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Análise das condições e da organização do trabalho dos necrotomistas

Analysis of conditions and working organization of necrotomists

Análisis de las condiciones y la organización del trabajo de los necrotomistas

Resumos

Este artigo tem como objetivo caracterizar as condições e a organização do trabalho dos necrotomistas do Departamento de Medicina Legal (DML) de uma capital do Nordeste do Brasil. Do ponto de vista teórico, a Psicodinâmica do Trabalho foi a principal abordagem utilizada, ao lado do conceito de trabalho sujo. A metodologia procurou combinar entrevistas semiestruturadas individuais e observações na sala de necropsias. Participaram deste estudo os seis necrotomistas que atualmente compõem o quadro de profissionais do referido DML, sendo todos do sexo masculino, com idades variando entre 32 e 48 anos e tempo de serviço oscilando entre quatro e 23 anos. Constatou-se que a organização real do trabalho é marcada pela existência de algumas regras comuns, construídas no exercício da atividade. Destaca-se também a precariedade das condições de trabalho, o que se traduz em um investimento estatal incompatível com as demandas desse órgão. Tais condições, associadas a uma representação social negativa do trabalho dos necrotomistas, que o situa no rol daquelas atividades tipificadas como trabalho sujo, repugnante, degradante, são produtoras de um sofrimento adicional que exige desses trabalhadores, além dos esforços físicos próprios dessa atividade, manobras psíquicas custosas e estratégias defensivas individuais e coletivas para evitar resvalar no terreno do adoecimento psíquico.

Organização do trabalho; condições de trabalho; Psicologia Organizacional


This article aims to characterize the conditions and work organization of the necrotomists from Forensic Medicine Department (DMF) of a Brazilian Northeastern city. From a theoretical standpoint, the Psychodynamics of work was the main approach used, alongside the concept of the dirty work. The methodology sought to combine individual semi-structured interviews and observations in the necropsy room. The study included six necrotomists that currently make up the cadre of that DMF, being all male, aged between 32 and 48 years and service time ranging from four to 23 years. It was found that the actual organization of work is marked by the existence of some common rules, built in the exercise of activity. Also noteworthy is the precariousness of working conditions, which represents a state investment incompatible with the demands of this organ. These conditions, combined with a negative social representation of the necrotomists’ work, which situates the list of those activities coined dirty, disgusting, degrading work, produce additional suffering, requiring these workers, in addition to physical exertion proper of this activity costly defensive strategies and individual and collective psychic maneuvers to avoid slipping on the grounds of mental illness.

Work organization; working conditions; organizational psychology


Este artículo tiene como objetivo caracterizar las condiciones y la organización del trabajo de los necrotomistas del Departamento de Medicina Legal (DML) de una capital del Nordeste brasileño. Desde un punto de vista teórico, la Psicodinámica del trabajo fue el principal enfoque utilizado, junto con el concepto de trabajo sucio. La metodología buscó combinar entrevistas semiestructuradas individuales y observaciones en la sala de necropsias. En el estudio participaron seis necrotomistas que actualmente conforman el equipo del referido DML, siendo todos del sexo masculino, con edades comprendidas entre 32 y 48 años y tiempo de servicio que van desde cuatro a 23 años. Se encontró que la organización real del trabajo se caracteriza por la existencia de algunas reglas comunes, construidas en el ejercicio de la actividad. También cabe destacar la precariedad de las condiciones de trabajo, lo que representa una inversión estatal incompatible con las exigencias de este órgano. Estas condiciones, combinadas con una representación social negativa del trabajo de los necrotomistas, poniéndoles en la lista de las actividades calificadas como trabajo sucio, repugnante, degradante, son productoras de un sufrimiento adicional, que requiere de estos trabajadores, más de los esfuerzo físicos propios de esta actividad, maniobras psíquicas costosas y estrategias defensivas individuales y colectivas para evitar resbalar en el terreno de la enfermedad mental.

Organización del trabajo; condiciones de trabajo; psicología organizacionales


ARTIGOS

Análise das condições e da organização do trabalho dos necrotomistas1 1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Analysis of conditions and working organization of necrotomists

Análisis de las condiciones y la organización del trabajo de los necrotomistas

Frankleudo Luan de Lima SilvaI; Paulo César Zambroni-de-SouzaII; Anísio José da Silva AraújoIII

IMestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba e doutorando no mesmo programa e instituição

IIDoutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba

IIIDoutor em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Poeta Jansen Filho, 18, Residencial Maria Clara, ap. 303, Bairro Castelo Branco, CEP 58.050-003, João Pessoa-PB. E-mail: keuleudao@hotmail.com

RESUMO

Este artigo tem como objetivo caracterizar as condições e a organização do trabalho dos necrotomistas do Departamento de Medicina Legal (DML) de uma capital do Nordeste do Brasil. Do ponto de vista teórico, a Psicodinâmica do Trabalho foi a principal abordagem utilizada, ao lado do conceito de trabalho sujo. A metodologia procurou combinar entrevistas semiestruturadas individuais e observações na sala de necropsias. Participaram deste estudo os seis necrotomistas que atualmente compõem o quadro de profissionais do referido DML, sendo todos do sexo masculino, com idades variando entre 32 e 48 anos e tempo de serviço oscilando entre quatro e 23 anos. Constatou-se que a organização real do trabalho é marcada pela existência de algumas regras comuns, construídas no exercício da atividade. Destaca-se também a precariedade das condições de trabalho, o que se traduz em um investimento estatal incompatível com as demandas desse órgão. Tais condições, associadas a uma representação social negativa do trabalho dos necrotomistas, que o situa no rol daquelas atividades tipificadas como trabalho sujo, repugnante, degradante, são produtoras de um sofrimento adicional que exige desses trabalhadores, além dos esforços físicos próprios dessa atividade, manobras psíquicas custosas e estratégias defensivas individuais e coletivas para evitar resvalar no terreno do adoecimento psíquico.

Palavras-chave: Organização do trabalho; condições de trabalho; Psicologia Organizacional

ABSTRACT

This article aims to characterize the conditions and work organization of the necrotomists from Forensic Medicine Department (DMF) of a Brazilian Northeastern city. From a theoretical standpoint, the Psychodynamics of work was the main approach used, alongside the concept of the dirty work. The methodology sought to combine individual semi-structured interviews and observations in the necropsy room. The study included six necrotomists that currently make up the cadre of that DMF, being all male, aged between 32 and 48 years and service time ranging from four to 23 years. It was found that the actual organization of work is marked by the existence of some common rules, built in the exercise of activity. Also noteworthy is the precariousness of working conditions, which represents a state investment incompatible with the demands of this organ. These conditions, combined with a negative social representation of the necrotomists’ work, which situates the list of those activities coined dirty, disgusting, degrading work, produce additional suffering, requiring these workers, in addition to physical exertion proper of this activity costly defensive strategies and individual and collective psychic maneuvers to avoid slipping on the grounds of mental illness.

Key words: Work organization; working conditions; organizational psychology.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo caracterizar las condiciones y la organización del trabajo de los necrotomistas del Departamento de Medicina Legal (DML) de una capital del Nordeste brasileño. Desde un punto de vista teórico, la Psicodinámica del trabajo fue el principal enfoque utilizado, junto con el concepto de trabajo sucio. La metodología buscó combinar entrevistas semiestructuradas individuales y observaciones en la sala de necropsias. En el estudio participaron seis necrotomistas que actualmente conforman el equipo del referido DML, siendo todos del sexo masculino, con edades comprendidas entre 32 y 48 años y tiempo de servicio que van desde cuatro a 23 años. Se encontró que la organización real del trabajo se caracteriza por la existencia de algunas reglas comunes, construidas en el ejercicio de la actividad. También cabe destacar la precariedad de las condiciones de trabajo, lo que representa una inversión estatal incompatible con las exigencias de este órgano. Estas condiciones, combinadas con una representación social negativa del trabajo de los necrotomistas, poniéndoles en la lista de las actividades calificadas como trabajo sucio, repugnante, degradante, son productoras de un sufrimiento adicional, que requiere de estos trabajadores, más de los esfuerzo físicos propios de esta actividad, maniobras psíquicas costosas y estrategias defensivas individuales y colectivas para evitar resbalar en el terreno de la enfermedad mental.

Palabras-clave: Organización del trabajo; condiciones de trabajo; psicología organizacionales.

Este artigo tem por objetivo caracterizar as condições e a organização do trabalho dos necrotomistas do Departamento de Medicina Legal (DML) de uma capital do Nordeste do Brasil. A fundamentação teórica baseia-se na Psicodinâmica do trabalho e no conceito de trabalho sujo.

Apesar de oferecer instrumentos para se compreender o trabalho, a Psicodinâmica do Trabalho não tem oferecido lugar de suficiente destaque às investigações sobre certas situações nas quais o caráter discriminatório e estigmatizante é central (Barros & Silva, 2004). Exemplifica-se tal aspecto nas atividades dos catadores de materiais recicláveis (Medeiros & Macêdo, 2006), dos garis (Costa, 2008), dos trabalhadores de cemitérios, funerárias e similares (Dittmar, 1991) e dos agentes penitenciários (Lopes, 1988).

Conforme ressalta Barros (2009), essas atividades são marcadas pela natureza de seu conteúdo e pela exposição dos trabalhadores a condições de insalubridade e de sobrecarga física e psíquica, além de constituírem ocupações desvalorizadas socialmente. A análise dessas atividades pode ser desenvolvida à luz do conceito de trabalho sujo (dirty work) sugerido pelo sociólogo estadunidense Everett Hughes. Participam do universo do trabalho sujo aquelas atividades que envolvem objetos física, moral ou socialmente degradantes e que remetem a uma experiência tabu, impura, contagiada, indesejável, além de sustentarem indicadores de desprestígio social (Hughes, 1962; Butler, Chillas & Muhr, 2012; Mattos, 2012). Não obstante, Hughes esclarece que a noção de trabalho sujo não se refere a algo escuso, torpe ou ilegal; ao contrário, o trabalho sujo se refere a atividades que são necessárias e benéficas para a coletividade, mas carregam consigo marcas de uma construção social que lhes impingiu características repulsivas, a ponto de o olhar do outro tender a identificar esse trabalhador ao objeto de seu trabalho (Hughes, 1962; Emerson & Pollner, 1976; Ashforth & Kreiner, 1999; Roca, 2010; Mattos, 2012; Barros & Lhuilier, 2013). No universo das atividades tipificadas como trabalho sujo, focalizamos neste artigo a atividade dos necrotomistas, que são servidores policiais que auxiliam na realização de necropsias (ou perícias necroscópicas) em departamentos ou institutos de medicina legal.

Dentre as diversas entradas possíveis no universo profissional dos necrotomistas, privilegiamos neste artigo as condições e a organização do trabalho dessa categoria de trabalhadores. Seguindo Dejours, Dessors e Desriaux (1993, p. 104), "a organização do trabalho é, de um lado, a divisão das tarefas, que conduz alguns indivíduos a definir por outros, o trabalho a ser executado, o modo operatório e os ritmos a seguir". Define, assim, de acordo com Leplat e Montmollin (2007), uma estrutura horizontal que envolve a identificação dos postos de trabalho, a delimitação de suas fronteiras e, sobretudo, a atribuição de tarefas e respectivos procedimentos. Por outro lado, o que define e codifica todas as relações de trabalho é a divisão dos homens, isto é, o dispositivo de hierarquia, de supervisão e de comando, que corresponde a uma estrutura vertical, que é o âmbito privilegiado do exercício do poder e do processo decisório.

Por sua vez, as condições de trabalho se definem como "as pressões físicas, mecânicas, químicas e biológicas do posto de trabalho" (Dejours & Abdoucheli, 2011, p. 125). Tais pressões, das quais se ocupa a maioria dos pesquisadores médicos e ergonomistas, provêm do corpo dos trabalhadores, onde podem ocasionar desgaste, envelhecimento e doenças somáticas. O objetivo nesse caso é não apenas caracterizar as patologias produzidas pelo trabalho ou a ele associadas e identificar as terapêuticas apropriadas, mas extrair daí os elementos para uma intervenção genuinamente ergonômica nas situações de trabalho, que considere o equacionamento de critérios como Saúde & Segurança e Produtividade & Qualidade. Além disso, tais elementos constituirão insumos para formulação de políticas públicas de saúde e segurança dos trabalhadores.

No Estado da Federação onde se desenvolveu o presente estudo, cabe aos necrotomistas auxiliar o perito oficial médico-legal e o perito oficial odontolegal nas perícias necroscópicas e exumações, providenciando a limpeza e a desinfecção dos aparelhos e instrumentos cirúrgicos utilizados nos exames. Eles devem também acondicionar os cadáveres em câmara fria, registrando entradas e saídas, como também conduzir pessoas para possível reconhecimento. Ademais, registram filmagens e fotografias técnicas nas diversas áreas de atuação pericial e zelam pela limpeza, desinfecção e conservação dos materiais de uso laboratorial e das áreas críticas de biossegurança.

Cada categoria profissional está submetida a um modelo específico de organização formal do trabalho que define a divisão do trabalho, os objetivos das ações, o conteúdo da tarefa, um sistema hierárquico, modalidades de comando e relações de poder (Dejours & Abdouchelli, 2011). Sabemos, assim como Dejours (2011a), que a relação entre homens e organização do trabalho não é um bloco rígido, monolítico, inexorável, mas está em contínuo movimento. As regras estritas carregam sempre insuficiências e uma margem de imprecisão, que são cobertas pela decisão e iniciativa dos trabalhadores (Vieira, Barros & Lima, 2007). Essa argumentação leva à conclusão de que a atividade de trabalho se sustenta na mobilização dos trabalhadores para regular e gerir variabilidades, visto que, conforme mostram os estudos realizados no âmbito da ergonomia da atividade desde o final da década de 1960 (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 2010), as situações reais de trabalho são marcadas pelo dinamismo, pela instabilidade e submetidas a imprevistos, tornando ineliminável o hiato residente entre o trabalho prescrito/tarefa e o trabalho real/atividade.

MÉTODO

A presente pesquisa, de natureza qualitativa, foi realizada entre novembro de 2012 e março de 2013 no Departamento de Medicina Legal (DML) do Instituto de Polícia Científica (IPC), subordinado à Polícia Civil, de uma capital do Nordeste do Brasil.

Participantes

Participaram deste estudo os seis necrotomistas que atualmente compõem o quadro de profissionais do DML investigado, os quais são todos do sexo masculino, têm idades variando de 32 a 48 anos e residem na região metropolitana dessa capital, e cujo tempo de serviço se estende de quatro a 23 anos. A participação de todos os necrotomistas levou em consideração os aspectos éticos pertinentes à investigação envolvendo seres humanos estabelecidos pela Resolução nº. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Instrumentos

Partimos da utilização de um delineamento não experimental, valendo-nos de entrevistas semiestruturadas individuais e de quatro observações das atividades de trabalho dos necrotomistas. As entrevistas procuraram evidenciar o que faz um necrotomista, como é seu dia a dia de trabalho, que imprevistos enfrentam, que estratégias desenvolvem individual e coletivamente para lidar com os imprevistos, quais são as condições de trabalho a que estão submetidos, a que riscos estão expostos, como enfrentam o estigma que acompanha sua atividade profissional, se se sentem reconhecidos em seu trabalho, o que os faz sofrer e ter prazer no trabalho e como é lidar diariamente com a morte. Já com as observações, procuramos verificar como a atividade se distribui no tempo, ou seja, o encadeamento das ações, das comunicações, dos gestos, das posturas, inclusive os imprevistos que surgem e as regulações que desencadeiam.

Procedimento de coleta dos dados

A aceitação da gerência do DML para a efetivação da pesquisa ocorreu sem reticências ou obstáculos, exigindo-se tão somente apreciação e aval de um comitê de ética em pesquisa. Cumpridas as exigências burocráticas feitas pela gerência, foi autorizado o início dos procedimentos de coleta. No DML, contatamos pessoalmente cada necrotomista, apresentamos-lhes a proposta do estudo e os convidamos a participar. Diante da concordância, foram agendados dia e hora para as entrevistas individuais, que aconteceram na sede do DML, quase todas no período noturno, durante os plantões dos participantes. Com a anuência dos necrotomistas, as seis entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Ainda durante as entrevistas, foi solicitada a cada necrotomista a permissão para serem realizadas observações de suas atividades durante um expediente de trabalho.

As observações, que ocorreram após todos os participantes serem entrevistados, foram efetuadas na sala de necropsias, mediante autorização dos necrotomistas, da gerência do DML e dos peritos de plantão. Em datas distintas e com equipes distintas, realizamos quatro observações durante o expediente da manhã, das oito às doze horas, quando, via de regra, o movimento na sala é mais intenso. Cada equipe plantonista é formada por dois peritos médico-legais, dois peritos odontolegais e dois necrotomistas. Vale ressaltar que, mesmo trabalhando em equipe, o foco das observações foi a atividade dos necrotomistas.

Procedimento de análise dos dados

A análise dos dados foi conduzida através da análise de conteúdo temática, na perspectiva de Laville e Dionne (1999), para quem o princípio da análise de conteúdo consiste em desmontar a estrutura e os elementos do conteúdo obtido para esclarecer suas diferentes características e extrair sua significação, ou seja, compreender as significações no contexto da fala, fazendo inferências sobre seu conteúdo. A partir dos elementos produzidos no campo, foram construídas seis categorias de análise para a dissertação de mestrado do primeiro autor deste artigo, sendo "Organização e condições de trabalho" aquela que deu origem a este texto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Organização do trabalho dos necrotomistas

Os necrotomistas, como os demais profissionais com os quais eles lidam diretamente, trabalham em regime de plantão de 24 horas, seguido de um período de 72 horas de folga. Cada plantão é assumido por uma equipe, formada por dois necrotomistas, dois peritos médico-legais e dois peritos odontolegais, à qual compete realizar necropsias e executar exames em pessoas vivas como exame de lesão corporal, verificação de embriaguez, etc. Esclarecemos, desde já, que as atividades dos necrotomistas não estão referidas às perícias em pessoas vivas, mas, especificamente, às necropsias. São os necrotomistas que executam, supervisionados e orientados pelos peritos médico-legal e odontolegal, a parte prática das necropsias médico-legais ou forenses, procedimento médico-científico, realizado em casos de morte violentas ou de óbito em circunstâncias suspeitas, para determinar com precisão a causa da morte e muitas vezes para fornecer subsídios para investigações judiciárias (França, 2011).

Sob a supervisão dos peritos, os necrotomistas seccionam e retiram amostras de órgãos e tecidos para exames, reconstituem, higienizam e vestem os cadáveres para serem entregues às famílias ou acondicionados em câmeras frias. Em relação aos procedimentos necroscópicos, existe certa variação nas equipes, conforme cada estado da Federação (Prestes Jr. & Ancillotti, 2009). No Estado em que realizamos esta pesquisa, participam diretamente das necropsias os peritos médico-legal e odontolegal e os necrotomistas. A depender das necessidades intrínsecas a cada necropsia, outros profissionais são acionados. Por exemplo, quando é necessário exame para determinar se houve ingestão toxicológica, entra em cena o perito químico.

No DML investigado, via de regra, a maioria das necropsias se faz das oito às onze e trinta horas, Dependendo da quantidade de cadáveres, esse expediente pode ser estendido, quando a equipe, em consenso, decide necropsiar todos ou a maioria dos cadáveres que houverem chegado ao DML até aquele horário. Trata-se de uma regulação da atividade (Guèrin et al., 2010), uma renormatização informal do trabalho (Nouroudine, 2011) que acaba por agilizar a liberação dos corpos, abreviando a espera dos familiares, além de permitir aos profissionais, mesmo que se potencialize o desgaste físico momentâneo, um descanso mais prolongado e uma redução da carga de trabalho no restante do plantão. Foi relatado:

No final da manhã, onze e trinta onze e cinquenta horas, se tiverem sido necropsiados seis corpos e se chegar mais algum, como já está chegando o horário do almoço, em comum acordo com o perito, a gente pode ultrapassar o horário para dar conta do serviço, já que tem famílias aguardando. A gente ultrapassa uma hora do horário do almoço (participante 2).

Admitem que os familiares estão ali em momento de muita dor, que ficam absorvidos pela morte de seu ente querido, de modo que a equipe adia a hora do almoço para agilizar o trabalho, mudando a organização do trabalho quanto aos horários a fim de adequar a atividade às necessidades dos familiares. Realizar necropsias e imediatamente ir almoçar, disse um dos participantes em uma entrevista que no início é muito difícil:

Porque, em muitos casos chegam corpos com conteúdo alimentar saindo pela boca, e você vê o alimento perfeitamente, ainda não totalmente digerido. Essa imagem fica gravada na sua mente e na hora da refeição você lembra.... Mas assim, isso é só no começo. Com o tempo, esse impacto, essas impressões vão diminuindo e vai se tornando automático. Você não reflete mais sobre o ato, você apenas executa o ato. (participante 1).

Para ele, que antes de ser necrotomista era professor, foi possível superar essa barreira por se sentir fazendo algo que, apesar de difícil, tem "uma função de extrema importância para a sociedade" (participante 1).

No período da tarde geralmente o número de necropsias é inferior ao do período matutino. Pelas catorze horas a equipe retorna à sala de necropsias e lá permanece, geralmente, até às dezessete e 30 horas. No horário noturno evita-se realizar necropsias, pois, com o uso apenas da luz artificial a eficiência do exame pode ser comprometida. Ainda que se prime por entregar os corpos às famílias com a maior celeridade possível, a prioridade deve ser o bom andamento da perícia. Nos casos de morte por arma de fogo existe um agravante: é necessário encontrar e remover os projéteis, muitas vezes alojados em partes de difícil acesso, podendo ser necessário cortar partes duras, como costelas, a coluna vertebral, o crânio e outras. Executar uma ação tão complexa com uma iluminação insuficiente é complicado e exige grande mobilização da inteligência astuciosa (Dejours, 2012b) para se obter o resultado apesar das dificuldades.

Sob a responsabilidade dos necrotomistas também está o recebimento, a qualquer hora do dia, dos cadáveres, que são conduzidos ao DML pelo Auto de Remoção de Cadáveres (ARC ou Rabecão). Os cadáveres são levados para a sala de necropsias ou armazenados nas câmaras frias. Outro procedimento da competência dos necrotomistas que pode acontecer a qualquer horário é o acompanhamento de familiares para o reconhecimento de cadáveres. Este procedimento pode acontecer mediante a condução de um parente até à câmara frigorífica ou por meio de fotografias registradas pelos necrotomistas ou peritos. Havendo identificação, se o cadáver já houver sido necropsiado, ele é preparado para ser entregue aos familiares. Não ocorrendo reconhecimento, o cadáver permanece nas câmaras.

Na atividade dos necrotomistas, o controle sobre o tempo vem se somar aos fatores adversos e causadores de desgastes físicos e mentais. Além da pressão dos familiares e agentes funerários pela rápida liberação dos corpos, há uma pressão interna da equipe de peritos médicos e odontólogos que para concluir rapidamente suas atividades apressam os necrotomistas com inúmeras solicitações, gerando conflitos e sobrecarga. Tal fato evidencia a posição ocupada pelos necrotomistas na hierarquia da equipe que integram. Reproduz-se, assim, uma divisão do trabalho que situa, de um lado, os profissionais de nível superior, aqueles que se ligam a carreiras de elevado prestígio social, e do outro, os necrotomistas, sobre os quais pesam tarefas custosas, com uma carga física e psíquica importante. A constatação dessa assimetria, entretanto, não impede que, em certas circunstâncias, ocorra a construção de acordos para a realização do trabalho. Ressaltamos que esse desejo de "terminar rápido" também foi encontrado entre os coletores de lixo (Santos, 1999). Acreditamos que esta não é uma coincidência: em ambos os casos há uma pressão para se livrar rapidamente do objeto do trabalho (cadáver, lixo). Em ambos os casos há uma jornada desgastante, principalmente se considerarmos o conteúdo de sua tarefa, que envolve contato dos trabalhadores com dejetos e/ou cadáveres.

Observamos - e isso também foi relatado pelos participantes - que os peritos deixam a sala de necropsias cerca de uma hora antes dos necrotomistas, os quais precisam ainda fazer as reconstituições e higienizações dos cadáveres, vedá-los, vesti-los, pô-los no caixão e entregá-los às funerárias, além de higienizar os instrumentos e as mesas de necropsia. Alguns necrotomistas afirmaram que o acúmulo de funções sob suas responsabilidades é demasiadamente exaustivo.

Os necrotomistas diante das condições de trabalho

As condições físicas do local onde os necrotomistas realizam a maior parte de suas atividades não são plenamente adequadas. A alta temperatura da sala de necropsias, que não possui ar condicionado, constrange, sobretudo, os necrotomistas, que trabalham paramentados com jaleco, avental, luvas e botas. As mesas de necropsia possuem bases de alvenaria, não permitindo regulagem de altura. Por esta razão, conforme observamos, os necrotomistas de baixa estatura são obrigados a se encostar à mesa, e, por conta disso, acabam se sujando mais, o que aumenta o risco de contaminação. A indisponibilidade e a inadequação de alguns instrumentos de trabalho acabam por exigir dos profissionais improvisações, adaptações e transgressões que, ao mesmo tempo em que testemunham sua capacidade de encontrar saídas para os impasses do trabalho, são responsáveis por uma carga de trabalho adicional que poderia não existir caso os instrumentos de trabalho fossem adequados e estivessem disponíveis.

A transgressão das normas prescritas não acontece pelo simples prazer de transgredi-las, mas para preservar o ofício e atender aos objetivos estabelecidos, através do uso de soluções engenhosas criadas pelos próprios trabalhadores (Dejours, 2012a). Entendemos que os trabalhadores precisam, estrategicamente, fazer excursões para fora das normas, regras e prescrições para poderem alcançar os objetivos que lhes são atribuídos. Por exemplo, observamos os necrotomistas utilizarem, em função da indisponibilidade de uma ferramenta adequada, uma faca sem cabo para talhar os ossos das bases cranianas dos cadáveres, à procura de projéteis ali alojados. Ainda que tal uso garanta a sequência dos procedimentos e o atendimento aos objetivos, como a área de contato entre a faca e a marreta fica significativamente reduzida, aumenta o risco de acidentes e acentua-se o desgaste físico. Além disso, tal condição configura o que a ergonomia tão bem sintetizou na expressão Modo Degradado de Funcionamento (Duarte & Vidal, 2000), ou seja, um modo de funcionar que naturaliza a anormalidade, que constrange o trabalhador a conviver com a precariedade e a transigir com soluções paliativas, o que é fonte de sofrimento para o trabalhador, pois constitui um impedimento de executar um trabalha da maneira conveniente. O participante 6 relatou:

Nós não temos equipamento nenhum para abrir as vértebras. Certa vez eu fui numa loja de construção, comprei um martelo e comprei uma talhadeira, olha só! Por aí você tira a qualidade das condições técnicas. Esses que eu comprei também não são adequados, mas é uma adaptação, uma estratégia. Eu tenho que fazer isso, eu tenho que achar a bala. Hoje mesmo no meu plantão tinha uma bala que entrou na região occipital e se alojou na base do crânio de um cadáver. Eu peguei um ferrinho para refazer a trajetória da bala, mas ele tinha que ir por baixo da base do crânio. Não tinha como fazer isso. Eu tive que pegar uma talhadeira e sair quebrando. Quando você termina a necropsia, você está morto de cansado e o cadáver fica desfigurado.

Essa fala mostra o desejo do necrotomista de realizar bem o seu trabalho e as transgressões que realiza para tal. Neste caso, improvisa um equipamento para não deixar o trabalho sem ser executado. Esta situação específica gera também aborrecimento, já que dificulta o que evidenciamos ser uma regra de ouro nesse coletivo de trabalho: entregar o corpo à família com a melhor aparência possível, evitando desfigurações desnecessárias.

A insatisfação dos necrotomistas com os salários recebidos foi uma constante nos seus depoimentos. A remuneração - entre dois e três salários mínimos - não atende às necessidades pessoais e profissionais, além de ser incompatível com suas atribuições e carga horária. A falta de investimentos compatíveis com as reais necessidades da instituição compromete cada vez mais a atividade dos profissionais ali envolvidos, mostrando a falta de reconhecimento do Estado (em seus níveis mais altos de gestão) para com eles. Os necrotomistas referiram que o reconhecimento se manifesta a partir da consideração da gerência do DML a algumas sugestões de mudanças e do atendimento a certas reivindicações: "Às vezes a gente recebe elogios do diretor, do gerente. Eles percebem que nós nos empenhamos, que nosso trabalho é de qualidade, que a gente não faz corpo mole". (participante 3).

Por outro lado, os níveis mais elevados da administração da polícia e do Estado não demonstram nenhum reconhecimento. Nesse sentido, os participantes expuseram: "O Governo não quer investir. Aliás, para eles não é nem investimento, é um gasto, entendeu?" (participante 3). "O trabalho do necrotomista está no nível de insalubridade máxima. Deveríamos receber 40%, mas o Governo do Estado paga apenas 5%" (participante 5). As definições em matéria de salário, em descompasso evidente com o conteúdo e a responsabilidade do trabalho do necrotomista, e mesmo com as previsões orçamentárias para melhorar as condições de trabalho, que nesse caso escapam da esfera decisória da gerência local (empenhada em melhorar as condições de trabalho), constituem determinantes importantes da situação de trabalho dos necrotomistas.

Todos os necrotomistas reconheceram que estão constantemente expostos a riscos à saúde e à segurança no seu trabalho: contaminações por agentes biológicos (vírus, bactérias e outros micro-organismos de grande poder de transmissibilidade), agentes químicos (formol, álcool metílico, cianeto, chumbo, nitrato de prata, etc.) e radiológicos (necropsias de vítimas contaminadas por material radioativo), lesões osteomusculares e articulares, acidentes com os instrumentos de trabalho (quase todos de aplicação cirúrgica – perfurocortantes) constituíram os fatores de riscos mais relatados e observados. Nouroudine (2004) define risco como a "possibilidade de que um perigo se atualize, isto é, acarrete efetivamente danos, em condições determinadas" (p. 39). Embora tal definição associe risco a exposição a fatores deflagradores de agravos à saúde e à segurança, há um caráter fortemente subjetivo dos riscos: além das ameaças concretas apresentadas pelas condições de trabalho, interessa saber de que maneira os profissionais percebem os riscos e como os vivenciam em seu cotidiano.

Potencialmente geradores de sofrimento, os riscos desencadeiam estratégias individuais e coletivas de defesa (Dejours, 2012b). Estas operam, principalmente, através de dois mecanismos - inversão e eufemização -, nos quais condutas desafiadoras e eufemizantes dos riscos aparecem como uma tentativa de dominação simbólica, favorecendo a continuidade do trabalhar, mesmo diante de situações adversas de trabalho que constrangem permanentemente os trabalhadores. Funcionam somente em relação à percepção dos riscos que elas buscam abolir da consciência. Outra importante observação feita pela psicodinâmica do trabalho enfatiza que o medo dos riscos existentes em certas situações de trabalho não só deve ser silenciado e escamoteado, mas também é necessário exaltar seus antônimos, que são centrados na virilidade: bravura, audácia, força física, resistência.

As observações das atividades na sala de necropsias também nos permitiram verificar que o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) foi bastante variável entre os necrotomistas. A estratégia de eufemização dos riscos parece ser traduzida no fato de nenhum dos necrotomistas ter utilizado todos os equipamentos de segurança exigidos, embora estes estivessem disponíveis. Alguns necrotomistas se abstiveram de utilizar alguns equipamentos, como botas emborrachadas, capote (avental) e óculos de proteção. O uso desses dispositivos de proteção contra os riscos pode significar, para esses trabalhadores, a própria materialização dos riscos atinentes à sua atividade, ameaçando desestabilizar as defesas que tornam suportável e possível a permanência em situações insalubres de trabalho.

Condutas tímidas, hesitantes ou pouco viris, que denotem medo, não são toleradas em certos locais de trabalho. No caso do trabalho dos necrotomistas, que envolve atividades fisicamente muito exigentes (colocar e retirar cadáveres das macas, mesas e câmaras, serrar e talhar ossos supercalcificados), ganham a cena atributos viris de exaltação da coragem, disposição e negação da vulnerabilidade. Estes valores precisam ser adotados pelo coletivo de trabalho, não apenas por homens. Um dos participantes relatou, inclusive, que uma mulher havia trabalhado no DML como necrotomista por quatro anos, e que ela nunca demonstrou sinais de fragilidade: "Ela trabalhava como qualquer homem ou mais ainda. Ela era baixinha, então colocava um banquinho e fazia a necropsia. Ela, muitas vezes, tirava, sozinha, o cadáver da maca e colocava na mesa" (participante 4).

Como lidar com a morte nessa organização e com essas condições?

Trabalhar cotidianamente com a morte, sobretudo com a morte entrajada de violência, constitui para os necrotomistas uma situação potencialmente desestabilizadora, entretanto observamos que eles lançam mão de estratégias defensivas individual e coletivamente elaboradas para sustentar um equilíbrio possível, para contribuir na conservação de si e para se proteger do adoecimento (Dejours, 2011a). Como fazem isso? Coisificando ou despersonalizando os cadáveres, isto é, tratando-os como objetos, destituídos de seus dramas e de suas histórias. Isso funciona como uma espécie de blindagem emocional, que permite aos necrotomistas continuar a desenvolver suas atividades. Não se trata de uma mera insensibilidade diante da dor alheia, mas de um recurso protetivo e adaptativo, catalisado nas relações intersubjetivas do trabalhar, capaz de evitar descompensações psicopatológicas. Afirmam alguns participantes:

Veja bem, lidar com a morte não é fácil. Eu não vou dizer que é um trabalho qualquer, mas encaro como um trabalho científico e investigativo. Eu não me envolvo com a história daquela pessoa, não fico pensando: "Poxa vida, essa pessoa era assim ou assado", porque assim, com o tempo a gente se habitua a não se deixar ser invadido por essas emoções (participante 4).

Na verdade, é um dispositivo automático e eu acho que quem não fizer isso não vai se dar bem na profissão, porque você começa a relacionar a aparência do cadáver com você ou com alguma pessoa querida sua, e isso, com certeza, vai atrapalhar o desempenho do trabalho (participante 6).

O próprio ritmo de trabalho, em função do sempre crescente aumento do número de mortes violentas, parece contribuir para o não envolvimento dos necrotomistas com as situações dramáticas que diariamente se sucedem nas suas atividades de trabalho, como afirma um participante:

A gente não tem tempo nem para pensar nessas coisas. Você vai só executando. É um dispositivo tão automático que você começa o exame e só quando você vai costurando, reconstituindo, é que o corpo humano começa a tomar forma novamente e aí que cai a ficha. Depois você vai vestir, colocar no caixão e, geralmente, na hora da entrega você tem contato com a família e aí, novamente cai a ficha, você volta ao normal, e aquilo passa a ser uma pessoa com uma história. Então ele entra como um produto da violência, um produto da tragédia, passa por um trabalho científico e volta a ser um corpo de uma pessoa, de uma história que é cheia de sentimentos. Passa por essa fase automática (participante 2).

Este mesmo participante nos forneceu um relato marcante e emblemático da eficiência das estratégias defensivas (Dejours, 2011a), sustentáculos da normalidade do trabalho em favor da objetificação dos cadáveres necropsiados e da proteção emocional:

Já aconteceu três vezes comigo: eu fiz três necropsias de três conhecidos (em tempos diferentes) e não os conheci, e era gente próxima mesmo. Como eu trabalhava em uma cidade diferente da que eu nasci, eu nunca imaginei que pudesse encontrar alguém conhecido, até pela distância. Isso aconteceu três vezes, eu fiz a necropsia e quando cheguei lá fora, um bocado de gente conhecida, e eu: "O que vocês tão fazendo aqui?". "É fulano que está aí." "Tá não, rapaz." "Tá, ele já vai ser liberado agora." Então, aconteceu por três vezes, e eu não associei o corpo à pessoa (participante 2).

Outra estratégia importante a ser observada alude à relação do trabalho com o espaço privado, isto é, a casa, a família. Alguns necrotomistas relataram durante as entrevistas que procuram "evitar falar de trabalho em casa". A adesão à religião também parece configurar-se como estratégia defensiva contra os aspectos deletérios do trabalho. É como se a opção religiosa oferecesse um escudo adicional, uma segunda pele, contra as contaminações vindas de fora que podem atingir a alma. Tal defesa constitui elemento de uma operação defensiva (ou estratégia), permitindo lidar psiquicamente com os atributos do trabalho de necrotomista.

De fato, somente se utilizando de estratégias de defesa individuais e coletivas fortemente erigidas para trabalhar com objeto tão desestabilizante em condições tão precárias e em uma organização do trabalho intensamente desgastante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo foi realizado com o objetivo de caracterizar as condições e a organização do trabalho dos necrotomistas do Departamento de Medicina Legal (DML) de uma capital do Nordeste do Brasil. Os resultados obtidos sugerem-nos apontar algumas conclusões, delineadas abaixo.

Em um primeiro plano, destacamos a precariedade das condições de trabalho no DML investigado - a começar pelo acúmulo de funções delegadas aos necrotomistas, que, além de produzir desgastes e sobrecarga, pode comprometer a qualidade do trabalho. Também o controle sobre o tempo se faz presente nessa atividade. Há uma exigência de acelerar a cadência dos procedimentos para concluí-los rapidamente, revelando um desejo desses profissionais tanto de abreviar o tempo de espera dos familiares das vítimas como de reduzir o tempo de contato com os cadáveres, mas também instaurando uma situação de hipersolicitação e desgastes. Ademais, constatamos que a insatisfação salarial, somada ao fato de alguns necrotomistas gastarem do próprio bolso para adquirir algumas ferramentas de trabalho, sinaliza, não obstante algumas melhorias nos últimos anos, que a atenção do Estado em relação a este órgão é ainda insuficiente. Tais condições - associadas a uma representação social negativa do trabalho dos necrotomistas que o situa no rol daquelas atividades tipificadas como trabalho sujo, repugnante, degradante - são produtoras de um sofrimento adicional, que exigem desses trabalhadores, além dos esforços físicos próprios dessa atividade, manobras psíquicas custosas para evitar resvalar no terreno do adoecimento psíquico. Segundo os necrotomistas, também a atual direção do órgão tem angariado melhorias, mas pudemos evidenciar que tais condições ainda se mostram por demais penosas.

Além disto, contribui para o processo de estigmatização - fonte considerável de sofrimento -, o desconhecimento das atividades realizadas pelos necrotomistas e a natureza de seu objeto de trabalho, que faz constante referência à morte. Encontramos aqui um limite desse artigo, o qual, apesar de ter abordado esse ponto, não pôde, por limite de espaço, desenvolver o tema à altura do que ele merece, algo que permanece como um desafio a ser mais detalhadamente enfrentado.

Como é comum entre as profissões que realizam trabalho que possa ser qualificado de sujo, na concepção de Hugues (1962) que adotamos, deve-se levar em conta o fato de os necrotomistas estarem situados na base da hierarquia de seu local de trabalho, realizando uma atividade com uma carga considerável, conforme já assinalado. Tal assimetria, embora seja ultrapassada em determinadas circunstâncias em que o trabalho em equipe mostra-se crucial, espelha a divisão do trabalho existente no interior dessa célula de trabalho, onde profissionais valorizados socialmente (médicos, dentistas) concentram atividades mais nobres e as funções de maior status, enquanto os necrotomistas assumem tarefas mais custosas, física e psiquicamente.

Para lidar psiquicamente com essas várias nuanças de seu trabalho os necrotomistas recorrem a estratégias defensivas individuais e coletivas, talvez ultrapassando um limiar aceitável. Essas estratégias, por um lado, cumprem uma função equilibrante do ponto de vista psíquico, pois facultam aos necrotomistas o enfrentamento e a eufemização das situações de trabalho, mas por outro lado, um trabalho muito ancorado nas defesas, que pode inibir tentativas de transformação da realidade de trabalho, contribuindo para sua estabilização. É quando a dominação simbólica, constituída em modus operandi, pode efetivamente nublar a visão da realidade e de seus riscos, sendo por isso, em certas circunstâncias, não apenas uma nova fonte de riscos, mas também um argumento para a manutenção do status quo, para deixar as coisas como estão. Se considerarmos que se trata de um efetivo reduzido, alocado numa organização com forte rejeição social, esquecida, os riscos de adaptação à situação de trabalho se ampliam.

Constatamos também que a organização real do trabalho, apesar de marcada por diferenciações profissionais que muitas vezes são fonte de controvérsias e conflitos internos, parece conseguir interagir com a organização formal de trabalho, fazendo valer certas regras construídas no exercício da atividade profissional. Em vários aspectos, evidenciamos a existência de regras comuns que se colocam acima das demarcações profissionais.

Conhecemos sua realidade, apreendemos as dificuldades sentidas no seu cotidiano e as estratégias mobilizadas pelos necrotomistas para lidar com tais dificuldades, a fim de preservar sua saúde física e mental. A agenda da pesquisa aponta os limites do que esse artigo pôde desenvolver, sendo ainda necessária a realização, em outros departamentos de medicina legal, de estudos que ampliem a compreensão do processo, das relações e da organização do trabalho dos necrotomistas. É importante, no que se refere à dinâmica prazer-sofrimento (Dejours, 2012b; 2011b), ao reconhecimento e à identidade no trabalho, desenvolver estudos comparativos entre necrotomistas e peritos médicos e odontólogos, ou entre necrotomistas policiais de departamentos de medicina legal (que realizam necropsias em vítimas de mortes violentas ou suspeitas, visando atender a solicitações da justiça) e necrotomistas patologistas dos Serviços de Verificação de Óbitos – SVO (estes realizam necropsias nos eventos de morte não violenta ou natural, decorrente de estados mórbidos diversos, que ocorreram em indivíduos não assistidos por médicos). Indicamos também como relevantes estudos longitudinais que evidenciem de forma mais clara a influência da organização de trabalho na relação sujeito-trabalho e o impacto desta sobre a saúde dos necrotomistas.

Pretendemos com a presente pesquisa apresentar uma contribuição de caráter social, uma vez que descortina o trabalho desenvolvido pelos necrotomistas, que se submetem a condições adversas e precárias de trabalho. Estes profissionais, embora invisíveis no laudo final, são figuras centrais em todo o processo de necropsia. As reflexões e conclusões deste estudo nos remetem à urgência de trazer para a agenda pública uma discussão institucional sobre as atribuições dos necrotomistas, com a cardeal finalidade de assegurar-lhes visibilidade social e romper os estigmas que pesam sobre eles.

Recebido em 05/07/2013

Aceito em 04/02/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Recebido
      05 Jul 2013
    • Aceito
      04 Fev 2014
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