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Desafios de uma intervenção com base numa perspectiva crítica em Psicologia Escolar

Challenges of an intervention on a critical perspective in School Psychology

Desafios de una intervencíon con base en una perspectiva crítica en Psicología Escolar

RELATO DE PRÁTICA PROFISSIONAL

Desafios de uma intervenção com base numa perspectiva crítica em Psicologia Escolar

Challenges of an intervention on a critical perspective in School Psychology

Desafios de una intervencíon con base en una perspectiva crítica en Psicología Escolar

Ana Karina Amorim Checchia

Correspondência Correspondência Ana Karina Amorim Checchia Rua Acopiara, 79, apto 703 CEP 0583-110 – Alto da Lapa São Paulo – SP

Este relato baseia-se na experiência de trabalho de uma equipe de psicólogos escolares realizado entre os anos 2000 e 2002 em um projeto desenvolvido em uma escola pública de Ensino Fundamental localizada em uma favela na cidade de São Paulo. A estrutura dessa atuação fundamenta-se, principalmente, na experiência de estágio realizado pelos membros dessa equipe durante a Graduação em Psicologia, bem como na leitura de textos de autores que contribuem para a elucidação de uma perspectiva crítica em Psicologia Escolar – Patto (1981,1984,1996), Machado e Souza (1997) e Tanamachi, Proença e Rocha (2000). Será descrito, neste relato, o desafio de se efetivar uma atuação coerente com os princípios teóricos e metodológicos dessa abordagem, brevemente contextualizada a seguir.

O movimento crítico em Psicologia Escolar, no Brasil, foi intensificado a partir do final dos anos 1970 e início de 1980 com a publicação de textos produzidos por Maria Helena Souza Patto (1981,1984), em que a autora denuncia a naturalização e o caráter ideológico presentes em concepções e práticas no campo da Psicologia. Com base nos fundamentos do pensamento marxista e nos princípios do materialismo histórico dialético, Patto enfatiza a constituição social e histórica dos fenômenos escolares e explicita a complexidade de fatores implicados no processo educacional, como elementos sociais, históricos, institucionais, políticos e ideológicos (Patto, 1981, 1984). O pensamento crítico envolve, portanto, a investigação das raízes dos fenômenos estudados, em oposição à sua naturalização (Patto, 1981). Esse referencial teórico embasou nossas estratégias de intervenção na escola.

O primeiro desafio encontrado em nosso trabalho consistiu em romper com a concepção hegemônica socialmente difundida sobre a atuação do psicólogo. De modo geral, os profissionais da escola apresentaram a expectativa de que nossa função consistisse em avaliar, diagnosticar e atender individualmente as crianças com "problemas de aprendizagem". Percebe-se, portanto, a influência do modelo clínico tradicional, endossado por psicólogos no meio acadêmico, reiterado pelos meios de comunicação e proferido no senso comum. A imagem apresentada pelos profissionais da escola deve ser, então, contextualizada. Além disso, a inserção do psicólogo na escola produz efeitos no contexto escolar e nas pessoas que vivenciam a vida diária nessa instituição. Compreender esses efeitos e interferir nesse processo é outro grande desafio.

O objetivo de nosso trabalho consistia em investigar a versão que as pessoas envolvidas no processo de escolarização da criança encaminhada apresentavam sobre a queixa escolar a fim de analisar a produção dessa queixa e contribuir para a sua ruptura.

Inicialmente, os professores preenchiam uma "ficha de encaminhamento" com informações sobre o processo de escolarização de cada aluno que indicavam para participar deste trabalho. Nesta ficha, informavam a queixa escolar apresentada em relação ao aluno e explicitavam suas hipóteses acerca do que a estaria produzindo.

De modo geral, as queixas escolares referiam-se a "problemas de aprendizagem" (como, por exemplo: "é lento, não consegue aprender, não memoriza, não se concentra") ou ao comportamento (principalmente indisciplina). As hipóteses revelavam a influência das tradicionais explicações sobre o fracasso escolar descritas por Maria Helena Souza Patto (1996), como as teorias da carência cultural, da aptidão natural, ambientalistas ou organicistas. Desse modo, apresentavam-se argumentos como "não aprende porque a família é desestruturada, os pais não incentivam, é pobre, carente, não é inteligente ou tem algum problema na cabeça".

Conversávamos individualmente com os professores sobre cada item descrito na ficha e explicávamos a estrutura do trabalho, ressaltando que não faríamos um atendimento com o aluno isoladamente e, sim, uma intervenção fundamentada na participação de todos os envolvidos nesse processo. Diante disso, realizávamos encontros em grupo e individuais com professores, pais e alunos.

Nos encontros individuais com os professores, analisávamos o processo de escolarização dos alunos encaminhados e os aspectos que se destacavam ao longo trabalho desenvolvido com essas crianças. Além disso, realizávamos encontros de discussão em grupo com os professores para refletir sobre um determinado tema escolhido por eles (como, por exemplo, indisciplina) com base em textos acadêmicos que contribuíssem para sua fundamentação teórica, bem como na troca de experiências e estratégias utilizadas pelos próprios participantes do grupo. Durante esse processo, buscávamos propiciar a ruptura de preconceitos e estereótipos (inclusive os nossos) que se constituem no contexto escolar.

Um aspecto relevante na relação com os professores é o estabelecimento de uma parceria, ou seja, de um vínculo pautado na mútua colaboração e no reconhecimento dos recursos do outro. Ao assumir a posição de detentor do saber, com uma postura de superioridade, calcada na atribuição de uma imagem pejorativa aos professores, os psicólogos produzem um distanciamento entre ambos, o que pode ser intensificado diante da concepção de que os professores seriam responsáveis (ou culpados) pelo fracasso escolar. Nesse trabalho, os professores são importantes parceiros para a reflexão e problematização da queixa escolar. A compreensão da complexidade de fatores implicados nesse processo e o questionamento acerca dessa culpabilização são fundamentais para o trabalho do psicólogo escolar e seu relacionamento com os profissionais da Educação.

O objetivo dos encontros em grupo com os alunos consistia em propiciar um espaço distinto da sala de aula, em que as crianças pudessem vivenciar, por meio de atividades lúdicas, situações em que expressavam suas potencialidades, recursos, saberes e conquistas, em oposição à falta, à sensação de impotência e de não saber. Além disto, investigávamos o modo como lidavam com desafios presentes no contexto educacional. Durante esse processo, realizávamos encontros individuais com esses alunos a fim de conversar sobre seu processo de escolarização e aspectos que se destacavam nos encontros em grupo. Desse modo, resgatávamos com os alunos seu histórico escolar, sua versão sobre a queixa e a experiência escolar (incluindo sua relação com os professores e colegas) e visávamos contribuir para o questionamento dos rótulos que lhes eram atribuídos.

Os encontros individuais com os pais poderiam ocorrer tanto no interior da escola quanto em visitas domiciliares. Conversávamos sobre suas versões e hipóteses acerca da queixa escolar atribuída a seus filhos, bem como sobre o processo de escolarização de modo geral. Entrávamos em contato com elementos da vida das crianças em um ambiente distinto da escola e, muitas vezes, com recursos e habilidades cuja expressão não era possibilitada nas instituições escolares. Nos encontros em grupo com os pais, discutíamos temas referentes ao contexto escolar e à relação entre pais e filhos ou pais e escola.

Realizávamos, eventualmente, encontros com pais, professores e alunos (juntos), ou com outros profissionais da escola (coordenadores, diretora), membros da equipe interdisciplinar de nosso projeto ou psicólogos de postos de saúde que haviam atendido as crianças, profissionais de outras instituições de que os alunos participavam (como uma ONG prestadora de serviços àquela comunidade) ou do Conselho Tutelar, caso fosse pertinente para a realização de nossa intervenção.

Ao final do processo, redigíamos um relatório em que constavam aspectos centrais dos encontros realizados e fazíamos uma leitura com cada participante, o qual poderia alterar ou acrescentar informações a esse documento, que ficava arquivado na escola.

Vivenciamos, ao longo desse trabalho, momentos de conquistas e frustrações, deparando-nos com alcances e limites da atuação do psicólogo escolar no interior de um sistema educacional desprovido de recursos e investimentos públicos. Possibilitar o questionamento e a reflexão de hipóteses naturalizadas sobre a queixa e o fracasso escolar e, ainda, lidar com as limitações de uma intervenção diante de "uma política educacional que tem na base o descaso pela boa qualidade da escola para o povo" (Patto, 2005, p.19) consistem em grandes desafios da atuação do psicólogo escolar em uma perspectiva crítica.

Recebido em: 04/10/2010

Aprovado em: 26/11/2010

Sobre a autora

Ana Karina Amorim Checchia (anakarinaac@yahoo.com.br)

Universidade de São Paulo, São Paulo – SP

  • Machado, A. M., & Souza, M. P. R.de (Orgs.). (1997). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos São Paulo: Casa do Psicólogo
  • Patto, M. H. S. (1981). Introdução à Psicologia Escolar São Paulo: T.A. Queiroz.
  • Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar São Paulo: T.A. Queiroz.
  • Patto, M. H. S. (1996). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia (3a ed.). São Paulo: T.A. Queiroz.
  • Patto, M. H. S. (2005). Exercícios de indignação: escritos de Educação e Psicologia São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Tanamachi, E. de R., Proença, M., & Rocha, M. (2000). Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Correspondência
    Ana Karina Amorim Checchia
    Rua Acopiara, 79, apto 703
    CEP 0583-110 – Alto da Lapa
    São Paulo – SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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