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A AUTORA E OS BICHOS: A VIDA ÍNTIMA DE ULISSES

LA AUTORA Y LOS ANIMALES: LA VIDA ÍNTIMA DE ULISSES

RESUMO.

O objetivo deste estudo teórico é problematizar a presença do cachorro Ulisses como alter ego de Clarice Lispector no livro infantil Quase de verdade (1978). Ulisses era também o cachorro da autora, mencionado por ela em diversas entrevistas e no livro Um sopro de vida (1999) em termos de sua humanidade, que o habilitaria a compreender Clarice de um modo particular e mais próximo, quase cúmplice. Essa humanidade se concretiza quando ele assume a narração em Quase de verdade, posicionando Clarice como sua intérprete. A relação com o bicho revela-se de modo simbiótico, recuperando tanto uma experiência mais instintiva da autora como permitindo a fruição das emoções presentes no animal, em um processo de complementaridade. Como vértices de um mesmo eu, discute-se em que medida Ulisses também funciona como um intérprete de Clarice, propondo a ela uma experiência concreta de viver que ultrapassaria a construção de uma inteligibilidade racional. A dimensão do viver, sensorial e corpóreo, desse modo, apresenta-se como superior à atividade compreensiva, aproximando Clarice do universo íntimo, básico e igualmente selvagem tão bem vivido e corporificado por Ulisses, capitaneado à posição de um alter ego puro capaz de ensiná-la a viver com a sua própria animalidade.

Palavras-chave:
Clarice Lispector; alteridade; corporeidade

RESUMEN.

El objetivo de este estudio teórico es problematizar la presencia del perro Ulisses como el alter ego de Clarice Lispector en el libro para niños Quase de verdade (1978). Ulisses también era el perro del autor, mencionado por ella en varias entrevistas y en el libro Um sopro de vida (1999) en términos de su humanidad, lo que le permitiría comprender a Clarice de una manera particular y más cercana, casi cómplice. Esta humanidad se materializa cuando asume la narración en Quase de verdade, posicionando a Clarice como su intérprete. La relación con el animal es simbiótica, recuperando una experiencia más instintiva del autor y permitiendo el disfrute de las emociones presentes en el animal, en un proceso de complementariedad. Como vértices del mismo yo, se discute en qué medida Ulisses también funciona como intérprete de Clarice, proponiéndole una experiencia concreta de vida que iría más allá de la construcción de la inteligibilidad racional. La dimensión de la vida sensorial y corpórea se presenta así como superior a la actividad integral, acercando a Clarice al universo íntimo, básico e igualmente salvaje tan bien vivido y encarnado por Ulisses, capitaneado por la posición de un alter ego puro capaz de enseñar ella para vivir con su propia animalidad.

Palabras clave:
Clarice Lispector; alteridad; corporeidad

ABSTRACT.

The aim of this study is to problematize the presence of the dog Ulisses as alter ego of Clarice Lispector in the children's book Quase de verdade (1978). Ulisses was also the author's dog, mentioned by her in several interviews and in the book Um sopro de vida (1999) in terms of his humanity, that would enable him to understand Clarice in a particular and closer, almost accomplice way. This humanity materializes when he assumes the narration in Quase de verdade, positioning Clarice as his interpreter. The relationship with the animal is symbiotic, recovering a more instinctive experience of the author and allowing the enjoyment of emotions present in the animal, in a process of complementarity. As vertices of the same self, we discuss to what extent Ulisses also functions as an interpreter of Clarice, proposing to her a concrete experience of living that would go beyond the construction of rational intelligibility. The dimension of sensory and corporeal living thus presents itself as superior to comprehensive activity, bringing Clarice closer to the intimate, basic, and equally savage universe so well lived and embodied by Ulisses, captained by the position of a pure alter ego capable of teaching. her to live with her own animality.

Keywords:
Clarice Lispector; alterity; corporeality

Introdução

Somente quem teme a própria animalidade não gosta de bichos. Eu adoro [...] Talvez seja porque sou de sagitário, metade bicho.3 3 Entrevista concedida a Edilberto Coutinho, ‘Uma mulher chamada Clarice Lispector’, publicada no jornal O Globo em 29 de abril de 1976.

Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio. (Lispector, 2012Lispector, C. (2012). Crônicas para jovens: de bichos e pessoas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 28).

Clarice Lispector é uma das autoras mais aclamadas da contemporaneidade, tanto no Brasil como no exterior, desde que as suas obras foram inicialmente traduzidas para o francês, na década de 1950 (Costa & Freitas, 2017Costa, C. B., & Freitas, L. F. (2017). A internacionalização de Clarice Lispector: história clariceana em inglês. Cadernos de Tradução, 37(2), 40-54.). Em 2020 foi comemorado o seu centenário de nascimento. Para além das clássicas investigações no campo da Literatura (Inácio, 2019Inácio, A. (2019). Uma leitura epifânica do mundo: acontecimento e fratura no romance Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Estudos Semióticos, 15, 136-145.), Clarice vem sendo estudada pela Filosofia e pela Psicologia (Rosenbaum, 2018Rosenbaum, Y. (2018). Olhares da inveja em dois contos de Clarice Lispector. Ide, 40(65), 49-64.), estabelecendo relações com os estudos de gênero (De Mauro, 2018De Mauro, M. (2018). Tanta vida mutua (mujeres y precariedad animal). Alea: Estudos Neolatinos, 20(2), 17-35.; Rosito, 2018Rosito, V. (2018). “Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais”: Lispector nos anos de chumbo. Revista Estudos Feministas, 26(3), e45486.), da corporeidade (Pontes, 2017Pontes, R. (2017). Escúchame con tu cuerpo entero: antiocularcentrismo, crisis de la palabra y sinestesia en Clarice Lispector. Alea: Estudos Neolatinos, 19(3), 538-556.; Scorsolini-Comin & Santos, 2010Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2010). Todos passam pela via crucis: a corporeidade em Clarice Lispector. Psicologia em Estudo, 15(3), 623-632.), com a psicanálise (Silva, Silva, & Soares, 2018Silva, M. L. D. L., Silva. A. A., & Soares, F. I. L. (2018). O gesto psicanalítico em Clarice Lispector. Revista Odisseia, 3(1), 90-110.), a fenomenologia (Pojar & Scorsolini-Comin, 2020Pojar, G. B., & Scorsolini-Comin, F. (2020). Um corpo que arde: corporeidade e produção de subjetividade em Clarice Lispector. Subjetividades, 20(1), e7365.), a saúde mental (Junqueira & Scorsolini-Comin, 2021Junqueira, L. F. S., & Scorsolini-Comin, F. (2021). O ponto de descida: o falso self em Amor, de Clarice Lispector. Uniletras, 43, e-17405.) e também com a narrativa do universo infantil (Scorsolini-Comin, 2019Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2010). Todos passam pela via crucis: a corporeidade em Clarice Lispector. Psicologia em Estudo, 15(3), 623-632.). Nessas investigações, a biografia da autora vem sendo problematizada no modo como seus itinerários pessoais emergem em sua escrita ficcional (Gutiérrez, 2019Gutiérrez, M. V. (2019). Cronicar lo íntimo: las inflexiones autobiográficas y el lector confidente en las crónicas de Clarice Lispector. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (58), e5814.). Nessa escrita-biografia emerge a sua relação com os animais.

A relação de Clarice Lispector com os bichos é um tema frequente em sua biografia e também em sua prosa (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.; Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.). Clarice teve uma infância repleta de animais domésticos, como cães e gatos, mas também se aproximou de animais como macacos e galinhas. As galinhas possuem destaque em sua obra, em textos como Uma galinha, O ovo e a galinha e também no livro infantil A vida íntima de Laura. Nessas obras, Clarice subverte ao considerar a dimensão humana da galinha, tratando das suas intimidades. Em O ovo e a galinha, a dimensão existencial vem à baila, sendo considerado um dos textos mais complexos e herméticos da autora segundo sua própria avaliação4 4 Entrevista concedida a Júlio Lerner para a TV Cultura, poucos meses antes da autora morrer, em 1977. . O crítico Pedro Karp Vasquez, na apresentação da coletânea Crônicas para jovens: de bichos e pessoas (Lispector, 2012Lispector, C. (2012). Crônicas para jovens: de bichos e pessoas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .), afirma que Clarice ressignifica a figura da galinha, pois esta não possuía qualquer prestígio, sendo até mesmo desprezada. Em Clarice, a galinha alcança o status de protagonista com a personagem Laura.

À época do lançamento de A vida íntima de Laura (1999aLispector, C. (1999a). A vida íntima de Laura. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .), por exemplo, Clarice deixava os críticos curiosos sobre quem seria a nova protagonista Laura (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.), à espreita de figuras humanas como a de Joana em seu celebrado livro de estreia, Perto do coração selvagem (1998aLispector, C. (1998a). Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .). A revelação de que se tratava de uma galinha acentuou a relação da autora com esse universo não apenas animal, como também instintivo, básico, selvagem, indomado. A galinha Laura possuía uma intimidade, uma vida íntima, definida por Clarice como aquilo “[...] que a gente não deve contar a todo mundo [...] São coisas que não se dizem a qualquer pessoa” (p. 7). Essa noção de intimidade como algo próprio e também envolto em interditos não seria exclusiva de Laura, mas partilhada por outros animais essencialmente humanos que habitam a escrita de Clarice.

Um dos animais que mais gozam desse posicionamento próximo ao humano é o cachorro. Em suas obras, dois deles ganham destaque: Dilermando e Ulisses. O primeiro, comprado quando a autora morava em Nápoles, na Itália, foi considerado um de seus maiores amigos em sua crônica ‘Bichos’: “Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão” (Lispector, 2012Lispector, C. (2012). Crônicas para jovens: de bichos e pessoas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 28). Dilermando também era descrito como “[...] a pessoa mais pura de Nápoles” (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 201). A essa descrição, segue-se a narrativa de um Dilermando próximo e que conhecia profundamente a autora, até mesmo pressentindo as suas dificuldades. A humanização do cachorro fica evidente em diversas descrições da autora, como a recuperada por Moser (2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 200): “Apesar de ser italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando”. Para Montero (1999Montero, T. (1999). Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 126), “Ter um cão foi uma revelação para Clarice, sentir a matéria de que era feito, sua burrice cheia de doçura, seu modo peculiar de compreender os outros”.

Este cão também se torna personagem em A mulher que matou os peixes (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .), livro infantil que parte da confissão da autora por ter sido negligente no cuidado com os peixes dos filhos pequenos. Os peixes acabaram morrendo por falta de alimento. Também o abandono do cão Dilermando em função de uma viagem da autora à Suíça, acompanhando o marido diplomata, promove em Clarice uma grande mobilização emocional, a ponto de Moser (2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.) associar este evento ao seu fracasso em ajudar a mãe adoecida - em sua biografia, narra-se que Clarice fora concebida a partir da crença popular, à época, de que uma nova gestação poderia ser a cura para a enfermidade da mãe. Assim, pode-se aventar que os relacionamentos com os bichos - e o modo como ela os posicionava e se posicionava diante deles - remontam, de certa forma, a relacionamentos interpessoais e a itinerários que marcariam a sua experiência de vida.

Em seu conto ‘Descoberta’, a figura do cachorro emerge como uma revelação: “O pensamento sobre o cachorro iluminou-o de repente e abriu de repente uma clareira” (Lispector, 2012Lispector, C. (2012). Crônicas para jovens: de bichos e pessoas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 55). Assim, a figura canina, em Clarice, pode ser associada a uma companhia que tem como trunfo a possibilidade de ver além, sem filtros sociais, podendo, de fato, entregar-se. É com os bichos e, em grande parte, com os cachorros, que Clarice afirmava ser possível o exercício de despir-se de convenções, entregando-se totalmente. Aqui aparece uma primeira inversão da autora ao tratar da relação entre humanos e cachorros: humanizar os cães, como popularmente ocorre, sobretudo na contemporaneidade, seria uma ofensa a esses animais; o mais adequado seria buscar, no humano, a sua animalização, a sua ligação mais orgânica com a essência selvagem, pura, que pode se entregar sem questionamentos ou reservas. O ser humano, nessa perspectiva, deveria lançar-se ao desafio da animalização. A biografia de Clarice revela na conexão com os animais uma possibilidade de ser compreendida.

Ainda que possua grande importância na biografia de Clarice, Dilermando não ocupa uma posição diferente da de cão da autora, movimento que se diferencia da sua relação com outro cão evocado em suas narrativas, Ulisses. A partir dessa breve explanação sobre a ligação da autora com os bichos, neste presente estudo nosso personagem central é o cão Ulisses. O objetivo deste estudo teórico é problematizar a presença de Ulisses como alter ego de Clarice Lispector. Para tratar dessa figura, exploraremos os seus diferentes posicionamentos na vida e na obra da autora, primeiro como cão doméstico, dimensão presente em entrevistas e depoimentos de Clarice, depois o Ulisses-personagem, narrado na obra Um sopro de vida (1999b) e, posteriormente, como narrador, intérprete de Clarice, no livro Quase de verdade (2010), originalmente publicado em 1978. Em busca de uma análise integrativa, nesse percurso recorreremos a diferentes conceitos explorados em psicanálise para atingirmos o objetivo central, como a remalhagem dos vínculos a partir da transmissão psíquica (Benghozi, 2010Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social (E. D. Galery, trad.). São Paulo, SP: Vetor.), a agressividade e a destrutividade em Winnicott (1994Winnicott, D. W. (1994). Agressão. In Privação e delinquência (p. 89-96). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1939.) e a topologia lacaniana (Lacan, 2001Lacan, J. (2001). L’Etourdit. In Autres écrits. Paris, FR: Édition du Seuil. Originalmente publicado em 1972.), na costura com a biografia da autora (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.; Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.) e com a análise de suas obras nas quais os personagens caninos emergem, com destaque para Ulisses.

O Ulisses-cão

E o destino dos bichos ali se fazia e refazia: o de amar sem saber que amavam (Lispector, 1978Lispector, C. (1978). Para não esquecer. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .).

O personagem Ulisses, do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1998bLispector, C. (1998b). Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.), é um professor universitário que se enamora por Lóri, uma professora primária do Rio de Janeiro. Ao propor a Lóri uma aprendizagem para amadurecer a relação até a epopeia do ato sexual, Ulisses torna-se um protagonista em uma escrita que se propõe a revelar a permanente transformação - dos personagens, dos enredos, dos afetos e das próprias aprendizagens acerca do viver. Esse Ulisses humano faz coro com um personagem homônimo que atravessaria não apenas a vida de Clarice Lispector, mas também a sua escrita voltada a crianças. Ulisses era muito mais que um bicho: era um personagem da vida real, um personagem da vida íntima de Clarice. Por essa razão, é Ulisses que aparece ao lado da escritora em uma estátua no bairro do Leme, zona sul do Rio de Janeiro, inaugurada em 2016. Clarice morou no Leme por 12 anos.

Ulisses era um cachorro de criação de Clarice que fora comprado para fazer companhia à autora na ausência dos filhos e quando esta já estava separada do marido e de volta ao Brasil. Tomado como um cão que podia estar com Clarice, recebe da autora uma interpretação e a possibilidade de fruir com ela em relação ao seu mundo cotidiano envolto não apenas em ações concretas, como partilhar da bebida e até mesmo do cigarro (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.) - , por exemplo, mas da observação acerca de seu próprio mundo interno. O ‘mundo interno’ de Ulisses assim se denominava por estar submetido, por Clarice, ao crivo humano, algo próximo do que poderia se intitular como seu ‘funcionamento psíquico’:

Ela calmamente o deixava fazer o que quisesse. Ulisses fazia parte de seu retorno à infância, e à maternidade. Ela contou a uma entrevistadora: comprei Ulisses quando meus filhos cresceram e seguiram seus caminhos. Eu precisava amar uma criatura viva que me fizesse companhia. Ulisses é um mestiço, o que lhe garante uma vida mais longa e uma inteligência maior. É um cachorro muito especial. Fuma cigarros, toma uísque e coca-cola. É um pouco neurótico (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 482).

Aqui opera-se uma identificação da autora com Ulisses, atribuindo-lhe características humanas e que eram passíveis de observação e julgamento. Para descrever Ulisses, Clarice emprega balizas essencialmente humanas, como comportamentos e traços de personalidade, corporificando aquilo que ela mesma critica: o fato de a humanização do cachorro ser uma ofensa ao bicho. Talvez porque a animalização do ser humano fosse um processo mais complexo de ser empreendido.

Ao narrar o cão como ‘um pouco neurótico’ também opera certa identificação com o seu próprio funcionamento psíquico, descrito por Moser (2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.) como dependente e depressivo. Ainda nessa biografia há a menção a um dos psicoterapeutas que atenderam Clarice ao longo da vida. Um deles - também chamado Ulysses (Ulysses Girsoler) - aplicou-lhe o teste de Rorschach, que apontou que Clarice era bastante egocêntrica e que vivia um grande conflito entre impulsividade e sensibilidade: “Será muito difícil para um tal temperamento encontrar equilíbrio, uma domesticação consciente desses impulsos elementares por meio da participação intelectual” (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 218). Esse conflito, de alguma forma, podia encontrar certo controle - ou tentativa de domesticação - na escrita, em um movimento de tolerância à agressividade e à destrutividade (Winnicott, 1994Winnicott, D. W. (1994). Agressão. In Privação e delinquência (p. 89-96). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1939.).

Também aqui Clarice se remete à característica mestiça de Ulisses como uma marca que lhe permitiria gozar de melhor saúde em comparação aos demais cachorros considerados ‘de raça’. Como possuindo uma natureza mestiça, o cão se aproxima da natureza de Clarice, fruto de duas pátrias, a Ucrânia, de onde partiu com meses de vida, e o Brasil, terra que tomou por sua e a qual sempre regressou após hiatos vividos no exterior na companhia de seu esposo e de seus filhos. A natureza da autora, meio estrangeira, meio brasileira, traria uma mestiçagem interessante também para a sua escrita: por ser mestiça, também podia gozar de mais inteligência, na metáfora atribuída ao cão. A mestiçagem também se remete à Dilermando, o cão italiano que tinha ‘cara de brasileiro’. No caso de Clarice, uma estrangeira que era naturalizada brasileira e, por extensão, uma brasileira que seria para sempre confundida como estrangeira, tornando incômoda a busca por um lugar de pertencimento ao longo de sua vida.

Embora não haja registros suficientes sobre a escolha do nome do cão de Clarice, Ulisses remete à figura homônima, também conhecida por Odisseu, no grego, personagem da Ilíada e da Odisseia, de Homero. Como protagonista de Odisseia, traz em seu arquétipo a figura de um ardiloso guerreiro. Assim, o cão de Clarice já trazia, em seu nome, uma clara referência à literatura e a uma posição audaz na narrativa. Era um nome imponente para um cão mestiço, sem pedigree, que fora acolhido por Clarice como companheiro.

Segundo Olga Borelli, em entrevista a Julio Lerner, Clarice havia dado o nome Ulisses ao cachorro por conta de um estudante de filosofia suíço que se apaixonara por ela quando residia em Berna, com o esposo: “No Brasil ela comprou um cãozinho, do tipo ‘salsicha’, compridão, e batizou-o de Ulisses, que era o nome do suíço apaixonado [...]” (Lerner, 2007Lerner, J. (2007). Clarice Lispector, essa desconhecida. São Paulo, SP: Via Lettera., p. 47). Mas também se torna lícita a associação da escolha desse nome com o do seu antigo psicoterapeuta, Ulysses, o mesmo que assinalara a dificuldade psíquica da autora em equilibrar sua intensa impulsividade com a sua sensibilidade (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.).

A repetição do nome Ulisses em diversos momentos (estudante suíço, psicoterapeuta, personagem do conto, cachorro, narrador de livro) também pode ser interpretada como um registro da transmissão psíquica (Benghozi, 2010Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social (E. D. Galery, trad.). São Paulo, SP: Vetor.), tal como um signo importante para a autora. Segundo a psicanálise dos vínculos, para elaborar era necessário repetir, o que envolve também o sintoma, o interdito e a falha que podem estar representadas no nome. Em Lacan (2001Lacan, J. (2001). L’Etourdit. In Autres écrits. Paris, FR: Édition du Seuil. Originalmente publicado em 1972.), a repetição desse significante também emerge associada a um trauma, mas possibilitando ao sujeito apropriar-se daquilo que lhe é singular.

Em Clarice, observa-se que as suas vivências pessoais são, de fato, introduzidas nas narrativas. Reforça-se, aqui, o traço maternal presente em sua prosa voltada essencialmente ao público infantil (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.), pontuando que a escritora infantil era, basicamente, formada pela Clarice-mãe (Scorsolini-Comin, 2019Scorsolini-Comin, F. (2019). A infância clandestina em Clarice Lispector. Revista do SELL, 8(2), 185-203.). A experiência da maternidade, portanto, ocupa um lugar de destaque como uma potência para a comunicação com crianças. Assim, também parece reafirmar uma posição que naturaliza e sacraliza a maternidade como via de acesso ao mundo infantil. É por ser mãe que Clarice podia se comunicar por crianças e, por extensão, escrever para crianças.

No entanto, a biografia de Clarice revela falhas experienciadas na relação com a própria mãe, que faleceu quando a escritora ainda era criança. Assim, a sua experiência como mãe não se expressa como possibilidade de remalhar os vínculos fragmentados com a genitora (Benghozi, 2010Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social (E. D. Galery, trad.). São Paulo, SP: Vetor.), mas assevera possíveis sintomas de uma relação conturbada e marcada por interditos - como a sua concepção relacionada à possibilidade de curar a mãe, o que, de fato, não ocorreu.

A maternagem, aqui, se expande para a figura de Ulisses, que não é apenas companheiro, como ocupa o espaço vazio deixado pelos filhos que haviam saído de casa na vida adulta. Mas Ulisses não ocuparia uma posição típica de filho, que envolveria dependência e necessidade de educação e cuidados constantes. Identificado como um ‘vira-latas’, sem raça definida, mestiço, Ulisses já trazia uma história, uma história de resistência rica em vida e em inteligência. Assim, funciona próximo de sua missão primeira na vida de Clarice, de companheiro, personagem capaz de aplacar a solidão. E, à sua semelhança, com um funcionamento ‘psíquico’ particular - no caso do cão, ‘um pouco neurótico’.

Mas mais do que isso, como analisaremos no presente estudo, Ulisses ocupa uma função de alter ego, que revela não apenas uma profunda identificação com a autora, mas a possibilidade de que, a partir dele, Clarice entre em contato com aspectos necessários para uma escrita mais autêntica, visceral, selvagem. Ao ensinar a autora a ‘ser’, como explorado na ficção de Ângela (Lispector, 1999bLispector, C. (1999b). Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro, RJ: Rocco .), Ulisses também possibilitava a Clarice, em certa medida, escrever. Uma Clarice mais ‘animalizada’, selvagem, poderia escrever com mais verdade. Essa identificação com o cão não possibilitava apenas a escrita, mas também a tolerância à sua agressividade e destrutividade, sumarizado na intensa impulsividade relatada por seu psicoterapeuta.

Uma das primeiras imagens do cão Ulisses na imprensa foi em uma entrevista concedida por Clarice ao jornal O Pasquim de junho de 1974 (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.). Ulisses era um cão que já havia atacado Clarice em duas ocasiões, mas que goza de um status junto à autora que ultrapassa o clichê do ‘melhor amigo do homem’ ou do ‘fiel companheiro’: o cão é descrito como alguém capaz de compreender Clarice e esta como alguém que pode compreender o animal. Nesta mesma entrevista, ela destaca: “Há um entendimento que é nosso mas que nos ultrapassa e que não captamos. Mas existe”.

Essa compreensão não se daria apenas em um nível que poderíamos descrever como intelectual ou experiencial, mas eminentemente básico, selvagem, ligado a emoções ainda não depuradas. Por ser animal, Ulisses poderia captar a animalidade de Clarice e aceitar essa condição. Clarice, buscando entrar em contato com os seus aspectos mais primitivos, via na ligação e na convivência com Ulisses uma oportunidade de experienciar essa condição em sua própria carne.

Talvez por esse motivo as duas mordidas que recebera do cão não foram consideradas como tentativas de agressão para com a autora, mas a demonstração de um instinto de vida bastante básico trazido pelo cão e que Clarice buscava assimilar não apenas em sua vida, mas também em sua escrita. Essa escrita mais básica, selvagem, cortante, permitiria o acesso a estados que frequentemente bloqueamos ou escamoteamos. Como destaca Gotlib (2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.), o contato com Ulisses trazia para a vida e para a escrita de Clarice uma espécie de “[...] força selvagem” (p. 556).

Desse modo, pode-se afirmar que a presença de Ulisses ultrapassa a consideração de um típico cão doméstico. Trata-se, aqui, de explorar em que medida o Ulisses-cão, sendo essencialmente um bicho, promovia em Clarice uma revisitação de seus aspectos primitivos para uma experimentação mais refinada acerca do viver. O ‘ensinar a ser’, mencionado em Um sopro de vida (1999b), é uma aprendizagem provocada por Ulisses na escritora Ângela, e, por extensão, na própria Clarice.

O contato com essa dimensão é evocado na psicanálise quando Freud (1989Freud, S. (1989). O ego e o id. In J. Strachey (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, p. 13-83). Rio de Janeiro, RJ.: ImagoTexto original publicado em 1923.) propõe uma explicação sobre o funcionamento do nosso aparelho psíquico. Esses nossos aspectos irracionais, irrepresentáveis, selvagens e sem depuração estariam alocados em uma dimensão chamada de id, que seria submetida ao jugo do super-ego na tentativa de controlar e dar vazão a esses aspectos menos desenvolvidos de nossa personalidade. O id comportaria a nossa energia psíquica (libido), além de pulsões, instintos e desejos inconscientes, sendo regulado pelo princípio do prazer. Ainda que o super-ego se envolva nessa tarefa de controle/regulação/direcionamento, a existência desses aspectos básicos é de suma importância para o nosso funcionamento psíquico, segundo Freud.

Embora não se tratem de aspectos semelhantes, mas que podem ser aproximados em torno da argumentação aqui desenvolvida, o psicanalista inglês Donald Winnicott explorou a noção de agressividade como um componente interno humano adaptativo, sendo experienciada de modo negativo quando reprimida (Winnicott, 1994Winnicott, D. W. (1994). Agressão. In Privação e delinquência (p. 89-96). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1939.). A agressividade emerge como um elemento que envolve o primitivo, a destrutividade e a capacidade de odiar, devendo ser conhecida e tolerada como parte da própria condição humana. Segundo Winnicott, a destrutividade é uma condição para o amor verdadeiro. A tolerância em relação aos impulsos destrutivos é uma importante condição para a integração do eu, o que passa pela capacidade de desfrutar as ideias, ainda que as mesmas sejam destrutivas (Dias, 2000Dias, E. O. (2000). Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento. Natureza Humana, 2(1), 9-48.).

Essa consideração nos parece próxima da explicitada por Clarice ao narrar a animalidade de Ulisses. Assim, Ulisses permitia à Clarice entrar em contato com essa dimensão, não reprimindo-a ou exercendo algum controle racional sobre ela, mas justamente reconhecendo-a como algo fundante e que devia ser tolerado. A experiência da escrita seria um direcionamento importante dentro dessa recomendação, escrita esta também inspirada nas observações da animalidade e da humanidade de Ulisses. Assim, esse cachorro ocupa um papel importante em Clarice não por trazê-la para uma dimensão mais afetiva, o que poderia ser interpretado como algo próximo à maternagem, mas um locus para a sua própria destrutividade, para que o seu ódio - pelo mundo, pelas pessoas, por sua própria biografia desde o fracasso inicial em salvar a mãe, passando pela sua vivência como mãe - pudesse, assim, ser canalizado, corporificado, ou, em termos winnicottianos, tolerado. Também a escrita parece funcionar como uma condição ambiental capaz de, na história adulta da autora, acolher e aceitar a sua agressividade e a sua destrutividade.

A fragmentação na sustentação dos vínculos com a mãe e os filhos é também trazida para o modo como lida com os animais, o que pode ser exemplificado pelo abandono do cão Dilermando, em Nápoles. A tentativa de expiar a culpa em relação à negligência com os filhos aparece em A mulher que matou os peixes (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .), ao passo que a culpa em relação ao abandono do cão é representada no conto ‘O crime do professor de Matemática’, no qual um homem escala uma colina carregando um cachorro morto em um saco (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.). No conto, o cachorro chama-se José: “Eras todos os dias um cachorro que se podia abandonar” (Lispector, 1998cLispector, C. (1998c). Laços de família. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 122).

O Ulisses-personagem

Hoje eu fui entrevistada por quatro menininhas de onze anos do Santo Inácio, com fotografia, perguntas e perguntas e perguntas [...] por causa da Mulher que matou os peixes. E se era verdade que eu gostava de bichos. Eu disse: - Eu também sou bicho!5 5 Entrevista concedida ao MIS-RJ em 20 de outubro de 1976 e recuperada na biografia escrita por Gotlib (2009).

Para além das menções aos bichos feitas por Clarice em entrevistas e em pequenos textos, a sua produção infantil não apenas os inclui como personagens, mas os posiciona como protagonistas. Os livros que compõem a literatura infantil de Clarice Lispector são O mistério do coelho pensante (publicado originalmente em 1967), A mulher que matou os peixes (original de 1968), A vida íntima de Laura (datado de 1974), Quase de verdade (publicado em 1978, após a morte de Clarice) e Como nasceram as estrelas (veiculado em 1987), este último com releituras de Clarice acerca das lendas folclóricas brasileiras.

Em todas essas obras, os bichos emergem de modo bastante humanizado, ora comportando-se como seres humanos, ora respondendo à animalidade que os constitui, em um movimento já bastante explorado, por exemplo, no gênero da fábula. Esses bichos oscilam entre posições assumidas por adultos e posições ocupadas por animais domésticos ou, de certa forma, domesticados e docilizados na prosa clariceana. Entre os estudos que se dedicaram a compreender a presença desses bichos na literatura da autora, há certo consenso de que a exploração do caráter humano nesses animais revela uma aproximação da autora com uma vida considerada mais instintiva e básica, ligada às paixões e às emoções (Dinis, 2003Dinis, N. F. (2003). Pedagogia e literatura: crianças e bichos na literatura infantil de Clarice Lispector. Educar em Revista, 21, 271-286.).

Para além desses aspectos já bastante explorados na literatura produzida acerca da autora, destaca-se que a recuperação dos bichos nessas narrativas parece funcionar como um locus no qual a autora deposita também as suas dificuldades de regredir psiquicamente para se identificar e se comunicar com crianças (Winnicott, 1994Winnicott, D. W. (1994). Agressão. In Privação e delinquência (p. 89-96). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1939.). Isso retoma a própria dificuldade de Clarice em estar com os próprios filhos, ainda que a maternidade seja frequentemente narrada por ela como uma missão em sua existência (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.). Assim, o emprego dos bichos, para além de um lugar comum na literatura infantil, possibilita a corporificação de uma natureza que é próxima tanto das crianças quanto de Clarice, permitindo a troca, o diálogo, a porosidade.

Em Quase de verdade, Ulisses é alçado à ilustre posição de narrador, um narrador de Clarice e para Clarice. O narrador já inicia colocando-se, para além de narrador, como um personagem. Esse personagem é tão importante que abre o livro, vaidoso pela própria narrativa:

Era uma vez [...] Era uma vez: eu! Mas aposto que você não sabe quem eu sou. Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha. Sabe quem eu sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 51).

Como o livro tem apenas personagens bichos, Ulisses revela-se o precursor da história, o bicho mais importante, aquele que detém o poder, pois narrar é poder. Assim, posiciona-se como o dono da história e que também lhe dita os rumos. Mas este Ulisses, o cachorro, possui uma dona em seu universo doméstico, paralelo ao da escrita. Assim, em certa medida, também se posiciona como submisso à autora no lar. Mas, na história em apreço, e esta é a dimensão priorizada na narrativa, Ulisses pode gozar de um status privilegiado, de um narrador que depende de Clarice para concretizar a sua escrita, haja vista que a sua gramática não é passível de compreensão a todos, sobretudo aos humanos que lerão o livro. A sua força narrativa, desse modo, só se corporifica ‘com’ e ‘por’ Clarice, tornando-se inteligível:

Eu fico latindo para Clarice e ela - que entende o significado dos meus latidos - escreve o que eu lhe conto. Por exemplo: eu fiz uma viagem para o quintal de outra casa e contei a Clarice uma história bem latida: daqui a pouco você vai saber dela: é o resultado de uma observação minha sobre essa casa (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 51).

Clarice figura na obra como intérprete do cão, ocupando uma posição que se submete à força narrativa do bicho. Ainda que seja a sua ‘dona’, como informado pelo próprio Ulisses, é o cão que parece ser o ‘dono’ da narrativa, invertendo a relação de poder-saber. Mas a função de intérprete não se mostra de modo passivo, pelo contrário. Ocupar a função de intérprete é compreendido, no livro, como entender o significado dos latidos. Assim, não se trata de uma transcrição do que Ulisses lhe dita - ou lhe late, mas de uma inteligibilidade: a compreensão do significado dos latidos. Os latidos emergem como uma linguagem, uma comunicação, um signo prenhe de significados que devem encontrar no interlocutor uma possibilidade de apreensão. Assim, a intérprete Clarice também possui o seu poder narrativo, ainda que a história seja uma visão de Ulisses sobre o mundo animal ou sobre as relações humanizadas tecidas pelos bichos em uma dada sociedade. Ao compreender a comunicação dos latidos, Clarice também se revela próxima desse sistema, regredindo psiquicamente, animalizando-se, podendo encontrar conforto nessa posição capitaneada por Ulisses que, de outra forma, causaria estranhamento no interlocutor.

Há, aqui, uma relação de mútua confiança: Clarice aceita a tarefa e a posição de intérprete, confiando na natureza, na qualidade ou na necessidade do relato e, ao mesmo tempo, Ulisses confia na compreensão que Clarice pode lançar aos seus latidos. Essa relação de confiança pode ser descrita como íntima, em uma acepção próxima da trazida em A vida íntima de Laura (1999a, p. 7), como “[...] coisas que não se dizem a qualquer pessoa”. Por extensão de sentido, também a intimidade seria, para Ulisses, aquilo que não se poderia latir a qualquer um. O significado do latido não apenas não podia ser compreendido por qualquer pessoa, mas também a história goza de certo status de segredo com Clarice, de estabelecimento de um pacto: é apenas Clarice que lhe pode compreender, justamente por estabelecerem uma relação íntima.

O vínculo estabelecido por autora e cão parece ser uma possibilidade de remalhagem (Benghozi, 2010Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social (E. D. Galery, trad.). São Paulo, SP: Vetor.) de relações interpessoais fragmentadas no passado, tanto em relação à sua experiência como filha, como mãe e também com o cão anterior, Dilermando. A escrita, assim, opera-se no sentido de possibilitar a emergência de um vínculo mais seguro, de construção de um ambiente psíquico mais saudável para uma Clarice marcada por rupturas e descontinuidades em sua biografia (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp.; Montero, 1999Montero, T. (1999). Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro, RJ: Rocco .; Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.). A escrita, representando simbolicamente a tolerância à destrutividade e à agressividade, emerge como um indício para o amadurecimento emocional também por ser representativa dos fenômenos transicionais como uma tentativa de lidar com os objetos que estão no mundo (Dias, 2000Dias, E. O. (2000). Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento. Natureza Humana, 2(1), 9-48.; Winnicott, 1994Winnicott, D. W. (1994). Agressão. In Privação e delinquência (p. 89-96). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1939.).

Clarice emerge como mediadora, recuperando a própria função da escrita como depuradora de sentimentos. Assim, a animalidade de Ulisses devia ser submetida ao crivo de Clarice, devia ser depurada, compreendida, a fim de que pudesse se tornar algo inteligível e, posteriormente, comunicado a crianças. A interpretação, que é uma das funções do intérprete, extrapola a possibilidade de acessar o significado e passa a considerar a intimidade construída e partilhada. A intimidade seria um substrato para a interpretação da linguagem-latido do cão.

Clarice, que pode compreender não apenas os latidos de Ulisses como uma gramática específica, pode, paralelamente, reconhecer-se em sua animalidade. Ao compartilhar dessa animalidade, legitima-se na função de intérprete. A intérprete, aqui, não se resume a uma função automatizada que verte um idioma em outro, mas que permite a depuração da linguagem, alocando emoções na escrita que se tece nesse interjogo: “O cão, como os bichos, em geral, na literatura de Clarice, compõe um bestiário que traduz uma força selvagem” (Gotlib, 2009Gotlib, N. B. (2009). Clarice: uma vida que se conta (6a ed.). São Paulo, SP: Edusp., p. 556). Essa ‘força selvagem’ traduz-se na literatura de Clarice, mas também é objeto a ser traduzido por ela em Quase de verdade.

Outro aspecto que nos chama a atenção, já no início do livro, é o destaque de Ulisses para uma ‘viagem’ a um quintal vizinho, de modo que relataria o que havia observado nessa incursão. O narrador apresenta-se como um observador do cotidiano, assim como a própria Clarice, reforçando a tese do alter ego. Clarice era também uma observadora do cotidiano e dos costumes - só que da classe média carioca. Ulisses interessava-se pelo próprio quintal, mas conservava o interesse pelas relações microssociais que podia observar. Aqui o seu quintal também emerge não como uma realidade específica, mas como um espelho das relações estabelecidas em sociedade em termos das noções de trabalho, propriedade, mais-valia e exploração, que ganham expressão com a sociedade urbanizada e industrial.

Buscando apresentar-se ao leitor, o narrador faz uma digressão no início do livro para que se crie uma imagem desse cachorro que conduzirá a história:

Antes de tudo quero me apresentar melhor. Dizem que sou muito bonito e sabido. Bonito, parece que sou. Tenho um pelo castanho cor de guaraná. Mas sobretudo tenho olhos que todos admiram: são dourados. Minha dona não quis cortar meu rabo porque acha que cortar seria contra a natureza. Dizem assim: ‘Ulisses tem olhar de gente’. [...] Mas sabido sou apenas na hora de latir palavras (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 51-52)

Quando Ulisses afirma que cortar o rabo do cachorro seria contra a natureza do animal, podemos retomar uma passagem na qual o narrador de O mistério do coelho pensante trata do que seria a ‘natureza’ do coelho. A natureza, na literatura infantil de Clarice, assume como significado aquilo que é inato, que não precisa ser aprendido, que a pessoa (ou o bicho) já traz consigo, ou, ainda, como “[...] o modo que ele tem de se ajeitar na vida” (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 71). Não ir contra a natureza do cachorro era, pois, aceitar a história filogenética do animal e o seu ‘modo de ser’. Tratava-se de respeitar a história daquela espécie. Por extensão, também se tratava de aceitar Clarice e suas rupturas ao longo da vida, suas vinculações fragmentadas e a própria dificuldade de se colocar no mundo, movimento este que, na literatura, ganha um lugar de legitimidade e de aparente conforto para a inquieta autora.

Esse respeito à espécie ou à natureza do bicho parecem paradoxais quando se apresenta o restante da frase: Ulisses tinha um olhar humano, de modo que a sua natureza, apesar de alinhada ao que se espera de um cachorro, era também próxima do que se espera de um humano. Essa natureza anfíbia, pois, transformaria esse narrador em uma figura que não apenas transita constantemente entre a realidade e a fantasia (‘quase de verdade’), mas que também oscila entre ser bicho e ser gente, entre os movimentos de humanização e de animalização. Ulisses conserva o pelo do bicho, o rabo do bicho, mas possui o olhar do humano, o que o conduz ao posto de observador. Observar a realidade em busca de uma inteligibilidade é uma característica essencialmente humana. Os animais também observam, mas possuem nisso objetivos bem pontuais, como acompanhar uma presa, à espreita, por exemplo. Ulisses não observava com um objetivo de bicho, mas como uma intenção humana: observar para compreender, observar para descrever.

Ulisses desconstrói a sua própria natureza ao afirmar que só era sabido para latir palavras. O cachorro, desse modo, coloca-se como um ser que narra por natureza e que se reconhece nessa posição, atribuindo-se valor e poder:

[...] Fora disso, sou um cachorro quase normal. Ah, esqueci de dizer que sou um cachorro mágico: adivinho tudo pelo cheiro. Isto se chama ter faro. [...] O que eu vou contar também parece coisa de gente, embora se passe no reino em que bichos falam. Falam à moda deles, é claro (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 52).

Em um reino em que os bichos falam, Ulisses é considerado normal, pois também fala, por meio dos seus latidos. O universo da fantasia apresenta-se como um contexto de desenvolvimento e, dentro dele, Ulisses possui características como as dos outros seres, notadamente dos animais. Como os animais falam, nesse mundo, o cachorro também pode falar. Essa fala, então, passa a ser parte de sua essência, ou melhor, de sua natureza.

Quase de verdade é uma história que trabalha, o tempo todo, com as polaridades do real e da fantasia. Seria aquilo tudo verdade? Obviamente que não. Mas o que seria mentira e o que seria verdade nessa narrativa? Não podemos saber. O ‘quase’ de verdade também pode se aproximar do ‘quase’ de mentira, brincando com o jogo de ‘dentro-e-fora’ (Lacan, 2001Lacan, J. (2001). L’Etourdit. In Autres écrits. Paris, FR: Édition du Seuil. Originalmente publicado em 1972.) também presente no hermético conto O ovo e a galinha. Ulisses brinca o tempo todo com essas posições, criando uma narrativa mágica, quer seja pelo conteúdo, quer seja pelo modo de dizer (latir) de uma outra forma aquilo que já existe. O seu latido, característica de sua espécie, era alçado à condição de fala. O seu olfato era interpretado como a sua magia que adivinhava o que estava por vir ou o que se apresentava bem diante dos olhos.

No livro, Ulisses estabelece um diálogo com as crianças. O tempo todo, ele se remete a elas para mantê-las envolvidas na história. A situação do impasse vivenciado pelas aves, de engolir ou não os caroços na jabuticaba, é compartilhada com as crianças-leitoras: “- Engole-se ou não se engole o caroço? Você, criança, pergunte isso à gente grande” (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 65). Ao solicitar que as crianças questionem os adultos sobre o ‘impasse’, Ulisses também promove a interpretação de que aquele problema não poderia ser solucionado por uma criança sozinha, nem mesmo por ele. Era preciso, pois, consultar o mundo adulto. Talvez, nesse momento, Ulisses também pudesse consultar Clarice, intentando uma resposta. Mas a compreensão de Clarice já estava posta, não precisava ser inquerida: “Enquanto isso, eu digo: - Au, au, au! E Clarice entende o que eu quero dizer: - Até logo, criança! Engole-se ou não se engole o caroço? Eis a questão” (Lispector, 2010Lispector, C. (2010). O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro, RJ: Rocco ., p. 65).

A interpretação de Clarice, nesse momento, capta a não-resposta ao impasse. Não era importante responder à questão, mas justamente afirmá-la enquanto pergunta passível de muitas respostas e, ao mesmo tempo, da não possibilidade de respondê-la. A intérprete, cúmplice de Ulisses, confirma apenas a possibilidade de continuar questionando, o que seria um exercício válido à condição humana, pois, enquanto humanos, não haveríamos de ter respostas para diversos impasses vivenciados ao longo da nossa existência. Ulisses concorda com essa dimensão do humano. Clarice, ao reafirmar a pertinência da pergunta, aproxima Ulisses da vivência da condição humana: ainda que não possamos responder a diversos impasses existenciais, a experiência humana consiste em continuar vivendo e perpetuando essas questões, a fim de que as mesmas nos aqueçam como seres incompletos, em constante tornar-se ou vir-a-ser. Esses aspectos serão melhor trabalhados na categoria a seguir.

Ulisses-intérprete de Clarice

Embora em Quase de verdade Clarice seja apresentada ao leitor como intérprete de Ulisses, em uma posição de aparente subalternidade, pode-se destacar que Ulisses, ao longo de sua história como cachorro tutorado por Clarice e também em suas menções em livros infantis e mesmo na ficção adulta da autora, como em Um sopro de vida (1999b), discute-se justamente a posição que este cachorro ocupa como intérprete de Clarice. Há, pelo menos, duas possibilidades de compreensão dessa tese que compartilharemos neste estudo em tela.

A primeira possibilidade refere que, nessa posição de intérprete, Ulisses não se compromete em tornar inteligível aquilo que Clarice lhe dita, mas transcreve para o seu mundo animal, de bicho, o que Clarice narra em suas histórias. Tratar-se-ia, por similaridade, em tornar o que Clarice escreve em algo que pudesse ser ‘compreendido’ pelo animal. Trazer para a gramática do bicho as narrativas de Clarice seria uma forma de estabelecer uma via de mão dupla na comunicação desses universos, o humano e o animal. Ulisses, assim, também compreenderia Clarice. Essa compreensão dar-se-ia fundamentalmente pelo mundo dos sentidos, pelo olhar, pelo faro, pelo rabo que se abana, pelas travessuras como fazer xixi no tapete e provocar a autora, como narrado em Quase de verdade. Nessa metáfora, Ulisses compreenderia Clarice e, portanto, de algum modo, Clarice também compreenderia a si mesma.

Em uma segunda possibilidade interpretativa, destaca-se que Ulisses possa ser intérprete de Clarice justamente por reconhecer, na autora, a sua natureza animalesca, básica, igualmente selvagem, capaz de morder até mesmo o dono/tutor, como fizera Ulisses com Clarice na vida real. Ulisses, em seu olhar de observador do cotidiano, lançaria à Clarice os seus questionamentos: e então, pode-se ou não engolir o caroço? Em sua natureza selvagem, o que fazer? Olhando para Clarice, cheirando a sua dona e observando o seu comportamento, a ‘sua natureza’, Ulisses inauguraria uma interpretação original de Clarice, descolada de seu intelecto e de sua natureza de escritora de renome. Apenas os animais podiam se reconhecer pelo olhar, pelo faro, pela presença.

Em apoio a essa segunda possibilidade, Clarice se autointitula ‘bicho’ para as crianças que a entrevistam. Na epígrafe que abre o presente estudo, com humor, Clarice reconhece-se no mito do centauro, metade bicho, metade humana. Mas, em Clarice, essas duas ‘naturezas’ não estariam separadas, como no centauro, mas justamente misturadas, sendo complexa a tarefa de separá-las para uma análise mais cartesiana. A ‘força selvagem’ de Clarice, reconhecida - e aceita - por Ulisses, abriria espaço para uma nova interpretação da autora sem os rebuscamentos (e, possivelmente, distanciamentos) de uma análise literária ou psicológica, por exemplo. Tratava-se, a exemplo do que postulava Winnicott (1994Winnicott, D. W. (1994). Agressão. In Privação e delinquência (p. 89-96). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1939.), de reconhecer e de tolerar essa agressividade, essa destrutividade, essa força desmedida. Ulisses era, pois, o intérprete de uma Clarice essencialmente bicho e, por isso mesmo, essencialmente humana.

Ainda que não esteja presente na escrita de livro, um signo que pode ser trazido à baila na compreensão da relação entre Clarice e Ulisses é a ilustração de Flor Opazo para a edição de 2010 do livro O mistério do coelho pensante e outros contos, publicado pela Editora Rocco. Este livro traz a reunião de quatro livros de Clarice: O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura e Quase de verdade. Nesse livro, Ulisses é representado com olhos amendoados que lembram os de Clarice. Assim, é visível que Ulisses possui (ou é representado) com ‘os olhos de Clarice’ ou com ‘o olhar de Clarice’. Também em sua biografia há espaço para a narrativa do olhar da autora: “Pessoas que a conheceram volta e meia a comparavam com um bicho, em geral um felino: elegante, inescrutável, potencialmente violento” (Moser, 2009Moser, B. (2009). Clarice (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 80). Clarice, por extensão, estaria ‘presente’ em Ulisses. Clarice e Ulisses, vértices de um mesmo eu, humano e animal, emotivo e racional, domesticado e selvagem: centauro. Essa metáfora do ‘dentro-e-fora’, remetendo à Lacan (2001Lacan, J. (2001). L’Etourdit. In Autres écrits. Paris, FR: Édition du Seuil. Originalmente publicado em 1972.), conferiria à autora uma certa integração na imagem de uma Clarice-bicho.

Essa interpretação nos remete à topologia lacaniana, que atesta que, no nível da enunciação, não haveria distinção entre o avesso e o direito, ou seja, que o inconsciente revelar-se-ia no dizer (Lacan, 2001Lacan, J. (2001). L’Etourdit. In Autres écrits. Paris, FR: Édition du Seuil. Originalmente publicado em 1972.). Dentro-e-fora, consciente-e-inconsciente, domesticado-selvagem fariam, por extensão, parte de uma mesma estrutura. A relação simbiótica Clarice-Ulisses parece se remeter a essa imagem, complementando-se em corpos que narram identificações, aproximações e facetas de dois eus que se produzem em parceria, um acompanhando o outro, um podendo narrar o outro porque justamente o conhece, o vive em sua própria carne.

A partir dessa imagem, preenchem-se os espaços e as lacunas associadas a uma possível fragmentação de Clarice. Não é por ser fragmentada que Clarice busca a narrativa ‘do’ e ‘pelo’ cão, como se quisesse se esconder por trás de seu alter ego, mas é por justamente aceitar a sua condição dual que ela poderia narrar uma experiência mais integrativa, possivelmente abrindo campo para a remalhagem de vínculos anteriores considerados disruptivos (Benghozi, 2010Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social (E. D. Galery, trad.). São Paulo, SP: Vetor.). Posto isso, reafirma-se a consideração de Ulisses como intérprete de Clarice, capaz de lançar luz a uma compreensão mais básica da autora e, possivelmente, mais próxima de uma ‘quase verdade’. Por que o enigma, apesar de tudo, haveria de ser mantido: eis a questão.

Considerações finais ‘ou’ Clarice-intérprete de Ulisses

A partir do que foi discutido neste estudo, sustenta-se a interpretação acerca da relação simbiótica entre Clarice e Ulisses, sendo que estes representam vértices de um mesmo eu. Assim, tanto a consideração de que Clarice é uma intérprete de Ulisses como este emerge como um intérprete da primeira mostram-se válidas. Ulisses propõe a Clarice uma experiência concreta de viver que envolve o contato com sentimentos básicos, puros, selvagens, irracionais, que se cravam no corpo e nas sensações. A experiência do viver, do corpo-vivido que ocupa um espaço que se sobrepõe à tentativa de compreensão intelectual, a construção de uma inteligibilidade racional. Essa experiência vivencial, superior à compreensão cognitiva, não apenas é avivada por Ulisses, como torna-se base para a transmissão de uma de suas aprendizagens, retomando, metaforicamente, a posição do humano Ulisses em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres que abre o presente estudo.

Também no livro Um sopro de vida (1999b, p. 59), uma menção ao cachorro parece importante na tentativa de compreender a relação entre Clarice e Ulisses: “O meu cão me ensina a viver. Ele só fica ‘sendo’. ‘Ser’ é a sua atividade. E ser é a minha mais pura intimidade”. Embora o livro não se remeta à figura de Ulisses, esse ‘ser’ tomado como próximo nos remete ao conceito de intimidade trazido em A vida íntima de Laura, como algo que não se diz a qualquer pessoa, ou seja, que goza de um status secreto, de interdito. A atividade do cachorro, a de ‘ser’, demonstra proximidade com a corporificação do que nos é mais secreto. Assim, o intérprete de Clarice podia ser o guardião do que não pode ser dito a todos, que se passa no universo doméstico dos sentimentos, que se esconde, não por medo, mas por respeito à própria condição do ser e de preservar a sua intimidade.

Clarice deixa-se, assim, ser interpretada por Ulisses, que recebe a incumbência de guardar a intimidade da autora. Não se trata, pois, de um cão na acepção doméstica comum que promove a ludicidade ou mesmo a proteção material do lar. Ulisses é essencialmente humano. Ulisses é essencialmente corpo-vivente, superior a qualquer tentativa de leitura intelectual. Mostra-se, assim, uma figura duplamente necessária à Clarice: primeiramente à sua vida marcada por rupturas das quais o cão pode ser depositário e, de fato, sustentar esse lugar de desamparo, de destrutividade e de fracasso; posteriormente, à sua própria narrativa, permitindo à autora submergir a um lugar de difícil acesso como autora, em um itinerário no qual o cão pode ser seu condutor.

Cúmplice de sua subjetividade e daquilo que não se pode revelar, o cão ocupa uma posição de destaque não meramente como personagem que diz sobre a autora, mas como ser vivente que contribui para a construção do ser-Clarice, uma Clarice que almeja ser mais animalizada na tentativa de ocupar um lugar que, paradoxalmente, possa dar vazão à sua essência eminentemente selvagem e descontrolada, mas também ser uma possibilidade de remalhar vinculações e aplacar descontinuidades ao longo do seu itinerário como figura que se tece para além dos livros. É por não temer a própria animalidade que Clarice, enfim, pode se humanizar aos olhos de seus intérpretes.

Referências

  • Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação: psicanálise dos vínculos: casal, família, grupo, instituição e campo social (E. D. Galery, trad.). São Paulo, SP: Vetor.
  • Costa, C. B., & Freitas, L. F. (2017). A internacionalização de Clarice Lispector: história clariceana em inglês. Cadernos de Tradução, 37(2), 40-54.
  • De Mauro, M. (2018). Tanta vida mutua (mujeres y precariedad animal). Alea: Estudos Neolatinos, 20(2), 17-35.
  • Dias, E. O. (2000). Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento. Natureza Humana, 2(1), 9-48.
  • Dinis, N. F. (2003). Pedagogia e literatura: crianças e bichos na literatura infantil de Clarice Lispector. Educar em Revista, 21, 271-286.
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  • 3
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  • 4
    Entrevista concedida a Júlio Lerner para a TV Cultura, poucos meses antes da autora morrer, em 1977.
  • 5
    Entrevista concedida ao MIS-RJ em 20 de outubro de 1976 e recuperada na biografia escrita por Gotlib (2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2019
  • Aceito
    18 Jul 2020
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