. González Rey, & J. Bizerril (Orgs.), Saúde, cultura e subjetividade (p. 9-34). Brasília, DF: UniCeub., 2019González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea.; González Rey & Mitjáns Martínez, 2017Goulart, D. M. (2017). The psychiatrization of human practices worldwide: discussing new chains and cages. Pedagogy, Culture & Society, 25(1), 151-156. Doi:10.1080/14681366.2016.1160673
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).

Ensino de medicina e reforma psiquiátrica

No Brasil, a reforma psiquiátrica surgiu num contexto de redemocratização no fim da década de 1970 e foi liderada por trabalhadores da área de saúde mental, usuários dos serviços e seus familiares (Amarante, 2017Amarante, P. (2017). Teoria e crítica em saúde mental (2a ed.). São Paulo, SP: Zagodoni.). Não surgiu na universidade, pois a principal questão que permeava o processo na época era a invenção de práticas diferentes daquelas embasadas pelo saber psi vigente (Lobosque, 2007Lobosque, A. M. (2007). Um desafio à formação: nem a fuga da teoria, nem a recusa da invenção. In A. M. Lobosque (Org.), Caderno de saúde mental (Vol. 1, p. 33-44). Belo Horizonte, MG: ESP-MG.).

A reforma psiquiátrica traz em seu cerne a crítica à noção de neutralidade científica, já que essa concepção não leva em conta que a ciência, queira ou não, traz consigo ideologias - teorias que, inconscientemente, veiculam uma representação de mundo que tem como consequência a legitimação de práticas e o mascaramento de parte dos pontos de vista de quem a defende (Fourez, 1995Fourez, G. (1995). A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo, SP: Fundação Editora da UNESP.). No que diz respeito ao tema deste trabalho, isso é relevante na medida em que o saber psiquiátrico é “[...] um saber bastante comprometido com a necessidade de exclusão das pessoas, do delegatório que a sociedade dá ao psiquiatra de excluir e segregar pessoas” (Rotelli, 2014Rotelli, F. (2014). Superando o Manicômio: o circuito psiquiátrico de Trieste. In P. Amarante (Org.), Psiquiatria social e reforma psiquiátrica (p. 149-170). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz., p. 151). Em consonância com a pedagogia da libertação de Freire (1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido (17a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), Amarante (2017Amarante, P. (2017). Teoria e crítica em saúde mental (2a ed.). São Paulo, SP: Zagodoni.) defende que a reforma psiquiátrica abrange também uma dimensão teórico-conceitual, a qual está estreitamente relacionada à necessidade de formar profissionais de saúde cientes da função social de exclusão que a psiquiatria pode assumir.

As Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de medicina preconizam o ensino de formas de cuidado pautadas na compreensão da pessoa em sua complexidade e que viabilizem a atuação de um profissional crítico e reflexivo em diferentes níveis de atenção à saúde. No entanto, a formação nos cursos de medicina ainda ocorre principalmente em ambientes hospitalares e o modelo explicativo utilizado para compreender que o sofrimento psíquico é o biomédico (Silva, Muhl, & Moliani, 2015Silva, L. A., Muhl, C., & Moliani, M. M. (2015). Ensino médico e humanização: análise a partir dos currículos de cursos de medicina. Psicologia Argumento, 33(80), 298-309. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.33.080.AO06
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). Neste, as enfermidades são entendidas enquanto conjuntos de sintomas padronizados, os quais representam uma forma quantificável de entender a doença, condizente com os princípios de uma ciência positivista. Mas essa noção meramente descritiva de transtorno mental vem propiciando a patologização e a eliminação das singularidades envolvidas no sofrimento dos indivíduos (González Rey, 2015González Rey, F. (2015). A saúde na trama complexa da cultura, das instituições e da subjetividade. In F. González Rey, & J. Bizerril (Orgs.), Saúde, cultura e subjetividade (p. 9-34). Brasília, DF: UniCeub.; Goulart, 2019bGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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).

Um ensino que privilegia a reprodução está relacionado a um processo de padronização de pessoas, que dificulta a invenção de alternativas para problemas que tendem a se renovar, como a permanência de uma lógica manicomial nos serviços de saúde substitutivos (González Rey, 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros.; Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Nos serviços de saúde mental substitutivos, são necessários profissionais capazes de inventar, indo além da lógica de uniformização e reprodução dos protocolos médicos (Rotelli et al., 2001Rotelli, F., Leonardis, O., & Mauri, D. (2001). Desinstitucionalização, uma outra via. In F. Nicácio (Org.), Desinstitucionalização (pp. 17-60). São Paulo: Hucitec.). Segundo Machado e Lavrador (2001Machado, L., & Lavrador, M. C. (2001). Loucura e subjetividade. In L. Machado, M. C. Lavrador, & M. E. Barros (Orgs.), Texturas da psicologia (p. 45-58). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 46),

Nossa intervenção sobre a experiência da loucura nos impõe sempre novos desafios nos quais não cabem fórmulas mágicas e ideais a serem seguidas, mas experimentações provisórias, problematizações, questionamentos e o exercício do pensamento. Experimentação essa que aponta para a criação.

Considerando isso, Merhy (2010Merhy, E. (2010). Desafios de desaprendizagens no trabalho em saúde: em busca de anômalos. In A. M. Lobosque (Org.), Caderno de saúde mental (Vol. 3, p. 23-36). Belo Horizonte, MG: ESP-MG .) comenta a expectativa relativa à formação de anômalos no âmbito da medicina, ou seja, de profissionais cuja formação ‘deu errado’, pois essa formação não tem permitido construir relações e práticas de cuidado diferenciadas.

A primazia do modelo biomédico na formação de profissionais de saúde se expressa nos serviços de saúde mental por meio da medicalização excessiva com foco na eliminação dos sintomas, falta de articulação com as possibilidades do território e centralidade da atuação do médico nos serviços de saúde mental, que acaba por impactar no funcionamento da equipe como um todo (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Tais práticas de cuidado acabam por gerar casos de cronificação e dependência dos usuários pelos serviços de saúde, configurando o fenômeno da nova institucionalização. Nesse contexto, tanto os usuários quanto os profissionais não médicos parecem expressar processos subjetivos relacionados ao modelo biomédico e à ênfase no tratamento medicamentoso (Goulart, 2019b; Goulart & González Rey, 2019González Rey, F. (2019). Methodological and epistemological demands in advancing the study of subjectivity from a cultural-historical standpoint. Culture & Psychology, 1-16.).

A reforma psiquiátrica pretende ir na contramão desse processo, ao questionar verdades e formas através das quais as pessoas se relacionam e convivem entre si. Propõem-se mudanças na concepção de saúde, superando a representação desta como ausência de sintomas, a qual parece vir acompanhada de práticas com foco na cura e não na reabilitação social e produção de novas formas de existência. Ademais defende-se um cuidado menos medicalizante e mais relacional, para facilitar, a partir do vínculo com o outro, produções subjetivas alternativas (Goulart, González Rey, & Torres, 2019Goulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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).

Uma das propostas para implementar uma forma de ensino mais condizente com as Diretrizes Curriculares dos cursos de Medicina é a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) (Prevedello et al., 2017Prevedello, A., Segato, G., & Emerick, L. (2017). Metodologias de ensino nas escolas de medicina e da formação médica atual. Revista Educação, Cultura e Sociedade, 7(2), 566-577.). A ABP é considerada um método de ensino centrado no aluno, em que este assume papel proativo. Com relação ao ensino em saúde mental, a ABP pode permitir defrontar os alunos com situações complexas que os incitem a refletir sobre o processo de sofrimento psíquico dentro de seu contexto social (Figueiredo et al., 2019Figueiredo, F. P., Bernuci, M. P., Oliveira, R. G., Ideriha, N. M., Massuda, E. M., & Yamaguchi, M. U. (2019). A trajetória de implantação de um internato de Saúde Mental em uma instituição de ensino superior. Interface(Botucatu ), 23(supl. 1), 1-12. https://doi.org/10.1590/interface.170898
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). Esse método de ensino condiz com o pensamento de Freire, em defesa da necessidade de formar pessoas que sejam capazes de gerar alternativas e mudanças sociais (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido (17a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.; Macedo et al., 2018Macedo, K. D. S., Acosta, B. S., Silva, E. B., Souza, N. S., Beck, C. L. C., & Silva, K. K. D. (2018). Metodologias Ativas de Aprendizagem: caminhos possíveis para inovação no ensino em saúde. Escola Anna Nery, 22(3). https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0435
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). No entanto, esse método de ensino, quando utilizado de forma protocolar e mecânica - ou seja, quando não é subjetivamente configurado como uma via para assumir um lugar de agência no processo de aprendizagem, mas apenas como uma forma de cumprir uma obrigação institucional - pode distanciar-se de seu objetivo transformador, não rompendo com a centralidade do modelo biomédico no ensino de medicina (França & Maknamara, 2019França Jr., R. R., & Maknamara, M. (2019). A literatura sobre metodologias ativas em educação médica no Brasil: notas para uma reflexão crítica. Trabalho, Educação & Saúde, 17(1), 1-22. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00182
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).

Outra dificuldade no uso dessa metodologia de ensino-aprendizagem é a cristalização de formas de ensino tradicionais, as quais estão comumente associadas a uma noção de aprendizagem restrita a assimilação e reprodução de conteúdo (Villardi & Cyrino, 2018Villardi, M. L., & Cyrino, E. G. (2018). Inovações pedagógicas no ensino superior: a problematização e o portfólio na formação de pedagogos. Revista de Estudos Aplicados em Educação, 3(6), 16-28. https://doi.org/10.13037/rea-e.vol3n6.5412
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). Tal representação ainda hegemônica da aprendizagem está relacionada, por sua vez, a uma prática científica instrumentalista e dogmática, em que se valoriza mais a reprodução do que a criatividade (González Rey, 2014González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea.), enquanto que a aprendizagem criativa está mais relacionada a uma representação da ciência como um campo de incertezas e possibilidades (Amaral & Mitjáns Martínez, 2009Amaral, A. L., & Mitjáns Martínez, A. (2009). Aprendizagem criativa no ensino superior: a significação da dimensão subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, & M. C. Tacca (Orgs.), A complexidade da aprendizagem (p.149-192). Campinas, SP: Alínea.).

Portanto, apesar da iniciativa em gerar mudanças no ensino de medicina por meio de mudanças curriculares e de métodos de ensino, percebe-se que ainda existem entraves na promoção de uma formação médica mais alinhada às demandas em saúde mental. Tendo isso em vista, optou-se por discutir aspectos relativos ao ensino-aprendizagem e ao cuidado a partir da teoria da subjetividade, já que esse referencial permite compreender processos subjetivos envolvidos nessa problemática, que estão além da capacidade imediata de conscientização do indivíduo (González Rey, 2012bGonzález Rey, F. (2012b). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Subjetividade, sujeito e aprendizagem: contribuições teóricas para pensar a formação em medicina

Na perspectiva da teoria da subjetividade de González Rey, a subjetividade é entendida enquanto produção simbólico-emocional sobre a experiência vivida, que articula de forma complexa e dinâmica processos subjetivos sociais e individuais e que tem como unidade básica os sentidos subjetivos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017Goulart, D. M. (2017). The psychiatrization of human practices worldwide: discussing new chains and cages. Pedagogy, Culture & Society, 25(1), 151-156. Doi:10.1080/14681366.2016.1160673
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).

A categoria de sentido subjetivo permite entender a subjetividade humana como uma produção, e não como mero resultado de influências e estímulos externos (González Rey, 2014González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea.). Dessa forma, a aprendizagem pode ser compreendida como uma produção subjetiva da pessoa, indo além de sua representação predominante de processo passivo-reprodutivo, a qual tem desdobramentos tanto nas práticas e relações que são estabelecidas em instituições de ensino (González Rey, 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros., 2014González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea.), quanto, posteriormente, na atuação dos estudantes enquanto profissionais.

A dimensão individual da subjetividade refere-se à organização subjetiva que integra as experiências da história de vida de um indivíduo. Não é uma formação intrapsíquica isolada da dimensão social, pois o indivíduo se constitui dentro de diferentes subjetividades sociais, ao mesmo tempo que atua como um momento de subjetivação diferenciado destas (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.). A subjetividade social consiste num sistema organizador de sentidos subjetivos que se expressam por meio de representações, crenças e moral presentes nas relações entre indivíduos de um determinado espaço social, o qual é atravessado por processos subjetivos de outros espaços (González Rey, 2014González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea.). Por isso, pode-se dizer que o indivíduo que aprende expressa a subjetividade social dos diferentes espaços sociais em que vive no processo de aprender (González Rey, 2001González Rey, F. (2001). A pesquisa e o tema da subjetividade em educação. Psicologia da Educação, 13.).

Um exemplo de expressão de processos subjetivos no âmbito social é a subjetividade social manicomial, a qual está associada a processos subjetivos relativos ao modelo biomédico e que se expressa em práticas de cuidado que objetificam o outro na atenção à saúde mental, dificultando seu desenvolvimento subjetivo. Tal forma de subjetividade social pode estar presente inclusive em serviços de saúde mental substitutivos, como os Centros de Atenção Psicossocial, estando associada ao fenômeno da nova institucionalização, discutido anteriormente (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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).

O conceito de subjetividade é interessante para refletir também as práticas de ensino. Percebe-se que as instituições não mudam apenas com novas políticas e novas formas de funcionamento, a exemplo do que muitas vezes acontece no âmbito dos CAPS (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Analogamente, pode-se entender que apenas mudanças formais nas estruturas curriculares do ensino não são o suficiente para formar profissionais mais reflexivos e críticos, capazes de responder às demandas da atenção em saúde mental.

Tais dimensões da subjetividade - social e individual - se constituem reciprocamente em um mesmo sistema complexo, no qual suas contradições permitem a geração de novos sentidos subjetivos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.). Até certo ponto, a subjetividade social dificulta a emergência de sentidos subjetivos divergentes daqueles predominantes socialmente, no que consiste em uma das formas de resistência às mudanças culturais (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Mas a subjetividade social pode sofrer mudanças a partir do momento em que pessoas ou grupos assumem a condição de sujeitos. Na perspectiva da teoria da subjetividade, ser sujeito não é um atributo inerente do indivíduo, mas uma qualidade subjetiva que permite a produção de novos espaços de subjetivação num sistema de práticas institucionalizadas (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017Goulart, D. M. (2017). The psychiatrization of human practices worldwide: discussing new chains and cages. Pedagogy, Culture & Society, 25(1), 151-156. Doi:10.1080/14681366.2016.1160673
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). No caso da aprendizagem, assumir a condição de sujeito está associado à capacidade crítica e reflexiva com relação ao que é aprendido (González Rey, 2014González Rey, F. (2014). O sujeito que aprende: desafios no desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In M. C. Tacca (Org.), Aprendizagem e trabalho pedagógico (p. 29-44). São Paulo, SP: Alínea.), sendo uma condição para a constituição de uma aprendizagem criativa (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017Goulart, D. M. (2017). The psychiatrization of human practices worldwide: discussing new chains and cages. Pedagogy, Culture & Society, 25(1), 151-156. Doi:10.1080/14681366.2016.1160673
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).

A subjetividade social pode assumir caráter limitante de maneira mais extrema, de tal forma que dificulta a constituição de um posicionamento ativo por parte daqueles que aí se inserem. Esse processo pode caracterizar a subjetividade social de instituições em geral, entre elas, a universidade (González Rey, 2012bGonzález Rey, F. (2012b). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes.).

A ciência atual, sob influência do empirismo e racionalismo, tornou-se muitas vezes um domínio dogmático, em que o conhecimento foi transformado numa verdade a ser respeitada, havendo pouco espaço para a criatividade (González Rey, 2019González Rey, F. (2019). Methodological and epistemological demands in advancing the study of subjectivity from a cultural-historical standpoint. Culture & Psychology, 1-16.). Na medicina em específico, é marcante a predominância de pesquisas de cunho quantitativo que se embasam na noção de neutralidade científica e na eliminação do pesquisador como sujeito (Taquette & Villela, 2017Taquette, S. R., & Villela, W. V. (2017). Balizas do conhecimento: análise das instruções aos autores das revistas brasileiras da área de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 22(1), 7-13. https://doi.org/10.1590/1413-81232017221.24302016
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). Na perspectiva adotada neste artigo, critica-se não o uso da quantificação como operação de produção de conhecimento, mas a sua conversão num princípio absoluto de legitimidade da informação produzida, desconsiderando a construção teórica acerca da informação que surge por meio dos instrumentos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017Goulart, D. M. (2017). The psychiatrization of human practices worldwide: discussing new chains and cages. Pedagogy, Culture & Society, 25(1), 151-156. Doi:10.1080/14681366.2016.1160673
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).

Essa representação do saber está presente na subjetividade social das universidades (González Rey, 2012bGonzález Rey, F. (2012b). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes.), o que pode estar associado à inércia dos cursos de medicina com relação às inovações no campo da saúde mental, já que uma das bases da reforma psiquiátrica como um todo foi a crítica à suposta neutralidade científica da psiquiatria - a qual sustentava práticas de padronização e exclusão (Rotelli, 2014Rotelli, F. (2014). Superando o Manicômio: o circuito psiquiátrico de Trieste. In P. Amarante (Org.), Psiquiatria social e reforma psiquiátrica (p. 149-170). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.).

A ciência faz parte de um cenário social mais amplo, articulando-se às dimensões políticas e morais de um determinado período histórico. Assim, algumas ideias são mais aceitas nos espaços sociais em que a prática científica se constitui, enquanto outras nem tanto (Goulart & González Rey, 2016Goulart, D. M; & González Rey, F. (2016). Cultura, educación y salud: una propuesta de articulación teórica desde la perspectiva de la subjetividad. Revista Epistemología, Psicología y Ciencias Sociales, 1(1), 17-32.). O ensino centrado no modelo biomédico em instituições cujos estudantes, em sua maioria, estão inseridos num contexto de classe média-alta parece dificultar ainda mais a compreensão dos aspectos sociais e econômicos implicados no sofrimento psíquico (Silva et al., 2015Silva, L. A., Muhl, C., & Moliani, M. M. (2015). Ensino médico e humanização: análise a partir dos currículos de cursos de medicina. Psicologia Argumento, 33(80), 298-309. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.33.080.AO06
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). Pode-se questionar as consequências disso na prática desses futuros profissionais de saúde.

Na perspectiva da teoria da subjetividade, a categoria sujeito traz contribuições para pensar tanto em novas formas de cuidado, quanto de aprendizagem no âmbito da saúde mental (González Rey, 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros.; Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Nessa visão, um transtorno mental não é definido como uma lista de sintomas, mas como uma configuração subjetiva que se torna predominante no processo de produção subjetiva da pessoa, de modo a dificultar a produção de sentidos subjetivos alternativos àqueles associados ao seu sofrimento (González Rey, 2012bGonzález Rey, F. (2012b). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes.). Isso possibilita pensar a saúde mental em estreita relação com o conceito de sujeito, propondo-se, então, um cuidado fundamentado numa ética do sujeito: em que as práticas de cuidado permitam a produção de novos espaços de subjetivação e a invenção de novas formas de vida (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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). Essa perspectiva se contrapõe à biomédica, em que o objetivo principal do tratamento é a eliminação do sintoma, o que acaba por excluir o indivíduo de seu próprio processo de cuidado, impondo-lhe um lugar de passividade e consumo perante os profissionais de saúde (Goulart, 2017Goulart, D. M. (2017). The psychiatrization of human practices worldwide: discussing new chains and cages. Pedagogy, Culture & Society, 25(1), 151-156. Doi:10.1080/14681366.2016.1160673
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; Goulart et al., 2019Goulart, D. M; & González Rey, F; (2019). Studying subjectivity in mental health services: education, subjective development and the ethics of the subject. In F. González Rey; A. Mitjáns Martínez; & D. M. Goulart(Orgs.), Subjectivity within cultural-historical approach: theory, methodology and research (p. 259-273). Singapura, MY: Springer.).

No âmbito do ensino, a categoria sujeito refere-se a uma forma de aprendizagem em que a produção de sentidos subjetivos integra o desenvolvimento pessoal do aprendiz. A aprendizagem deixa de ser um processo padronizado e mecânico de assimilação, e passa a ser um processo singular de produção subjetiva, em que emoções, experiências e reflexões se articulam, permitindo que o aluno use o que aprendeu de forma criativa em diferentes contextos (González Rey, 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros.).

Tanto na educação quanto nos cuidados em saúde, práticas que permitem a emergência do outro enquanto sujeito favorecem também o seu desenvolvimento subjetivo. O desenvolvimento subjetivo não implica a noção de progresso, mas a possibilidade de produção de novos recursos subjetivos, permitindo que a pessoa assuma um posicionamento qualitativamente diferenciado nos espaços sociais que habita, como na família, comunidade e trabalho (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.).

Para compreender os processos subjetivos relacionados ao ensino expressos pela participante desta pesquisa e como se articulam ao cuidado no campo da saúde mental, foi usada a metodologia construtivo-interpretativa, elaborada por González Rey (2019González Rey, F. (2019). Methodological and epistemological demands in advancing the study of subjectivity from a cultural-historical standpoint. Culture & Psychology, 1-16.) para dar conta do estudo sobre a subjetividade humana, cujas características encontram-se articuladas aos pressupostos da epistemologia qualitativa, também elaborada pelo autor (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.).

Metodologia

Para a realização da pesquisa que fundamenta este artigo, foi utilizada a metodologia construtivo-interpretativa, a qual se fundamenta na epistemologia qualitativa. Essa perspectiva epistemológica orienta-se a fundamentar a construção de conhecimento científico sobre a subjetividade humana, que é marcada, entre outros aspectos, pela imprevisibilidade e complexidade de seus processos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.). As categorias teóricas da teoria da subjetividade são inseparáveis dos princípios epistemológicos dessa proposta, os quais permeiam todo o processo de pesquisa. São eles: (1) o conhecimento deriva de um processo construtivo-interpretativo; (2) a singularidade é fonte legítima para a produção de conhecimento científico; (3) o conhecimento é concebido enquanto processo dialógico (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017)7 7 Esta pesquisa foi vinculada ao projeto de pesquisa guarda-chuva ‘Saúde mental, desenvolvimento subjetivo e ética do sujeito: alternativas à patologização da vida’ (CAE 73095717.8.3001.5553), coordenado pelo Prof. Dr. Daniel Magalhães Goulart, aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal. .

Participante

A participante desta pesquisa foi uma estudante de medicina do terceiro ano de uma faculdade de medicina pública do Distrito Federal. Amanda (nome fictício) é uma jovem de 26 anos, solteira, religiosa e proveniente de uma classe média-baixa. Sua instituição de ensino faz uso da ABP e possui dois eixos de ensino que visam formar profissionais aptos a atuar com base num modelo de cuidado biopsicossocial durante os primeiros três anos do curso: (1) eixo clínico, em que os alunos entram em contato com a comunidade por meio da Estratégia de Saúde da Família; e (2) eixo teórico, que tem como objetivo permitir a discussão dos aspectos psicossociais do adoecimento.

Instrumentos

Sob a perspectiva da metodologia construtivo-interpretativa, os instrumentos não representam procedimentos padronizados e validados a priori, mas figuram como recursos dialógicos que visam favorecer a expressão dos participantes e envolvê-los subjetivamente, para facilitar a emergência de sentidos subjetivos no curso da pesquisa (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.). Os instrumentos utilizados nesta pesquisa foram as dinâmicas conversacionais e a elaboração de uma redação pela participante. Os instrumentos foram utilizados ao longo de todo o processo de pesquisa de campo, que teve a frequência média de um encontro semanal, ao longo de quatro meses.

Dinâmicas conversacionais são um processo dialógico entre pesquisador e participante, que visa permitir que este se expresse de forma livre e aberta, adquirindo o formato de uma conversa aberta, não de uma entrevista centrada na lógica pergunta-resposta (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.). Na pesquisa que fundamenta este artigo, as dinâmicas conversacionais ocorreram tanto em sessões individuais, em espaços informais da cidade, como também acompanhando a participante em algumas de suas atividades em sua instituição de ensino, como tutorias8 8 Tutorias são momentos de discussão de casos clínicos em grupo, usados na metodologia de Aprendizagem Baseada em Problemas. , palestras e atividades práticas. A redação escrita pela participante teve como tema suas experiências pessoais no campo da saúde mental e em serviços de saúde que frequentou enquanto aluna de medicina, e permitiu sua expressão de forma qualitativamente diferenciada com relação aos momentos de dinâmicas conversacionais.

Construção da informação

No processo de construção da informação, procurou-se identificar trechos da fala significativos para a interpretação de processos subjetivos relativos ao fenômeno estudado. Na metodologia construtivo-interpretativa, a construção da informação baseia-se na produção de indicadores, os quais consistem em significados atribuídos pelo pesquisador a trechos de expressão do participante. A partir da convergência de diferentes indicadores, que serão explicitados na apresentação do caso a seguir, foram construídas hipóteses, cuja articulação permitiu a produção de um modelo teórico, visando gerar inteligibilidade sobre a questão estudada (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.)9 9 No relato do caso a seguir, foram escolhidos trechos de expressão da participante considerados significativos para o objetivo do artigo. Igualmente, os indicadores e hipótese apresentados referem-se ao foco do artigo. Dessa forma, nem todas as análises construídas a partir da expressão da participante na pesquisa foram descritas de forma detalhada. .

O caso de Amanda

A mãe de Amanda foi a principal responsável por sua criação e era, segundo a participante, uma pessoa por vezes autoritária e até mesmo violenta. Sua família parece ter tido um papel importante na sua escolha pelo curso de medicina. No trecho seguinte, a participante fala sobre a reação de sua mãe, ao comentar sua intenção em estudar música, área pela qual tinha afinidade à época: “Ela me deu 5 opções: medicina, direito, relações internacionais, comunicação social e engenharia. Disse: ‘escolha um dos 5 que você não vai ter problemas comigo [...]’. ‘Eu era pra ser uma bosta de pessoa hoje, se minha mãe não fosse minha mãe’”. Sua mãe chegou a agredi-la fisicamente nesse momento. Apesar disso, nesse trecho, Amanda valoriza a atitude autoritária da mãe, representando-a como uma forma de cuidado necessária, mediante seu entendimento de que naquele momento era incapaz de realizar escolhas por si mesma. Levando isso em conta, esse trecho permite a construção do indicador de que Amanda expressa sentidos subjetivos relativos ao cuidado enquanto exercício de controle sobre o outro.

Antes de entrar na faculdade de medicina, Amanda passou por momentos difíceis, em que se sentia triste e pensava sobre suicídio com frequência: “[...] a cada 5 minutos, eu pensava em me matar. Olhava pra um carro e pensava em me jogar na frente, olhava pra um prédio e queria me jogar de lá”. Ela iniciou um acompanhamento com um psiquiatra, mas, segundo Amanda, quem realmente a ajudou nesse período foi sua prima. No trecho a seguir, a participante relata um evento em que passou mal por um problema de saúde e sua prima a ajudou:

Ela me tratou tão bem naquele dia, [...] acho que um médico deveria ser assim. [...] ‘E ela não me deu um remédio, alguma coisa assim efetiva de medicina, sabe? Mas o jeito que ela me tocou, cuidou de mim, fez toda a diferença’.

O trecho acima pode ser considerado um indicador de sentidos subjetivos relacionados à valorização de uma relação acolhedora como forma de cuidado, em detrimento da abordagem medicamentosa e em oposição à representação de cuidado articulado ao controle, que expressou ao falar sobre sua mãe.

Com relação ao seu tratamento com um psiquiatra, Amanda comentou que não gostou do médico e que não aderiu ao uso dos medicamentos, interrompendo o acompanhamento após alguns meses. No trecho a seguir, ela relata qual foi a falha da psiquiatria na sua perspectiva:

‘Eu vou te falar qual foi a falha. A falha foi que ele me passou remédio, agora pergunta se eu tomava o remédio’. Não cheguei a tomar o remédio. Porque eu tomei e eu vi que eu ficava retardada. [...] Eu falei: ‘cara, só tô lenta. Fiquei pior assim’. [...] ‘Acho que uma das dificuldades da psiquiatria é inclusive essa. Porque você não tem controle dos pacientes, entendeu’?

Apesar de não reconhecer o uso de medicamentos como algo que a tenha ajudado, Amanda, ainda assim, parece associar a falha de seu tratamento à falta de uso de tais remédios. Isso pode ser visto como um indicador de sentidos subjetivos relacionados ao modelo biomédico, no qual a abordagem medicamentosa assume lugar central no cuidado. Tais processos subjetivos podem também estar relacionados à subjetividade social de seu contexto de ensino, em que o modelo biomédico ainda parece ser predominante.

Ademais, esse trecho corrobora o primeiro indicador construído, relativo a sentidos subjetivos relacionados ao cuidado enquanto exercício de controle sobre o outro, já que a participante associa a falta de controle que o médico teve sobre ela a sua não adesão ao tratamento medicamentoso, remetendo, portanto, à forma como ela também representa o cuidado de sua mãe. Tais processos subjetivos de um cuidado controlador articulam-se à ênfase na abordagem medicamentosa, em detrimento da construção de uma relação de cuidado acolhedora e dialógica.

Em outro momento com a participante, numa discussão em sala sobre um caso clínico, Amanda fez o seguinte comentário:

Professora: Eu acho que essa médica induziu a paciente a aceitar o tratamento que ela (a médica) queria.

Amanda: ‘Mas não é isso que a gente tem que fazer?’

Amanda expressa, mais uma vez, uma representação de cuidado amparado na manipulação ou controle do outro, em nome do que o médico acredita ser o melhor para ele, de modo que a relação com o outro parece ser representada sob uma ótica instrumental. Essa construção interpretativa é reforçada por outro trecho de expressão, quando Amanda comenta: “[...] eu sou estudante e não vou ajudar a pessoa em nada”. Essa fala pode ser vista como um indicador de que o cuidado profissional se configura subjetivamente para Amanda como intervenção técnica e medicamentosa, e não como processo vinculado ao tipo de relação que é construída com o usuário, remetendo novamente a processos subjetivos relacionados ao modelo biomédico.

Considerando que a participante se posiciona em relação ao cuidado de forma convergente em diferentes âmbitos de sua vida, como expresso pelos indicadores previamente construídos, é possível construir a hipótese de que Amanda expressa uma configuração subjetiva do cuidado de forma significativamente articulada ao controle e ao modelo biomédico. Uma configuração subjetiva consiste num sistema de organização de sentidos subjetivos relativamente estável, a qual promove a produção de novos sentidos subjetivos em diferentes contextos (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.).

A configuração subjetiva do cuidado se expressa tanto na produção de sentidos subjetivos relativos à sua relação com a mãe, quanto à subjetividade social do ensino de medicina. Os processos subjetivos que a participante expressou relacionados à valorização de uma relação de cuidado acolhedora, em detrimento do uso de medicamentos, não parecem ter tido espaço suficiente de desenvolvimento na subjetividade social do ensino de medicina. Essa articulação entre a história de vida de Amanda e sua produção subjetiva em seu contexto de ensino diz respeito à qualidade subjetiva do processo de aprendizagem, que se trata de uma produção singular, não de uma apropriação de conteúdo dado a priori (González Rey, 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros.).

Além disso, como comentado anteriormente, o aluno se constitui em tensão com a subjetividade social dos diferentes espaços em que aprende (González Rey, 2001González Rey, F. (2001). A pesquisa e o tema da subjetividade em educação. Psicologia da Educação, 13.). É possível que os processos subjetivos sociais dos serviços de saúde que a participante frequenta também tenham um papel em sua configuração subjetiva do cuidado. Isso pode ser sustentado por trechos de expressão da participante em que ela expressa a ênfase no tratamento medicamentoso em serviços como os CAPS:

Eles tinham uma abordagem muito em cima do medicamento, eles ‘ficavam desconfiados se a pessoa estava tomando mesmo’, sabe? Eles perguntavam como era o comprimido. Porque se você tá tomando você sabe a cor do comprimido, quantos miligramas, como é a caixinha [...]

Esse trecho pode ser entendido como indicador da expressão de processos subjetivos sociais relacionados a um cuidado policiador e predominantemente medicamentoso no contexto de ensino da participante - indicador que foi reforçado pela forma como descreveu outros cenários de ensino (como instituições manicomiais) em sua redação. Apesar de Amanda relatar essa situação que presenciou num serviço de saúde com um tom de crítica, em vários momentos ela, ainda assim, expressa uma produção subjetiva alinhada a essa representação do cuidado, como discutido anteriormente, o que exemplifica como a produção subjetiva de uma pessoa não se expressa de forma explícita em seu discurso ou em suas intenções conscientes (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017González Rey, F., & Mitjáns Martínez, A. (2017). Subjetividade - teoria, epistemologia e método. Campinas, SP: Alínea Editora.).

Durante a pesquisa, relatos de sofrimento psíquico de estudantes da faculdade suscitaram ponderações no meio acadêmico quanto à relação entre o sofrimento psíquico dos alunos e a forma de ensino nos cursos de medicina. Contudo, tais reflexões não geraram mudanças significativas nas formas de relação e de ensino existentes nesse contexto, o que pode ser associado à vigência de uma representação biomédica e individualista do sofrimento psíquico nesse espaço. A construção de uma representação biomédica do sofrimento psíquico se relaciona às próprias formas de relação construídas e mantidas no curso de medicina, marcado pela ausência de diálogo e pelo uso excessivo de psicotrópicos pelos estudantes (Ferraz, Plato, Anzolin, Matter, & Busato 2018Ferraz, L., Plato, A. L. S., Anzolin, V., Matter, G. R., & Busato, M. A. (2018). Substâncias psicoativas: o consumo entre acadêmicos de uma universidade do sul do Brasil. Revista Momento, 27(1), 371-386. https://doi.org/10.14295/momento.v27i1.6850
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). Nesse contexto, a visão biomédica do transtorno mental dificulta a geração de recursos subjetivos pelos estudantes e a construção de estratégias coletivas para lidar com uma situação ‘adoecedora’, funcionando como uma forma de sustentar determinadas práticas de ensino valorizadas socialmente. Pode-se dizer que essa situação pode estar articulada à manutenção de práticas medicalizantes e objetificantes nos serviços de saúde em que tais indivíduos atuam posteriormente.

Nesse espaço social, o sofrimento psíquico parece ser representado de forma predominantemente mecanicista, estabelecendo-se relações causais lineares entre certas condições - como obesidade ou envelhecimento - e transtornos mentais. Com base no seguinte trecho de expressão, pode-se dizer que Amanda também representa o sofrimento psíquico dessa forma:

‘Hoje quando eu olho pra trás eu penso que era mimimi’. Cara, eu não tinha nenhum problema de fato, entendeu? [...] ‘Não fui uma pessoa que foi abusada’, não fui uma pessoa que teve nada assim [...] ‘Aí você percebe que seu maior problema é você mesmo’.

A participante desmerece o próprio sofrimento por não ver nenhuma causa pontual e verificável que o justifique, como, por exemplo, ter sofrido abuso sexual. Nesse sentido, sua fala pode ser entendida como um indicador de sentidos subjetivos relacionados à desqualificação de seus próprios processos subjetivos. Essa representação mecanicista do sofrimento psíquico parece dificultar a compreensão de como a experiência de vida do indivíduo é configurada subjetivamente de forma singular e como isso pode ser uma fonte de sofrimento mesmo sem causas aparentes que o justifiquem de forma linear. Essa lógica implica a padronização do que é válido como ‘causa’ de sofrimento, em consonância com os princípios de quantificação da ciência positivista que sustenta o modelo biomédico (González Rey, 2015González Rey, F. (2015). A saúde na trama complexa da cultura, das instituições e da subjetividade. In F. González Rey, & J. Bizerril (Orgs.), Saúde, cultura e subjetividade (p. 9-34). Brasília, DF: UniCeub.). A singularidade do outro e os processos dialógicos no exercício profissional, nesse sentido, são profundamente negligenciados. Isso se relaciona a uma representação passivo-reprodutiva da aprendizagem, que dificulta a emergência dos estudantes enquanto sujeitos que aprendem (González Rey, 2012aGonzález Rey, F. (2012a). A configuração subjetiva dos processos psíquicos: avançando na compreensão da aprendizagem como produção subjetiva. In A. Mitjáns Martínez, B. Soz, & M. Castanho (Orgs.), Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco (p. 21-42). Brasília, DF: Liber Livros.).

Com relação à participante, Amanda frequentemente se posiciona em discussões com base nas colocações de um de seus professores, o qual havia sido seu psiquiatra antes de entrar no curso de medicina (o mesmo psiquiatra que foi mencionado num de seus trechos de fala citados previamente). Tal atitude da participante pode ser vista como um indicador de que ela tem dificuldade em se posicionar de forma mais autônoma nesse espaço hierarquizado, apoiando-se frequentemente numa autoridade para se expressar - autoridade que, nesse contexto, articula a de professor e a de médico. Numa discussão sobre um caso clínico de um indivíduo diagnosticado com esquizofrenia, a participante comentou: “Acho que essa questão de não tomar banho está relacionada a um medo de perseguição, de alguém tramar alguma coisa contra ele durante o banho. Pelo menos foi o que eu aprendi, ‘foi o que o doutor falou’”. Nessa fala, a participante atribui um significado pré-estabelecido ao comportamento do indivíduo em questão, o que pode indicar um processo de ensino-aprendizagem reprodutivo. Pode-se dizer que essa forma de aprendizagem prejudica a compreensão da singularidade dos usuários dos serviços de saúde, já que o aluno tem dificuldade em usar o que aprendeu como recurso subjetivo para a produção de novas ideias.

Tendo isso em vista, pode-se reiterar que o uso da metodologia de ABP no contexto médico não necessariamente favorece o desenvolvimento de autonomia pelo aluno. A noção de neutralidade científica, a representação de ciência como ‘verdade’ a ser respeitada e a manutenção de relações, por vezes, extremamente hierárquicas entre professores-médicos e alunos, e entre médicos e pacientes, observadas no curso de Amanda, também podem estar relacionadas à dificuldade em praticar uma forma de ensino realmente problematizadora e orientada ao favorecimento do exercício crítico das profissões de saúde.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo discutir aspectos relativos ao ensino-aprendizagem e ao cuidado no campo da saúde mental a partir da teoria da subjetividade e da metodologia construtivo-interpretativa de González Rey. Pode-se concluir que, apesar de fazer uso do método de Aprendizagem Baseada em Problemas e de ter um currículo com disciplinas baseadas num modelo dito biopsicossocial, a instituição de ensino da participante apresenta uma subjetividade social marcada por processos subjetivos relacionados ao modelo biomédico. Essa contradição entre as iniciativas institucionais e as práticas e relações que se dão nesse espaço social pode ser compreendida pelo caráter inconsciente dos processos subjetivos, isto é, a intencionalidade declarada pela pessoa não coincide com a produção subjetiva que é expressa por ela (González Rey, 2012bGonzález Rey, F. (2012b). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Essa forma de subjetividade social num contexto de práticas de ensino-aprendizagem reprodutivas dificulta a emergência dos alunos enquanto sujeitos que aprendem e a produção de recursos subjetivos que permitiriam a compreensão da singularidade da pessoa em sofrimento psíquico. Um dos desdobramentos disso no âmbito da saúde mental é a tendência em representar o sofrimento psíquico de forma padronizada e individualista, o que parece ter implicações na saúde mental dos próprios estudantes. Os processos subjetivos expressos pela participante apontam para a hipótese de que a subjetividade social do ensino de medicina favorece uma produção subjetiva em que o cuidado articula-se ao controle e à medicalização, em detrimento da construção de uma relação de cuidado que permita a emergência do outro enquanto sujeito, e pode-se dizer que isso está possivelmente relacionado à subjetividade social manicomial expressa em serviços de saúde substitutivos (Goulart, 2019aGoulart, D. M., González Rey, F., & Torres, J. F. P. (2019). El estudio de la subjetividad de profesionales de la salud mental: una experiencia en Brasilia. Athenea Digital, 19(3), 1-21. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.2548
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).

A teoria da subjetividade e a metodologia construtivo-interpretativa são recursos que favorecem a inteligibilidade do caráter subjetivo da aprendizagem, rompendo com a segmentação característica entre os processos de ensino, cuidado e história de vida do indivíduo. Tendo isso em vista, pode-se dizer que o sofrimento psíquico dos estudantes de medicina e de outras especialidades no campo da saúde é um tema interessante para futuras investigações e intervenções, visando a melhora da qualidade de vida desses indivíduos e também a construção de práticas de cuidado orientadas à emergência de sujeitos, não à medicalização e à objetificação.

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    » https://doi.org/10.13037/rea-e.vol3n6.5412
  • 5
    A aprendizagem criativa representa um processo que tem relação com o conceito de sujeito na perspectiva da teoria da subjetividade, que será apresentado e discutido no decorrer deste artigo.
  • 6
    Metodologias ativas de aprendizagem consistem em formas de ensino que buscam promover a autonomia do aluno em seu processo de aprendizagem, sendo, portanto, metodologias mais centradas na participação do aluno do que na do professor (Prevedello et al., 2017).
  • 7
    Esta pesquisa foi vinculada ao projeto de pesquisa guarda-chuva ‘Saúde mental, desenvolvimento subjetivo e ética do sujeito: alternativas à patologização da vida’ (CAE 73095717.8.3001.5553), coordenado pelo Prof. Dr. Daniel Magalhães Goulart, aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal.
  • 8
    Tutorias são momentos de discussão de casos clínicos em grupo, usados na metodologia de Aprendizagem Baseada em Problemas.
  • 9
    No relato do caso a seguir, foram escolhidos trechos de expressão da participante considerados significativos para o objetivo do artigo. Igualmente, os indicadores e hipótese apresentados referem-se ao foco do artigo. Dessa forma, nem todas as análises construídas a partir da expressão da participante na pesquisa foram descritas de forma detalhada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2020
  • Aceito
    10 Jun 2021
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