Acessibilidade / Reportar erro

Família, álcool e violência em uma comunidade da cidade do Recife

Family, alcohol and violence in a community located in Recife, Pernambuco state

Resumos

Esta pesquisa teve como objetivo investigar as relações entre o uso de bebidas alcoólicas e comportamentos violentos a partir da organização familiar em famílias de uma comunidade de baixa renda localizada em Recife, Pernambuco. Foram entrevistadas setenta e nove famílias, escolhidas de forma aleatória, distribuídas nas seis microáreas que compõem a comunidade. A princípio foi aplicado um questionário seguido de uma entrevista semidirigida. Os dados colhidos pelo questionário foram submetidos à análise estatística descritiva e as entrevistas semidirigidas foram contempladas a partir da análise de conteúdo. Nenhum padrão de organização familiar se mostrou imune ao uso de bebidas alcoólicas e à possibilidade de comportamentos violentos. O uso abusivo de bebidas alcoólicas nos finais de semana, associado a fortes pressões socioeconômicas, estilo educacional rígido e punitivo, ambiente sociocultural complexo e exigente, conduz essas famílias, freqüentemente, a comportamentos violentos, impulsionados e modulados por esses mesmos elementos.

família; álcool; violência


This research aims to investigate the relations between the alcoholic beverage use and violent behavior in families of a low income community located in Recife, Pernambuco. Seventy-nine families were interviewed, chosen randomly, distributed in the six micro-areas that compose the community. At first a questionnaire was applied, followed by a semi directed interview. The data obtained through the questionnaire was submitted to the descriptive statistic analysis and the semi directed interviews went through content analysis. No standard family organization was shown to be immune to the alcoholic beverage use and the possibility of violent behavior. The abusive alcoholic beverage use in the weekends associated with strong socio-economic pressures, rigid and punitive educational style, and complex and demanding socio-cultural environment, frequently leads these families to violent behaviors, modulated and sanctioned by these same elements.

family; alcohol; violence


ARTIGOS

Família, álcool e violência em uma comunidade da cidade do recife1 1 Apoio: Programa de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

Family, alcohol and violence in a community located in recife, pernambuco state

Zélia Maria de MeloI; Marcus Túlio CaldasII; Michelle Maria Campos CarvalhoIII; Anamaria Tavares de LimaIII

IDoutora, docente do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco

IIDoutor, docente do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco

IIIAluna bolsista do Programa de Iniciação Científica da Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Zélia Maria de Melo Rua Taió, 126, ap. 04, Cordeiro CEP 50630-790, Recife PE E-mail: zelia@unicap.br

RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo investigar as relações entre o uso de bebidas alcoólicas e comportamentos violentos a partir da organização familiar em famílias de uma comunidade de baixa renda localizada em Recife, Pernambuco. Foram entrevistadas setenta e nove famílias, escolhidas de forma aleatória, distribuídas nas seis microáreas que compõem a comunidade. A princípio foi aplicado um questionário seguido de uma entrevista semidirigida. Os dados colhidos pelo questionário foram submetidos à análise estatística descritiva e as entrevistas semidirigidas foram contempladas a partir da análise de conteúdo. Nenhum padrão de organização familiar se mostrou imune ao uso de bebidas alcoólicas e à possibilidade de comportamentos violentos. O uso abusivo de bebidas alcoólicas nos finais de semana, associado a fortes pressões socioeconômicas, estilo educacional rígido e punitivo, ambiente sociocultural complexo e exigente, conduz essas famílias, freqüentemente, a comportamentos violentos, impulsionados e modulados por esses mesmos elementos.

Palavras-chave: família, álcool, violência.

ABSTRACT

This research aims to investigate the relations between the alcoholic beverage use and violent behavior in families of a low income community located in Recife, Pernambuco. Seventy-nine families were interviewed, chosen randomly, distributed in the six micro-areas that compose the community. At first a questionnaire was applied, followed by a semi directed interview. The data obtained through the questionnaire was submitted to the descriptive statistic analysis and the semi directed interviews went through content analysis. No standard family organization was shown to be immune to the alcoholic beverage use and the possibility of violent behavior. The abusive alcoholic beverage use in the weekends associated with strong socio-economic pressures, rigid and punitive educational style, and complex and demanding socio-cultural environment, frequently leads these families to violent behaviors, modulated and sanctioned by these same elements.

Key words: family, alcohol, violence.

Esta pesquisa faz parte de um projeto integrado, do qual participaram dois professores orientadores e duas alunas bolsistas. Foram escolhidos dois temas - violência e álcool - a serem estudados em famílias de baixa renda. A questão específica utilizada para a elaboração do referido trabalho foi a seguinte: o padrão de uso do álcool pelas famílias dessa comunidade e a relação com comportamentos violentos. Optamos, porém, por um caminho metodológico diferente daquele seguido pelas pesquisas nessa área (Galduróz, Noto, Nappo & Carlini, 2003; Luz Jr., 1974; Neto, 1967). A princípio estudamos como essas famílias se relacionam entre si, quais os padrões educacionais utilizados pelos pais em sua relação com os filhos, enfim, como se estabelecem às relações de hierarquia familiar, para posteriormente analisarmos os padrões de uso do álcool e sua possível relação com a violência familiar.

Segundo Osório (1996), a família é uma unidade grupal na qual se desenvolvem três tipos de relações pessoais: aliança (casal), filiação (pais e filhos) e consangüinidade (irmãos). A partir dos objetivos genéricos de preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu, através dos tempos, funções diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e culturais. Ferrari (2002) acrescenta que a família é uma unidade social emissora e receptora de influências culturais e de acontecimentos históricos. Entre suas funções, destarte, estaria a de ser um espaço de transmissão de hábitos, costumes, idéias, valores e padrões de comportamento. Nesse sentido é a agência de socialização por meio da qual o indivíduo apreende e interioriza os valores da cultura. Quando a família cumpre essa função mediadora, o indivíduo adquire as noções do certo e do errado, sem a imposição dos agentes externos da sociedade. Levisky (1998) discorda dessas afirmações. Para esse autor a família só protege a criança das determinações da sociedade durante um determinado período de tempo. Acredita que os fatores sociais desempenham papel fundamental na constituição do sujeito, nas suas escolhas, no seu projeto identificatório. A constituição do EU não poderia ser pensada fora do registro sociocultural. O que os autores acima citados apontam é a importância desses dois registros fundamentais para a constituição do sujeito: a família e as instituições socioculturais, que ora são capazes de colaborar em suas determinações, ora de se chocarem ou mesmo de se completarem. Situação freqüentemente apontada dessa complexidade relacional é a das crianças ou filhos adolescentes, que, não sendo frustrados por pais excessivamente permissivos, buscam fora de casa um interdito para conter seus naturais impulsos agressivos. Podemos afirmar que quando família e sociedade não conseguem ajudar numa elaboração saudável dessa agressividade, estamos diante de possíveis situações de violência. A violência, vista como fenômeno, pode ser causada por múltiplos e diferentes fatores: socioeconômicos, culturais, psicológicos e situacionais. Dentre as inúmeras formas de manifestação da violência nos interessa estudar, neste trabalho, a violência intrafamiliar (VIF) e a violência doméstica (VD). Ferrari (2002) indica que quando se detecta a violência dentro de um grupo familiar, encontra-se em geral um padrão de relacionamento abusivo entre pai, mãe e filho. Essa forma comportamental compromete o desempenho dos papéis familiares. Estes se tornariam rígidos e estereotipados, levando, por fim, a um grande desencontro familiar. A violência doméstica se definiria por:

Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis, contra crianças e adolescentes que sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica de um lado uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. (Azevedo, 1995, p. 36).

Chama a atenção, na definição da autora, o estabelecimento de relações assimétricas hierarquizadas que determinam a perda de autonomia do outro, com todas as suas conseqüências, entre as quais a "negação da liberdade do outro, da igualdade e da vida" (Ferrari, 2002, p.82). A violência é essencialmente democrática em sua disseminação, podendo estar presente nas relações entre homens e mulheres, entre classes sociais, entre diferentes etnias ou credos religiosos, assim como entre diferentes grupos políticos.

Em relação à violência na família, apesar das diversas causas que podem provocá-la, podemos dividir em dois grandes grupos os fatores de sua origem: os fatores intrafamiliares, onde estão localizados os relacionamentos familiares como um todo e o uso da autoridade dos pais em particular; e os fatores sociais, entre eles, o uso de álcool e drogas, fenômenos comuns na sociedade contemporânea.

A violência intrafamiliar, apesar de conter muitos elementos da violência doméstica, está mais enraizada no contexto relacional da família. As relações e os comportamentos entre os membros da família terão na violência não só uma inspiração, mas também a pedra sobre a qual serão construídos.

O álcool é uma droga psicoativa que admite - dependendo da dose, da freqüência e das circunstâncias - um uso sem problemas. Contudo, sua utilização de forma inadequada pode trazer graves conseqüências, tanto orgânicas como psicológicas e sociais, caracterizando a condição do alcoolismo (Ramos & Bertolote, 1997). Os caminhos para o uso/abuso do álcool e para a dependência podem ser muitos, pois o álcool é capaz de reduzir a ansiedade, possibilitar efeitos estimulantes/euforizantes ou mesmo anestésicos. Outrossim, os efeitos desinibidores do álcool têm sido relacionados com comportamentos agressivos ou sexualmente liberados (Chasin & Carlini-Cotrim, 2000; Duarte & Carlini-Cotrim, 2000; Parker, 1993). Segundo Edwards (1999), uma relação direta pode ser estabelecida entre a quantidade de bebidas alcoólicas utilizadas por uma determinada população e os problemas daí decorrentes. Tal relação pode ser estendida ao nível individual. Nesse sentido é importante distinguirmos entre as possibilidades entendidas hoje de se utilizar a bebida alcoólica. Embora os padrões de ingestão de bebidas alcoólicas variem enormemente de acordo com influências biológicas, psicológicas ou socioculturais, duas situações têm sido identificadas: o uso nocivo e a dependência do álcool. De acordo com o Código Internacional de Doenças (CID), em sua 10ª edição, de 1993, da Organização Mundial de Saúde - OMS, o uso nocivo é definido como:

Um padrão de uso de substância psicoativa que está causando dano à saúde. O dano pode ser físico (como nos casos de hepatite decorrente da auto-administração de drogas injetáveis) ou mental (p. ex. episódios de transtorno depressivos secundários a um grande consumo de álcool). Padrões nocivos de uso são freqüentemente criticados por outras pessoas e estão com freqüência associados a conseqüências sociais diversas de vários tipos (CID 10, 1993, p.74).

A síndrome de dependência é definida como:

Um conjunto de fenômenos fisiológicos, comportamentais e cognitivos, no qual o uso de uma substância ou uma classe de substâncias alcança a prioridade muito maior para um determinado indivíduo que outros comportamentos que antes tinham maior valor. Uma característica descritiva central da síndrome é o desejo (freqüentemente forte, algumas vezes irresistível) de consumir drogas psicoativas (as quais podem ou não ter sido medicamente prescritas), álcool ou tabaco. Pode haver evidência que o retorno ao uso da substância após um período de abstinência leva a um reaparecimento mais rápido de outros aspectos da síndrome do que o que ocorre com indivíduos não dependentes. Um diagnóstico definitivo de dependência deve usualmente ser feito somente se três ou mais dos seguintes requisitos tenham sido experienciados ou exibidos em algum momento durante o ano anterior: um forte desejo ou senso de compulsão para consumir a substância, dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância, um estado de abstinência fisiológico quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, evidência de tolerância, abandono progressivo dos prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da substância, persistência no uso da substância, a despeito de evidência clara de conseqüências manifestamente nocivas (CID 10, 1993, p.74-75).

Seja da ordem do uso nocivo seja da dependência, o beber problemático tem um profundo impacto sobre a família do bebedor (Edwards, 1999). As conseqüências se farão sentir sobre todos os membros da estrutura familiar, embora sejam as crianças e os adolescentes os mais afetados. Quanto maior a intensidade de violência física e verbal, mais profundos serão os prejuízos relativos à auto-estima, gerando ansiedade, depressão, comportamento anti-social, desarmonia conjugal e outras maneiras inadequadas de resolver problemas quando na vida adulta.

Estudos epidemiológicos realizados em nosso país ressaltam a importância do alcoolismo como um grave problema de saúde pública (Santana & Almeida Filho, 1987a). Ramos e Bertolote (1997) acreditam que 5 a 10% da população sejam afetados por essa patologia.

Igualmente, a violência doméstica alcança cifras importantes em nosso meio. Silva (2002, p.73-76) afirma que "três entre cada dez crianças de 0 a 12 anos sofrem, diariamente, algum tipo de maus-tratos dentro da própria casa, perpetrados por pais, padrastos ou parentes". Considera a autora ser a mãe biológica a principal implicada, pela responsabilidade na educação dos filhos, que ainda cabe a ela, na maioria dos casos.

Considerando a família como um sistema semi-aberto, com regras, costumes e crenças, em constante troca com o meio social – que está sempre em alteração e sujeito a crises e dificuldades – supomos que, freqüentemente, a organização familiar seja igualmente afetada. É característico de nossa sociedade ocidental estar sempre em mudança, fenômeno que tem se acelerado drasticamente no transcurso das últimas décadas. Nossa família, tradicionalmente nuclear, vem sofrendo constantes modificações em sua organização, surgindo diversas outras possibilidades de arranjos familiares. Em nossa pesquisa, para uma melhor compreensão, utilizamos as seguintes categorias: família nuclear, composta por pai, mãe e filhos; família monoparental, na qual identificamos apenas um membro como responsável por sua manutenção; família recasada, aquela em que um dos membros, por ela responsável, já constituiu outras famílias anteriormente; e por fim, família extensa, onde é possível identificar outros familiares agregados.

O CENÁRIO DA REALIZAÇÃO DA PESQUISA

A questão específica utilizada para a elaboração do referente trabalho foi a seguinte: o padrão de uso de álcool pelas famílias de uma comunidade de baixa renda e a relação com comportamentos violentos, na perspectiva da organização familiar. A comunidade está localizada na região metropolitana do Recife, sendo composta por 940 famílias divididas em 6 microáreas, cada uma com 160 famílias. Esse mapeamento foi realizado pela Prefeitura da Cidade do Recife para implantação de seu programa de Saúde na Família. Foram selecionadas 79 famílias, escolhidas de forma aleatória, igualmente distribuídas nas 6 microáreas. Nessa amostra foi realizado um estudo de campo, avaliado de forma quantitativa e qualitativa a partir da aplicação de questionário seguido por entrevista semidirigida. O questionário foi composto por 13 perguntas, que abordaram os seguintes temas: organização familiar, uso de álcool e sinais de violência intrafamiliar, aspectos estes que eram confirmados e aclarados em suas características pela entrevista semidirigida. As entrevistas foram realizadas no domicílio das famílias, sendo o entrevistado o responsável por cada família. A aplicação dos instrumentos teve duração média de 1 hora e 30 minutos, estendendo-se pelo período de janeiro a abril de 2003. No sentido de realizar um trabalho de campo adequado, aconteceram encontros prévios com representantes legais da Prefeitura da Cidade do Recife e agentes do Programa de Saúde na Família que atuam nessa área. Foi realizada ainda uma capacitação às alunas pesquisadoras pelos orientadores do projeto e pelos representantes da comunidade. As visitas à comunidade e a entrada nas residências foram sempre acompanhadas pelos agentes de saúde da Prefeitura da Cidade do Recife. As alunas pesquisadoras foram recebidas nos domicílios familiares com muita atenção e gentileza, não havendo nenhuma recusa à solicitação de participação na pesquisa. Os dados colhidos pelo questionário foram submetidos à análise estatística descritiva. As entrevistas semidirigidas foram contempladas a partir da análise de conteúdo no sentido descrito por Minayo (1996).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir serão apresentados, de forma gráfica, os dados de identificação da comunidade pesquisada.

A figura 1 ilustra os dados relativos ao total de famílias entrevistadas. Pode-se notar que a distribuição destas famílias abrange todas as áreas, possibilitando desta forma uma boa representação da comunidade.


Na Figura 2 o que chama a atenção é o alto índice de famílias nucleares, o que pode ser compreendido por se tratar de um padrão de organização familiar tradicional. O alto número de famílias nucleares (48) chama a atenção, porém têm também uma representatividade importante (12) as famílias extensas.


Na Figura 3 a maior parte das pessoas entrevistadas eram do sexo feminino. Essa porcentagem está diretamente relacionada com o número elevado de famílias nucleares. Nesse tipo de organização os papéis familiares tendem a ser divididos: as mulheres se responsabilizam pelas tarefas domésticas, enquanto os homens assumem os empregos formais.


A Figura 4 possibilita a visualização das opções religiosas das famílias. Metade da amostra optou pela religião católica, em seguida, os evangélicos, grupo que sabidamente vem crescendo no meio popular. Chama a atenção o fato de 1/4 da amostra haver declarado não ter religião.


De acordo com o observado na Figura 5, nota-se que a maioria das famílias respondentes correspondem à classe socioeconômica de baixa renda, a maioria vivendo com um ganho financeiro entre 100 e 200 reais, o que faz supor tratar-se de uma comunidade com dificuldades em suprir suas carências básicas.


EM RELAÇÃO À ORGANIZAÇÃO FAMILIAR

Um fator importante do ponto de vista da família é o tipo de relacionamento existente no lar, constatado nas categorias: "Bom", 47,14% e "Regular", 37,15%. O exame dos dados indica que as famílias dessa comunidade estão satisfeitas com o ambiente doméstico. Os problemas e dificuldades que surgem estão sendo bem administrados. Nas entrevistas semidirigidas, entretanto, o grau de insatisfação se fez mais presente, denunciando essa aparente situação de bem-estar.

A proporção de mulheres responsáveis pelos domicílios é maior, o que é representado na categoria "Mãe", com 55,72% (39 famílias). Esta atua impondo limites com autoritarismo: "Eu dou as ordens e todo mundo tem que obedecer" (M.A.L., 40 anos). O censo demográfico do IBGE realizado no ano de 2000, entre outras informações, analisou o "perfil das mulheres responsáveis pelos domicílios no Brasil". Na ocasião, de um contingente de 86.223.155 mulheres, 12,9% eram responsáveis pelo domicílio, mesmo sendo mulheres que viviam com seus maridos ou companheiros. Relacionando os dados da ultima década (1991 - 2000), observou-se um crescimento no número de mulheres responsáveis pelo domicílio, de 5,6% para 16,7%. "É uma mudança cultural muito significativa, pois a mulher assume que, mesmo casada, é ela a responsável pelo domicílio e faz contribuir para a feminização da pobreza" diz Bárbara Cobo, técnica do IBGE.

Constatou-se que 72,84% das famílias manifestaram comportamentos violentos de acordo com as categorias "Bate" (31,42%) e "Castiga" (41,42%), dando um total de 51 famílias. A forma de bater e castigar evidencia o comportamento agressivo: colocar de joelhos, gritar e bater com pedaço de madeira (tabica). "Eu dou surra mesmo, antes pegava até a faca, hoje mais não" (J.O.S., 53 anos). Essa postura diante do filho desobediente faz desencadear o que Morrison (2002) denomina de aprendizado da agressão. A criança que testemunha ou vivencia episódios violentos (por exemplo: maus-tratos físicos), passa a entender esse procedimento como a melhor forma de solucionar "problemas" e, conseqüentemente, a adotar uma conduta violenta.

Com base na grande maioria dos dados da Tabela 4, há regras compartilhadas pelas famílias. Os entrevistados relataram que ensinam e orientam através de conversas sobre o que é certo e o que é errado. "Não falta, eu mostro para eles o que é errado de fazer" (J.J.A, 36 anos). Comparando os dados da tabela acima com os da tabela 3, constatamos uma contradição entre a fala e a ação. Os limites são dados através de comportamentos violentos, apesar do entrevistados insistirem no estabelecimento de regras através do diálogo. Nas entrevistas semidirigidas essa aparente contradição se soluciona, pondo em relevo as soluções violentas e punitivas.

EM RELAÇÃO AO USO DO ÁLCOOL

A partir da descrição dessa tabela, fica evidenciado que a grande maioria das famílias da comunidade faz uso de bebidas alcoólicas, confirmação obtida nas entrevistas semidirigidas.

A categoria pai obteve o maior percentual, seguida pela categoria mãe. A categoria filhos, isoladamente ou associada à mãe, pontuou de maneira significativa. A entrevista semidirigida ressaltou que a ingestão de bebidas alcoólicas pelas mulheres vem aumentando significativamente. Neste trabalho chamou a atenção que mulheres sozinhas, portanto responsáveis pela manutenção da família, consomem uma quantidade maior de bebidas alcoólicas do que as mulheres situadas em famílias nucleares. Argumentam essas mulheres que a responsabilidade pela família gera ansiedade, o que as leva a buscar nas bebidas alcoólicas alívio a tal situação.

Na Tabela 7 observamos que a distribuição do padrão de uso de bebidas alcoólicas se faz predominantemente nos finais de semana (50%), o que nos faz pensar num uso familiar e recreativo. Pesquisa recente realizada pelos autores e ainda não publicada deixou claro que os delitos de médio e baixo potencial ofensivo, entre os quais a violência doméstica, estão associados à ingestão de álcool nos finais de semana em situações de lazer familiar. Chama a atenção também a alta porcentagem do uso diário, o que certamente contribui para aumentar a possibilidade de violência na comunidade.

O uso de bebidas fermentadas é preponderante sobre os demais, o que surpreende em se tratando de uma comunidade de baixa renda, uma vez que os fermentados são mais caros e requerem maiores quantidades para provocar os efeitos produzidos pelo álcool. Na entrevista semidirigida ficou clara a influência da propaganda que associa o consumo de tais bebidas com bem-estar, sabor agradável e excitação, veiculados tanto pelos meios de comunicação, como a televisão, quanto pelos cartazes que ornamentam as paredes dos bares da comunidade. Outro elemento a ser considerado é a freqüente associação de destilados e fermentados. As pessoas iniciariam a ingestão de bebidas alcoólicas pelos destilados e, ao sentirem os primeiros efeitos da embriaguez, passariam a ingerir fermentados.

EM RELAÇÃO AO USO DO ÁLCOOL A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO FAMILIAR

O grande número de famílias incluídas na categoria nuclear indica um padrão tradicional de organização familiar, em que a mulher realiza as tarefas domésticas, cabendo a ela a educação dos filhos, enquanto o homem desempenha um trabalho formal.

Por outro lado, a representatividade que o modelo de família extensa alcançou é comum em populações de baixa renda, cujos membros tendem a se associarem, seja porque são imigrantes pobres do interior, seja pelo caráter solidário que freqüentemente se encontra entre essas pessoas. Nessas famílias, porém, se encontra um estado de tensão maior que nos outros modelos, seja porque a alimentação e o espaço têm que ser divididos por um número maior de pessoas seja porque freqüentemente a educação rígida e os valores interioranos se chocam com a cultura urbana.

A Igreja católica foi a preferida entre as famílias, pontuando 49,36%, seguida pelas igrejas evangélicas, com 16,45%. É sabido que na população de baixa renda as igrejas evangélicas vêm crescendo rapidamente.

Com relação ao item renda mensal, 35,44% das famílias recebem entre 100 e 200 reais, o que, de fato caracteriza a comunidade como sendo de baixa renda. Um quarto das famílias disse receber pouco mais de 200 reais. Apenas 6,33% disseram não saber qual a sua renda mensal, ou por não estarem empregados ou por desempenharem atividades laborais sazonais. Esse dado evidencia de maneira bastante contundente a precária condição socioeconômica dessas famílias.

Nenhum tipo de organização familiar se mostrou imune ao uso de bebidas alcoólicas, tampouco foi possível associar a um tipo específico padrões particulares de ingestão de bebidas alcoólicas. A exceção ficou por conta das famílias monoparentais chefiadas por mulheres, o que, na verdade, parece ser um efeito secundário do aumento do uso de bebidas alcoólicas pelo sexo feminino. O único dado consistente em relação ao não-uso de bebidas alcoólicas foi obtido nas igrejas evangélicas: cerca da metade das famílias abstêmias da comunidade pertencem a essas igrejas. É sabido que as igrejas evangélicas fundamentalistas, as mais presentes nesta comunidade, assumem, como critério de pertencimento a seu grupo religioso, a recusa a qualquer modalidade de uso de bebidas alcoólicas. Não se trata portanto, de uma sugestão de moderação, como pode ocorrer com outros grupos religiosos, mas sim, de um critério de identidade grupal, no caso religioso. Nossa pesquisa pôde observar que estes elementos estão influenciando claramente o uso de bebidas alcoólicas pela comunidade, e a conseqüente violência a ele associada.

O retrato que essas famílias forneceram nessa pesquisa foi o de grupos humanos suportando fortes pressões socioeconômicas, com padrões educacionais rígidos e punitivos no relacionamento com os filhos. Aturdidas com o choque de valores culturais, tem como única possibilidade de lazer a ingestão de bebidas alcoólicas, frequentemente influenciadas pela mídia. Tais elementos se combinam com os hábitos alcoólicos apresentados por essas famílias, nas quais se pôde observar um padrão de uso nocivo, prevalente nos finais de semana, de características familiares, que tem sido associado freqüentemente à violência intrafamiliar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nossa pesquisa deixou claro que o uso de álcool por parte das famílias da comunidade alcança níveis significativos, equivalentes aos encontrados em outros trabalhos de investigação em nosso país.

Salientamos a ingestão semanal do álcool, cuja preferência, em todas as categorias familiares, se dá nos finais de semana.

O uso de bebidas alcoólicas é feito por todos os membros da família: pai, mãe e filhos com predominância do pai, seguido pela mãe.

Em famílias com apenas um genitor do sexo feminino (monoparentais), observou-se um discreto aumento de ingestão de bebidas alcoólicas, seja por um incremento da ansiedade pela responsabilidade familiar, seja pelo padrão atual de ingestão de bebidas alcoólicas pelo sexo feminino.

O uso abusivo de bebidas alcoólicas nos finais de semana, associado a fortes pressões socioeconômicas, estilo educacional rígido e punitivo, ambiente sociocultural complexo e exigente, conduz essas famílias, freqüentemente, a comportamentos violentos, impulsionados e modulados por esses mesmos elementos.

Recebido em 20/12/2004

Aceito em 30/05/2005

  • Azevedo, M. A. & Guerra, V. N. A. (1995). Violência doméstica na infância e na adolescência. São Paulo: Robe Editorial.
  • Chasin, A. A. & Carlini-Cotrim, B. (2000). Blood alcohol content (BAC) and deaths from external causes: a study in the Metropolitan area of São Paulo, Brazil. Journal Psychoative Drugs, 33, 3-16.
  • Duarte, C. A. V. P. & Carlini-Cotrim, B. (2000). Álcool e violência: estudo dos processos de homicídio julgados nos Tribunais do Júri de Curitiba, PR, entre 1995 e 1998. Jornal Brasileiro de Dependências Químicas, 1(1), 17-25.
  • Edwards, G. (1999). O tratamento do alcoolismo. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Ferrari, D. C. A. (2002). Definição de abuso na infância e na adolescência. Em D. C. A. Ferrari & T. C. C. Vecina (Orgs.), O fim do silêncio na violência familiar (pp.81-94). São Paulo: Ágora.
  • Galduróz, J. C. F., Noto, A. R., Nappo, S. A. & Carlini, E. A. (2003). Comparações dos resultados de dois levantamentos domiciliares sobre o uso de drogas psicotrópicas no estado de São Paulo nos anos de 1999 e 2001. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 52, 43-51.
  • Levisky, D. L. (1998). Adolescência: pelos caminhos da violência, a psicanálise na prática social. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Luz Jr., E. (1974). Estudo da prevalência do alcoolismo numa vila marginal de Porto Alegre. Revista médica atm, 9, 407-432.
  • Minayo, M. C. S. (1996). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco.
  • Morrison, A. R. & Biehl, M. L. (2000). A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
  • Organização Mundial de Saúde. OMS (1993, 10ª ed.). CID. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamentos: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Neto, A. D. (1967) Estado actual de la epidemiologia del alcoholismo y problemas del alcohol en Brasil. Em J. Horwitz (Org.), Bases para una Epidemiologia del Alcoholismo en América Latina (pp, 72-76). Buenos Aires: ACTA.
  • Osório, L. C. (1996). Família hoje. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Parker, R. N. (1993). The effects of context on alcohol and violence. Alcohol, Health Research World, 17, 117-122.
  • Ramos, S. de P. & Bertolote, J. M. (1997). Alcoolismo hoje. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Santana, V, S. & Almeida, F. N. (1987a). Prevalência de alcoolismo e consumo de álcool em um bairro de Salvador: variáveis demográficas. Revista Brasileira de Saúde Mental, 1, 7-17.
  • Silva, M. A. de S. (2002). Violência contra crianças – quebrando o pacto da violência. Em D. C. A. Ferrari & T. C. C Vecina (Orgs.), O fim do silêncio na violência familiar (pp.73-80). São Paulo: Ágora.
  • Endereço para correspondência
    Zélia Maria de Melo
    Rua Taió, 126, ap. 04, Cordeiro
    CEP 50630-790, Recife PE
    E-mail:
  • 1
    Apoio: Programa de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      30 Maio 2005
    • Recebido
      20 Dez 2004
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revpsi@uem.br