Acessibilidade / Reportar erro

O SEXO EM PSICANÁLISE COMO ONTOLOGIA NEGATIVA

EL SEXO EN EL PSICOANÁLISIS COMO ONTOLOGÍA NEGATIVA

RESUMO

O objetivo deste artigo é defender a tese de que o sexo em psicanálise apresenta caráter ontologicamente negativo. Desde Freud, sabemos que sexo não se restringe a práticas específicas nem se aferra a objetos predeterminados - sexo é encarado como pulsional; sendo assim, perverso, polimorfo e infantil. Desta feita, trata-se de um objeto não positivado e que se manifesta em fenômenos negativos, como as formações do inconsciente - sexo, inconsciente e não saber estão intimamente associados. O impasse ontológico radical concernente ao sexo compõe os desenvolvimentos lacanianos referentes ao desejo e ao gozo. Ater-se à espécie de negatividade que lhe é própria permite extrair outras consequências do aforismo ‘não há relação sexual’ - para além da ideia de obstáculo ou impedimento, problematiza-se a face ontológica negativa da não relação, correspondente à ligação entre simbólico e real e que pode ser formalizada no matema S (Ⱥ). O artigo também põe em destaque incidências clínicas desta proposta - reconhecer a irredutibilidade ontológica da negação nos desvia das determinações positivas que sustentam normatizações identitárias em horizonte clínico.

Palavras-chave:
Sexo; psicanálise; ontologia negativa

RESUMEN

El objetivo de este artículo es defender la tesis de que el sexo en el psicoanálisis tiene un carácter ontológicamente negativo. Desde Freud hemos sabido que el sexo no se limita a prácticas específicas, ni se aferra a objetos predeterminados: el sexo es visto como pulsional; así, perverso, polimorfo e infantil. Esta vez, es un objeto no positivo que se manifiesta en fenómenos negativos, como las formaciones del inconsciente: el sexo, el inconsciente y el no-saber están estrechamente asociados. El impasse ontológico radical sobre el sexo constituye el desarrollo lacaniano sobre el deseo y el goce. Cumplir con su propio tipo de negatividad nos permite extraer otras consecuencias del aforismo ‘no hay relación sexual’: más allá de la idea de obstáculo o impedimento, el aspecto ontológicamente negativo de la no-relación, correspondiente al vínculo entre lo simbólico y lo real, se problematiza. Este marco teórico se puede formalizar en el matema S (Ⱥ). El artículo también destaca las implicaciones clínicas de esta propuesta: reconocer la irreductibilidad ontológica de la negación nos desvía de las determinaciones positivas que sustentan las normas de identidad en el horizonte clínico.

Palabras clave:
Sexo; psicoanálisis; ontología negativa

ABSTRACT

The purpose of this article was to defend the thesis that sex in psychoanalysis has an ontologically negative character. Since Freud, we have known that sex is not limited to specific practices or attached to predetermined objects - sex is seen as instinctual; therefore, perverse, polymorphous and childish. In this case, it is a non-positivized object that manifests itself in negative phenomena, such as the formations of the unconscious - sex, unconscious and not-knowing are intimately associated. The radical ontological impasse concerning sex makes up the Lacanian developments concerning desire and jouissance. Keeping to the negativity that is proper to it allows to draw other consequences from the aphorism ‘there is no sexual relationship’ - in addition to the idea of obstacle or impediment, the negative ontological face of non-relation is problematized, corresponding to the link between symbolic and real, which can be formalized in the matheme S (Ⱥ). The article also highlights clinical incidences of this proposal - recognizing that ontological irreducibility of negation diverts us from positive determinations that support identity norms in the clinical horizon.

Keywords:
Sex; psychoanalysis; negative ontology

Introdução

Em ‘Sobre psicanálise “selvagem”’ (2013Freud, S. (2013). Sobre Psicanálise “Selvagem”. In S. Freud. Obras completas (Vol. IX, p. 324 - 333). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1910.), Freud expõe o caso de uma mulher que o procura, muito angustiada, pela separação do marido. Ela lhe relata que antes deste encontro, havia consultado um jovem médico, presumido psicanalista, que teria lhe dito que a causa de seu sofrimento seria carência sexual, sugerindo-lhe, então, três saídas: primeira, voltar para o marido; segunda, arranjar um amante; terceira, satisfazer-se a si mesma. De tais recomendações, infere-se sua terapêutica atual, e Freud (2013Freud, S. (2013). Sobre Psicanálise “Selvagem”. In S. Freud. Obras completas (Vol. IX, p. 324 - 333). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1910., p. 330) sentencia: “[...] nessas alternativas terapêuticas do suposto psicanalista não sobra espaço para - a psicanálise”.

O jovem médico teria entendido ‘vida sexual’ como sinônimo de coito ou masturbação, ou seja, uma prática. Mas toda vez que reduzimos sexo a uma prática, extraviamos o sexo da psicanálise. Imaginamos, ao lado de Zupančič (2017Zupančič, A. (2017). What is sex? (Short Circuits series). Cambridge, MA: The MIT Press., p. 7), que frente à típica reprimenda “[...] para Freud tudo é sexo; Freud é um devasso [...]”, que ele não se defenderia alegando “[...] sexo é natural!”, mas que replicaria em forma de questão: “[...] o que é sexo? Será que estamos falando da mesma coisa?”

A título de curiosidade: em 1926Platonov, A. (2016). The anti-sexus. Stasis, 4(1), 10-19. Trabalho original publicado em 1926., na Rússia, Andrei Platonov escreveu um manifesto denominado O anti sexus, em prol da criação de um instrumento eletromagnético que aplacaria nossa feroz propensão sexual - benéfico tanto aos soldados na guerra quanto aos cidadãos comuns. Além de nos desvencilhar da alegada imoralidade e animalidade que as práticas sexuais incitariam, tornaria a vida social mais cortês e amistosa - depreende-se daqui que o sexo seria um estorvo ao homem civilizado. Este manifesto ficou famoso e até Henry Ford chegou a assiná-lo. Talvez como resposta ao manifesto de Platonov, segundo Schuster (2016Schuster, A. (2016.) Sex and anti-sex: introduction to Andrei Platonov's “The Anti-Sexus”. Stasis, 4(1), 41-47.), Stanislaw Lem publica em 1979 Sexplosion - consta da narrativa que uma droga, denominada nosex, foi criada com o objetivo de conter o ímpeto sexual do coito. Apesar do sucesso do programa, um efeito imprevisível ocorre em seguida. O desejo se desloca com força à oralidade e eclodem distúrbios referidos ao comer - surge, inclusive, a ‘pornoculinária’. Esta obra literária se sustenta em um potente preceito psicanalítico: não há como escapar da pulsão sexual - ela transita, concentra-se mais em uma zona erógena do que em outra, mas não é eliminável. Por sinal, desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade3 3 Freud “[...] ‘descobriu’ a sexualidade como intrinsecamente sem sentido, e não como o horizonte final de todo sentido produzido pelo homem. Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) continuam a ser um texto de grande importância a esse respeito. Se se precisasse resumir seu argumento em uma única frase, a seguinte chegaria suficientemente perto das expectativas: a sexualidade (humana) é um desvio enigmático-paradoxal [paradox-ridden] de uma norma que não existe” (Zupančič, 2008, p. 3, grifo do autor). , de 1905, sabemos da insepulta disposição pulsional da sexualidade humana: perversa, poliforma e infantil.

Na conferência ‘A vida sexual humana’, Freud (2014Freud, S. (2014). A vida sexual humana. In S. Freud. Obras completas (Vol. XIII, p. 404- 424). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1917.) é explícito: o sexo não se restringe à reprodução ou ao coito, já que integra atos como beijar, a masturbação e até mesmo o parto. Inicialmente, Freud vai se verter à perversão para pesquisar sobre sexo - perversão aqui é remetida à sexualidade que se desvia da função reprodutora. Nesta investigação, ele cita os homossexuais, por renunciarem à reprodução; depois aos perversos que adotam como meta de seus desejos sexuais as ações preparatórias (olhar, tocar etc.); terceiro, sádicos e masoquistas; por fim, aos que substituem a busca de satisfação na realidade pelas fantasias (não necessitam de objeto concreto). A satisfação sexual obtida nestas condutas não seria de uma outra espécie que a satisfação genital; nem seriam menos, nem mais sexuais. Os supostos desvios da meta ‘normal’, nestes casos, não são considerados como sinais de degenerescência. Em suma, Freud vai explorar o tema ‘sexo’ em um terreno onde justamente não está o sexo do senso comum.

Se as mais diversas partes do corpo podem ser catexizadas, os órgãos que envolvem excretar e nos alimentar, por exemplo, também são fontes de prazer sexual - polimorfia. Então, o que se tem até aqui: a pulsão sexual é perversa (não se fia à função reprodutora), sem objeto preestabelecido e polimorfa (afeta várias regiões do corpo).

Na histeria, uma atividade sexual reprimida alcança satisfação na forma de sintomas, como a paralisia de uma perna - seria uma substituição. Freud afirma que

Inúmeras sensações e inervações que nos apresentam como sintomas na histeria - em órgãos que aparentemente nada tem a ver com a sexualidade - revela-se, assim, sua natureza: são realizações de impulsos perversos, nas quais outros órgãos tomaram para si a importância de órgãos sexuais (Freud, 2014Freud, S. (2014). A vida sexual humana. In S. Freud. Obras completas (Vol. XIII, p. 404- 424). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1917., p. 409).

Já da neurose obsessiva se infere outro quadro: a satisfação sexual sublimada se combinaria com a intelectualização: “[…] os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social” (Freud, 1996aFreud, S. (1996a). Cinco lições de psicanálise. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XI, p. 17-66). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1909., p. 65). Neste sentido, o ato de pesquisar faria às vezes de uma atividade sexual, tal como se pode depreender da dinâmica psíquica de Leonardo da Vinci (Freud, 1996bFreud, S. (1996b). Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XI, p. 67 - 142). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1910.).

É claro, tal transmutabilidade da pulsão não é posta em evidência somente nas manifestações de quadros clínicos como a histeria ou a neurose obsessiva - a atividade infantil comum a escancara: “[...] o prazer alcançado no ato de sugar, nós o caracterizamos como ‘sexual’” (Freud, 2014Freud, S. (2014). A vida sexual humana. In S. Freud. Obras completas (Vol. XIII, p. 404- 424). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1917., p. 416, grifo do autor). O que isto quer dizer? Que sugar não visa só a alimentação. É o fato de não se reduzir a uma satisfação ‘natural’ - no caso, saciar a fome - que faz do sugar ‘sexual’; pois mesmo saciado, o bebê continua demandando o peito.

Daí o estrondo freudiano: as crianças são seres sexuados desde sempre, mesmo que seus órgãos sexuais ainda não tenham atingido a função biológica para o ato sexual. E mais: a vida adulta não supera tal conjuntura - a sexualidade infantil continua no adulto. A maturidade dos órgãos sexuais não soterra aquela sexualidade que não se dirige à genitalidade e à reprodução sexual - as pulsões parciais que envolvem olhar, tocar e sugar, dentre outras, mantêm-se atuantes.

Em resumo, o sexo pulsional em Freud é perverso, polimorfo e infantil; a libido é sexual e participa da sublimação, dos pensamentos obsessivos e dos sintomas histéricos. As pulsões nunca são unificadas definitivamente, permitindo que as diferentes pulsões parciais continuem circulando, catexizando partes do corpo e mobilizando as mais diversas atividades. Afinal de contas, onde está o sexo, se ele parece estar em todo lugar? É como se houvesse uma dispersão conceitual. Deduziríamos disso se tratar de uma imperícia teórica freudiana? Não, é que o sexo não é absolutamente capturável ou circunscrito. O problema é o estatuto ontológico deste objeto, que inviabiliza o decreto ‘o sexo é isso’.

A pretensão de defini-lo ou cerceá-lo em determinações positivas é vã. Freud é levado a se deparar com esta questão porque, mesmo com conteúdos sendo revelados, mesmo com a paciente ‘sabendo’ (e lhe sendo dito) dos meios para resolver sua carência sexual - como se verifica em ‘Sobre Psicanálise “Selvagem”’ -, os sintomas continuam. A decifração ou a revelação do aparente sentido sexual por trás dos sintomas não os dissipavam - pelo contrário, a tática clínica de produzir sentido no que compete a ‘sexo’ só nos afasta dele.

Por este ângulo, sustentamos que há uma passagem epistemológica, e que fica mais evidente com a entrada de Lacan em cena. Do sexo enquanto conteúdo recalcado que, desvelado, ‘curaria’ o sujeito, para o tratamento do sexo em sua instabilidade ontológica. Imputar predicados ao sexo, qualquer que seja, indefere seu caráter negativo. Distanciando-se de uma hermenêutica,

[...] ‘o sexual será, para Lacan, presença do negativo no sujeito’. Ele será o campo de uma experiência fundamental de inadequação que se revela na impossibilidade de os sujeitos produzirem representações adequadas de objetos de gozo, assim como representações adequadas de identidades sexuais [...]. É por isto que Lacan pode afirmar que o advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da ‘inadequação radical do pensamento à realidade do sexo (Lacan, S XIV, sessão 18.1.1967). Inadequação que indica como ‘o sexual se mostra por negatividades de estrutura’ (Lacan, AE, p. 380) (Safatle, 2006Safatle, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo, SP: Editora Unesp., p. 67-68, grifo do autor).

Por isso, a tensão interna a Lacan: como reconhecer o sexual, se permanece fora dos processos de simbolização, à medida que leva em conta a negatividade que está no coração do sujeito? O sexo é um objeto que traz em si sua própria negação; mas se há a autonegação de sua identidade, isto não quer dizer que se trata de um objeto não passível de ser conceitualizado. Lacan, ao se munir do giro que Hegel emprega à negatividade4 4 “[...] para Hegel, o negativo não é falta de determinação ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de uma relação opositiva. Ao contrário, o esforço maior de Hegel consistiu em pensar um ‘negativo em si’, para além de sua oposição ao positivo. Trata-se de restituir da dimensão ontológica ao negativo, através da negatividade de uma essência que deve tomar a forma de objeto e, ainda assim, conservar seu caráter negativo, que talvez nos indique a verdadeira esfera da influência de Hegel em Lacan” (Safatle, 2007, p. 183, grifo do autor). , atribui outra espessura ontológica a este objeto, resistente à absorção a todo e qualquer princípio de regulação positiva, imagética ou representacional - a inteligibilidade do sexo é alargada.

Em horizonte lacaniano, a realidade do sexo não se adequa ao pensamento - do sexo, como coextensivo do inconsciente, não se sabe. Copjec (1994Copjec, J. (1994). Read my desire: Lacan against the historicists. Cambridge, MA: MIT Press., p. 207) afirma: “Dizer que o sujeito é sexuado é dizer que não é mais possível ter qualquer conhecimento acerca dele ou dela. Sexo não tem outra função senão limitar a razão, remover o sujeito do campo da experiência possível ou do conhecimento puro”. O sexo seria o atestado do não saber próprio ao sujeito.

Neste sentido, não é que falta uma informação sobre o sexo; o que acontece é que o conhecimento em si comporta uma fenda, um não saber, que corre em paralelo com a incidência do sexual - assim, segundo Copejc (1994Copjec, J. (1994). Read my desire: Lacan against the historicists. Cambridge, MA: MIT Press., p. 207), sexo “[...] se torna aquilo que não se comunica, aquilo que marca o sujeito como não podendo ser conhecido”. Daí ser crucial destacarmos dois pontos: o não saber é um tipo de saber - é um saber inconsciente, que difere radicalmente do ‘não sabido’; e ‘negativo’ não é sinônimo de ausente - o negativo aparece como presença, como uma falta presente5 5 Para exemplificar esta espécie de negatividade, Zupančič (2012, p. 9) traz uma anedota: “Um cara entra em um restaurante e pede ao garçom: Café sem creme, por favor. O garçom responde: me desculpe, senhor, não temos creme. Pode ser café sem leite?”. Não se trata só café, mas de café com uma falta - falta pertencente ao café. . Logo, não é que faltam dados sobre sexo ou que falta o significante do sexo, algo externo a ele, mas que ele próprio abarca um não saber; e a falta de um significante lhe é intrínseca.

O sexo se verte à falha inerente ao campo da linguagem. No entanto, quando Copjec fala em ‘falha da linguagem’, não está se referindo à insuficiência de um objeto pré-discursivo, mas a contradição que a linguagem carrega em si própria - o sexo coincide com essa falha, esse paradoxo inevitável, ao passo que estruturante. Assim, a autora condensa sua posição: o sexo é “[...] a incompletude estrutural da linguagem, e não que o sexo seja em si mesmo incompleto” (Copjec, 1994Copjec, J. (1994). Read my desire: Lacan against the historicists. Cambridge, MA: MIT Press., p. 206).

Portanto, a dificuldade não adviria da nossa incapacidade em elucidar o sexual ou do seu escorregadio aspecto mutante, como se suas significações estivessem sempre em processo, mas sim da opacidade de seu estatuto enquanto objeto - opacidade constatada tanto em âmbito discursivo quanto nas produções sintomáticas e a temporalidade que lhe é específica.

Sexo não pode ser alojado em domínio biológico ou cultural - por sinal, sexo não tem um domínio próprio. Sendo assim, ele se manifesta em fenômenos negativos. Se, segundo Lacan (1964Lacan, J. (1964). Le séminaire, livre XI - fondements. Paris, FR: AFI. Recuperado de:http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEMENTS.pdf
http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEM...
, p. 81) “[...] a realidade do inconsciente [...] é a realidade sexual [...]”, sexo então está ao lado das formações do inconsciente, como lapsos e sintomas - interrupções que apontam para a descontinuidade e a desordem, corrompendo a cadeia causal mantida em tempo cronológico. Copjec (2012Copjec, J. (2012). The sexual compact. Angelaki: Journal of Theoretical Humanities, 17(2), 31-48.) interpreta o caso Emma por esta via.

Num primeiro momento, quando tinha oito anos, Emma foi abordada pelo vendedor de uma loja que, rindo, tocou seus genitais. Tal cena, contudo, não se configurou para ela como invasão ou abuso sexual naquele momento; somente anos depois, ao entrar sozinha numa loja de roupas, Emma saiu de lá correndo, assustada, ao presenciar dois vendedores rindo, pensando que zombavam de seu vestido. Para Copjec (2012Copjec, J. (2012). The sexual compact. Angelaki: Journal of Theoretical Humanities, 17(2), 31-48.), esse segundo incidente atualiza a cena anterior, trazendo seu caráter sexual para frente, como se fosse a primeira vez. O despontar do sexual, e seu traço de inapreensibilidade, se desenrola em duas fases: na primeira, o sexo está fora da experiência; na segunda, por sua vez, está ausente da ação que o provocaria. O sexo aparece enquanto enigma, como uma função de suspensão de sentido. No quadro de Emma, se dá a ver nas produções de seus sintomas - como não entrar sozinha em lojas.

No anacronismo de Emma, o passado é infectado pelo presente deslocado - introduzindo, hoje, uma sexualidade muito cedo para ser experimentada na ocasião -, assim como o presente parece ser atingido pelo passado também fora de lugar. Isto é importante para irmos contra uma visão desenvolvimentista - como aquela típica do senso comum de que, preliminarmente, as crianças são assexuadas, e só depois se sexualizam. O ponto é que não se prenuncia (e nem se adia) o sexual; só se colhe seus efeitos. O sexo não se localiza em tempo cronológico, no discurso ou exatamente em que ato.

Por fim, retomando a veia ontológica, o sexo, correspondente ao não saber inconsciente, não é um ser enquanto ser; nem um não ser substancializado. O sexo é quebra; algo nunca terminantemente cumprido e que testemunha um curto-circuito: sexo é antagônico ao ser e, paradoxalmente, faz parte dele - a trama que sustenta esta racionalidade denomina-se ‘ontologia negativa’. Zupančič (2017Zupančič, A. (2017). What is sex? (Short Circuits series). Cambridge, MA: The MIT Press., p. 16) arremata: “O inconsciente é a forma mesma da existência de uma ontologia negativa pertencente ao sexo”. Então, a ligação entre inconsciente, sexo e saber exige operações que assumem a negatividade em extensão ontológica.

Desdobramentos clínicos

As raízes de toda esta conjuntura quanto ao negativo e sua espessura ontológica podem ser inferidas do próprio Lacan. No seminário 11, ao abordar o inconsciente pela estrutura da hiância, afirma: “[...] é uma função ontológica que está envolvida nessa lacuna, nessa estrutura fundamental, pela qual considerava necessário introduzir como a mais essencial, como lhe sendo a mais essencial, a função do inconsciente” (Lacan, 1964Lacan, J. (1964). Le séminaire, livre XI - fondements. Paris, FR: AFI. Recuperado de:http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEMENTS.pdf
http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEM...
, p. 16). Mais à frente, a respeito da ordem do inconsciente: “[...] é que não é nem ser nem não-ser, é algo de não-realizado” (Lacan, 1964Lacan, J. (1964). Le séminaire, livre XI - fondements. Paris, FR: AFI. Recuperado de:http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEMENTS.pdf
http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEM...
, p. 16). O inconsciente comporta uma brecha ou um hiato cuja estrutura perturba o sistema metafísico de oposição entre ser e não ser.

No mesmo seminário 11, agora partindo da discussão a respeito da fenomenologia do olhar em Merleau-Ponty, Lacan esclarece sua posição frente à ontologia:

Esta é uma oportunidade para eu definir, recordar, o que certamente no meu discurso ‘não é’ (n’est pas). Tal como [...] daqueles que desde meus Escritos me seguiram o suficiente para revisar o que está contido em tal nota [...] dizer que pareço perseguir o objetivo particular da busca de um ‘status ontológico da psicanálise’ apoiado nos fundamentos de uma coerência filosófica a partir do que todos os aspectos do freudismo seriam reinterpretados, aquilo que costumávamos chamar de ‘naturalismo’. Apesar dos ‘impasses’ aonde parece levar, mantê-la parece indispensável, porque essa perspectiva é uma das poucas tentativas, se não a única, de dar corpo à realidade da psique sem substanciá-la. E é claro que vou dizer, ‘eu tenho minha ontologia’ - por que não? - como todo mundo no nível de uma filosofia, seja ela ingênua ou elaborada (Lacan, 1964Lacan, J. (1964). Le séminaire, livre XI - fondements. Paris, FR: AFI. Recuperado de:http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEMENTS.pdf
http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEM...
, p. 36-37, grifo nosso).

Há uma função ontológica da lacuna que estrutura o inconsciente, e pela qual ele opera. Tal lacuna, contudo, não deve ser substancializada (seja como ser, seja como não ser). A ‘ontologia lacaniana’ passa pelo ‘não é’. Este não ser não é sinônimo de privação ou de um vazio precário de determinações: temos aqui um “[...] modo de negação que é modo de presença do que resta fora da simbolização reflexiva com seus protocolos de identificação, sem que isto implique necessariamente em alguma forma de retorno ao inefável” (Safatle, 2007Safatle, V. (2007). A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso, (36), 151-192., p. 178). O modo de negação atuante em tal modalidade de ontologia, e que não se fundamenta na noção de substância, assim como podemos resgatar em Lacan, tem o impasse como marca.

Autorizados por passagens lacanianas como as expostas acima, os trabalhos de Vladimir Safatle e Christian Dunker extraem implicações clínicas de um ambicionado programa de leitura de operadores conceituais da psicanálise via ontologia negativa.

Safatle (2006Safatle, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo, SP: Editora Unesp.), embasado em Hegel e autores pós-lacanianos como Žižek e Badiou, defende que, na confrontação entre sujeito e objeto, participam estruturas de reconhecimento de uma negação ontológica e, por esta ótica, examina a noção de pulsão. Safatle oferece uma perspectiva crítica às formas canônicas de leitura de Lacan, indo além do prisma do kantismo lacaniano - se útil em vertente epistêmica, também permite uma reconsideração de segmentos da clínica. A ontologia que parte da discursividade do ser enquanto ser fundamenta o regime que se presta à normatização do campo das práxis, determinando a priori a configuração de suas possibilidades - como alternativa, Safatle (2007)Safatle, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo, SP: Editora Unesp. propõe uma ontologia cujo regime se assente em experiências de negação, a então reorientar decisões clínicas que não mais se amparem em determinações positivas. Este dispositivo restituiria a dignidade da indeterminação e da contingência em âmbito clínico contra, por exemplo, a ilusão de que a adequação a quadros identitários correspondentes à norma sexual seriam necessariamente redutores de sofrimento, e que, consequentemente, deveriam servir de baliza ou referência a partir do que se equacionaria o sucesso terapêutico.

Se, segundo Safatle (2007Safatle, V. (2007). A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso, (36), 151-192., p. 151), “[...] uma das contribuições mais importantes de Lacan consiste na defesa de que a psicanálise é solidária de uma articulação complexa, porém decisiva, entre clínica e ontologia [...]”, o autor sustenta que, na versão lacaniana da teoria pulsional, se imiscui “[...] uma ontologia fundada no reconhecimento da irredutibilidade ontológica da negação” (Safatle, 2007Safatle, V. (2007). A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso, (36), 151-192., p. 150) - a ser verificada, por exemplo, no impulso de negação que a pulsão de morte comporta e que se mostra quando os objetos imaginariamente constituídos são desvirtuados ou anulados pelo veio significante. Para Safatle,

[...] a pulsão de morte é um conceito ontológico. Isso porque, ao vincular a pulsão de morte ao que se satisfaz através da potência negadora da linguagem, quando esta se libera de suas ilusões realistas, Lacan reordena completamente a noção tradicional de simbolização como submissão à potência organizadora da representação (Safatle, 2007Safatle, V. (2007). A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso, (36), 151-192., p. 174).

Em suma, o passo lacaniano que deslocou a pulsão de morte da mera repetição compulsiva do instinto de destruição “[...] abriu a possibilidade de estruturarmos uma nova via de reflexão sobre as figuras do negativo na clínica” (Safatle, 2007Safatle, V. (2007). A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso, (36), 151-192., p. 167).

Também para Dunker (2007Dunker, C. I. L. (2007). Ontologia negativa em psicanálise: entre ética e epistemologia. Discurso, (36), 217-242.), o programa de uma ontologia negativa viabilizaria o diálogo entre diferentes projetos clínicos em psicanálise, assim como assinalaria interessantes pontos de contato entre filosofia e psicanálise. Dunker desdobra tal proposta tanto ao tratar da relação entre ontologia negativa e o paradigma da subjetividade melancólica, entidade que confluiria para o advento da psicanálise na modernidade; quanto ao indicar seu papel determinante para o pensamento sobre o real nas filosofias do século XX. Neste caso, Dunker (2007)Dunker, C. I. L. (2007). Ontologia negativa em psicanálise: entre ética e epistemologia. Discurso, (36), 217-242. destaca os potentes recursos da ontologia negativa para a ideação do aspecto epistemológico do real frente à realidade e para a distinção de noções congêneres, como saber e verdade, conhecimento e desconhecimento.

As absorções teóricas empreendidas por Lacan ao longo do percurso de sua obra evidenciam a chancela diacrônica da ontologia negativa, como

[...] a dialética com ênfase negativa, de Kojéve; a linguagem considerada como sistema de elementos sem positividade própria, em Saussure e Lévy-Strauss; a função axiomática do zero e do conjunto vazio na lógica de Frege; a escrita do não-todo extraída da matemática de Cantor e Gödel. Contudo, é preciso salientar que este esforço de destranscendentalização do sujeito (pela via do negativo) é acompanhado da reflexão ontológica em torno do objeto (teoria do gozo e da sexualidade, concepção de objeto ‘a’ etc) (Dunker, 2007Dunker, C. I. L. (2007). Ontologia negativa em psicanálise: entre ética e epistemologia. Discurso, (36), 217-242., p. 230, grifo do autor).

Se os recursos hegelianos foram decisivos para a composição da perspectiva que Lacan funda na psicanálise, e se existem várias decorrências desta incorporação, destacamos, para os nossos fins de pesquisa, seu papel na “[...] subversão do objeto do conhecimento como categoria epistemológica” (Dunker, 2007Dunker, C. I. L. (2007). Ontologia negativa em psicanálise: entre ética e epistemologia. Discurso, (36), 217-242., p. 229). Desta feita, sustentamos que a chave negativa oferece outro ângulo de análise da categoria epistemológica do objeto ‘sexo’ - e que justamente pode se dar a partir de depurações do aforismo lacaniano “[...] não há relação sexual”.

Sexo enquanto não relação

Para que haja sexo, é preciso uma operação. O corpo em O banquete de Platão não é um corpo sexuado. A androginia é o princípio primordial. Sexo se aproxima do latim secare, cortar - neste sentido, o andrógino não tem sexo; ele foi cortado ao meio e os dois seres apartados se ‘sexuaram’ diferentemente. O corte, enquanto efeito de linguagem, eleva o ser da natureza ao sujeito do inconsciente - vertido, desde então, à fantasia de completude mítica, na tentativa de restituir imaginariamente o Um totalizado. O corte produz a ideia de ter existido o Um a ser reestabelecido, mas em vão: não há um mais um - dois; duas partes correspondentes que, juntas, recomporiam o Um. Talvez ‘sexo’ seja o nome da não conciliação entre uma esfera e outra que o corte tornou heterogêneas.

Este panorama requer que se abra mão de princípios de base como o que comanda o modelo da reprodução dos sexos - ou o mito do andrógino -, que prevê um ser essencializado em contato com outro ser essencializado, simetricamente opostos e que, reunidos, entrariam em relação. Logo, sexo não aponta para uma relação, mas para uma não relação (rapport) - não proporção entre um e outro; e Lacan vai se dedicar a formalizar logicamente, com sua teoria da sexuação, o que faz “[...] de um obstáculo ao outro” (Lacan, 2012Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19 - ...ou pior. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 99).

A não relação pode ser encarada de duas maneiras. Ou como ausência de relação - o desencontro eterno dos amantes, ‘homens são de Marte, mulheres de Vênus’ etc., isto é, atribuindo predicados dissimétricos a homem e mulher, qualidades dissonantes que inviabilizam a conjunção harmônica; ou como ‘não relação’ - ou seja, ontologicamente, mas de forma negativa, como sustenta Zupančič (2017Zupančič, A. (2017). What is sex? (Short Circuits series). Cambridge, MA: The MIT Press.). Seguindo a mesma racionalidade: a não relação existe enquanto não existe; ou existe ao passo que inexistente. Segundo Žižek (2013Žižek, S. (2013). Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo, SP: Boitempo., p. 485, grifo do autor):

É fácil perceber como essa passagem de ‘não existe relação sexual’ para ‘existe uma não-relação’ evoca uma passagem kantiana para o juízo negativo do infinito: ‘ele não está morto’ não é o mesmo que ‘ele está não-morto’, assim como ‘não existe relação’ não é o mesmo que existe uma não-relação. A importância dessa passagem, com respeito à diferença sexual, é que, se pararmos em ‘não existe relação’ como nosso horizonte decisivo, nós continuamos no espaço tradicional da eterna luta entre os dois sexos.

Haveria então uma mudança de princípio no itinerário lacaniano - “[...] do princípio ontológico da não contradição para o princípio de que não há relação sexual” (Žižek, 2013Žižek, S. (2013). Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo, SP: Boitempo., p. 485). Safatle (2006Safatle, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo, SP: Editora Unesp., p. 133), sob o mesmo prisma que o do filósofo esloveno, conclui que “[...] a relação sexual advém possível ‘através’ do seu fracasso. [...] é graças ao seu fracasso que o objeto pode desvelar a negação ontológica que o engendra”.

Mas não nos deixemos enganar pela aura pessimista que tais desenvolvimentos e seus termos correlatos costumam evocar quanto ao amor e ao erotismo - se o senso comum tende associá-los a derrotismo ou resignação, em contrapartida é a inescapável não relação o que estritamente propicia que as mais diversas modalidades de vínculos amorosos e ligações eróticas sejam concebíveis; que a multiplicidade seja emblema da sexualidade - a não relação permite a liberdade. Caso contrário, viveríamos infindavelmente presos ao ideal de complementaridade - concomitante ao ato sexual genital -, ou seja, a um panorama heteronormativo que nos confinaria a um quadro preestabelecido e limitante. Lacan afirma no seminário 18 que

[...] as pessoas sérias, às quais são propostas essas soluções elegantes que consistiriam na domesticação do falo, pois bem, o curioso é que elas se recusam em aceitá-las. E por que, se não para preservar a chamada liberdade, na medida em que ela é precisamente idêntica à inexistência da relação sexual? (Lacan, 2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18 - de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 69).

Em suma, a relação sexual como inexistente é o que endossa a pluralidade de formas de relacionamentos, que nos desencaminha de uma rota unilateral e pré-programada em direção aos objetos de satisfação pulsional - tal não predeterminação frustra o escopo de satisfação total ou de encontro harmônico entre sujeito e objeto, mantendo o antagonismo não formatável e o sexo em vigência, nunca curvado à norma. Horizonte libertário, coextensivo ao acesso à ordem simbólica e à regência fálica.

Tal como Lacan põe em evidência desde os anos 50 - a entrada na linguagem nos retira do âmbito da necessidade; demanda é demanda de amor e reconhecimento. Neste processo, um resto é produzido, o desejo - que não é prazer, não é resultado do escoamento da tensão acumulada. O desejo é inconsciente e não se satisfaz com objetos empíricos - o desejo traz em si uma pura negatividade que transcende aderências imaginárias e que frusta ser realizado pela via do fenômeno; é justamente seu esvaziamento o que faz do desejo ‘sexual’.

Contudo, a figura negativa do vazio denota uma contradição pertinente à realidade sexual - se resistente à substancialização ou à captura simbólica, o que aproximaria o sexo do registro do real e à categoria do impossível, por outro lado, o sexo não se dá sem o simbólico. Tem-se um impasse aplicável ao registro do real - não há real fora da linguagem. De certa forma, o real se registra em âmbito simbólico, mas como limite ou paradoxo: “[...] o real é um obstáculo inerente ao simbólico [...] seria uma impossibilidade inerente à linguagem, que se define nela e por ela” (Goldenberg, 2019Goldenberg, R. (2019). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage., p. 161). Nesta chave de leitura, há um curto-circuito: faz parte da estrutura, ao mesmo tempo que lhe é incompatível - o título deste colapso é ‘sexo’. Se o real não cessa de não se escrever, e se o sexo - real, que não é sem o simbólico - aponta para a não relação, então, a não relação sexual não cessa de não se escrever. A não relação se mantém não se inscrevendo na linguagem - ou, em outra medida, inscreve-se como nunca se inscrevendo. Precisemos: não é que ela não se inscreve por completo, que se inscreve só parcialmente, mas, neste ponto de vista, que ela se inscreve enquanto não inscritível.

Se, para Goldenberg (2019Goldenberg, R. (2019). Desler Lacan. São Paulo, SP: Instituto Langage., p. 125), “[...] o abandono da esperança de uma ontologia propriamente psicanalítica se verifica na elaboração da categoria de real [...]”, defendemos que o real aponta sim para uma ontologia, mas negativa. Se o real não é um ser enquanto ser, mas deflagra seu ponto impasse, tal ponto, por sua vez, não sucumbe à positivação - em contrapartida, pode ter sua negatividade respectiva tratada ontologicamente.

É somente através deste prisma que nos aproximamos do estatuto de conceitos lacanianos que compõe o campo do sexo enquanto não relação - dentre eles, o gozo, testemunho da perturbação entre real e simbólico. Neste sentido, para Zupančič (2012Zupančič, A. (2012). Sexual difference and ontology. e-flux jornal, (32). Recuperado de: https://www.e-flux.com/journal/32/68246/sexual-difference-and-ontology/
https://www.e-flux.com/journal/32/68246/...
, p. 5, grifo do autor): “[...] a sexualidade (como o real) não é algo que existe ‘além’ do simbólico; ela ‘existe’ somente como o encurvamento do espaço simbólico que surge por conta de algo adicional produzido com o gesto significante”.

Nunca é demais salientarmos que Zupančič considera que, neste contexto, os registros não devem ser tomados por si só6 6 Nos termos de Safatle (2006, p. 226), “[...] o núcleo dialético da psicanálise lacaniana deve ser procurado na lógica das negações que suporta a relação entre Real e determinações simbólicas”. - não existiria um ‘sexo simbólico’ ou um ‘sexo real’; ou que sexo teria uma vertente simbólica e mais uma, real. De outro modo, sexo deve ser pensado na intercorrência entre ambos: o real ‘curvaria’ o simbólico, desvirtuando sua operacionalidade binária - significante/significado, sincronia/diacronia, por exemplo. Isto abriria as portas para outro modo de funcionamento - talvez a ser retratado pela engrenagem da garrafa de Klein - que, inclusive, permitiria considerar formas não binárias de se conceber a diferença sexual (Cossi, 2018Cossi, R. K. (2018). Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, SP: Annablume.).

Por fim, o sexo enquanto não relação ontologicamente negativa corre em paralelo com a ligação nada óbvia entre simbólico e real. O real está em contradição interna ao simbólico e é dessa estrutura, desse vínculo nada evidente que brota o sexo; ou o sexo designa este acidente. De toda forma, qual elemento teórico atestaria tal conjuntura? De acordo com Zupančič (2017Zupančič, A. (2017). What is sex? (Short Circuits series). Cambridge, MA: The MIT Press.), seria o matema S(Ⱥ): elemento heterogêneo à ordem simbólica e que, ao mesmo tempo, pertence a ela. A emergência desta estrutura coincide com a não emergência de um significante, ao passo que há um significante desta falta de significante - e o significante da falta de significante não completa o Ⱥ (Outro barrado). A falta se mantém ‘interna’. Logo, não é que falta o significante do sexo, mas que o sexo é a consequência da falta de um significante, dessa lacuna - lacuna cuja inconsistência desvela “[...] o sexual como o conceito de um impasse ontológico radical” (Zupančič, 2008Zupančič, A. (2008). Sexualidade e ontologia.Revista Estudos Lacanianos, 1(2)., p. 11).

Toda essa trama causa um distúrbio, deixando um traço particular: gozo. No seminário 20, Lacan (1972Lacan, J. (1972-73). Le séminaire, livre XX - encore. Paris, FR: AFI. Recuperado de: http://staferla.free.fr/S20/S20%20ENCORE.pdf
http://staferla.free.fr/S20/S20%20ENCORE...
-73) fala em ‘substância gozante’, o que pareceria contraditório aos nossos propósitos - já que Lacan emprega o termo ‘substância’ -, se não nos atermos à sua asserção anterior: “Mas o que é gozo? É exatamente isso que, no momento, se reduz para nós a uma instância negativa: gozo é aquilo que não serve de nada” (Lacan, 1972-73, p. 4). Podemos dizer que o sexo coincide com a hiância antagônica ao ser, à medida que incluída nele - real com simbólico -, e que tem o gozo como produto; substância que, por sua vez, vale pela sua negatividade intrínseca.

Considerações finais

O efeito do significante faz de nós sujeitos, retirados da natureza animal; daí a pulsão não se submeter ao modelo da reprodução sexual, que prescreve uma determinada escolha de objeto e uma atividade específica como alvo (prática sexual genital). A pulsão é parcial - perversa, polimorfa e infantil - e permanece não unificada, insuperavelmente. Sendo assim, temos de nos reposicionar frente a modelos baseados no ideal imaginário e normativo de complementaridade ou proporção entre um e outro, e que prevê uma relação restrita. Vamos na direção da impossibilidade de relação quando se fala em sexo que, se atrelada à ideia de obstáculo, paradoxalmente é o que nos faz livres e permite que existem diversas expressões da sexualidade. É porque não há relação que o sexo pode se apresentar, inclusive, em fenômenos negativos, como as manifestações do inconsciente - caso contrário, o sexo seria circunscritível, localizável e aleatoriamente restrito a uma ação particular. O trânsito da inexistência de relação para a existência de uma não relação concernente ao sexo admite um impasse ontológico, um curto-circuito da linguagem em si mesma que exige uma recapitulação do negativo - entroncamento do real com o simbólico, que tem o gozo como derivação e o matema S(Ⱥ) como insígnia.

Referências

  • Copjec, J. (1994). Read my desire: Lacan against the historicists Cambridge, MA: MIT Press.
  • Copjec, J. (2012). The sexual compact. Angelaki: Journal of Theoretical Humanities, 17(2), 31-48.
  • Cossi, R. K. (2018). Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos São Paulo, SP: Annablume.
  • Dunker, C. I. L. (2007). Ontologia negativa em psicanálise: entre ética e epistemologia. Discurso, (36), 217-242.
  • Freud, S. (1996a). Cinco lições de psicanálise. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XI, p. 17-66). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1909.
  • Freud, S. (1996b). Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XI, p. 67 - 142). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1910.
  • Freud, S. (2013). Sobre Psicanálise “Selvagem”. In S. Freud. Obras completas (Vol. IX, p. 324 - 333). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1910.
  • Freud, S. (2014). A vida sexual humana. In S. Freud. Obras completas (Vol. XIII, p. 404- 424). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Trabalho original publicado em 1917.
  • Goldenberg, R. (2019). Desler Lacan São Paulo, SP: Instituto Langage.
  • Lacan, J. (1964). Le séminaire, livre XI - fondements Paris, FR: AFI. Recuperado de:http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEMENTS.pdf
    » http://staferla.free.fr/S11/S11%20FONDEMENTS.pdf
  • Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18 - de um discurso que não fosse semblante Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19 - ...ou pior Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1972-73). Le séminaire, livre XX - encore Paris, FR: AFI. Recuperado de: http://staferla.free.fr/S20/S20%20ENCORE.pdf
    » http://staferla.free.fr/S20/S20%20ENCORE.pdf
  • Platonov, A. (2016). The anti-sexus. Stasis, 4(1), 10-19. Trabalho original publicado em 1926.
  • Safatle, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética São Paulo, SP: Editora Unesp.
  • Safatle, V. (2007). A teoria das pulsões como ontologia negativa. Discurso, (36), 151-192.
  • Schuster, A. (2016.) Sex and anti-sex: introduction to Andrei Platonov's “The Anti-Sexus”. Stasis, 4(1), 41-47.
  • Žižek, S. (2013). Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético São Paulo, SP: Boitempo.
  • Zupančič, A. (2012). Sexual difference and ontology. e-flux jornal, (32). Recuperado de: https://www.e-flux.com/journal/32/68246/sexual-difference-and-ontology/
    » https://www.e-flux.com/journal/32/68246/sexual-difference-and-ontology/
  • Zupančič, A. (2008). Sexualidade e ontologia.Revista Estudos Lacanianos, 1(2).
  • Zupančič, A. (2017). What is sex? (Short Circuits series). Cambridge, MA: The MIT Press.
  • 3
    Freud “[...] ‘descobriu’ a sexualidade como intrinsecamente sem sentido, e não como o horizonte final de todo sentido produzido pelo homem. Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) continuam a ser um texto de grande importância a esse respeito. Se se precisasse resumir seu argumento em uma única frase, a seguinte chegaria suficientemente perto das expectativas: a sexualidade (humana) é um desvio enigmático-paradoxal [paradox-ridden] de uma norma que não existe” (Zupančič, 2008, p. 3, grifo do autor).
  • 4
    “[...] para Hegel, o negativo não é falta de determinação ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de uma relação opositiva. Ao contrário, o esforço maior de Hegel consistiu em pensar um ‘negativo em si’, para além de sua oposição ao positivo. Trata-se de restituir da dimensão ontológica ao negativo, através da negatividade de uma essência que deve tomar a forma de objeto e, ainda assim, conservar seu caráter negativo, que talvez nos indique a verdadeira esfera da influência de Hegel em Lacan” (Safatle, 2007, p. 183, grifo do autor).
  • 5
    Para exemplificar esta espécie de negatividade, Zupančič (2012, p. 9) traz uma anedota: “Um cara entra em um restaurante e pede ao garçom: Café sem creme, por favor. O garçom responde: me desculpe, senhor, não temos creme. Pode ser café sem leite?”. Não se trata só café, mas de café com uma falta - falta pertencente ao café.
  • 6
    Nos termos de Safatle (2006, p. 226), “[...] o núcleo dialético da psicanálise lacaniana deve ser procurado na lógica das negações que suporta a relação entre Real e determinações simbólicas”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2019
  • Aceito
    29 Mar 2021
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br