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RELAÇÕES FAMILIARES NA BULIMIA NERVOSA

RELACIONES FAMILIARES EN LA BULIMIA NERVOSA

RESUMO.

Transtornos alimentares, como a bulimia, são psicopatologias de etiologia multifatorial que têm nas relações familiares um dos principais fatores desencadeadores e mantenedores dos sintomas. Este estudo teve por objetivo analisar as vivências das relações familiares na perspectiva de uma jovem diagnosticada com bulimia, de sua mãe e seu pai. Trata-se de um estudo de caso qualitativo, descritivo e transversal, cujo delineamento abarca a tríade pai-mãe-filha. Foram entrevistados três membros de uma família (pai, mãe e filha diagnosticada com bulimia). Os dados foram coletados por meio de roteiros de entrevista semiestruturada e analisados pela perspectiva do referencial teórico psicanalítico, a partir da construção de categorias temáticas. Os resultados mostraram que, assim como a filha, os pais também apresentaram fragilidades no seu desenvolvimento emocional, culminando em dificuldades no estabelecimento da diferenciação eu-outro nos membros da família. Essas dificuldades culminaram em vivências familiares de instabilidade, com vínculos de dependência impregnados por sensações paradoxais de invasão da intimidade e sentimentos de desamparo. Os resultados encontrados trazem avanços para o conhecimento da área, em especial no nível da compreensão das relações familiares no contexto da bulimia, e oferecem subsídios para o planejamento de ações e intervenções dos profissionais envolvidos na assistência a pacientes e familiares.

Palavras-chave:
Transtornos alimentares; relações familiares; bulimia

RESUMEN.

Trastornos de la conducta alimentaria, como bulimia, son psicopatologías de etiología multifactorial que tienen las relaciones familiares como uno de los principales factores desencadenantes y mantenedores de los síntomas. Este estudio tuvo por objetivo analizar las vivencias de las relaciones familiares en la perspectiva de una joven diagnosticada con bulimia, de su madre y de su padre. Se trata de un estudio de caso cualitativo, descriptivo y transversal, con delineamiento compuesto por la tríada padre-madre-hija. Se entrevistaron a tres miembros de una familia (padre, madre e hija diagnosticada con bulimia). Los datos fueron recolectados por medio de guiones de entrevista semiestructurada y analizados por la perspectiva del referencial teórico psicoanalítico, a partir de la construcción de categorías temáticas. Los resultados mostraron que, al igual que la hija, los padres también presentaron fragilidades en su desarrollo emocional, culminando en dificultades en el establecimiento de la diferenciación yo-otro en esos miembros de la familia. Estas dificultades culminaron en vivencias familiares de inestabilidad, con vínculos de dependencia impregnados por sensaciones paradójales de invasión de la intimidad y sentimientos de desamparo. Los resultados encontrados contribuyen con avances en el conocimiento del área, en especial en el nivel de la comprensión de las relaciones familiares en el contexto de la bulimia, y ofrecen subsidios para acciones e intervenciones de los profesionales involucrados en la asistencia a pacientes y familiares.

Palabras clave:
Trastornos de la ingestión de alimentos; relaciones familiares; bulimia

ABSTRACT

Eating disorders, such as bulimia, are psychopathologies of multifactorial etiology that have one of the primary triggerings and sustaining factors for symptoms in family relationships. This study aimed to analyze the experiences of family relationships from the perspective of a young woman diagnosed with bulimia, her mother and her father, who were interviewed. This is a qualitative, descriptive and cross-sectional case study whose design encompasses the father-mother-daughter triad. Data were collected through semi-structured interview scripts and analyzed from the perspective of the psychoanalytic theoretical framework, based on the construction of thematic categories. The results showed that, as the daughter, her parents also showed weaknesses in their emotional development, culminating in difficulties in establishing the self-other differentiation in these family members. These difficulties arose instability in family experiences, with dependence bonds permeated by paradoxical feelings of invasion of intimacy and helplessness. The results expand the knowledge of the field, especially in terms of understanding family relationships in the context of bulimia, and provide support for the actions and interventions planning of professionals involved in caring for patients and their families.

Keywords:
Eating disorders; family relations; bulimia

Introdução

Transtornos Alimentares (TAs) são quadros psicopatológicos caracterizados por graves perturbações no comportamento alimentar, sendo os mais prevalentes a anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN) (Alckmin-Carvalho, Santos, Rafihi-Ferreira, & Soares, 2016Alckmin-Carvalho, F; Santos, D. R; Rafihi-Ferreira, R; & Soares, M. R. Z. (2016). Análise da evolução dos critérios diagnósticos da anorexia nervosa. Avaliação Psicológica, 15(2), 265-274.). A BN é caracterizada por comportamentos periódicos de compulsão alimentar, nos quais o indivíduo ingere uma quantidade excepcional de calorias em um curto período (American Psychiatric Association [APA], 2013American Psychiatric Association [APA]. (2013). Diagnostic and statistical manual of eating disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.). Tais episódios são sequenciados por comportamentos compensatórios, sentidos pela paciente como manifestações descontroladas e humilhantes. A literatura nacional e internacional sustenta que os TAs têm etiopatogenia multifatorial e envolvem uma combinação de fatores que atuam como desencadeadores e mantenedores do quadro psicopatológico, com destaque para as relações familiares, meio sociocultural e características de personalidade (Rikani et al; 2013Rikani, A. A; Choudhry, Z; Choudhry, A. M; Ikram, H; Asghar, M. W; Kajal, D; & Mobassarah, N. J. (2013). A critique of the literature on etiology of eating disorders. Annals of Neurosciences, 20(4), 157-161. doi: 10.5214/ans.0972.7531.200409
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).

Pessoas diagnosticadas com TAs geralmente apresentam dificuldades na esfera das relações interpessoais. Na bulimia as relações familiares, em especial, são permeadas por conflitos e vínculos disfuncionais, sendo observada pouca habilidade para resolução de problemas (Marcos & Cantero, 2009Marcos, Y. Q; & Cantero, M. C. T. (2009). Assesment of social support dimensions in patients with eating disorders. The Spanish Journal of Psychology, 12(1), 226-235. doi:10.1017/S1138741600001633.
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). A literatura aponta que as configurações familiares típicas desse quadro psicopatológico evidenciam a presença de uma mãe firme e, por vezes, intrusiva, enquanto o pai se apresenta como figura psiquicamente fragilizada, omissa, ausente (ou pouco presente) e ofuscada na rotina familiar e nas decisões cotidianas (Moura, Santos, & Ribeiro, 2015Moura, F. E. G. A; Santos, M. A; & Ribeiro, R. P. (2015). A constituição do vínculo mãe-filha e sua relação com os transtornos alimentares. Estudos de Psicologia (Campinas), 32(2), 233-247. doi:10.1590/0103-166X2015000200008
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; Tuval-Mashiach, Hasson-Ohayon, & Ilan, 2014Tuval-Mashiach, R., Hasson-Ohayon, I., & Ilan, A. (2014). Attacks on linking: stressors and identity challenges for mothers of daughters with long lasting anorexia nervosa. Psychology and Health, 29(6), 613-631. doi: 10.1080/08870446.2013.879135
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; Valdanha-Ornelas & Santos, 2017Valdanha-Ornelas, E. D., & Santos, M. A. (2017). Transtorno alimentar e transmissão psíquica transgeracional em um adolescente do sexo masculino. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(1), 176-191.doi: 10.1590/1982-370300287-15
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).

O referencial teórico psicanalítico, desde as ideias iniciais esboçadas por Freud sobre o funcionamento psíquico até as redescrições e ampliações propostas pelos autores contemporâneos, oferece diversas perspectivas para pensarmos o desenvolvimento mental e emocional do ser humano. No final do século XIX, Freud introduziu, no paradigma médico, o conceito de inconsciente, propondo um arcabouço teórico no qual o corpo e as doenças orgânicas estariam também suscetíveis ao funcionamento psíquico, e não apenas aos fatores biológicos (Breuer & Freud, 1996Breuer, J; & Freud, S. (1996). Estudos sobre a histeria. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras de psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 2, p. 15-297). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1893-1895.; Peres, 2006Peres, R. S. (2006). O corpo na psicanálise contemporânea: sobre as concepções psicossomáticas de Pierre Marty e Joyce McDougall. Psicologia Clínica, 18(1), 165-177.).

Inicialmente, a AN em meninas adolescentes foi descrita por Freud no contexto da melancolia, na qual a sexualidade encontrava-se subdesenvolvida e a perda de apetite seria uma manifestação da perda de libido (Dutra, Balbi, & Seixas, 2016Dutra, C. C; Balbi, L. M; & Seixas, C. M. (2016). A escolha pelo “nada”: reflexões psicanalíticas sobre a anorexia. Demetra 11(3), 687-695. doi: 10.12957/ demetra.2016.22502
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). O passo seguinte foi inscrevê-la no contexto da histeria, como uma expressão da aversão à sexualidade (Caparrotta & Ghaffari, 2006Caparrotta, L; & Ghaffari, K. (2006). A historical overview of the psychodynamic contributions to the understanding of eating disorders. Psychoanalytic Psychoterapy, 20(1), 175-196.), o que implicava o deslocamento da problemática sexual genital para o nível da oralidade, situando aí o conflito e os consequentes sentimentos de repulsa e manifestações de inibição.

De acordo com Freud (2010Freud, S. (2010). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (P. C. de Souza, trad; Vol. 10, p. 81-91). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1911.), o narcisismo é um estágio do desenvolvimento libidinal situado entre o autoerotismo e o amor objetal, ou seja, no limiar das instâncias intra e interpsíquicas. A superfície corporal, que deve ser desde o início da vida investida pelos pais, produz sensações internas e externas. Nesse sentido, a partir da dimensão do desenvolvimento individual, Freud delineia, nos vários desdobramentos de seu percurso teórico, a importância das relações familiares para a constituição do psiquismo.

A psicanálise das relações familiares, referencial que norteia o presente estudo, sugere que o foco do pesquisador/psicanalista que se debruça sobre o estudo desses vínculos deve ser direcionado aos sentimentos familiares. Para Meyer (1987Meyer, L. (1987). Família: dinâmica e terapia (uma abordagem psicanalítica (2a ed.) (G. Schlesinger, trad.). São Paulo, SP: Brasiliense.), esses sentimentos estão diretamente relacionados ao que o indivíduo pôde internalizar de suas relações familiares, que se organizam ao longo de seu desenvolvimento emocional. A família é entendida como o legado de uma intrincada trama vincular intersubjetiva, constituída por objetos internos e fantasias inconscientes que são transmitidas intergeracionalmente (Attili, Pentima, Toni, & Roazzi, 2018Attili, G; Di Pentima, L; Toni, A; & Roazzi, A. (2018). High anxiety attachment in eating disorders: intergenerational transmission by mothers and fathers. Paidéia(Ribeirão Preto ), 28, e2813. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4327e2813). O esforço do pesquisador se volta para o encontro de palavras que traduzam os sentidos inconscientes elaborados por essas famílias em suas interações, de modo que as experiências compartilhadas possam ganhar novos significados (Mandelbaum, 2008Mandelbaum, B. (2008). Psicanálise da família. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

O funcionamento psicodinâmico familiar vai se delineando gradualmente com a formação do casal, a partir da bagagem de necessidades e expectativas conscientes e inconscientes de cada cônjuge, somadas às fantasias de cada um, cunhadas desde as gerações anteriores. A chegada do bebê reorganiza essa dinâmica e os pais desejam que o filho corresponda perfeitamente às suas aspirações e às fantasias que nele são projetadas (Meyer, 1987Meyer, L. (1987). Família: dinâmica e terapia (uma abordagem psicanalítica (2a ed.) (G. Schlesinger, trad.). São Paulo, SP: Brasiliense.). Ao longo do processo de desenvolvimento, é função da família equipar emocionalmente e preparar seus filhos para desenvolverem relações com pessoas externas ao grupo familiar e, possivelmente, para a formação de seu próprio núcleo familiar no futuro,em um movimento orientado para a exogamia (Mandelbaum, 2008Mandelbaum, B. (2008). Psicanálise da família. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.; Meyer, 1987Meyer, L. (1987). Família: dinâmica e terapia (uma abordagem psicanalítica (2a ed.) (G. Schlesinger, trad.). São Paulo, SP: Brasiliense.).

Porém, a separação/diferenciação necessária entre os membros do grupo familiar nem sempre é sentida por todos como oportunidade de desenvolvimento psíquico enriquecedor e fecundo. Muitas vezes tais aspectos podem ser vivenciados, por alguns familiares, de maneira aterrorizante, com fantasias persecutórias que redundam em uma sensação de esvaziamento ou esmagamento do self (McDougall, 1991McDougall, J. (1991). Teatros do corpo (P. H. B. Rondon, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.). Em níveis extremos de sofrimento emocional, em famílias que vivenciam angústias primitivas de separação e individuação, percebe-se confusão de papéis e ausência de limites eu-outro. Assim, não há possibilidade de alguém funcionar de forma autônoma e de acordo com seu próprio desejo, ou de ter sua existência reconhecida como separada dos demais membros da família. Nesse contexto, as experiências emocionais são marcadas pela tentativa de controle onipotente e por invasões e manipulações constantes dos pais, por vezes sob o disfarce de se mostrarem ‘responsáveis’ pela família (Meyer, 1987Meyer, L. (1987). Família: dinâmica e terapia (uma abordagem psicanalítica (2a ed.) (G. Schlesinger, trad.). São Paulo, SP: Brasiliense.).

No cenário teórico exposto, os TAs são considerados psicopatologias ‘em posição de cruzamento’, considerando que emergem, principalmente, na adolescência, isto é, no intervalo entre a infância e a vida adulta, entre os níveis psíquico e somático, entre o individual e o familiar/social (Benghozi, 2015Benghozi, P. (2010). O engodo como sintoma dos continentes genealógicos esburacados. In Malhagem, filiação e afiliação - psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social(E. D. Galery, trad.) (p. 103-120). São Paulo, SP: Vetor.; Corcos, 2015Corcos, M. (2011). Le corps insoumis: psychopathologie des troubles des conduites alimentaires (2eme ed.).Paris, FR: Dunod. Obra original publicada em 2005.; Jeammet, 2008Jeammet, P. (2008). Abordagem psicanalítica dos transtornos das condutas alimentares. In R. Urribari(Org.), Anorexia e bulimia (M. Seincman, trad; p. 24-49). São Paulo, SP: Escuta.). Isso evidencia a necessidade de compreender os sintomas bulímicos como resultado de uma articulação entre as dimensões intra e interpsíquicas, o que aponta para a importância de analisar psicanaliticamente as interações familiares. Assim, este estudo teve por objetivo analisar as vivências das relações familiares na perspectiva de uma jovem diagnosticada com TA, de sua mãe e seu pai.

Método

Este estudo foi desenvolvido de acordo com o enfoque qualitativo de pesquisa, fundamentado no referencial teórico psicanalítico. Trata-se de um estudo de caso único de corte transversal, em cuja condução foram respeitados os preceitos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a qual os pesquisadores são vinculados (Processo CAAE nº 39990414.1.0000.5407).

Os participantes do estudo foram pacientes e familiares que se encontravam em atendimento regular em um serviço especializado (Ramos & Pedrão, 2013Ramos, T. M. B; & Pedrão, L. J. (2013). Acolhimento e vínculo em um serviço de assistência a portadores de transtornos alimentares.Paidéia (Ribeirão Preto),23(54), 113-120. doi: 10.1590/1982-43272354201313
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), no período compreendido entre abril de 2015 e junho de 2016. Foram pré-selecionados após acesso aos prontuários das/os pacientes em atendimento, com o auxílio da equipe interdisciplinar do serviço hospitalar. Foram escolhidas/os aquelas/es que se enquadravam nos seguintes critérios de inclusão: apresentar diagnóstico de TA, ter idade entre 12 e 25 anos e estar frequentando regularmente as atividades de tratamento ambulatorial. Foram estabelecidos os critérios de exclusão: paciente não estar em seguimento regular no serviço e o fato de um ou mais membros da tríade, constituída por paciente-mãe-pai, não concordarem em colaborar para a pesquisa.

Dentre os casos que preencheram tais critérios, foram selecionadas/os pacientes que tinham pai e mãe vivos e que convivessem em núcleos familiares intactos. Desse modo, participaram do estudo quatro tríades compostas por pai, mãe e jovem com diagnóstico de TA, sendo três com AN e uma com BN. Para fins deste estudo procedeu-se a um recorte, sendo selecionado um dos casos, de acordo com a proposta de Stake (2011Stake, R. E. (2011). Pesquisa qualitativa: como as coisas funcionam (K. Reis, trad.). Porto Alegre: Penso.). O caso escolhido será designado como Família Borges e foi constituído por: Bruna (24 anos, diagnosticada com BN), Bárbara (mãe, 52 anos) e Bernardo (pai, 50 anos). Este caso se destacou entre os quatro concluídos por These difficulties arose instability trazer mais riqueza de elementos intra e interpsíquicos para se pensar o contexto familiar nos transtornos de alimentação.

Para a coleta de dados foram utilizados roteiros de entrevistas semiestruturadas, cujo foco foi conhecer compreensivamente a história de vida familiar e os fatores que os familiares entrevistados associaram com o desenvolvimento dos sintomas de TA pelo membro acometido, bem como suas repercussões na dinâmica de relações familiares. As entrevistas foram aplicadas individualmente em situação face a face, em sala reservada do serviço hospitalar na qual a jovem realizava regularmente seu tratamento. A pesquisadora elaborou registros em diário de campo, imediatamente após a realização das entrevistas, de modo a enriquecer as interpretações do material obtido e possibilitar uma análise compreensiva do caso (Chabert & Verdon, 2008Chabert, C; & Verdon, B. (2008). Psychologie clinique et psychopathologie. Paris, FR: Presses Universitaires de France.).

As entrevistas foram audiogravadas e transcritas na íntegra e literalmente para posterior análise. O material, captado por meio das entrevistas e dos registros do diário de campo da pesquisadora, constituiu o corpus da pesquisa. Os dados foram organizados e analisados por meio do método de análise de conteúdo temático (Minayo, 2012Minayo, M. C. S. (2012). Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, 17(3), 621-626.doi: 10.1590/S1413-81232012000300007
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), que consistiu nos seguintes passos: (1) leitura flutuante e exaustiva de todo o material, sem um foco de atenção pré-definido; (2) nova leitura, dessa vez focal, norteada pelo objetivo do estudo, com vistas à identificação dos eixos de significado; a partir dessa leitura, foram criadas categorias e subcategorias que atendiam aos objetivos do estudo, colocando em evidência as vivências das relações familiares de cada membro da tríade; (3) triangulação dos dados obtidos com os diferentes participantes; (4) interpretação dos resultados com base na teoria psicanalítica aplicada à compreensão dos TAs.

Nessa última etapa foi realizada a análise interpretativa do material, que vai além da análise descritiva dos dados, exigindo uma compreensão empática guiada pela reflexão fundamentada na teoria psicanalítica adotada como referencial norteador do estudo. Nessa direção, foi realizada uma busca por padrões de respostas com significados comuns, bem como por divergências e eventuais inconsistências identificadas nos relatos dos participantes (Minayo, 2012Minayo, M. C. S. (2012). Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, 17(3), 621-626.doi: 10.1590/S1413-81232012000300007
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; Stake, 2011Stake, R. E. (2011). Pesquisa qualitativa: como as coisas funcionam (K. Reis, trad.). Porto Alegre: Penso.). Também se utilizou a estratégia de comparar as interpretações dos resultados com as encontradas na literatura científica.

Resultados

A família Borges é composta por Bruna, Bárbara, Bernardo e uma filha mais velha, de 27 anos. No momento da coleta de dados, Bruna apresentava Índice de Massa Corporal (IMC) de 23,37kg/m², considerado dentro da normalidade, e se encontrava sob tratamento no serviço especializado em TAs havia três anos. O início do tratamento foi conturbado. Devido à gravidade da sintomatologia quando a família buscou ajuda profissional, a jovem teve indicação de hospitalização integral, sendo internada em uma enfermaria de psiquiatria.

Na época, Bruna apresentava acentuada perda de peso e intensa distorção da imagem corporal. Recebeu diagnóstico clínico/descritivo de AN do subtipo compulsão alimentar purgativa, em comorbidade com transtorno de personalidade do tipo narcisista. Seu quadro clínico foi considerado grave pela equipe de saúde. A paciente apresentava um quadro de desnutrição severa e sintomas conversivos, como enrijecimento muscular, espasmos involuntários e desmaios, que preocupavam os profissionais e a família.

Com o avanço do tratamento, Bruna apresentou gradual recuperação de peso e a equipe de psiquiatria reconsiderou seu diagnóstico, modificando-o para BN, já que a jovem não apresentava mais desnutrição e/ou outras características típicas do quadro de AN, ao passo que seus sintomas de compulsão e purgação alimentares haviam se intensificado significativamente.

Quando consultados, os membros da tríade da família Borges aceitaram prontamente participar da pesquisa. Em seguida, serão apresentadas as categorias (marcadas em negrito) e subcategorias (destacadas em itálico) elaboradas a partir da perspectiva dos/as participantes. Posteriormente, será desenvolvida a discussão dos resultados com apoio da literatura da área.

A dinâmica das relações familiares

Os resultados obtidos por meio da entrevista com Bruna permitiram esboçar o retrato típico da família que comumente encontramos na clínica dos TAs: uma figura materna internalizada como intrusiva e uma figura paterna vivenciada como fragilizada e pouco confiável. O vínculo com a mãe era vivenciado de forma marcadamente simbiótica, apontando para uma relação de codependência em que a jovem se sentia sufocada e com pouco espaço e liberdade interna para esboçar os contornos de sua própria identidade.

Eu sinto que ela [mãe] é muito dependente emocionalmente de mim. E eu dela. Assim, por mais que eu não queira […]. Ah, não sei, não sei, me sinto meio amarga, assim, em relação à minha mãe, não sei. Não sei explicar direito que sensação é essa, sabe. Talvez um rancor, uma mistura de rancor com tristeza, assim, por coisas que ela já me fez passar (Bruna, filha diagnosticada com BN, 24 anos).

Segundo Bruna, os conflitos que experimentava na relação com sua mãe se intensificaram devido ao fato de esta ‘não aceitar’ seu TA. Porém, a principal fonte de turbulência apontada foi a recusa materna em aceitar que a filha mantivesse ‘relações afetivas com meninas’. Ao referir-se à sua sexualidade, Bruna usou a expressão ‘falta de definição’, pontuando que perceber sua indefinição gerava desconforto em sua mãe em diversas esferas. Sobre sua relação com o pai, Bruna contou que era um vínculo ‘mais tranquilo’ e que se sentia mais compreendida por ele.

[…] Eu sinto que eu consigo ajudar mais ele e ele consegue me ajudar mais, mas acho que isso acontece, talvez, justamente por eu me sentir mais neutra, mais distanciada dele, entendeu? (Bruna).

Bruna descreveu o pai como um homem ‘inseguro’, ‘pessimista’ e ‘infeliz’, comparando-o a uma criança insatisfeita. Ao mesmo tempo em que se referiu a um pai que parece ter sido introjetado como uma figura frágil e pouco presente nas decisões cotidianas da casa, também relatou alguns episódios de explosão e agressividade paterna em situações corriqueiras. No que tange ao relacionamento fraterno, Bruna mencionou que mantinha um bom relacionamento com a irmã. O contato entre a irmã e o pai era percebido como permeado por conflitos. Bruna destacou a falta de paciência da irmã face à simplicidade e baixo nível educacional e cultural do pai. Em contraste, ela relatou que o pai admirava muito a filha mais velha, que era organizada, séria e centrada em suas atividades de estudo e trabalho.

Bárbara, ao falar das relações familiares, destacou o vínculo mãe-filha, afirmando que sempre manteve uma relação muito boa com Bruna, fazendo clara distinção entre como era esse relacionamento ‘antes’ e ‘depois da doença’ da filha caçula. Na perspectiva de Bárbara, os conflitos entre mãe e filha começaram após o início dos sintomas.

A participante deixou escapar, em alguns momentos da entrevista, sua predileção pela filha caçula. Mencionou que o relacionamento entre as duas, em sua visão, era muito afetuoso, e que os conflitos só emergiam quando a filha se recusava a colaborar na arrumação da casa ou quando os sintomas alimentares ficavam proeminentes. A mãe revelou que a indefinição da orientação sexual da filha - nas palavras de Bárbara, ‘gostar de meninos e meninas’- também era um fator que incrementava os conflitos. Sobre a percepção que tinha da filha, a mãe acrescentou: “Ela seria perfeita se não tivesse esse problema [...]”, referindo-se ao TA.

Ainda no tocante ao tipo de vínculo estabelecido, a mãe relatou que, antes de a filha apresentaro transtorno, considerava que era ‘uma boa mãe, perfeita’. No entanto, quando os sintomas da filha eclodiram e os conflitos que emergiram da relação da díade se agravaram, ela passou a questionar sua competência no desempenho da função materna. A aceitação do problema foi muito difícil porque colocava em evidência sua dificuldade em admitir alguns aspectos da personalidade da filha. Os relatos maternos evidenciaram que a relação tempestuosa com a filha parecia ocupar espaço significativo no mundo psíquico e na vida relacional de Bárbara.

Bernardo, por sua vez,empenhou-se em esboçar um retrato de uma vida familiar harmônica e tranquila. Ele sentia que conseguia manter uma relação baseada em diálogo e cumplicidade com a filha Bruna e se mostrou mais aberto a suportar a instabilidade apresentada por ela na esfera afetivo-sexual, profissional e alimentar. Além disso, Bernardo acreditava que os problemas da filha eram transitórios e que estavam associados à sua ‘indecisão’. Ele não mencionou como era seu vínculo com a filha mais velha, mas evidenciou sentir admiração por seu temperamento predominantemente racional e elogiou suas qualidades acadêmicas.

Qualidade do relacionamento do casal parental

Na percepção de Bruna, os pais mantinham um ‘relacionamento de irmãos briguentos’. No entanto, sentia que havia um toque de companheirismo nesse vínculo, além de um estilo de vida parecido, que ela via como positivo. Apesar disso, pensava que a mãe nutria um desejo não declarado de se divorciar do marido, mas não o fazia por achar que não conseguiria viver sem a segurança psicológica que o relacionamento lhe proporcionava.

Bárbara relatou que ela e o marido já haviam enfrentado muitos problemas de relacionamento no passado. Ela percebia Bernardo como um homem ansioso e propenso a ter arroubos de agressividade, além de ser muito tenso e preocupado no dia a dia. Bárbara acrescentou que o marido era muito dependente dela, o que lhe causava desconforto, e que nos últimos anos ele vinha apresentando humor depressivo.

Bernardo, ao discorrer sobre seu casamento, destacou as preocupações financeiras que os Borges enfrentaram ao longo da vida. Relatou que ele e a esposa tinham pequenas discussões e brigas no cotidiano, mas nada que os fizesse cogitar a possiblidade de uma separação, pois sempre se apoiavam um no outro. Sua descrição evidenciou uma percepção mais superficial da vida do casal e uma tendência à minimização dos conflitos conjugais e familiares.

A dimensão dos cuidados parentais

Cuidados parentais iniciais

Bruna já contava com alguns anos de tratamento e psicoterapia individual. Relatou que refletia frequentemente sobre seus vínculos familiares, mas tinha pouco conhecimento de como havia sido o início da vida familiar. Bárbara mencionou que havia sido uma época muito feliz de sua vida, quando moravam em uma pequena cidade do interior, da qual sentia saudades. Ainda sobre esse período inicial da história familiar, revelou ter vivido uma grande frustração e desapontamento por ter amamentado as duas filhas por apenas três meses, uma vez que ‘não tinha leite’. Já Bernardo pouco falou sobre esse período, mostrando ter permanecido sempre distante dos assuntos domésticos, especialmente nas questões referentes à gestação, parto e puerpério da mulher. Também não se envolveu nos primeiros cuidados parentais das duas filhas.

Cuidados parentais atuais, oferecidos e recebidos

No que se refere aos cuidados recebidos atualmente, Bruna relatou que a mãe estava sempre disposta a se anular para poder cuidar dela. Achava que a mãe esperava dela uma reciprocidade a que ela, filha, não conseguia corresponder ou colocar em prática. Em relação ao pai, a jovem observou que ele mantinha o foco em cuidados concretos, associados, por exemplo, a algum gasto financeiro, dispensando pouca atenção ao contato genuíno com ela no dia a dia.

Bárbara relatou que se preocupava muito com os comportamentos compulsivos e hábitos purgativos da filha. Descreveu o tipo de vínculo estabelecido com a filha como permeado por sentimentos negativos e um persistente temor de invasão, em que ela, mãe, se penitenciava por não conseguir identificar claramente quais eram os limites que ela deveria respeitar ao cuidar de Bruna. Bernardo referiu que sempre buscou mostrar o melhor caminho para suas filhas e que elas nunca tiveram problemas sérios porque nunca se desviaram do bom caminho.

O impacto do transtorno alimentar nas relações familiares

Os hábitos alimentares da família

Bárbara relatou que se sentia muito sobrecarregada com o desempenho das atividades cotidianas relacionadas à alimentação da família. Bernardo e Bruna demonstraram ter consciência dessa sobrecarga de Bárbara, mas revelaram pouca inquietação a esse respeito. Bruna se queixou de que a mãe comprava e estocava em casa muitas guloseimas e produtos calóricos, e destacou que os pais tinham sobrepeso e diversos problemas de saúde graves decorrentes dos maus hábitos alimentares, tais como ‘colesterol alto’ e diabetes mellitus. Na opinião da jovem, os pais comiam compulsivamente quando se sentiam ansiosos, assim como ela o fazia em determinados momentos de maior tensão. Ainda no campo das dificuldades familiares relacionadas à alimentação, Bárbara também relatou que se sentia incomodada quando ia procurar algo para comer e não encontrava. Atribuía a responsabilidade à Bruna e sua compulsão alimentar descompensada. Esse tipo de acontecimento também era fonte de conflito entre as duas irmãs.

O início dos sintomas e as repercussões familiares do diagnóstico

Em relação ao surgimento do TA, Bruna contou que foi um processo gradual e que não percebeu que estava emagrecendo consistentemente até que sua forma corporal chamou a atenção dos pais durante uma viagem de férias que fizeram à praia, quando ela precisou vestir um maiô e eles, pela primeira vez, perceberamo quanto seu corpo estava esquálido. Consoante à percepção tardia dos sintomas, a família só buscou ajuda especializada quando a jovem precisou passar por uma hospitalização breve (sete dias) devido a um episódio de mal-estar súbito. Foi nesse momento que foi aventada a hipótese diagnóstica de TA, o que para Bruna a princípio não fazia o menor sentido, sendo também recebido com ceticismo pelos pais.

Bruna contou que, com o desenrolar do tratamento especializado, refletiu e percebeu que, no início da adolescência, quando tinha cerca de 12 anos, fora acometida pela primeira vez pelos sintomas de TA. Nessa época, namorava uma menina, que era sua amiga, com quem aprendeu a comer e depois induzir o vômito. Esse foi o relacionamento amoroso mais prolongado que ela havia mantido até então, e foi claramente marcado por um tipo de vínculo simbiótico e por confusão de limites identitários.

Sobre o início do transtorno, a mãe relatou que sentia que ‘estava com uma venda nos olhos’, pois a filha estava emagrecendo muito e ela não aceitava quando as pessoas, inclusive seu marido, cogitavam a possibilidade de ser TA. Para ela, essa era uma doença que acometia apenas modelos, algo distante da realidade da filha. Nessa época Bruna foi se isolando cada vez mais das amigas e da família, tinha predileção por permanecer longos períodos sozinha em seu quarto, até um dia em que a mãe foi chamá-la e percebeu que ela havia vomitado em si própria.

Repercussões das dificuldades alimentares atuais

No momento da pesquisa, Bruna mostrou ter percepção de que seus comportamentos compulsivos e purgativos pareciam estar associados a situações que eliciavam ansiedade, tais como o estresse desencadeado pelos estudos ou dificuldades vivenciadas nos relacionamentos afetivos e sociais. Em relação às reações da família frente aos seus sintomas, a jovem relatou que a mãe ficava muito nervosa quando percebia que ela havia provocado o vômito, o que acentuava ainda mais seus próprios sentimentos de culpa e vergonha. Enquanto isso, o pai parecia ter uma percepção mais positiva da filha e era capaz de apontar seus progressos.

Enquanto isso, Bárbara e Bernardo também destacaram a piora dos sintomas de Bruna em períodos de maior estresse. A mãe reforçou ainda que sentia que sua dificuldade em aceitar a orientação sexual da filha pode ter colaborado para o desencadeamento e manutenção dos sintomas. Ela também gostaria que Bruna tivesse um caráter mais maleável, pois sentia que a filha se tornara muito rebelde e inflexível após o início do TA. Bernardo associou a bulimia à depressão e aos sentimentos de inferioridade vivenciados pela filha na infância, quando ela era discriminada e sofria bullying dos colegas de escola por ter sobrepeso. Bernardo também percebia que falar diretamente sobre os sintomas com a filha, pedindo que ela diminuísse ou controlasse a ingestão desmesurada de alimentos, era um fator gerador de mais ansiedade, que só incrementava os conflitos, pois Bruna sentia que os comentários eram ofensivos, além de se sentir desconfortável com a invasão de sua intimidade.

Elucubrações e fantasias sobre a possível origem do transtorno alimentar

Para Bruna, o fator principal que desencadeou seu transtorno foi a dificuldade que vivenciara no tempo em que namorava sua amiga de infância. Foi na época de sua hospitalização que sua mãe descobriu que ela se relacionava amorosamente com a amiga. Bárbara ficou desapontada e recebeu o fato como uma bomba, uma descoberta terrível. Bruna elencou esse relacionamento homossexual como a primeira grande decepção que infligiu à mãe, colocando o desenvolvimento do TA como a segunda fonte de desapontamento.

Em relação às possíveis ‘causas’ do TA, de modo geral Bruna apresentou uma racionalização que explica suas perturbações do comportamento alimentar como subprodutos da sociedade de consumo na era contemporânea (Santos et al; 2019Santos, M. A., Oliveira, V. H., Peres, R. S., Risk, E. N., Leonidas, C., Oliveira-Cardoso, E. A. (2019). Corpo, saúde e sociedade de consumo: a construção social do corpo saudável.Saúde & Sociedade, 28(3), 239-252. doi: 10.1590/s0104-12902019170035
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). Quando questionada sobre o papel da família, revelou que também foi chamada de ‘gordinha’ por sua mãe e irmã, que colocaram isso de forma negativa e sempre fizeram comentários depreciativos a respeito de seu peso e forma corporal.

No início do quadro clínico da filha, Bárbara pensava que o simples ato de voltar a comer resolveria a questão, considerando que a jovem apresentava quadro grave de desnutrição. Ao longo do tratamento e de sua psicoterapia pessoal, convenceu-se de que o TA apenas sinalizou uma dificuldade latente que já existia anteriormente, mas que não era percebida por ninguém da família, sendo sua ‘causa’ associada a ‘problemas psicológicos não resolvidos’. Disse que sempre achou que a filha foi uma criança muito feliz e não percebeu os ataques que ela sofria dos pares por seu sobrepeso, nem tinha ideia de como isso poderia afetar sua saúde mental.

Em relação à família, Bárbara referiu que certa vez Bruna acusou todos os familiares de terem sua parcela de responsabilidade na produção da situação difícil em que ela se encontrava. A mãe relatou ainda que concordava com a reflexão da filha:

Às vezes, quando esse assunto se torna uma discussão, ela fala: ‘Todo mundo tem culpa aqui. Você, mãe, fala que eu fui a sua decepção, quando eu te falei que gostava de uma menina’. E é verdade, eu falei mesmo. O pai dela, ela acha que a [irmã mais velha] sempre foi a preferida dele, então […] Eu acho que todo mundo tem culpa, né? (Bárbara, mãe, 52 anos, grifo nosso).

Para Bernardo, os sintomas de bulimia se iniciaram com a ‘desilusão’ que ele acredita que a filha sofreu: o fim do primeiro relacionamento amoroso. Apesar de não participar do tratamento de Bruna, Bernardo relatou que sempre fez pesquisa sobre o tema na internet para tentar ajudá-la, tendo inclusive entrado em contato com depoimentos de pacientes para se aproximar mais da realidade da jovem. Em sua perspectiva, a família não tinha qualquer relação com a precipitação do transtorno, visto que, de acordo com sua percepção da vida familiar, nenhum membro jamais havia discriminado Bruna por seu peso. Porém, disse que a filha reclamava com frequência que os pais tinham preferência por sua irmã mais velha. Ele também acreditava que a ansiedade difusa da filha, e o que ele chamava de sua ‘indecisão’ na esfera afetivo-sexual e profissional, dificultavam o alcance da melhora.

Discussão

No entrecruzamento das perspectivas da mãe, do pai e de sua jovem filha com BN foi possível constatar que as vivências das relações familiares eram permeadas por conflitos manifestos e latentes. Isso acarretou dificuldades adicionais ao árduo processo de adaptação familiar face às rupturas instauradas pelo transtorno mental no cotidiano doméstico. Os sintomas de Bruna foram percebidos tardiamente, o que retardou a busca de ajuda (Valdanha-Ornelas & Santos, 2016Valdanha-Ornelas, E. D; & Santos, M. A. (2016).O percurso e seus percalços: itinerário terapêutico nos transtornos alimentares. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32(1), 169-179.doi: 10.1590/0102-37722016012445169179
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). A família teve de se ajustar à desestabilização provocada pela instalação de uma psicopatologia crônica e continuou a ser exigida em sua capacidade de assimilar as mudanças ocorridas no convívio de seus membros. Destaca-se a percepção de Bárbara de que a família era ‘perfeita’ anteriormente ao adoecimento de Bruna. A mãe narrou uma atmosfera idealizada de paz e tranquilidade familiar, interrompida apenas pelo início dos sintomas bulímicos da filha. Desse modo, o perfeccionismo dos pais se mostrou presente como um dos elementos constitutivos da dinâmica de relações familiares, alimentando uma visão idealizada do passado.

Em relação aos vínculos estabelecidos no espaço intrafamiliar, percebe-se que eram intensamente ambivalentes. A filha primogênita ocupava menos espaço no discurso dos pais e de Bruna, o que pode decorrer da percepção de que a jovem seria, segundo os relatos da tríade, a filha saudável, competente e que mantinha sua funcionalidade totalmente preservada. Entretanto, também é importante ressaltar que a filha primogênita evidenciava uma dinâmica de autofechamento e isolamento, em que parecia buscar, de forma racional, solitária e autossuficiente, dar conta de suas dificuldades emocionais e dos desafios cotidianos.

Ao mesmo tempo, em uma via de mão dupla, é preciso considerar que esse funcionamento da jovem pode ter se desenvolvido, inconscientemente, por perceber que os pais dispunham de poucos recursos emocionais para investirem nos cuidados com ela, o que pode ter gerado um retraimento no estabelecimento de seus vínculos familiares. Desse modo, os sintomas podem estar traduzindo a resposta inconsciente da filha frente à imaturidade do casal parental. Essa dinâmica, tal como descrita por Anzieu (2006Anzieu, D. (2006). Le Moi-peau (2ª ed.). Paris, FR: Dunod. Original publicado em 1985.) e Corcos (2016Corcos, M. (2016). La maternité-perpétuité dês mères vierges. Le Carnet PSY, 2(196), 35-40.), evidencia falhas na dupla solicitação na qual o bebê/filho convoca a atenção da família, ao mesmo tempo em que é convocado por ela, em um constante movimento de construção da identidade. Nesse sentido, a filha primogênita parece não ter encontrado nos pais o eco que esperava para suprir suas demandas afetivas.

Já o relacionamento entre as duas irmãs se mostrou menos conflituoso, na medida em que Bruna percebia que o funcionamento mais racional da irmã era eficiente no controle de suas emoções. Os conflitos fraternos se iniciavam quando a irmã mais velha se enraivecia com algo que Bruna havia feito. Nos discursos de mãe e filha, isso acontecia com frequência quando Bruna comia produtos que estavam disponíveis em casa e que a irmã também gostaria de consumir. Nota-se que aí também se acha implicada, no drama da rivalidade fraterna, a economia psíquica do desejo inconsciente relacionado à alimentação. A dinâmica relacional é perpassada pela premissa do desequilíbrio, em que os recursos alimentares e afetivos disponíveis na família são escassos e sempre haverá alguém que passa fome enquanto outro membro se empanturra até vomitar.

A relação de complementaridade fusional entre Bárbara e Bruna se mostrou intensamente ambivalente, e assim era experimentada, especialmente por Bruna, que manifestou ter consciência, no plano racional, dessa característica do vínculo. Mãe e filha narraram vivências de uma relação simbiótica permeada por sentimentos ambivalentes de amor e ódio (Ribeiro, 2016Ribeiro, M. (2016). Entrelaces psíquicos entre mães e filhas. In C. Weinberg (Org.), Psicanálise de transtornos alimentares (Vol. II, p. 209-222). São Paulo, SP: Primavera Editorial .). Considerando mais especificamente o desenvolvimento emocional da menina, segundo Ribeiro (2011)Ribeiro, M. F. R. (2011). De mãe em filha: a transmissão da feminilidade. São Paulo, SP: Escuta ., no processo identificatório a dupla do gênero feminino - mãe e filha - está mais vulnerável a se ‘con-fundir’. Isso acontece porque, na resolução do Complexo de Édipo, a menina necessita, primeiramente, se identificar com o objeto materno, para depois separar-se parcialmente da mãe e então se reidentificar com ela, o que pode despertar sentimentos amorosos ou de competitividade. Mãe e filha permanecem ligadas por laços intensos e ambivalentes de amor e ódio, que são de difícil aceitação e elaboração considerando os frágeis mecanismos de defesa.

Percebe-se, nos relatos de Bárbara, que o início da ruptura da relação de marcada indiferenciação psíquica, que antes era vivenciada de modo ilusoriamente positivo, foi precipitado pela eclosão dos sintomas da filha, concomitantemente à descoberta do relacionamento homoafetivo da jovem. Esses dois momentos marcantes da construção da subjetividade de Bruna foram vivenciados pela mãe com ‘profunda decepção’, mas podem também ser compreendidos como movimentos da filha no sentido de tentar romper a relação psíquica umbilical e se diferenciar da figura materna, em busca dos contornos de sua própria identidade. Revisão recente da literatura constatou que compreender a natureza fusional do vínculo mãe-filha é um passo essencial para a efetividade do tratamento dos sintomas, uma vez que as idiossincrasias dessa relação podem estar no cerne das dificuldades alimentares e familiares (Siqueira, Santos, & Leonidas, 2020Siqueira, A. B. R.; Santos, M. A; & Leonidas, C. (2020). Confluências das relações familiares e transtornos alimentares: revisão integrativa da literatura.Psicologia Clínica,32(1), 123-149. doi: 10.33208/PC1980-5438v0032n01A0
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).

Até o momento em que emergiu a tentativa de ruptura da indiferenciação psíquica por parte de Bruna, mãe e filha viviam imersas em um vínculo idealizado, sem contradições e conflitos aparentes, o que possibilitou que Bárbara se percebesse como ‘uma mãe perfeita’. Os sentimentos de ódio emergiram com as decepções subsequentes. A dupla parecia ainda viver sob uma ‘pele comum’ (Anzieu, 2006Anzieu, D. (2006). Le Moi-peau (2ª ed.). Paris, FR: Dunod. Original publicado em 1985.). De acordo com o referido autor, no início da vida mãe e bebê mantêm uma relação simbiótica mútua, uma ‘pele comum’. Ao longo do desenvolvimento, essa pele comum vai se desfazendo, e cada um reconhece gradualmente sua própria pele e seu próprio corpo. Apesar de fazer parte do desenvolvimento humano, esse processo de individuação sempre é envolto de sofrimento e encontra resistências de ambas as partes. Quando o investimento, tanto narcísico como libidinal, da mãe em seu bebê não é vivido como suficientemente bom, o bebê fica fragilizado e pode ter problemas em sua saúde. Esse processo e a iminência da separação-individuação parecem ter sido vivenciados com terror e sofrimento por parte tanto da mãe como da filha, com fortes resistências que contribuíram para manterem, por tempo indefinido, a ilusão simbiótica. Essa ilusão é necessária e até mesmo fundamental, mas apenas nos primórdios do desenvolvimento emocional.

Bárbara relatou, superficialmente, que tinha dificuldades para prover as necessidades de cuidado da filha desde a fase de bebê. O aleitamento materno se deu por pouco tempo. Isso pode estar associado às dificuldades maternas em se envolver nessa vinculação de forma mais profunda. Na atualidade, a situação de vulnerabilidade psíquica e a distorção da imagem corporal de Bruna reforçam essa ideia de que houve falhas bruscas no provimento do cuidado inicial. Essas falhas, consideradas marcantes para o funcionamento psíquico, podem ter levado a fragilidades no desenvolvimento da identidade, problemas de saúde e dificuldades nos relacionamentos interpessoais (Anzieu, 2006Anzieu, D. (2006). Le Moi-peau (2ª ed.). Paris, FR: Dunod. Original publicado em 1985.; Durski & Safra, 2016Durski, L. M; & Safra, G. (2016). O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise. Reverso, 38(71), 107-114.).

Considerando os aspectos sugestivos de fusão emocional que caracterizam a relação mãe-filha, é possível observar que, pelo menos até certo ponto, essa condição favorece sentimentos de conforto e proteção (Mendonça, 2015Mendonça, L. B. V. G. (2015). Adolescência e anorexia: o que entra na pele. InM. Ramos ,& M. P. Fuks (Orgs.), Atendimento psicanalítico da anorexia e bulimia (p. 14-27). São Paulo: Zagodoni.). Entretanto, o desenvolvimento dito normal privilegia a separação, que pode ter sido prematura nesse caso e parece ter sido vivenciada com muito ódio por Bárbara. A mãe relatou vivências de intenso sofrimento sempre que a filha apresentava algum comportamento que ela considerava inadequado. Bruna parece não ter tido recursos para promover uma separação menos conflituosa, tanto no âmbito intrapsíquico quanto no relacional. Nesse sentido, suas tentativas de individuação se expressaram inadequadamente em comportamentos autodestrutivos, que na maior parte das vezes evocavam os contornos corporais (instabilidade do peso) e seus limites internos/externos (comportamentos de compulsão/purgação alimentar), evidenciando elementos que remetem a uma frágil base narcísica (Fernandes, 2016Fernandes, M. H. (2016). A anorexia e a bulimia em Freud. In C. Weinberg (Org.), Psicanálise de transtornos alimentares (Vol. II, p. 170-190). São Paulo, SP: Primavera Editorial.; Vibert, 2015Vibert, S. (2015). Psychopathologie et psychanalyse de l’anorexie mentale: modèles dynamiques. Paris, FR: PressesUniversitaires de France.).

O relacionamento entre Bruna e Bernardo se mostrou menos conflituoso. O pai evidenciou superficialidade na percepção das dificuldades que permeavam a vida familiar, o que parece ser frequente no contexto dos TAs (Scaglia, Mishima-Gomes, & Barbieri, 2018Scaglia, A. P; Mishima-Gomes, F. K. T; & Barbieri, V. (2018). Paternidade em diferentes configurações familiares e o desenvolvimento emocional da filha.Psico-USF,23(2), 267-278. doi: 10.1590/1413-82712018230207
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). Bruna apresentou uma figura paterna internalizada ora como um homem esperançoso e que teria recursos para ampará-la, ora como um ser psiquicamente imaturo e impulsivo.

Nesse contexto das vivências de Bruna, em que há um pai ausente do ponto de vista emocional, uma mãe intrusiva e uma irmã ressentida e retraída, os sintomas bulímicos parecem se manifestar como uma tentativa inconsciente de tentar despertar o pai para a vida familiar, de modo a desempenhar seu papel de assegurar uma base segura e confiável para que a filha possa lidar com a reedição, na adolescência, da passagem pelo complexo de Édipo. A literatura psicanalítica contemporânea aponta que a resolução edípica na menina pode ocorrer se ela, em seu processo de desenvolvimento ulterior, encontrar no pai a segurança de que necessita para se libertar do laço materno (Costa & Santos, 2016Costa, L. R. S; & Santos, M. A. (2016). Cuidado paterno e relações familiares no enfrentamento da anorexia e bulimia. In D. Bartholomeu, J. M. Montiel, A. A. Machado, A. R. Gomes, G. Couto & V. Cassep-Borges (Orgs.), Relações interpessoais: concepções e contextos de intervenção e avaliação(p. 253-279). São Paulo, SP: Vetor .; Diaz, 2015Diaz, S. M. F. (2015). Porque o apego a pessoas e lugares que a diminuem?In M. Ramos,& M. P. Fuks (Orgs.), Atendimento psicanalítico da anorexia e bulimia (p. 14-27). São Paulo, SP: Zagodoni; Leonidas & Santos, 2020Leonidas, C; & Santos, M. A. (2020). Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective.Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica,23(1), 84-93. https://doi.org/10.1590/1809-44142020001010
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).

Nesse sentido, é possível fazer a conjectura de que Bernardo não pôde atuar como agente contenedor e, eventualmente, interditor da relação mãe-filha, de modo que ambas continuaram aprisionadas uma à outra e entrelaçadas por um vínculo simbiótico tóxico e mortificante (Leonidas & Santos, 2020Leonidas, C; & Santos, M. A. (2020). Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective.Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica,23(1), 84-93. https://doi.org/10.1590/1809-44142020001010
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). Nesse pacto mortífero, mãe e filha estão condenadas a resistirem a qualquer investidura que indique o caminho da diferenciação/individuação. Bruna evidenciou que não pôde vivenciar seu corpo como uma instância própria, pela via da simbolização, e assim afirmar a própria feminilidade como experiência de fruição prazerosa (Goulart & Santos, 2015Goulart, D. M; & Santos, M. A. (2015). Psicoterapia individual em um caso grave de anorexia nervosa: a construção da narrativa clínica. Psicologia Clínica, 27(2), 201-227.). Sua primeira tentativa de estabelecer um relacionamento exogâmico aconteceu com sua melhor amiga de infância, reeditando também um modelo vincular que parece calcado no borramento de fronteiras e na indiferenciação eu/outro. Esse namoro durou vários anos sem que os pais dela tivessem conhecimento do que se passava.

Considerando a dimensão da conjugalidade, percebeu-se um clima de ‘vazio emocional’ pairando sobre o casal, na medida em que mostraram ter percepções muito diferentes acerca do relacionamento conjugal. Enquanto Bernardo destacou a suposta ausência de conflitos como uma qualidade intrínseca ao seu núcleo familiar, projetando com otimismo um futuro promissor junto à esposa (defesas maníacas), Bárbara relatou diversos conflitos intrafamiliares e delineou um futuro no qual gostaria de cuidar mais de si própria, sugerindo a possibilidade de se decidir pela separação conjugal, algo que parece jamais ter passado pela mente do esposo. Bernardo também se mostrou pouco participativo nos cuidados com as filhas e não empático com as dificuldades vivenciadas pela esposa no manejo das tarefas domésticas e dos cuidados cotidianos com a prole, o que vai ao encontro da literatura sobre os cuidados paternos no cenário dos TAs (Costa & Santos, 2016Costa, L. R. S; & Santos, M. A. (2016). Cuidado paterno e relações familiares no enfrentamento da anorexia e bulimia. In D. Bartholomeu, J. M. Montiel, A. A. Machado, A. R. Gomes, G. Couto & V. Cassep-Borges (Orgs.), Relações interpessoais: concepções e contextos de intervenção e avaliação(p. 253-279). São Paulo, SP: Vetor .). É possível inferir que o casal permanecia junto e razoavelmente sintonizado quando se tratava de prover o cuidado em relação às filhas (Favez, 2017Favez, N. (2017). Psychologie de la coparentalité: concepts, modèles et outils d’évaluation. Paris, FR: Dunod.), o que parece ter sido desestabilizado na medida em que as jovens avançavam em suas trajetórias de desenvolvimento, rumo à entrada na vida adulta.

Os sintomas, então, parecem ser um convite à mãe e à filha para reconhecerem o espaço/hiato psíquico/corporal que as diferenciava, anunciando uma possibilidade de individuação de ambas, antes negada e rechaçada. Porém, essa separação é intensamente temida, uma vez que é vivida como ameaça de desmantelamento da ‘pele comum’, o que poderia desencadear o colapso do ego. Essa iminência de ruptura radical, de acordo com a literatura psicanalítica, pode ser sentida como um perigo que paira sobre o grupo familiar, na medida em que se separar pode ser vivenciado pela família como um ato de traição e deslealdade ao pacto familiar (Anzieu, 2006Anzieu, D. (2006). Le Moi-peau (2ª ed.). Paris, FR: Dunod. Original publicado em 1985.; Benghozi, 2010Benghozi, P. (2010). O engodo como sintoma dos continentes genealógicos esburacados. In Malhagem, filiação e afiliação - psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social(E. D. Galery, trad.) (p. 103-120). São Paulo, SP: Vetor.; Chabert, 2015Chabert, C. (2015). La jeune fille et le psychanalyste. Paris, FR: Dunod.; Meyer, 1987Meyer, L. (1987). Família: dinâmica e terapia (uma abordagem psicanalítica (2a ed.) (G. Schlesinger, trad.). São Paulo, SP: Brasiliense.). Nesse contexto, o processo de individuação de Bruna estaria em risco, pois parece ter sido permeado por intenso sofrimento, tanto no âmbito individual quanto no grupal (familiar).

Considerando as bases narcísicas frágeis dos membros da tríade, a separação é sentida como insuportável, o que acaba dificultando o desenvolvimento da filha rumo a uma identificação feminina sexuada (Leonidas & Santos, 2020Leonidas, C; & Santos, M. A. (2020). Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective.Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica,23(1), 84-93. https://doi.org/10.1590/1809-44142020001010
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; Vibert, 2015Vibert, S. (2015). Psychopathologie et psychanalyse de l’anorexie mentale: modèles dynamiques. Paris, FR: PressesUniversitaires de France.). Essa problemática, que remete aos limites (eu-outro, dentro-fora), coloca em evidência as questões relacionadas à diferenciação sexual, com possibilidade de manter a bissexualidade psíquica ou de construir uma identidade sexual mais clara (Chabert, 2015Chabert, C. (2015). La jeune fille et le psychanalyste. Paris, FR: Dunod.). Para Bruna, o próprio corpo era experienciado com falhas e instabilidade. Um corpo opaco aos significados inconscientes que o atravessam e mortificado por sofrimentos atrozes, que são evidências da fragilidade interna que se manifesta no contato com o mundo, especialmente em etapas de transição psicossocial.

Considerações finais

Este estudo teve por objetivo analisar as vivências das relações familiares na perspectiva de uma jovem diagnosticada com bulimia, de sua mãe e seu pai. Os resultados apontam que a jovem com diagnóstico de TA percebe seus pais como pessoas entristecidas e fragilizadas, com poucos recursos disponíveis para o autocuidado, o que inibe seus esforços de busca de autonomia e daquilo que ela considera que poderia trazer melhorias em suas vidas. Nesse clima de escasso investimento afetivo, a jovem com bulimia parece sentir que não encontrou o acolhimento de que necessitava para se tranquilizar e processar suas vivências mais angustiantes, o que pode ter contribuído para que ela desenvolvesse falhas evolutivas em nível egóico, corporal e relacional.

Nesse contexto de dificuldades no processo maturacional, o desenvolvimento do TA na filha aparece como a mobilização inconsciente de recursos para tentar suprir as necessidades não gratificadas de atenção e cuidado. Ao lado disso, os sintomas também podem ter um sentido inconsciente de se livrar da presença onipresente e massacrante da figura materna introjetada como voraz e intrusiva, eternamente insatisfeita porque cultiva o perfeccionismo e, com isso, inibe o desenvolvimento emocional da filha. A mobilização dos sintomas também parece ter a função inconsciente de tentar despertar o pai para se reposicionar na cena edípica, implicando-o, já que ele se coloca como uma figura quase inerte e passiva diante dos acontecimentos. Desse modo, os resultados sugerem a importância de incluir a escuta dos pais e mães no tratamento da filha adoecida por TAs, a fim de captar os sentidos inconscientes dos sintomas que configuram o quadro psicopatológico e suas repercussões no meio familiar e na teia de fantasias e vínculos inconscientes que sustentam o funcionamento psíquico familiar.

Os resultados mostraram que, assim como a filha, os pais também apresentaram fragilidades no seu desenvolvimento socioemocional, culminando em dificuldades no estabelecimento da diferenciação eu-outro. Essas dificuldades culminaram em vivências familiares de instabilidade, com vínculos de dependência permeados por sensações paradoxais de invasão da intimidade e sentimentos de abandono e desamparo. Assim, os resultados deste estudo psicanalítico das relações diádicas e triádicas entre pais, mães e filhas contribuem para o avanço no conhecimento da área, em especial no nível da compreensão das relações familiares no contexto dos TAs, oferecendo subsídios para estruturar ações interventivas dos profissionais envolvidos na assistência aos pacientes e seus familiares.

De acordo com os relatos analisados, ao longo do tratamento também foi possível identificar mudanças ocorridas no comportamento e atitudes de Bruna, principalmente no plano das relações interpessoais, rupturas que não puderam ser adequadamente elaboradas. No início, a jovem mostrava postura arrogante e um discurso extremamente racional e intelectualizado, mostrando-se algumas vezes inadequada nos diversos contextos de tratamento, especialmente no grupo de apoio aos pacientes. Com o decorrer do tempo foi se tornando mais maleável, sensível e empática ao sofrimento do outro, sendo também perceptível a melhora em seus relacionamentos e vida social.

Como todo estudo de caso, este relato apresenta algumas limitações, como a impossibilidade de generalizar os resultados obtidos e o fato de não terem sido confrontadas outras perspectivas que poderiam enriquecer a triangulação dos dados, como a da irmã saudável e dos profissionais de saúde que acompanham o caso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2019
  • Aceito
    14 Out 2020
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