Acessibilidade / Reportar erro

A PSICOLOGIA ESCOLAR E EDUCACIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA

Este ano a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE comemora 30 anos. Ela foi fundada em 1990 por um grupo de psicólogos interessados em congregar os estudiosos e profissionais da área, visando o reconhecimento legal da necessidade do psicólogo escolar nas instituições de ensino, bem como estimular e divulgar pesquisas no campo da Psicologia Escolar e Educacional.

A Revista Psicologia Escolar e Educacional foi criada em 1996, pela ABRAPEE, coerente com os objetivos da associação, para a divulgação dos conhecimentos que estão sendo produzidos na área. Basta a leitora e o leitor consultarem os sumários das revistas, em todos esses anos, para constatarem que as/os autoras/es dos artigos apresentavam, em seus trabalhos, temáticas atreladas às necessidades históricas gestadas na sociedade, no âmbito da Psicologia e da Educação. Como afirmam Marx e Engels (2007Marx, K.; Engels, F. (2007). A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo. (Trabalho originalmente publicado em 1932)., p. 43) “as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias”. Foi, portanto, o contexto histórico que conduziu pesquisadoras/es, profissionais, professoras/es e estudantes a nos brindarem com discussões tão importantes publicadas nesses anos.

Fazer 30 anos nos traz muita alegria, orgulho por termos uma Psicologia que defende a emancipação humana, que luta pela igualdade de direitos aos bens materiais e culturais, entre outras defesas em prol do processo de humanização. No entanto, na esteira das contradições que permeiam o cotidiano, o momento de júbilo também se compõe de sentimentos contraditórios.

Alegria pelo aniversário de três décadas, mas tristeza pela situação atual em que vivemos devido à pandemia de COVID-19. Até o momento tivemos cerca de 160 mil mortos. Famílias enlutadas, sofrimento das pessoas que precisam continuar a luta diária de sobrevivência sem os seus entes queridos. Em matéria publicada pelo NUPENS/USP, 1 1 Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública. Recuperado em 30 de outubro de 2020 de http://www.fsp.usp.br/nupens/covid-19-nao-e-apenas-uma-pandemia-e-seu-contexto-e-relacionado-a-alimentacao-diz-lancet/ lemos que o editor-chefe da revista científica britânica Lancet, Richard Horton, fez um alerta de que atualmente.

o mundo vive duas situações na saúde: as infecções pelo coronavírus e uma série de doenças crônicas não transmissíveis. [...] ambas as condições atingem grupos sociais, e isso ocorre de acordo com os padrões de desigualdade profundamente enraizados em nossas sociedades. Desta forma, a revista classifica a covid-19 como uma sindemia (basicamente, uma sinergia de epidemias), o que exige uma ação muito mais ampla para proteger a saúde das comunidades. [...] conceito de sindemia, criado por Merrill Singer, pesquisador da área da antropologia médica, nos anos 1990. Em 2017, o termo voltou às páginas do Lancet, quando Singer afirmou que o termo revela interações sociais e biológicas importantes em prognósticos, tratamentos e na construção de políticas públicas de saúde. “Limitar os danos causados pelo SARS-CoV-2 é uma ação que demanda uma atenção muito maior às doenças crônicas e à desigualdade socioeconômica”, escreveu Horton, frisando que temas como educação, trabalho, moradia, alimentação e meio ambiente devem ser considerados. (Nupens/USP, 2020NUPENS/USP. (2020). Covid-19 não é apenas uma pandemia, e seu contexto é relacionado à alimentação, diz Lancet. Recuperado em 30 de outubro de 2020 de http://www.fsp.usp.br/nupens/covid-19-nao-e-apenas-uma-pandemia-e-seu-contexto-e-relacionado-a-alimentacao-diz-lancet/Peixoto, F. (1991). Brecht, vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1991.
http://www.fsp.usp.br/nupens/covid-19-na...
).

Todas essas considerações levam-nos a pensar sobre a dimensão política da doença e do adoecimento, sobre o fato de a Covid-19 ter evidenciado as condições precárias e desumanas em que vive grande parte da população brasileira, com impactos também no acesso às informações científicas (e à devida compreensão destas) e nos modos de enfrentamento da doença. Infelizmente, temos visto que essa compreensão adequada da ciência não está relacionada apenas à condição socioeconômica, mas à possibilidade de cada sujeito, em seu processo de escolarização, ter a possibilidade de se apropriar de conceitos científicos e desenvolver suas funções psicológicas superiores (Vygotski, 1993Vygotski, L. S. (1993). Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor.). Ademais, para Vygotski (1993)Vygotski, L. S. (1993). Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor., a formação de conceitos científicos possibilita níveis mais elevados de tomada de consciência.

Tivemos também, nos últimos anos, mudanças na legislação trabalhista, que retiraram dos trabalhadores direitos conquistados historicamente. Perda de direitos, que como afirma Praum (2020)Praun, L. (2020). A Espiral da Destruição: legado neoliberal, pandemia e precarização do trabalho. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00297129. Recuperado em 12 de outubro de 2020 de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462020000300306&lng=en&nrm=iso
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, tem se intensificado com a pandemia e causado adoecimento dos professores. Zaidan e Galvão (2020Zaidan, J. M.; Galvão, A. C. (2020). Covid-19 e os abutres do setor educacional: a superexploração da força de trabalho escancarada. In: Augusto, C. B.; Santos, R. D. S. (Orgs.), Pandemias e pandemônio no Brasil. (pp. 261-278). São Paulo: Tirant lo Blanch. , p. 263), nesta linha de raciocínio, destacam que o modo de produção capitalista já tem natureza genocida; desta forma, a crise vivida na atualidade apenas expõe mais a exploração dos trabalhadores. Exploração esta vivenciada, conforme as autoras, também entre os professores, com o trabalho remoto, intensificando a mercantilização da educação.

Nos primeiros dias de Pandemia, foi publicada pelo Ministério da Educação (MEC) a Portaria nº 343/2020, de 18 de março de 2020, que dispõe sobre “substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19” (Brasil, 2020Brasil. (2020). Portaria n. 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição de aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus-COVID-19. Recuperado em 30 de outubro de 20120, de Recuperado em 30 de outubro de 20120, de https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
). Outras decisões, após esta primeira, foram tomadas pelo MEC em relação ao ensino remoto, que vem se efetivado desde março no Brasil. Tais medidas estão sendo necessárias, mas sabemos os problemas que estamos enfrentando em relação a isso, desde a inabilidade dos professores de lidarem com as novas tecnologias de ensino por meio digital, como o crescimento da desigualdade de apropriação às informações, quando elevado número de estudantes não tem à disposição equipamentos e internet que possibilitam ter acesso às aulas. Além dessas questões objetivas, não podemos deixar de mencionar o comprometimento que o ensino remoto traz na relação professor aluno, quando partimos da ideia, conforme propõe Vigotski (2001Vigotski, L. S. (2001). Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes.), de que existe uma unidade entre cognição e afeto. A luta pelo direito a uma educação de qualidade, de realização de um trabalho promotor de desenvolvimento humano do professor, faz-se presente.

Essa luta pela qualidade do ensino também esteve e está presente na área da Psicologia Escolar e Educacional. No final de 2019, as categorias da Psicologia e Serviço Social aprovaram, com o apoio quase unânime das bancadas na Câmara dos Deputados, a Lei 13.935/2019 que dispõe sobre os serviços de Psicologia e Serviço Social na Educação Básica, após derrubar o veto ao PL dado pelo Presidente Bolsonaro. Foram 19 anos de luta, com a participação ativa da ABRAPEE, para a inserção da Psicologia na Educação Básica.

Em agosto de 2019 foram editadas as Novas Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica (CFP, 2019Conselho Federal de Psicologia. (2019) Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Brasília: CFP.). Em 2020 o Conselho Federal de Psicologia (2020) publicou um documento de orientações para a Regulamentação da Lei 13.935/2019Conselho Federal de Psicologia. (2020). A(o) psicóloga(o) e a(o) assistente social na rede pública de educação básica: orientações para a regulamentação da Lei 13.935, de 2019. Brasília: CFP ., que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de Educação Básica. Esses documentos, entre outros, servem como orientação para a atuação da/o psicóloga/o no âmbito da educação e também podem auxiliar como subsídio para a regulamentação da lei nos estados e municípios.

Como podemos ver, conquistas e sofrimentos permeiam este último ano. O ano de 2020 está sendo atípico. Não sabemos se “atípico” é o termo mais correto. Talvez “emblemático” ou “diferente” possa ser mais adequado. Fala-se que estamos vivendo um “novo normal”, “novo” em alguns sentidos, mas “normal” em uma sociedade que explora cada vez mais os trabalhadores e que teima em desvalorizar o conhecimento científico, a educação, o trabalho do professor, a arte e a cultura, ou seja, o ser humano, de forma ampla.

Estamos em crise. Mas o que é a crise? Ao tratar da periodização do desenvolvimento humano, Vygotski (1996Vygotski, L. S. (1996). Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor .) fala que a crise pode levar a neoformações. A mudança de um estágio de desenvolvimento a outro requer negar o que existe, buscar novas formas de relação com a realidade, criar uma outra atividade guia, superar comportamentos de determinado período. Talvez seja isso que estamos vivendo agora: precisamos levar em conta a historicidade, negar aquilo que tem obliterado o desenvolvimento humano, superar determinadas situações em busca de um novo homem. Esse percurso é um processo revolucionário e demanda muita luta para transformar as condições objetivas e subjetivas presentes na sociedade.

A produção científica não tem o poder de mudar a realidade, mas pode mudar a consciência daqueles cuja leitura dos artigos auxilie a compreender a realidade na sua essência e não somente na aparência. Transformando a consciência, cada sujeito pode auxiliar na luta coletiva pela transformação da situação de aviltamento vivida pelo ser humano em todas as esferas, entre elas a educação.

Em tempos sombrios, não podemos nos calar. Temos que utilizar as letras, as palavras, entre outras ações políticas, para não nos conformamos à situação de desumanização. Como afirma Bertolt Brecht, “Quem não sabe a verdade é estúpido e mais nada. Mas quem sabe, e diz que é mentira, esse é um criminoso.” (1991Brecht, B. (1991). A vida de Galileu. In: Brecht, B. Teatro completo. (pp. 51-170). 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. , p. 102). Continuando com a fala do autor concluímos este editorial afirmando o seguinte: “Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la”. Desejamos que os artigos publicados neste periódico contribuam com a reflexão e transformação das problemáticas vividas na Psicologia e na Educação.

REFERENCES

  • Brasil. (2020). Portaria n. 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição de aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus-COVID-19 Recuperado em 30 de outubro de 20120, de Recuperado em 30 de outubro de 20120, de https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376
    » https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376
  • Brecht, B. (1991). A vida de Galileu. In: Brecht, B. Teatro completo (pp. 51-170). 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Conselho Federal de Psicologia. (2019) Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica Brasília: CFP.
  • Conselho Federal de Psicologia. (2020). A(o) psicóloga(o) e a(o) assistente social na rede pública de educação básica: orientações para a regulamentação da Lei 13.935, de 2019 Brasília: CFP .
  • Marx, K.; Engels, F. (2007). A ideologia alemã Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo. (Trabalho originalmente publicado em 1932).
  • NUPENS/USP. (2020). Covid-19 não é apenas uma pandemia, e seu contexto é relacionado à alimentação, diz Lancet. Recuperado em 30 de outubro de 2020 de http://www.fsp.usp.br/nupens/covid-19-nao-e-apenas-uma-pandemia-e-seu-contexto-e-relacionado-a-alimentacao-diz-lancet/Peixoto, F. (1991). Brecht, vida e obra Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1991.
    » http://www.fsp.usp.br/nupens/covid-19-nao-e-apenas-uma-pandemia-e-seu-contexto-e-relacionado-a-alimentacao-diz-lancet/Peixoto
  • Praun, L. (2020). A Espiral da Destruição: legado neoliberal, pandemia e precarização do trabalho. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00297129. Recuperado em 12 de outubro de 2020 de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462020000300306&lng=en&nrm=iso
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462020000300306&lng=en&nrm=iso
  • Vigotski, L. S. (2001). Psicologia Pedagógica São Paulo: Martins Fontes.
  • Vygotski, L. S. (1993). Obras escogidas Tomo II Madrid: Visor.
  • Vygotski, L. S. (1996). Obras escogidas Tomo IV Madrid: Visor .
  • Zaidan, J. M.; Galvão, A. C. (2020). Covid-19 e os abutres do setor educacional: a superexploração da força de trabalho escancarada. In: Augusto, C. B.; Santos, R. D. S. (Orgs.), Pandemias e pandemônio no Brasil (pp. 261-278). São Paulo: Tirant lo Blanch.
  • 1
    Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública. Recuperado em 30 de outubro de 2020 de http://www.fsp.usp.br/nupens/covid-19-nao-e-apenas-uma-pandemia-e-seu-contexto-e-relacionado-a-alimentacao-diz-lancet/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Rua Mirassol, 46 - Vila Mariana , CEP 04044-010 São Paulo - SP - Brasil , Fone/Fax (11) 96900-6678 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@abrapee.psc.br