Acessibilidade / Reportar erro

REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E SMARTPHONE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO

REVOLUCIÓN TECNOLÓGICA Y SMARTPHONE: CONSIDERACIONES SOBRE LA CONSTITUCIÓN DEL SUJETO CONTEMPORÁNEO

RESUMO.

O texto, resultante de estudos teóricos empreendidos à luz da Psicologia Histórico-Cultural entre 2016 e 2020, tem como objetivo recuperar a revolução tecnológica como um recurso para a compreensão da constituição dos sujeitos contemporâneos, partindo da máquina a vapor da Primeira Revolução Industrial, empregada nos meios de produção, até o smartphone, empregado na cotidianidade. O smartphone possui níveis tão altos de compactação, portabilidade e operacionalidade que o tornaram uma das mais avançadas tecnologias da história, revelando o elevado grau de desenvolvimento do psiquismo alcançado pelo gênero humano. Ele, mais do que outras tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs), tem impactado notadamente a constituição dos sujeitos contemporâneos, especialmente suas funções psicológicas cognitivas. Os resultados demonstram que recuperar dialeticamente o percurso histórico das criações tecnológicas é essencial à psicologia, permitindo ampliar o espectro de análise de como os sujeitos se constituem na atualidade. Conclui-se que a revolução microtecnológica deve ser tomada sob um viés crítico e ético, por tudo o que pode impactar nas relações entre os sujeitos e no desenvolvimento dos seus processos psíquicos.

Palavras-chave:
Psicologia histórico-cultural; smartphone; desenvolvimento humano

RESUMEN.

El texto, resultante de estudios teóricos realizados a la luz de la Psicología Histórico-Cultural entre 2016 y 2020, tiene como objetivo recuperar la revolución tecnológica como un recurso para comprender la constitución de los sujetos contemporáneos, a partir de la máquina de vapor de la Primera Revolución Industrial, empleada en los medios de producción, hasta el smartphone, utilizado en la vida cotidiana. El smartphone tiene niveles tan altos de compacidad, portabilidad y operabilidad que se ha convertido en una de las tecnologías más avanzadas de la historia, revelando el alto grado de desarrollo de la psique alcanzado por la humanidad. Él, más que otras tecnologías digitales de información y comunicación, ha impactado notablemente la constitución de los sujetos contemporáneos, especialmente sus funciones psicológicas cognitivas. Los resultados demuestran que recuperar dialécticamente el camino histórico de las creaciones tecnológicas es esencial para la psicología, lo que permite ampliar el espectro de análisis de cómo se constituyen los sujetos en la actualidad. Concluye que la revolución microtecnológica debe tomarse desde una perspectiva crítica y ética, para todo lo que pueda afectar las relaciones entre los sujetos y el desarrollo de sus procesos psíquicos.

Palabras clave:
Psicología histórico-cultural; smartphone; desarrollo humano

ABSTRACT.

The text, resulting from theoretical studies undertaken in the light of Historical-Cultural Psychology between 2016 and 2020, aims to recover the technological revolution as a resource for understanding the constitution of contemporary subjects, starting from the steam engine of the First Industrial Revolution, used in the means of production, even the smartphone, used in everyday life. The smartphone has such high levels of compactness, portability and operability that it has become one of the most advanced technologies in history, revealing the high degree of development of the psyche achieved by mankind. It, more than other digital information and communication technologies, has impacted notably on the constitution of contemporary subjects, especially on their cognitive psychological functions. The results demonstrate that recovering dialectically the historical path of technological creations is essential to Psychology, allowing to expand the spectrum of analysis of how subjects are constituted today. It concludes that the microtechnological revolution must be taken under a critical and ethical bias, due to everything that can impact on the relationships between the subjects and the development of their psychic processes.

Keywords:
Historical-cultural psychology; smartphone; human development

Introdução

Nossa atuação na formação inicial e continuada de psicólogos escolares, bem como de professores da educação básica e superior, tem nos permitido identificar queixas sobre comportamentos que muitos deles consideram inadequados para a atividade de estudo, como o uso intensivo do celular pelos alunos, algo que, supostamente, teria impactos negativos sobre a escolarização. Diante de queixas como esta - amenizada com a pandemia deflagrada pela Covid-19 no primeiro trimestre de 2020, a qual reposiciona o smartphone como um recurso fundamental para o ensino remoto - empreendemos uma investigação bibliográfica entre 2016 e 2020 para melhor compreendermos os impactos das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) sobre o desenvolvimento humano. Definimos como objetivo recuperar a revolução tecnológica como recurso para a compreensão da constituição dos sujeitos contemporâneos, partindo da máquina a vapor da Primeira Revolução Industrial, empregada nos meios de produção, até o smartphone, empregado na cotidianidade.

Com esta revolução ainda em curso e as transformações ocorrendo tão rapidamente, não é incomum que as mudanças significativas sejam esmaecidas ou naturalizadas, pois novos recursos e aparelhos surgem a todo instante e, logo, condenam as versões anteriores ao ostracismo, à obsolescência, sem que tenhamos percebido a sua real dimensão.

A velocidade das mudanças é tão vertiginosa que Rifkin (2014Rifkin, J. (2014). A terceira revolução industrial: como a nova era da informação mudou a energia, a economia e o mundo. Lisboa, PT: Bertrand.) classifica esta era de transformações como a Terceira Revolução Industrial. Já outros estudiosos, de acordo com Perasso (2016Perasso, V. (2016). O que é a 4ª revolução industrial e como ela deve afetar nossas vidas. BBC News Brasil. Recuperado de: http://www.bbc.com/portuguese/geral-37658309
http://www.bbc.com/portuguese/geral-3765...
), avaliam que a revolução da informática e das telecomunicações já estaria superada, e que nos encontraríamos no seio de outra - a Quarta Revolução Industrial -, voltada à biociência, à robótica e à cibernética. Mas, o que nenhum deles nega é que as transformações mediadas pelas TDICs são tão radicais que têm alterado as formas de viver.

Para Costa, Duqueviz e Pedroza (2015Costa, S. R. S., Duqueviz, B. C., & Pedroza, R. L. S. (2015). Tecnologias digitais como instrumentos mediadores da aprendizagem dos nativos digitais. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, 19(3), 603-610.), o smartphone faz parte das TDICs ou ‘novas tecnologias’, junto de computador, internet, tablet etc. O termo TDIC é uma tentativa de diferenciá-lo de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), que envolve aparatos mais antigos, como televisão, jornal e mimeógrafo. Dentre as TDICs, o smartphone se destaca pelo seu tamanho menor, preço médio inferior, maior facilidade de manuseio e transporte, além de capacidade e processamento semelhantes aos de um computador, uma verdadeira revolução da microtecnologia que atua sobre a indústria, a comunicação e o psiquismo, transformando as relações sociais e a própria constituição humana.

O smartphone, desde que se tornou um bem comum, tem feito com que, principalmente, a geração de nativos digitais, a qual desconhece outro mundo que não o das TDICs, se relacione, se informe e até administre a sua vida por intermédio dessa ferramenta (Palfrey & Gasser, 2011Palfrey, J., & Gasser, U. (2011). Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração de nativos digitais. Porto Alegre, PT: Artmed.). Só no Brasil, segundo Meirelles (2019Meirelles, F. S. (2019). 30ª pesquisa anual do uso de ti nas empresas. São Paulo, SP: Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da FGV-EAESP, Fundação Getúlio Vargas. Recuperado de: https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/pesti2019fgvciappt_2019.pdf
https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/...
), há mais de 230 milhões de smartphones em uso, o que representa mais de um dispositivo por habitante. Nunca antes, um único e pequeno aparelho condensou um conjunto tão grande de recursos que, outrora, eram funções isoladas de diversos aparelhos individuais, mesmo estando em modo offline (sem conexão com a internet), o que pode explicar o seu tamanho sucesso.

Para melhor entendermos tal cenário, abordamos neste estudo a natureza das máquinas da Primeira Revolução Industrial, os avanços extraordinários vistos no smartphone e a constituição do sujeito na atualidade, pois, em meio a transformações tão profundas, a formação humana é impactada, demandando uma compreensão histórica desse fenômeno.

A Primeira Revolução Industrial e a natureza da máquina a vapor

Falar sobre revolução tecnológica é, na verdade, abordar a história humana. Da descoberta do fogo ao uso da pedra lascada, da pedra polida à invenção da roda, da máquina a vapor ao smartphone, todas essas são, de fato, tecnologias criadas que alavancaram a construção do patrimônio cultural e do próprio psiquismo humano. Compreender, portanto, a natureza do smartphone e os motivos de considerá-lo um aparelho norteador de mudanças tecnológicas, sociais e psíquicas requer um olhar histórico, sobretudo, no que concerne a uma de suas bases mais sólidas, a Primeira Revolução Industrial (1760-1840).

É sabido que as novidades tecnológicas despertam reações ambíguas, pois tendemos a reagir com um misto de fascinação e receio: fascinação pelos recursos oferecidos e receio quanto aos impactos que podem nos provocar. Se atualmente as smart TVs com acesso à internet, os videogames com sensores de movimento e jogos em rede, os notebooks com funções touchscreen e os smartphones multifuncionais são exemplos de TDICs capazes de nos causar surpresa e espanto com relação ao nível de desenvolvimento tecnológico alcançado, no século XIX era o sistema de máquinas que gerava essa mesma ambiguidade, causando admiração e perplexidade naqueles que, como Marx (1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural.), buscavam fazer uma leitura mais acurada de sua época. Segundo ele, a máquina é um monstro mecânico que enche prédios fabris inteiros e cuja força avassaladora, escondida nos movimentos sutis de suas partes gigantescas, irrompe no turbilhão de seus inúmeros órgãos de trabalho.

Para o filósofo, a máquina foi crucial para que a grande indústria encontrasse uma base técnica sólida sobre a qual pudesse se fixar e para que tivesse um extraordinário avanço tecnológico, produzindo mais e com menos custos, mas dispensando uma massa enorme de trabalhadores para isso. Estupefato com as inovações tecnológicas da época, ele afirma:

O torno mecânico é o renascimento ciclópico do torno comum de pedal; a máquina de aplainar, um carpinteiro de ferro, que trabalha o ferro com as mesmas ferramentas com que o carpinteiro trabalha a madeira [...]; e o martelo a vapor opera com uma cabeça comum de martelo, mas de peso tal que nem mesmo Thor conseguiria brandi-lo (Marx, 1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 20).

As palavras de Marx (1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural.) são carregadas de fascínio e assombro quanto à maquinaria da Primeira Revolução Industrial, considerada de ponta à época, o que o levou a investigar não apenas as relações, mas os meios de produção, ‘dissecando’ seu modus operandi - o sistema integrado de máquinas - e chegando à compreensão de sua natureza. A máquina, segundo o autor, é um mecanismo tecnológico constituído de três partes fundamentais: 1ª) um dispositivo de geração de energia/força motriz que a impulsiona (máquina-motriz); 2ª) um sistema que converte tal força motriz em energia mecânica (mecanismo de transmissão); e 3ª) um aparato que transforma o movimento mecânico em ação de trabalho (máquina-ferramenta). Burke (2006Burke, C. (2006). Ensaio sobre o capitalismo contemporâneo: uma abordagem marxiana. Córrego do Macuco, ES: Autor., p. 13, grifo do autor) assim resume esse processo:

Sendo inanimado, o mecanismo de trabalho, a máquina-ferramenta, precisa ‘ganhar vida’, mover-se. Precisa de força motriz - um motor que lhe forneça a energia para ‘viver’. Mas a força motriz precisa ser controlada e levada adequadamente ao mecanismo de trabalho, por meio de um sistema de transmissão.

Para Marx (1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural.), o grande impedimento ao desenvolvimento das máquinas-ferramenta antes da Revolução Industrial estava no fato de que as principais fontes de energia do período das manufaturas se resumiam ao homem, ao cavalo, ao vento e à água, todos com limitações e inconstâncias, de modo que encontrar uma solução viável para o problema da força motriz era fundamental, algo resolvido apenas com a máquina a vapor:

Só com a segunda máquina a vapor de Watt, a assim chamada máquina de ação dupla, foi encontrado o primeiro motor que produz sua própria força motriz, consumindo para isso carvão e água, cuja potência energética está totalmente sob controle humano, que é deslocável e um meio de locomoção urbano [...] sua máquina a vapor não é descrita como uma invenção para fins específicos, mas como agente geral da grande indústria (Marx, 1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 12-13).

Isso revela o porquê de a máquina a vapor ter se tornado um recurso tão icônico da Revolução Industrial, pois foi somente após a criação de uma máquina capaz de gerar força motriz (um motor) e, portanto, de ser utilizada por outras máquinas, que se pôde produzir industrialmente em larga escala, por isso, sua classificação como um agente geral da grande indústria, fonte de propulsão às mais variadas tarefas realizadas por máquinas-ferramenta.

Embora inventores geniais, como Watt, tenham surgido para dar conta dos desafios tecnológicos da era industrial, Burke (2006Burke, C. (2006). Ensaio sobre o capitalismo contemporâneo: uma abordagem marxiana. Córrego do Macuco, ES: Autor., p. 14) sublinha que “[...] mesmo os gênios, de certa forma, são produtos das transformações sociais”. Para o historiador José Jobson Arruda (1988Arruda, J. J. (1988). História moderna e contemporânea. São Paulo, SP: Ática., p. 109), “As invenções realizadas fora das necessidades sociais nasceram mortas, pois não havia condições para a sua utilização. Leonardo da Vinci [por exemplo,] imaginou a máquina a vapor no século XVI, mas somente no século XVIII ela teve aplicação efetiva”.

Para Marx (1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural.), o grande ‘salto evolutivo’ da Primeira Revolução Industrial não se deu necessariamente com a máquina a vapor, mas com as relações econômicas e sociais forjadas desde a manufatura e que levaram os capitalistas a lançar mão da maquinaria como um eficaz e incomparável instrumento de produção de lucro/mais-valia, consolidando efetivamente o capitalismo como o modo de produção da era moderna5 5 A máquina gerou um desenvolvimento tecnológico sem precedentes e significou um ganho colossal aos donos dos meios de produção. Porém, resultou numa perda diametralmente oposta aos trabalhadores, os quais tiveram que vender a sua força de trabalho, assistir ao crescimento do desemprego, das jornadas degradantes de trabalho (inclusive infantil e feminina) e ao surgimento da relação de dominação e exploração (Burke, 2006). :

A substituição das ferramentas pelas máquinas, da energia humana pela energia motriz e do modo de produção doméstico pelo sistema fabril constituiu a Revolução Industrial [...]. Esse processo de transformação foi acompanhado por uma notável evolução tecnológica [...]. Não foi uma revolução qualquer, mas uma revolução que se deu nos quadros do capitalismo (Arruda, 1988Arruda, J. J. (1988). História moderna e contemporânea. São Paulo, SP: Ática., p. 106).

A evolução gigantesca no processo industrial conduziu, como por um ‘efeito cascata’, a um intenso desenvolvimento de vários setores produtivos (agrícola, têxtil, siderúrgico, urbano, ferroviário, naval, telegráfico etc.), abrindo espaço para um também assombroso avanço tecnológico, científico, das telecomunicações e para os primórdios da globalização.

O rápido e excepcional desenvolvimento técnico passou a ser ainda mais intenso no século XX, com a Segunda Revolução Industrial, quando a racionalização da produção trazida pelo ‘Taylorismo’, a esteira rolante implantada na linha de produção pelo ‘Fordismo’ e a flexibilização da produção proposta pelo ‘Toyotismo’ (movimento de ‘qualidade total’) permitiriam a fabricação de bens de consumo em larga escala, baixando custos e facilitando a sua aquisição por parte da população, de modo que tal revolução pavimentou o caminho para que, na segunda metade do século XX, surgisse a era da informática, promotora de mudanças socioeconômicas tão expressivas que as levaram ao posto de Terceira Revolução Industrial.

A Terceira Revolução Industrial e a natureza do smartphone

Para Saviani (2005Saviani, D. (2005). Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In J. C. Lombardi, D. Saviani, & J. L. Sanfelice (Orgs.), Capitalismo, trabalho e educação. (p. 13-24). Campinas, SP: Autores Associados.), o desenvolvimento industrial e o relativo equilíbrio social da ‘idade de ouro’ do capital (1945-1973) impulsionaram uma transformação gigantesca na sociedade, a qual “[...] se materializou num avanço tecnológico de tal proporção que deu origem a uma nova ‘revolução industrial’: a revolução microeletrônica, também denominada ‘revolução da informática’ ou ‘revolução da automação’” (Saviani, 2005Saviani, D. (2005). Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In J. C. Lombardi, D. Saviani, & J. L. Sanfelice (Orgs.), Capitalismo, trabalho e educação. (p. 13-24). Campinas, SP: Autores Associados., p. 21, grifo do autor). Com suas bases no período pós-guerra, a Terceira Revolução Industrial só eclodiu de fato na década de 1970, diminuindo o tamanho das máquinas e aumentando, surpreendentemente, a sua capacidade funcional, o que conduziu a rápidas e volumosas mudanças na vida social.

Segundo Saviani (2005Saviani, D. (2005). Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In J. C. Lombardi, D. Saviani, & J. L. Sanfelice (Orgs.), Capitalismo, trabalho e educação. (p. 13-24). Campinas, SP: Autores Associados.), a Terceira Revolução Industrial, diferentemente das anteriores, se situa nos campos da microeletrônica e da nanotecnologia, fazendo com que operações mentais altamente complexas sejam realizadas por aparelhos high-tech, com inteligência artificial, tornando o homem cada vez mais dependente das máquinas. Por outro lado, como aponta Rifkin (2014Rifkin, J. (2014). A terceira revolução industrial: como a nova era da informação mudou a energia, a economia e o mundo. Lisboa, PT: Bertrand.), tal revolução também carrega pontos em comum com as demais, pois todas elas promoveram a associação entre novas formas de produção de energia e meios inéditos de comunicação, levando à junção entre energia, internet e rede na terceira.

Quanto à energia, o desenvolvimento de aparelhos cada vez menores e adaptados à utilização otimizada de energia elétrica foi crucial para a expansão de mercados tecnológicos e ao impressionante crescimento dos setores de informática e telecomunicações. Já quanto à internet e à rede, não há dúvidas de que esse sistema revolucionou os tempos mais recentes, originando uma ‘sociedade em rede’, completamente conectada (Castells, 2005Castells, M. (2005). A sociedade em rede (Vol. 1, 8a ed.). São Paulo, SP: Paz e Terra.). Ainda que a sociedade pós-fordista (das décadas de 1970 e 80) já dispusesse de recursos de informática e telecomunicações, a velocidade, instantaneidade e globalização (não apenas industrial, mas da comunicação e da informação) só se estabeleceram de fato com o advento da internet e da rede compartilhada. Desde a década de 1990 até os nossos dias, a internet deixou de ser um recurso caro e limitado para se tornar um bem comum, capaz de potencializar o acesso à informação e elevar o poder das telecomunicações a níveis quase idênticos aos presenciais.

A tríade energia-internet-rede abriu caminho para uma rápida difusão da tecnologia informatizada aos mais diferentes segmentos sociais, possibilitando a aplicação desse recurso sobre bens e serviços e amplo acesso às inovações. Nos anos 2000, computadores e telefones móveis também deixaram a categoria de produtos de alto custo para se tornarem bens comuns, sendo esta a base para a popularização do smartphone na década seguinte.

Mas por que o smartphone se tornou um aparelho tão revolucionário? Quais as suas influências sobre o processo de constituição do sujeito contemporâneo?

Para respondermos a essas perguntas temos que compreender a natureza do smartphone, o qual ganhou popularidade exatamente pelo diferencial do tamanho. O fato de ser leve, de dispensar o excesso de fios e de caber no bolso ou na palma mão fez com que tal dispositivo atingisse uma praticidade muito superior à de qualquer outro. Em analogia ao exposto por Marx (1996Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural.), podemos dizer que o smartphone, semelhantemente à máquina a vapor do primeiro período industrial, também articula máquina-motriz, mecanismo de transmissão e máquina-ferramenta, só que com sistemas e operações muito mais avançados.

Quanto à máquina-motriz do smartphone, algo pouco discutido, porém revolucionário tecnológica e socialmente, foi o desenvolvimento das células de armazenamento de energia - as baterias de lítio. De acordo com Almeida (2015Almeida, S. R. S. (2015). A percepção do usuário na avaliação do ciclo de vida das baterias de telefone celular. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), desde a criação desse aparato tecnológico na década de 1970, ele foi se tornando cada vez mais potente e durável, o que permitiu aos aparelhos eletrônicos operarem por longos períodos sem a necessidade de conexão com um ponto fixo de energia elétrica, ampliando sua mobilidade e seus recursos. Assim, o smartphone passou a contar com uma máquina-motriz pequena, porém, capaz de armazenar energia elétrica (força motriz) o suficiente para que se transformasse em um instrumento da vida cotidiana, tendo autonomia e desempenho necessários às suas funções.

Já em relação ao seu mecanismo de transmissão, o smartphone se beneficiou da criação de tecnologias ultra-avançadas que, mesmo reduzidas a tamanhos microscópicos, aumentaram incrivelmente sua capacidade e desempenho. Enquanto algumas máquinas do passado já chegaram a ocupar prédios inteiros, como o ENIAC (Electrical Numerical Integrator and Computer) - um dos primeiros computadores do mundo, de 1946, que tomava uma área de 180 metros quadrados e pesava 30 toneladas (Franzão, 2021Franzão, L. (2021). Do ENIAC ao notebook: confira a evolução dos computadores nas últimas décadas. Recuperado de:https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/do-eniac-ao-notebook-confira-a-evolucao-dos-computadores-nas-ultimas-decadas/
https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/...
) -, o ‘motor’ do smartphone não exige mais do que alguns centímetros quadrados para funcionar, sendo constituído por unidades eletrônicas microtecnológicas integradas, como placas, chips, processadores, cartões de memória, enfim, um conjunto de pequenos hardwares altamente capazes que, sob o comando de sistemas operacionais complexos, atua de modo semelhante ou até melhor que certos computadores, tanto na velocidade quanto no volume de processamento de dados.

Finalmente, quanto à máquina-ferramenta do smartphone, temos aí incontáveis possibilidades. Na atualidade, os recursos disponíveis são tantos que cada usuário, além de contar com as funcionalidades de fábrica, personaliza seu smartphone com as aplicações que desejar por meio da internet. Para exemplificar tamanha evolução (ou diríamos, revolução!), uma máquina da primeira era industrial executava apenas uma ou poucas tarefas de trabalho: a máquina de fiar fiava; a máquina de tecer tecia! Hoje, a realidade tecnológica é outra.

As TDICs oferecem possibilidades de objetivação tão amplas, isto é, de realização de multitarefas por um só aparelho, que não vemos correspondência em outras máquinas já criadas. Pela primeira vez lidamos com tecnologias que unem máquina-motriz, mecanismo de transmissão e máquinas-ferramenta diversificadas em uma mesma unidade. É quase um paradoxo explicar como aparelhos tão pequenos são capazes de integrar uma quantidade tão grande de recursos que, outrora, eram funções autônomas de aparelhos individuais, como telefone, relógio, despertador, lanterna, câmera fotográfica, câmera de vídeo, gravador, rádio, TV, videogame, isso só para citar itens básicos que muitos smartphones possuem, tudo literalmente na palma da mão, sem contar o acesso à internet e ao mundo que se abre com ela, como o da informação, das redes sociais, dos games e das múltiplas aplicações disponíveis.

Para Queiroz (2018)Queiroz. L. R. (2018). IPhone, Android e a consolidação da cultura do smartphone: o papel do IPhone e do Sistema Operacional Android como catalisadores da consolidação no mercado de smartphones em escala global. Tecnologia e Sociedade, 14(30), 47-70., a revolução do smartphone não nasceu do acaso, mas é fruto do processo de desenvolvimento dos computadores. Na década de 1990, enquanto os PCs já dispunham de avançados softwares de controle de suas funções, denominados sistemas operacionais (como Windows, Macintosh e Linux), os smartphones estavam apenas em fase de criação - o primeiro, lançado em 1992 da junção entre Palmtop (PDA) e telefone celular. Somente em 2007, tecnologia semelhante chegou aos telefones móveis, quando o sistema operacional iOS foi lançado pela empresa norte-americana Apple.

Queiroz (2018)Queiroz. L. R. (2018). IPhone, Android e a consolidação da cultura do smartphone: o papel do IPhone e do Sistema Operacional Android como catalisadores da consolidação no mercado de smartphones em escala global. Tecnologia e Sociedade, 14(30), 47-70. aponta que, seguindo os passos da indústria de computadores, a revolução no mercado de smartphones ocorreu quando a Apple mudou de foco em sua produção, concentrando-se mais em softwares do que em hardwares, ou seja, mais em programas, aplicativos (Apps) e outras máquinas-ferramenta virtuais do que em peças físicas ou mecanismos de transmissão para o aparelho (alguns dos quais eram comprados separadamente e depois acoplados ao dispositivo). Obviamente, o aumento na velocidade da internet e a ampliação da cobertura para conexões sem fio foram também essenciais para que, em 2007, a Apple lançasse seu primeiro smartphone, o iPhone:

A combinação entre um sistema de interação do usuário com o aparelho via tela touch screen funcional e um sistema operacional revolucionário, tornou o iPhone o modelo a ser seguido pelos demais fabricantes de smartphones. Mais do que isso: a partir de 2008, o iOS inaugurou todo um novo modelo de negócios baseado em aplicativos ‘baixáveis’, por intermédio do lançamento de uma loja aberta de aplicativos, a App Store [...], o usuário poderia entrar em uma loja específica de aplicativos, da própria Apple, e customizar seu aparelho com os aplicativos que lhe parecessem mais convenientes (Queiroz, 2018Queiroz. L. R. (2018). IPhone, Android e a consolidação da cultura do smartphone: o papel do IPhone e do Sistema Operacional Android como catalisadores da consolidação no mercado de smartphones em escala global. Tecnologia e Sociedade, 14(30), 47-70., p. 53, grifo do autor).

Portanto, tornando-se o padrão a ser seguido, o iPhone, com seu sistema iOS e uma App Store, foi a base para que, em 2008, a Google lançasse um sistema operacional concorrente - o Android -, o qual quebrou o monopólio exercido pela Apple e permitiu que diversos smartphones pudessem surgir no mercado em moldes semelhantes aos do iPhone. O Android ainda inovou ao não se prender exclusivamente a uma empresa (pois o iOS limitava-se aos aparelhos da Apple), podendo ser incorporado em smartphones de várias marcas, o que induziu ao barateamento do produto e à sua transformação em um bem comum.

A possibilidade de o usuário ‘customizar’ seu dispositivo, como cita Queiróz (2018)Queiroz. L. R. (2018). IPhone, Android e a consolidação da cultura do smartphone: o papel do IPhone e do Sistema Operacional Android como catalisadores da consolidação no mercado de smartphones em escala global. Tecnologia e Sociedade, 14(30), 47-70., fez com que cada aparelho se tornasse pessoal e único, absolutamente personalizado e apto para ser multifuncional, algo que, além de sem paralelo na história, colocou o smartphone na posição de uma poliferramenta que invariavelmente atua sobre as funções psíquicas do indivíduo, positiva ou negativamente, mediando ou orientando as suas atividades diárias.

Por consequência, os impactos dessa máquina de natureza tão complexa e sofisticada sobre a própria constituição do sujeito são inegáveis. Em um vasto universo de recursos contidos num aparelho tão acessível, pequeno e portátil, as funções psicológicas superiores tendem a sofrer transformações consideráveis como resultado desses avanços, alterando principalmente os processos de aquisição do saber e reconhecimento da realidade.

Smartphone: impactos negativos e positivos à constituição do sujeito contemporâneo

Para Maziero e Oliveira (2016Maziero, M. B., & Oliveira, L. A. (2016. Nomofobia: uma revisão bibliográfica. Unoesc & Ciência - ACBS, 8(1), 73-80.), a difusão cada vez maior de tecnologias informatizadas na sociedade, em particular do smartphone, tem levado ao aparecimento de mudanças significativas nos costumes, hábitos, relações sociais e pessoais, comporta mentos e emoções resultantes dessa interatividade. No contexto do capitalismo, o smartphone tem se tornado, de um lado, fonte de alienação, empobrecimento de vínculos sociais e aviltamento das formas clássicas de aquisição do saber, e de outro, objeto de realização de múltiplas atividades, de acesso à informação e à comunicação e de desenvolvimento intelectual.

Acerca dos aspectos negativos, Saviani (2005Saviani, D. (2005). Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In J. C. Lombardi, D. Saviani, & J. L. Sanfelice (Orgs.), Capitalismo, trabalho e educação. (p. 13-24). Campinas, SP: Autores Associados.) explica que enquanto as duas primeiras revoluções industriais foram responsáveis por transportar as funções manuais de trabalho para as máquinas, substituindo o homem nesse processo, a terceira transfere as próprias funções intelectuais para as TDICs, desobrigando-nos, de certo modo, dos exercícios mais complexos de raciocínio. Para o autor, a ‘era das máquinas inteligentes’ e da incorporação maciça de tecnologias avançadas na sociedade acaba por excluir muitos indivíduos das atividades mais elaboradas de pensamento, prejudicando o seu desenvolvimento intelectual. Com isso, na medida em que as máquinas ficam mais inteligentes, os homens tendem a se alienar6 6 Enquanto a maioria da população (trabalhadores) fica distante dos verdadeiros bens culturais produzidos pelo homem, gerando uma alienação em massa, uma pequenina parte da humanidade (que cria e monitora tais bens/tecnologias) tem o desenvolvimento do psiquismo impactado por tais criações/objetivações (trabalho intelectual de altíssima complexidade), o que lhes garante, também, suntuosos ganhos financeiros. , e embora as novas tecnologias tenham o potencial para dirimir as relações exploratórias de trabalho, liberando o homem para o desenvolvimento pleno de suas funções psíquicas pela dedicação às artes, à ciência e à filosofia, isso não acontece porque, “[...] de premissa objetiva para a libertação geral da humanidade do jugo das necessidades materiais, o avanço tecnológico converte-se, sob as relações sociais de produção capitalista, em instrumento de maximização da exploração da força de trabalho [...]” (Saviani, 2005Saviani, D. (2005). Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In J. C. Lombardi, D. Saviani, & J. L. Sanfelice (Orgs.), Capitalismo, trabalho e educação. (p. 13-24). Campinas, SP: Autores Associados., p. 21).

Para muitos indivíduos, o mau uso das TDICs, em especial do smartphone, parece atuar de modo a comprometer suas potencialidades ao invés de ampliá-las, arrefecendo sua capacidade de leitura da realidade e os alienando, como vemos no fenômeno da pós-verdade.

Segundo Zarzalejos (2017Zarzalejos, J. A. (2017). Comunicação, jornalismo e “fact-checking”. In J. A. Llorente, & O. Cuenca (Orgs.), A era da pós-verdade: realidade versus percepção (p. 11-13). Revista Uno, (27).), a pós-verdade não é sinônimo de mentira, mas uma situação na qual os fatos objetivos têm menos influência na opinião pública do que os apelos às emoções e crenças pessoais. Conforme o autor, ela consiste na relativização da verdade, na banalização da objetividade dos dados e na supremacia do discurso emocional sobre o relato jornalístico e científico, causando uma espécie de ‘curto-circuito’ no senso crítico e analítico das pessoas. Por meio de sensacionalismos, memes, teorias conspiratórias, revisionismos históricos infundados e fake news (notícias falsas), os outrora pilares de legitimação da verdade, o jornalismo e a ciência, perdem credibilidade diante de versões pessoais (senso comum) de blogs, redes sociais e canais de vídeos do Youtube, cujos conteúdos chegam ao público diretamente, sem os ‘filtros’ que marcam os saberes apurado e sistematizado.

Para Prego (2017Prego, V. (2017). Bolhas informativas. In J. A. Llorente, & O. Cuenca (Orgs.), A era da pós-verdade: realidade versus percepção (p. 20-21). Uno, (27).), os algoritmos computacionais fomentam ainda mais esse processo, retroalimentando as redes sociais e as plataformas de vídeos com conteúdos semelhantes e de mesmo viés aos vistos anteriormente pelos usuários, criando ‘bolhas informativas’, ‘verdades únicas’ e perdas de contato com o contraditório, o antagônico e o divergente. Isso acaba por influenciar a formação psíquica dos sujeitos, sua inteligência e consciência, polarizando os discursos, limitando o debate e gerando fundamentalismos e intolerâncias.

O smartphone também pode produzir efeitos negativos sobre as funções psicológicas da sensação e da percepção, visto que as novidades tecnológicas ofertadas são tão atraentes aos sentidos que permanecer no universo virtual, e ter acesso a essa teia de recursos que vão se abrindo em cadeia a cada ‘click’ (hiperlinks), passa a ser algo quase irresistível ou, como afirma Teruya (2006Teruya, T. K. (2006). Trabalho e educação na era midiática: um estudo sobre o mundo do trabalho na era da mídia e seus reflexos na educação. Maringá, PR: Eduem., p. 82), com altíssimo “[...] poder de sedução e encantamento [...]”, sobretudo ao público infantojuvenil. Isso acontece, segundo Vigotskii (2010Vigotskii. L. S. (2010). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 103-117). São Paulo, SP: Ícone.), porque tal grupo ainda não é capaz de dominar completamente a própria conduta e, portanto, depende de mediações para que o controle externo do comportamento se converta em ações voluntárias de autocontrole.

Maziero e Oliveira (2016Maziero, M. B., & Oliveira, L. A. (2016. Nomofobia: uma revisão bibliográfica. Unoesc & Ciência - ACBS, 8(1), 73-80.) informam que a partir do momento em que os telefones celulares começaram a agrupar recursos de computadores - transformando-se em telefones inteligentes (smartphones) -, sua função principal, a comunicação por voz, passou a ser menos utilizada, tornando os comportamentos desadaptativos associados ao aparelho mais frequentes, o que levou ao conceito de ‘nomofobia’. De origem inglesa, o termo sugere a abreviação da expressão no mobile phone phobia, e diz respeito ao temor patológico de ficar sem o dispositivo - uma nova forma de tecnodependência7 7 Tecnodependência é um termo derivado de Internet Addiction Disorder (Transtorno de Dependência em Internet), proposto pela primeira vez em 1995 pelo psiquiatra norte-americano Ivan Goldberg. .

Nitidamente, a vulnerabilidade de crianças e adolescentes à nomofobia é muito maior, pois, como sugere Vigotskii (2010Vigotskii. L. S. (2010). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 103-117). São Paulo, SP: Ícone.), o psiquismo humano passa por um processo social de amadurecimento que só é finalizado por volta da maioridade. Além disso, Schwartz (2007Schwartz, B. (2007). O paradoxo da escolha: quando mais é menos. São Paulo, SP: Girafa.) alerta que o excesso de estímulos externos pode prejudicar o desenvolvimento em razão de que nossa capacidade de absorção é limitada, provocando fadiga e estresse se ultrapassada. O autor sustenta que a multiplicidade de escolhas e o excesso de opções, evidentes no caso do smartphone, podem sobrecarregar os sentidos e promover uma espécie de saturação psíquica.

Tal fenômeno, denominado por Schwartz (2007Schwartz, B. (2007). O paradoxo da escolha: quando mais é menos. São Paulo, SP: Girafa.) de o ‘paradoxo da escolha’, faz com que mesmo diante do vasto ‘cardápio’ de opções que a era virtual oferece, os indivíduos se sintam confusos, infelizes e entediados na hora de decidir, visto que cada escolha implica em renunciar às demais alternativas, gerando mal-estar, inquietude e a sensação de que um universo de opções está sendo deixado de lado. Segundo o autor, esse paradoxo tem levado muitas pessoas a uma insatisfação permanente, pois a constante busca pela novidade ou por aquilo que agrade sempre mais acaba por se tornar algo inatingível. Talvez, isso ajude a explicar os índices alarmantes de sofrimento psíquico, depressão, autolesão e suicídio entre crianças e adolescentes na atualidade, como apontam Netto e Souza (2015Netto, N. B., & Souza, T. M. S. (2015). Adolescência, educação e suicídio: uma análise a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Nuances: estudos sobre Educação, 26(1), 163-195.).

Para Luria (1979Luria, A. R. (1979). Curso de psicologia geral: atenção e memória (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), a intensidade, a novidade e o volume de estímulos também podem interferir negativamente em outra função psíquica: a atenção. No caso de animais, bebês e até em certos momentos da infância e da adolescência, a atenção não ocorre voluntariamente, mas de maneira reflexa, não dirigida, involuntária, pois ainda não é totalmente consciente. Em outras palavras, é o objeto que chama a atenção do ser e não o ser que se dirige voluntariamente ao objeto, o que explica o fascínio de bebês por desenhos coloridos, sons estridentes e objetos em movimento. É por isso que se os estímulos apresentados às crianças e adolescentes forem muito intensos, variados ou atrativos, como os presentes em um smartphone, a questão não é se desejarão ou não focalizá-los, eles simplesmente não conseguirão negar tal apelo psíquico (ou terão muitas dificuldades em fazê-lo), pois a atenção voluntária também depende do desenvolvimento do autodomínio da conduta, o que pode levar tanto à nomofobia quanto à diminuição da atenção concentrada sobre outras atividades.

Por esse motivo, ainda que alguns indivíduos tenham maior capacidade de agir de maneira multifocal - pois, como apontam Santos Neto e Franco (2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.), a tendência é que os nativos digitais estejam com o fone nos ouvidos a todo instante, ao mesmo tempo em que realizam outras atividades e assistem TV -, raramente a atenção fragmentada será a melhor alternativa, tendo em vista que, conforme Luria (1979Luria, A. R. (1979). Curso de psicologia geral: atenção e memória (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), toda atenção dividida implicará sempre em alguma perda de qualidade na atenção e na percepção.

Isso ajuda a explicar o porquê de as gerações mais recentes terem tantas dificuldades de manter a atenção concentrada, de controlar a hiperatividade8 8 Embora haja diagnósticos e medicalização em massa de crianças e adolescentes com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), entendemos, conforme Leite (2015), que dificuldades relativas à atenção concentrada e hiperatividade não são doença, mas carências ou traços de comportamento que demandam a aprendizagem de outras atitudes comportamentais e psíquicas, não medicamentos. e de lidar com a ansiedade, influenciando de maneira negativa mais um processo psicológico superior: a motivação. Em um contexto de revolução tecnológica, a motivação do indivíduo fica quase toda voltada ao uso de aparatos digitais que o superestimulam, como o smartphone, levando-o a desprestigiar e até negar as atividades menos intensas e com menor riqueza de estímulos, como as tarefas domésticas e a aprendizagem escolar em moldes tradicionais, as quais se tornam, para os mais jovens, demasiadamente desinteressantes, desmotivadoras e ‘analógicas’ - em contraste com um mundo cada vez mais digital.

Todavia, o eventual desinteresse dos estudantes não redime a escola de sua função de motivá-los e de educá-los. Pelo contrário, Leontiev (2010Leontiev, A. N. (2010). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In L. S. Vigotskii, A. R. Luria, & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 59-83). São Paulo, SP: Ícone., p. 71) afirma que a atividade de estudo, “[...] desenvolvendo-se em velocidade acelerada sob a influência da escola, ultrapassa o desenvolvimento dos outros tipos de atividade da criança”. Isso significa que é papel da escola produzir nos alunos o interesse pelas suas atividades, haja vista que a instituição ocupa a posição central na transformação dos ‘motivos apenas compreensíveis em motivos realmente eficazes’ (Leontiev, 2010Leontiev, A. N. (2010). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In L. S. Vigotskii, A. R. Luria, & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 59-83). São Paulo, SP: Ícone.). Em outras palavras, a escola deve fazer o possível para que as atividades meramente obrigatórias (motivos estímulo) se tornem ações voluntárias (geradoras de sentido pessoal), podendo colaborar muito para isso as novas tecnologias no ensino.

Para Barros (2016Barros, P. M. (2016). Os conflitos geracionais e os desafios contemporâneos na formação docente no Brasil. Revista Internacional de Diversidad e Identidad en la Educación, 3(1), 29-34.), com tantas opções oferecidas pelas TDICs, os sujeitos vão se acostumando às mudanças constantes, pois trocam o tempo todo de aplicativos, músicas, vídeos, até de visão de mundo, moldando a sua percepção da realidade e os seus processos de comunicação a partir da linguagem virtual, o que pode deixá-los pouco sensíveis a outras formas de contato com o mundo exterior, como a ‘social-presencial’ ou a ‘material-concreta’, prejudicando os vínculos afetivos e as relações sociais, familiares e escolares:

Por isso, alguns chamam esta geração de ‘geração silenciosa’. Rápidos e ágeis com os computadores, têm dificuldades com as estruturas escolares tradicionais e, muitas vezes, com relacionamentos interpessoais, uma vez que a comunicação verbal é dificultada pelas tecnologias presentes (Santos Neto & Franco, 2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25., p. 14, grifo do autor).

Nesse processo, linguagem e aprendizagem são outros fenômenos psíquicos que também podem ser alvo de influências advindas do mau uso do smartphone e das demais TDICs. Santos Neto e Franco (2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.) ressaltam que a linguagem oral foi contaminada pela globalização e pelas dinâmicas de consumo. Já a língua escrita, segundo os autores, está sendo reconfigurada, havendo grande resistência à forma tradicional de leitura, de modo que o livro, sem a sedução da imagem, da interação e da participação efetiva, está se tornando obsoleto para as novas gerações, sendo comum encontrarmos adolescentes que jamais leram um livro ou que tenham grandes dificuldades para se expressarem pela linguagem escrita.

Gasparotto e Kliemann (2016Gasparotto, N. T. G., & Kliemann, M. P. (2016). O uso pedagógico da informática instrumental: premissas do professor imigrante digital. Cadernos PDE, 1, 2-19.) também destacam que mais do que uma diferença geracional, existem diferenças de linguagem, de apreensão dos saberes e de interatividade com as pessoas e com o mundo, o que traz às novas gerações dificuldades de apropriação de conteúdos nos mesmos moldes em que seus pais e professores aprenderam. Em concordância, Palfrey e Gasser (2011Palfrey, J., & Gasser, U. (2011). Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração de nativos digitais. Porto Alegre, PT: Artmed.) comentam que a era da internet, em que estão crescendo os nativos digitais, está proporcionando grande mudança nos modos de comunicação e aquisição dos conhecimentos, além de claras diferenças na produção da identidade dos sujeitos:

Eles estudam, trabalham, escrevem e interagem um com o outro de maneira diferente das suas quando você era da idade deles. Eles leem blogs em vez de jornais. Com frequência se conhecem online antes de se conhecerem pessoalmente. [...] Os principais aspectos de suas vidas - interações sociais, amizades, atividades cívicas - são mediados pelas tecnologias digitais. E não conheceram nenhum modo de vida diferente (Palfrey & Gasser, 2011Palfrey, J., & Gasser, U. (2011). Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração de nativos digitais. Porto Alegre, PT: Artmed., p. 12).

Para os nativos digitais, utilizar-se do smartphone deixou de ser uma opção para se tornar uma constante, uma necessidade sem a qual ficariam isolados, desorientados, o que com frequência resulta em tecnodependência. Atualmente, são muitos os indivíduos imersos no mundo virtual, mas sem objetivá-lo, isto é, sem transformar essas vivências em atividades sociais ou singularmente úteis. Em geral, segundo Santos Neto e Franco (2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.), os conteúdos mais explorados se resumem ao universo do entretenimento, como redes sociais, games e vídeos irrelevantes, dispensando atividades proveitosas para a vida e/ou promotoras de humanização, classificadas por Leontiev (2010Leontiev, A. N. (2010). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In L. S. Vigotskii, A. R. Luria, & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 59-83). São Paulo, SP: Ícone.) como capazes de gerar o desenvolvimento integral das funções psíquicas. Essas seriam a apropriação das ciências, das artes, da cultura, das formas de trabalho, dos valores humanos, das noções de civilidade, da disciplina, da ética, dentre outras, as quais não ocorrem sem a participação de instrumentos mediadores nesse processo.

A limitada aquisição desses bens culturais demonstra que as novas gerações não estão sendo adequadamente preparadas para transformar a vastidão de recursos digitais e informações em verdadeiro conhecimento, o que resulta em vários problemas. Para Santos Neto e Franco (2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.), o mais gritante é o da aceleração dos processos tecnológicos em todos os campos e a dificuldade dos nativos digitais para selecionar informações úteis, adequadas e significativas, ante a um oceano ilimitado de fluxos informacionais diários. Conforme os autores, isso impõe às mentes em formação o grave problema de saber separar ‘o joio do trigo’, de não se sentir perdido nessa teia infinita de informações e de transformá-las em conhecimento pertinente para a formação de seu caráter e identidade.

Diante de profundas transformações socioeconômicas, culturais e tecnológicas, o smartphone tem deixado marcas que se expressam claramente na vida principalmente dos nativos digitais, muitas delas negativas, engendrando transformações psíquicas e geracionais. Freire Filho e Lemos (2008Freire Filho, J., & Lemos, J. F. (2008). Imperativos de conduta juvenil no século XXI: a “Geração Digital” na mídia impressa brasileira. Comunicação, Mídia e Consumo, 5(13), 11-25.) discorrem que as práticas comunicacionais em regime de simultaneidade e convergência fazem com que os mais jovens vivam conectados a diferentes telas, redes e fluxos de informação, o que se constitui numa espécie de ‘treinamento’ para a dura realidade mutante, social e do trabalho, dos nossos dias.

Por outro lado, felizmente, tais influências não se findam nos aspectos negativos, pois a revolução tecnológica também produz efeitos altamente positivos e benéficos, que fazem do smartphone uma tecnologia cultuada socialmente e essencial à vida na contemporaneidade.

Primeiramente, podemos citar como exemplo de influência positiva do smartphone à constituição do ser humano a sua própria natureza de condensar num objeto compacto e portátil, uma enormidade de recursos absolutamente úteis à nossa vida cotidiana, os quais nos auxiliam em diversos segmentos, como educação, trabalho, relações sociais, organização pessoal etc. Somente por este motivo, o smartphone já poderia ser considerado uma tecnologia revolucionária à vida humana, libertando-nos de uma parafernália de objetos e cabos e nos desobrigando de carregar conosco diversos dispositivos, muitos deles pesados, para realizarmos nossas atividades. Tudo isso, agora, se resume a um objeto de bolso, o qual exerce influências decisivas sobre a nossa formação exatamente porque ela passa a contar com o smartphone para guardar aspectos fundamentais da nossa existência, como contatos, fotos, documentos, acessos, senhas e diversos outros conteúdos possíveis.

Outro ponto que se destaca é a influência positiva que as TDICs podem ter especialmente sobre algumas funções cognitivas e afetivas do psiquismo. Do mesmo modo como tais funções podem ser negativamente abaladas pelo mau uso dessas ferramentas, seu bom uso tem grande potencial para promover o efeito contrário, melhorando o intelecto como um todo (Santos Neto & Franco, 2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.). Costa et al. (2015Costa, S. R. S., Duqueviz, B. C., & Pedroza, R. L. S. (2015). Tecnologias digitais como instrumentos mediadores da aprendizagem dos nativos digitais. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, 19(3), 603-610.) salientam que as TDICs podem e devem ser utilizadas como instrumentos mediadores de aprendizagem, inclusive nas escolas, sendo capazes de aguçar a curiosidade, a imaginação, as emoções e as formas de linguagem, podendo ainda colaborar na constituição subjetiva e na autonomia dos sujeitos.

Além disso, podemos acrescentar uma série de outros benefícios que o smartphone é capaz de proporcionar quando usado adequadamente, seja por meio de games, ferramentas de trabalho ou aplicativos específicos, tais como: aumento da acuidade e da percepção visual; melhora da atenção concentrada (unifocal) e da atenção dividida (multifocal); aumento da velocidade de reação; crescimento da capacidade de raciocínio rápido e da tomada de decisões; ampliação da memória e da inteligência; e aumento da capacidade cognitiva geral. Para Santos Neto e Franco (2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.), muitos alunos com dificuldades de se apropriarem do conhecimento pelas vias tradicionais são incrivelmente inteligentes, porém, criam coisas fabulosas usando música, imagem, desenho, enfim, uma linguagem multimídia.

Desse modo, fica evidente que o smartphone é um instrumento humano poderoso, que se desdobra em diversos outros e que pode ser capaz de desempenhar as mais variadas funções. Vigotski (2004Vigotski, L. S. (2004). Teoria e método em psicologia. São Paulo, SP: Martins Fontes.), em seu ‘método instrumental’, ensina que enquanto a ferramenta técnica se coloca como intermediária entre o homem e a natureza, dando-nos a possibilidade de transformá-la de acordo com as nossas necessidades (por meio do trabalho), o instrumento psicológico se coloca como intermediário entre o homem e o objeto ou fenômeno concreto, oferecendo-nos a condição de, pela memória e pelo ato de pensar (ato instrumental), registrar e operar mentalmente com aquele objeto/fenômeno sem que ele esteja presente materialmente naquele instante. Em suma, é uma operação basicamente virtual, o fundamento de todos os recursos presentes em um smartphone, os quais operam simulando a realidade concreta.

É por isso que o smartphone possui tamanha relevância na constituição do sujeito contemporâneo, pois se trata tanto do simulacro de várias ferramentas técnicas quanto de diversas operações mentais reais necessárias para operá-las, modificando nosso psiquismo.

Considerações finais

Não há como negar que o smartphone, com sua natureza complexa e extraordinária, produto de revoluções tecnológico-industriais que se dão desde a máquina a vapor até a atualidade, é uma realidade factual capaz de beneficiar diversos âmbitos de ação humana. Entretanto, como tem se evidenciado nas relações capitalistas, muitas vezes essa ferramenta é tomada como um bem de consumo, não como um bem cultural produzido historicamente pelo homem (Leontiev, 1975Leontiev, A. N. (1975). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa, PT: Livros Horizonte.), o que limita o seu potencial positivo e humanizador.

Desse modo, recuperar dialeticamente o percurso histórico das criações tecnológicas é uma forma de garantir à psicologia um espectro de análise mais amplo, permitindo enxergar melhor as relações que culminaram constituindo na sociedade atual algo que buscamos fazer em relação à revolução microtecnológica e ao surgimento do smartphone, uma tecnologia que requer de nós uma perspectiva crítica e ética por tudo o que pode impactar nas relações entre os sujeitos e no desenvolvimento dos seus processos psíquicos.

Em condições desiguais de acesso, educação e apropriação das novas tecnologias, problemas relativos ao embotamento da inteligência humana ocorrem e se perpetuam pelo uso não consciente ou alienado dessas ferramentas, fazendo com que os avanços tecnológicos, ao invés de produzirem desenvolvimento intelectual e humano, causem efeitos danosos, como nomofobia e tecnodependência, afastamento das relações ‘face a face’, uso infrutífero das TDICs e aumento da exclusão digital, expondo os desafios a serem superados.

Leontiev (1975Leontiev, A. N. (1975). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa, PT: Livros Horizonte.) expõe que cada geração se apropria das riquezas culturais participando do trabalho, da produção e das formas de atividade social, desenvolvendo, com isso, as aptidões e características especificamente humanas, o que faz do smartphone uma ferramenta a serviço da humanidade e da humanização. Todavia, conforme alertam Santos Neto e Franco (2010Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.), se seu uso ocorre de modo inadvertido, alienado ou somente para fins de entretenimento, fuga da realidade concreta ou consumismo, torna-se, então, uma força mutiladora, que degrada o ser humano ao invés de emancipá-lo.

Por tais contradições, entendemos que há a necessidade de novos estudos para que possamos ampliar a nossa compreensão quanto à constituição do sujeito contemporâneo e às influências, positivas e negativas, das TDICs, especialmente do smartphone, sobre o psiquismo humano. Importa, sobretudo, que firmemos um compromisso de luta que preze pela socialização desse instrumento, pelo estímulo ao uso consciente e responsável desse bem cultural e pelo incentivo à objetivação e utilização dessa ferramenta em atividades socialmente úteis, algo indispensável para que tenhamos uma verdadeira sociedade não só da informação, mas do conhecimento.

Referências

  • Almeida, S. R. S. (2015). A percepção do usuário na avaliação do ciclo de vida das baterias de telefone celular Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  • Arruda, J. J. (1988). História moderna e contemporânea São Paulo, SP: Ática.
  • Barros, P. M. (2016). Os conflitos geracionais e os desafios contemporâneos na formação docente no Brasil. Revista Internacional de Diversidad e Identidad en la Educación, 3(1), 29-34.
  • Burke, C. (2006). Ensaio sobre o capitalismo contemporâneo: uma abordagem marxiana Córrego do Macuco, ES: Autor.
  • Castells, M. (2005). A sociedade em rede (Vol. 1, 8a ed.). São Paulo, SP: Paz e Terra.
  • Costa, S. R. S., Duqueviz, B. C., & Pedroza, R. L. S. (2015). Tecnologias digitais como instrumentos mediadores da aprendizagem dos nativos digitais. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, 19(3), 603-610.
  • Franzão, L. (2021). Do ENIAC ao notebook: confira a evolução dos computadores nas últimas décadas. Recuperado de:https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/do-eniac-ao-notebook-confira-a-evolucao-dos-computadores-nas-ultimas-decadas/
    » https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/do-eniac-ao-notebook-confira-a-evolucao-dos-computadores-nas-ultimas-decadas/
  • Freire Filho, J., & Lemos, J. F. (2008). Imperativos de conduta juvenil no século XXI: a “Geração Digital” na mídia impressa brasileira. Comunicação, Mídia e Consumo, 5(13), 11-25.
  • Gasparotto, N. T. G., & Kliemann, M. P. (2016). O uso pedagógico da informática instrumental: premissas do professor imigrante digital. Cadernos PDE, 1, 2-19.
  • Leite, H. A. (2015). A atenção na constituição do desenvolvimento humano: contribuições da psicologia histórico-culturalTese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo, São Paulo.
  • Leontiev, A. N. (2010). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In L. S. Vigotskii, A. R. Luria, & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 59-83). São Paulo, SP: Ícone.
  • Leontiev, A. N. (1975). O desenvolvimento do psiquismo Lisboa, PT: Livros Horizonte.
  • Luria, A. R. (1979). Curso de psicologia geral: atenção e memória (Vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
  • Marx, K. (1996). Maquinaria e grande indústria. In K. Marx. O Capital: crítica da economia política (Vol. 2, p. 7-133). São Paulo, SP: Nova Cultural.
  • Maziero, M. B., & Oliveira, L. A. (2016. Nomofobia: uma revisão bibliográfica. Unoesc & Ciência - ACBS, 8(1), 73-80.
  • Meirelles, F. S. (2019). 30ª pesquisa anual do uso de ti nas empresas São Paulo, SP: Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da FGV-EAESP, Fundação Getúlio Vargas. Recuperado de: https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/pesti2019fgvciappt_2019.pdf
    » https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/pesti2019fgvciappt_2019.pdf
  • Santos Neto, E., & Franco, E. S. (2010). Os professores e os desafios pedagógicos diante das novas gerações: considerações sobre o presente e o futuro. Revista de Educação do Cogeime, 19(36), 9-25.
  • Netto, N. B., & Souza, T. M. S. (2015). Adolescência, educação e suicídio: uma análise a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Nuances: estudos sobre Educação, 26(1), 163-195.
  • Palfrey, J., & Gasser, U. (2011). Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração de nativos digitais Porto Alegre, PT: Artmed.
  • Perasso, V. (2016). O que é a 4ª revolução industrial e como ela deve afetar nossas vidas. BBC News Brasil Recuperado de: http://www.bbc.com/portuguese/geral-37658309
    » http://www.bbc.com/portuguese/geral-37658309
  • Prego, V. (2017). Bolhas informativas. In J. A. Llorente, & O. Cuenca (Orgs.), A era da pós-verdade: realidade versus percepção (p. 20-21). Uno, (27).
  • Queiroz. L. R. (2018). IPhone, Android e a consolidação da cultura do smartphone: o papel do IPhone e do Sistema Operacional Android como catalisadores da consolidação no mercado de smartphones em escala global. Tecnologia e Sociedade, 14(30), 47-70.
  • Rifkin, J. (2014). A terceira revolução industrial: como a nova era da informação mudou a energia, a economia e o mundo Lisboa, PT: Bertrand.
  • Saviani, D. (2005). Transformações do capitalismo, do mundo do trabalho e da educação. In J. C. Lombardi, D. Saviani, & J. L. Sanfelice (Orgs.), Capitalismo, trabalho e educação (p. 13-24). Campinas, SP: Autores Associados.
  • Schwartz, B. (2007). O paradoxo da escolha: quando mais é menos São Paulo, SP: Girafa.
  • Teruya, T. K. (2006). Trabalho e educação na era midiática: um estudo sobre o mundo do trabalho na era da mídia e seus reflexos na educação Maringá, PR: Eduem.
  • Vigotski, L. S. (2004). Teoria e método em psicologia São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Vigotskii. L. S. (2010). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(p. 103-117). São Paulo, SP: Ícone.
  • Zarzalejos, J. A. (2017). Comunicação, jornalismo e “fact-checking”. In J. A. Llorente, & O. Cuenca (Orgs.), A era da pós-verdade: realidade versus percepção (p. 11-13). Revista Uno, (27).
  • 5
    A máquina gerou um desenvolvimento tecnológico sem precedentes e significou um ganho colossal aos donos dos meios de produção. Porém, resultou numa perda diametralmente oposta aos trabalhadores, os quais tiveram que vender a sua força de trabalho, assistir ao crescimento do desemprego, das jornadas degradantes de trabalho (inclusive infantil e feminina) e ao surgimento da relação de dominação e exploração (Burke, 2006).
  • 6
    Enquanto a maioria da população (trabalhadores) fica distante dos verdadeiros bens culturais produzidos pelo homem, gerando uma alienação em massa, uma pequenina parte da humanidade (que cria e monitora tais bens/tecnologias) tem o desenvolvimento do psiquismo impactado por tais criações/objetivações (trabalho intelectual de altíssima complexidade), o que lhes garante, também, suntuosos ganhos financeiros.
  • 7
    Tecnodependência é um termo derivado de Internet Addiction Disorder (Transtorno de Dependência em Internet), proposto pela primeira vez em 1995 pelo psiquiatra norte-americano Ivan Goldberg.
  • 8
    Embora haja diagnósticos e medicalização em massa de crianças e adolescentes com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), entendemos, conforme Leite (2015)Leite, H. A. (2015). A atenção na constituição do desenvolvimento humano: contribuições da psicologia histórico-culturalTese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo, São Paulo., que dificuldades relativas à atenção concentrada e hiperatividade não são doença, mas carências ou traços de comportamento que demandam a aprendizagem de outras atitudes comportamentais e psíquicas, não medicamentos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2019
  • Aceito
    11 Ago 2020
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br