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AUTONOMIA E TUTELA NO AMBIENTE ESCOLAR

Autonomía y tutela en el ambiente escolar

RESUMO

O tema da autonomia está presente desde os primórdios da educação. Na sociedade atual, a autonomia estudantil nas práticas escolares pode determinar a participação política e social dos jovens. O presente estudo busca problematizar autonomia e tutela na educação formal a partir de revisão integrativa da literatura científica. A proposta implica contextualizar os referidos conceitos, traçando um cenário histórico a partir do qual se delineiam as práticas educativas que tangem autonomia e tutela. O trabalho inclui a análise de onze artigos científicos publicados na base de dados Portal Periódicos Capes entre os anos 2000 e 2019. Os resultados apontam para três eixos: a construção dos conceitos de autonomia e tutela a partir de uma trajetória histórica e filosófica; a análise crítica da sociedade a partir de orientações políticas; e, por fim, a relação entre o caráter político de autonomia e tutela e as práticas educacionais que emergem do cotidiano escolar.

Palavras-chave:
autonomia; educação; revisão de literatura

RESUMEN

El tema de la autonomía está presente desde los primordios de la educación. En la sociedad actual, la autonomía estudiantil en las prácticas escolares puede determinar la participación política y social de los jóvenes. En el presente estudio se busca problematizar autonomía y tutela en la educación formal a partir de revisión integrativa de la literatura científica. La propuesta implica contextualizar los referidos conceptos, trazando un escenario histórico desde el cual se delinean las prácticas educativas acerca de la autonomía y tutela. En el estudio se incluye el análisis de once artículos científicos publicados en la base de datos Portal Periódicos Capes entre los años 2000 y 2019. Los resultados apuntan a tres ejes: la construcción de los conceptos de autonomía y tutela a partir de una trayectoria histórica y filosófica; el análisis crítico de la sociedad a partir de orientaciones políticas; y, por fin, la relación entre el carácter político de autonomía y tutela y las prácticas educacionales que emergen del cotidiano escolar.

Palabras clave:
autonomía; educación; revisión de literatura

ABSTRACT

The theme of autonomy has been present since the beginnings of education. In today’s society, student’s autonomy in school practices can determine the political and social participation of young people. This study seeks to problematize autonomy and tutelage in formal education from an integrative review of scientific literature. The proposal implies contextualizing these concepts, tracing a historical scenario from which educational practices that relate to autonomy and tutelage are delineated. The work includes the analysis of eleven scientific articles published in the Portal Periódicos Capes database between 2000 and 2019. The results point to three axes: the construction of the concepts of autonomy and tutelage from a historical and philosophical trajectory; critical analysis of society based on political guidelines; and, finally, the relationship between the political character of autonomy and tutelage and the educational practices that emerge from everyday school life.

Keywords:
autonomy; education; literature review

INTRODUÇÃO

A história da educação escolar no Brasil expressa, numa linha não tão evidente de sua trajetória, a relação entre dois vetores que compõem, talvez, o motor do propósito educacional. Entre a autonomia e a tutela, move-se grande parte das práticas educacionais que se observa no ambiente escolar.

Do Período Clássico à Modernidade o tema da autonomia do educando é abordado. Desde a Paidéia ateniense, cuja educação prevê a integração entre cultura e sociedade através da formação política, à concepção iluminista de educação como proposta pedagógica de emancipação a partir da razão, especialmente em Kant, prevalece o ideal de construção do homem por meio da educação com ênfase na importância da formação autônoma (Mendonça & Filho, 2012Mendonça, S.; Filho, A. L. (2012). A Autonomia do aluno nas concepções clássica e iluminista de educação. Educação e Filosofia. 26(51), 25-46. https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.issn.0102-6801.v26n51a2012-p25a46.
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). Logo, a escolarização que surge da Modernidade, como proposta educativa resultante do período da Ilustração, se apresenta como promotora de uma formação que busca, através do uso da razão, o exercício pleno da liberdade.

Tal conquista, possibilitada pela projeção da racionalidade moderna no âmbito da ciência, estaria relacionada a um desenvolvimento da moralidade individual que, como consequência, traria avanços sociais para a humanidade (Lima, 2002Lima, J. F. L. de. (2002). O sujeito, a racionalidade e o discurso pedagógico da modernidade.Interações ,7(14), 59-84. Recuperado de:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-29072002000200004.
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). A escola Moderna se tornaria, ao longo da história, um lugar de preparação para a fase adulta, em que educar consiste em conduzir o outro para a maioridade. A experiência da infância ganha, com isso, sentido pejorativo frente aos ideais iluministas de emancipação, à medida que projeta a autonomia do indivíduo na maioridade (Kohan, 2003Kohan, W. O. (2003). Infância. Entre a Educação e a Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica.). De fato, a concepção de infância como sendo uma fase, mesmo que transitória, inapta à vida pública, está relacionada às origens da tutela na educação (Mattos, Péres, Almada, & Castro, 2013Mattos, A. R.; Péres, B. C.; Almada, C. V. R.; Castro, L. R. (2013). O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho, 369-377. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a24.pdf.
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).

Autonomia é um conceito histórico, que envolve a ideia de participação política e social do sujeito (Martins, 2002Martins, A. M. (2002). Autonomia e educação: a trajetória de um conceito.Cadernos de Pesquisa, (115), 207-232. Recuperado de:https://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000100009
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). Estudar a autonomia juvenil no âmbito da educação implica considerar não apenas a incidência direta do estudante na própria formação, mas também a sua participação nos processos de construção e atualização da tecnologia própria do dispositivo de formação escolar: o sistema educacional. Problematizar o sistema educacional na sociedade atual é, talvez, uma consequência necessária, ao se discutir autonomia estudantil nas práticas escolares. A forma como a relação entre autonomia e tutela incide nessas práticas é resultado dos discursos produzidos a partir da apropriação dos conceitos que remetem ao binômio, em sua articulação política e social, que, por sua vez, vincula-se à construção histórica, filosófica e, paralelamente, à formação moral do homem.

Conforme o estudo de Saviani (1997Saviani, D. (1997). Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação e política (31. ed.). Campinas, SP: Autores Associados.), desenvolveram-se historicamente grupos de teorias educacionais, opostas entre si, referente à função social da escola, que acabaram por conduzir políticas educacionais implementadas ao longo dos últimos séculos. No primeiro grupo, as teorias não-críticas, que defendem a pedagogia tradicional, concebem a autonomia da educação formal, no contexto de uma sociedade harmônica, na função de promover a igualdade social. Um segundo grupo inclui as teorias crítico-reprodutivistas que, diferentemente, concebem a escola como um instrumento político de exclusão social. Nesse caso, a autonomia escolar em relação à transformação social se reduz, já que a desigualdade se projeta como fenômeno ligado à própria estrutura social.

Para Veiga-Neto (2008Veiga-Neto, A. (2008). Crise da Modernidade e inovações curriculares: da disciplina para o controle.Revista Sísifo: Revista de Ciências da Educação. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa , n. 7, set./dez.), que trabalha no campo dos estudos pós-modernos em educação, o processo de institucionalização da educação no Brasil é acompanhado pela gradual estruturação escolar nos aspectos humano, material e discursivo. Tal processo constitui a base da construção acerca do saber pedagógico, bem como, dos conceitos de educação, sujeito e sociedade. Nesse sentido, o traço da escolarização no sujeito, assim como seu efeito em uma sociedade, tem relação intrínseca com o papel social que a educação formal exerce.

Este artigo tem como objetivo problematizar os conceitos de autonomia e tutela no ambiente escolar, a partir do que se vêm discutindo em produções científicas. A literatura recente inclui propostas distintas, que abrangem a abordagem conceitual e a prática na relação entre autonomia, educação e sociedade. Com base no corpus encontrado, três categorias foram criadas, tendo como base as abordagens identificadas nos artigos, na composição a seguir: os que focam na construção dos conceitos de autonomia e tutela, a partir de uma trajetória histórica e filosófica; os que partem dessas construções para realizar análises críticas da sociedade e, com isso, propor a discussão do tema a partir de orientações políticas; e, por fim, os estudos que buscam fazer a relação entre a perspectiva política dos conceitos de autonomia e tutela e as práticas educacionais que surgem no cotidiano do ambiente escolar.

METODOLOGIA

O presente trabalho consiste em uma revisão integrativa acerca dos conceitos de autonomia e tutela na educação. O estudo foi conduzido pela seguinte questão norteadora: de que forma a literatura científica tem abordado autonomia e tutela no ambiente escolar? Os critérios de inclusão considerados foram: estudos que abordam a temática referente à autonomia e tutela na educação escolar, divulgados em língua portuguesa, inglesa e espanhola e artigos publicados online, com período cronológico entre os anos 2000 e 2019. Como critérios de exclusão, foram considerados os artigos cuja abordagem temática não apresentavam relação com o escopo desse artigo. Foram excluídos, também, textos em formatos editoriais, monografias, dissertações, teses, livros, capítulos de livros, resumos, cartas e notícias.

O processo de busca foi realizado no segundo semestre de 2019, nas bases de dados Portal Periódicos Capes, que incluiu quatro cruzamentos, a saber: Autonomia [and] Educação, Autonomia [and] Escola, Tutela [and] Educação, Tutela [and] Escola. Como resultado da busca, foram encontrados onze artigos para esse estudo. Destes, nenhum artigo foi escrito nos últimos três anos, considerando as bases de dados e data da busca realizada, o que aponta para a necessidade de maior produção na área.

Os resultados foram analisados a partir de categorias temáticas (Souza, Silva, & Carvalho, 2010Souza, M. T.; Silva, M. D.; Carvalho R. (2010). Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein, 8 (1), 102-6. https://doi.org/10.1590/s1679-45082010rw1134
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), definidas após a leitura e interpretação criteriosa de cada artigo encontrado, identificando os principais assuntos abordados, a saber: a construção histórica e filosófica do conceito; abordagem social e política; e implicações no campo da educação escolar. A tabela 1apresenta os artigos relacionados com as respectivas categorias temáticas e indicação da perspectiva filosófica e/ ou base teórica.

Tabela 1
Categorias temáticas e perspectivas/ bases teóricas dos artigos analisados.

As categorias temáticas, assim como as abordagens teórico-filosóficas, foram definidas com o intuito de orientar a discussão dos resultados, oferecendo um enredo para o texto. Para tanto, levou-se em consideração os aspectos predominantes na proposta de cada artigo, sem, contudo, se restringir a eles. A organização da tabela consiste em fornecer uma organização das análises e uma breve síntese dos resultados, sem assumir, portanto, o objetivo de estabelecer classificação teórica precisa na análise dos artigos.

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E FILOSÓFICA DO CONCEITO

A forma como se concebe a autonomia hoje, bem como sua articulação política e, consequentemente, a prática educacional, é resultado de uma construção histórica e filosófica. Esse resultado se expressa por meio de diversas correntes de pensamento fundamentadas na ciência e na filosofia. Ângela Maria Martins (2002Martins, A. M. (2002). Autonomia e educação: a trajetória de um conceito.Cadernos de Pesquisa, (115), 207-232. Recuperado de:https://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000100009
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) reforça essa ideia no artigo intitulado Autonomia e educação - a trajetória de um conceito. Ao discutir as vinculações do conceito de autonomia com o uso instrumental no campo da educação, conceitua autonomia como o resultado de uma construção histórica, a partir do desenvolvimento filosófico e dos movimentos políticos, sociais e institucionais.

O conceito de autonomia se vincula à produção do sujeito histórico, que remete à Modernidade. Dessa forma, é um conceito que está atrelado diretamente à concepção de sujeito Moderno, como produto de uma sociedade que se pautou em princípios humanistas, com base nos ideais de racionalidade. Ancorada na filosofia da consciência e em conceitos fundamentais como essencialismo, universalismo e objetivismo, o período forneceu bases para a produção de um sujeito racional, consciente e, enfim, autônomo.

Uma parcela dos autores que abordam a autonomia no âmbito da educação assume a emancipação do sujeito como orientação teórico-política. A emancipação se torna, nessa perspectiva, algo a se atingir através da educação. De fato, a ideia da emancipação como princípio teleológico fundamental da educação se encontra ancorada em um dos pilares mais consistentes do pensamento Moderno: a filosofia de Immanuel Kant.

O pensamento de Kant embasa a concepção de autonomia em autores que discutem o conceito no âmbito da educação. Aqui, é apresentada uma síntese de como alguns desses autores concebem autonomia a partir dessa perspectiva. A começar por Nodari e Saugo (2011Nodari, P. C.; Saugo, F. (2011). Esclarecimento, educação e autonomia em Kant. Conjectura,16(1),133-167. Recuperado de: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/892/615
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), os autores propõem o conceito de autonomia como sendo o caminho para o esclarecimento, ou seja, como o processo progressivo dos seres humanos por meio do qual são capazes de pensar por si mesmos. Para Dias (2005Dias, A. A. (2005). Educação moral e autonomia na educação infantil: o que pensam os professores.Psicologia: Reflexão e Crítica,18(3), 370-380. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722005000300011
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), autonomia consiste em processo crítico e inovador que busca respostas ligadas a um problema moral, envolvendo um sujeito consciente, livre e responsável. Petroni e Souza (2010Petroni, A. P.; Souza, V. L. T. (2010). As relações na escola e a construção da autonomia: um estudo da perspectiva da Psicologia. Psicologia & Sociedade, 22(2), 355-364. Recuperado de:http://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n2/16.pdf.
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) relacionam o conceito à responsabilidade. Os autores comparam autonomia à capacidade do indivíduo de se conduzir em seu processo de formação na relação com o outro e no contexto que se insere, considerando a consciência crítica das influências sociais, políticas e ideológicas que sofrem do meio externo.

Na mesma linha, a partir da perspectiva crítico-marxista, Oliveira (2013Oliveira, G. N. B. de. (2013). O Sentido Político das Relações entre Educação e Autonomia e suas diferentes implicações. Educação: Teoria e Prática. 23(42), 05-17. Recuperado de: https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/educacao/article/view/4661/5085.
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) concebe a autonomia como a faculdade do sujeito de se autogovernar, agindo livremente nas decisões que lhe cabem. A autora enxerga de forma crítica a visão histórica predominante de autonomia, que “[...] tende a se orientar por uma concepção individualista e subjetivista que a define de modo genérico e abstrato, sem vínculos com as condições sociais concretas em que se constrói” (Oliveira, 2013Oliveira, G. N. B. de. (2013). O Sentido Político das Relações entre Educação e Autonomia e suas diferentes implicações. Educação: Teoria e Prática. 23(42), 05-17. Recuperado de: https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/educacao/article/view/4661/5085.
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, p. 09). Essa visão, segundo a autora, se forma a partir da própria construção histórica e filosófica do conceito de autonomia, que, no contexto do pensamento Moderno, une autonomia à moralidade e à racionalidade humana. A autora, enfim, distingue autonomia de autossuficiência, definindo a primeira como sendo a conscientização da realidade social, em oposição à alienação.

Diferentemente, Dantas e Silva (2016Dantas, O. M. A. N. A.; Silva, A. G. M. (2016). Periquillo Sarniento: uma narração da educação como obstáculo à autonomia.Revista Odisseia, 1(2), 124 - 141. Recuperado de: https://periodicos.ufrn.br/odisseia/article/view/10371/7717
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) se fundamentam em Lev Vygotsky e Paulo Freire para conceber uma educação para a formação da cidadania e, com isso, compreendem que a autonomia do professor implica uma reflexão sobre o contexto da experiência social do educando. Já Fischmann (2007Fischmann, R. (2007). Injustiça, autonomia moral e organização escolar: análise exploratória de relações.Paidéia(Ribeirão Preto ) [online]. 17(38), 321-330. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n38/v17n38a03.pdf.
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, p. 329) associa autonomia, no âmbito da resistência, à opressão e à desigualdade social, situando-a como “[...] substancialidade de ações em direção à construção da igualdade, fundada na justiça, que se configura como emancipatória, frente ao quadro de dominação consolidado pela técnica e pela burocracia [...]”.

Outra corrente de pensamento a partir da qual se discute e se produz conhecimento acerca da autonomia no contexto educacional é a pós-estruturalista. Para além da perspectiva Moderna, o pós-estruturalismo promove o descentramento da consciência e do sujeito na abordagem humana e social, rejeita a razão universal e abstrata e as concepções transcendentais da realidade, propõe a desconstrução das oposições binárias na análise social, como libertação-opressão e repressão-liberação, e defende a vinculação entre ciência e política, recusando as metanarrativas na construção de teorias (Silva, 1994Silva, T. T. da. (1994). Adeus às Metanarrativas Educacionais. In: T.T. da Silva (Ed.) O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes.).

Nesse prisma, que trata da forma como o pós-estruturalismo tem abordado a questão da autonomia na educação, destaca-se Silva (2015Silva, R. B. (2015). Autonomia e educação: reflexões e tensões nos caminhos para a formação humana. Conjectura: Filos. Educ ., 20(1), 38-50. Recuperado de:http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/2929/pdf_349
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), Mattos, Pérez, Almada e Castro (2013Mattos, A. R.; Péres, B. C.; Almada, C. V. R.; Castro, L. R. (2013). O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho, 369-377. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a24.pdf.
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) e Carvalho (2008Carvalho, M. C. B. de. (2008). O pensamento tutelar presente na educação dos grupos populares no Brasil.Psicologia USP,19(4), 487-493. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642008000400007&script=sci_abstract&tlng=pt
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). O primeiro debate a questão da autonomia e sua relação com a formação humana com base em dois momentos distintos: inicialmente, a partir do conceito de homem ancorado pelas filosofias grega e iluminista e, enfim, com os valores produzidos e disseminados na sociedade atual. A tarefa levou o autor a problematizar de que forma a escola lida com o tema da autonomia, tendo em vista os discursos que veiculam sobre a crise da educação escolar e considerando o contexto da disciplina e do controle no âmbito das instituições sociais. Silva (2015)Silva, R. B. (2015). Autonomia e educação: reflexões e tensões nos caminhos para a formação humana. Conjectura: Filos. Educ ., 20(1), 38-50. Recuperado de:http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/2929/pdf_349
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se fundamenta em Lasch e Bauman para analisar como a contemporaneidade, no contexto do neoliberalismo, promove a autonomia como expressão de liberdade para o consumo. A autonomia aqui se traduz, de um lado, na ampliação da dimensão individual e, de outro, na diminuição da fronteira entre as esferas pública e privada, com consequente intensificação do individualismo nas relações sociais.

Mattos et al. (2013Mattos, A. R.; Péres, B. C.; Almada, C. V. R.; Castro, L. R. (2013). O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho, 369-377. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a24.pdf.
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), ao discutirem a interação entre adultos e crianças no cenário da educação contemporânea, situam a relação de cuidado do educador no plano da ética, no que se refere ao favorecimento da autonomia. Essa relação de cuidado envolve a potencialidade política através do afeto, o que requer sensibilidade e responsabilização do educador frente às demandas que surgem do educando. Autonomia, aqui, se opõe à tutela, de modo que, enquanto essa última privilegia a posição do adulto responsável, suposto conhecedor das necessidades da criança, a autonomia sob a ética do cuidado assegura a fala e a expressão da opinião e do desejo infantil, possibilitando uma relação horizontal, com participação ativa de crianças e adolescentes nas decisões da escola.

Carvalho (2008Carvalho, M. C. B. de. (2008). O pensamento tutelar presente na educação dos grupos populares no Brasil.Psicologia USP,19(4), 487-493. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642008000400007&script=sci_abstract&tlng=pt
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), ao abordar a autonomia do sujeito da educação nos grupos populares, também o faz pela via do conceito de tutela. Para a autora, o pensamento tutelar subestima a capacidade de pensar do sujeito, limitando o exercício da liberdade. Enfim, as práticas tutelares, no contexto macrossocial, estão enraizadas na cultura do serviço público, associando-se ao assistencialismo, ao apadrinhamento e ao clientelismo. O próximo tópico aborda como os conceitos de autonomia e tutela, ancorados na história e no conhecimento filosófico, incidem nas análises sociais e políticas da realidade no âmbito da educação.

ABORDAGEM SOCIAL E POLÍTICA

Os fundamentos históricos e filosóficos da educação compõem um arsenal teórico a partir do qual se obtêm leituras distintas de determinada sociedade. Inúmeras são as filosofias e as linhas de pensamento que embasam a produção do conhecimento acerca da educação e da formação moral. Identificar a relação entre determinada linha de pensamento e os aspectos filosófico-políticos da análise social, em alguns casos, não é tarefa simples, tendo em vista o caráter complexo e transdisciplinar que envolve a temática. Sem adentrar nas nuances que envolvem a diferenciação e a categorização das linhas de pensamento, já que não se inclui no escopo deste trabalho, destaca-se nos artigos analisados aspectos das tendências marxista e pós-estruturalista das categorias autonomia, tutela e educação escolar, em crítica ao kantismo e à concepção Moderna de educação.

A análise da realidade social e política, no que tange aos conceitos de autonomia e tutela, perpassa, por vezes, pelo problema da moralidade. No artigo Educação moral e autonomia na educação infantil: o que pensam os professores, Dias (2005Dias, A. A. (2005). Educação moral e autonomia na educação infantil: o que pensam os professores.Psicologia: Reflexão e Crítica,18(3), 370-380. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722005000300011
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) analisa a forma como educadores da educação infantil concebem autonomia e educação moral, estabelecendo uma relação entre os dois conceitos. Salienta que a concepção tradicional de educação moral compromete a formação autônoma, já que se apresenta de forma dicotômica, seja como mera transmissão cultural ou introjeção de valores, seja como a simples capacidade de discernimento a partir de um contexto individual específico.

A autora se apoia em Habermas para afirmar que o sujeito autônomo se constitui, a partir de condutas morais, à medida que se apresenta culturalmente atrelado ao contexto histórico, político e social. Assume uma concepção de educação moral com base na reflexão crítica, a partir da razão dialógica e considerando as normas e a realidade vivida, dos princípios que norteiam o processo educativo. O sujeito autônomo se torna, nessa perspectiva, protagonista de condutas morais, no sentido de assumir postura crítica frente a realidade, ao mesmo tempo em que segue princípios norteadores da conduta humana com vistas a contribuir para o desenvolvimento de indivíduos mais justos (Dias, 2005Dias, A. A. (2005). Educação moral e autonomia na educação infantil: o que pensam os professores.Psicologia: Reflexão e Crítica,18(3), 370-380. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722005000300011
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).

De outra forma, Roschild e Ferreira (2012Roschild, J. M.; Ferreira, S. D. (2012). Educação e Autonomia. Revista Thema, 9(2), 79-93. Recuperado de:http://revistathema.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/146.
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), ao proporem caminhos para a experiência da autonomia nas relações de sala de aula, ancoram-se no marxismo para analisar a educação como aparelho ideológico do Estado. Consideram a educação tradicional como concepção de ensino ideológica que não inclui a construção da autonomia dos sujeitos na prática educativa, e propõem uma educação progressista como via para a transformação, na busca da autonomia, através da conscientização e da atitude crítica do sujeito em relação ao real interesse dos projetos societários arquitetados pela classe dominante.

No mesmo eixo de pensamento que fundamenta os autores supracitados, Dantas e Silva (2016Dantas, O. M. A. N. A.; Silva, A. G. M. (2016). Periquillo Sarniento: uma narração da educação como obstáculo à autonomia.Revista Odisseia, 1(2), 124 - 141. Recuperado de: https://periodicos.ufrn.br/odisseia/article/view/10371/7717
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), ao explorarem a crítica de José Joaquim Fernández de Lizardi, no romance Periquillo Sarniento à proposta educacional da Modernidade, debatem os impactos da educação no desenvolvimento da autonomia do educando. As autoras se utilizam do pensamento de Vigotski, Paulo Freire, Rancière e Contreras para criticar a educação comprometida com a manutenção da ordem social vigente, apostando que uma proposta educacional na direção oposta da autonomia pode trazer consequências negativas para o meio social. Como exemplo, trazem a figura do profissional que trabalha exclusivamente em troca do dinheiro, fazendo alusão ao aluno que estuda apenas por nota (Dantas & Silva, 2016Dantas, O. M. A. N. A.; Silva, A. G. M. (2016). Periquillo Sarniento: uma narração da educação como obstáculo à autonomia.Revista Odisseia, 1(2), 124 - 141. Recuperado de: https://periodicos.ufrn.br/odisseia/article/view/10371/7717
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). Para as autoras, portanto, a promoção da autonomia no espaço escolar envolve a figura do professor na relação com o educando e sua conexão com o meio social, na busca pela formação cidadã. O educador assume, com isso, função primordial não apenas na formação do sujeito, mas na construção coletiva de uma sociedade justa e igualitária.

Fischmann (2007Fischmann, R. (2007). Injustiça, autonomia moral e organização escolar: análise exploratória de relações.Paidéia(Ribeirão Preto ) [online]. 17(38), 321-330. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n38/v17n38a03.pdf.
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), também de base marxista, analisa os aspectos do mascaramento da autonomia moral dos indivíduos no contexto das instituições. Coloca em evidência o papel da escola e sua relação com a construção democrática a partir do debate entre diversidade e direitos humanos. Nessa perspectiva, a escola não se apresenta apenas como mediadora do acesso à informação, mas como promotora de processos que conduzem à formação crítica, incluindo as capacidades de expressão e resistência à opressão social. A opressão e a injustiça surgem no âmbito da estruturação da ordem social, mas também se fazem e se reproduzem no cotidiano das relações sociais e institucionais. A escola é um espaço privilegiado dessas relações, podendo ser palco de experiências de injustiça e desigualdade. Dessa forma, como afirma a autora, a escola, para além de se ocupar com o currículo e com as atividades pedagógicas, deve se atentar em promover um espaço organizacional onde se estabeleçam as relações humanas que darão o suporte mais fundamental para a formação do sujeito (Fischmann, 2007Fischmann, R. (2007). Injustiça, autonomia moral e organização escolar: análise exploratória de relações.Paidéia(Ribeirão Preto ) [online]. 17(38), 321-330. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n38/v17n38a03.pdf.
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).

Carvalho (2008Carvalho, M. C. B. de. (2008). O pensamento tutelar presente na educação dos grupos populares no Brasil.Psicologia USP,19(4), 487-493. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642008000400007&script=sci_abstract&tlng=pt
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) parte de uma visão pós-estruturalista, trazendo autores como Amartya Sen, para abordar o pensamento tutelar como fator educacional e sociopolítico excludente, presente na cultura brasileira. A tutela atua despotencializando as políticas de educação pública no Brasil, reduzindo a eficácia no combate à pobreza. Nesse sentido, a inclinação pós-estruturalista se alia com uma postura social crítica e comprometida em destacar a importância do caráter emancipatório da educação no enfrentamento da pobreza e da desigualdade social.

Para a autora, a tutela surge na cultura em oposição à emancipação à medida que promove a desarticulação da relação entre desenvolvimento social e processos autônomos. Ao contrário da autonomia como proposta emancipatória, as práticas tutelares advindas da ação do Estado nas políticas públicas - tais como o clientelismo, assistencialismo e o apadrinhamento - penetram na cultura, infantilizam o sujeito e promovem a subordinação frente às necessidades sociais básicas (Carvalho, 2008Carvalho, M. C. B. de. (2008). O pensamento tutelar presente na educação dos grupos populares no Brasil.Psicologia USP,19(4), 487-493. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642008000400007&script=sci_abstract&tlng=pt
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).

Tem-se, nessa visão, de um lado, processos compensatórios, que, apoiados na lógica da compaixão, geram dependência e possuem efetivamente pouco impacto na superação da pobreza; e, de outro, ações com base no argumento do direito que, tendo o próprio direito como fundamento da ação social pública, buscam estabelecer estratégias que conduzem à emancipação do indivíduo e da sociedade. A tutela é, portanto, além de compensatória, autoritária. O regime tutelar na educação não faz emancipar. Contrariamente, infantiliza o sujeito e o torna dependente das políticas assistenciais. De outra forma, processos emancipatórios na educação requerem autonomia, coautoria, potencialização do sujeito e apropriação do espaço escolar e do serviço educacional, devendo estar inseridos num quadro mais amplo da política pública social (Carvalho, 2008Carvalho, M. C. B. de. (2008). O pensamento tutelar presente na educação dos grupos populares no Brasil.Psicologia USP,19(4), 487-493. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642008000400007&script=sci_abstract&tlng=pt
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).

Na perspectiva da sociologia crítica de Martins (2002Martins, A. M. (2002). Autonomia e educação: a trajetória de um conceito.Cadernos de Pesquisa, (115), 207-232. Recuperado de:https://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000100009
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), a trajetória recente do homem em sociedade evidencia uma tensão entre os movimentos que se propõem autônomos e as forças que buscam a reprodução das relações de produção através do conjunto de instituições sociais, no contexto do desenvolvimento do capitalismo. O embate gira em torno da ideologia dominante e da necessidade de se promover autonomia através da emancipação. A escola se torna peça-chave nessa relação, como instrumento fundamental de controle social. A análise social se apresenta numa dimensão macro, e a atitude política do sujeito frente a realidade visa à transformação estrutural da sociedade e do sistema social em vigor.

Para além da análise social crítica da educação e da função da escola no contexto do capitalismo, porém, não se eximindo dessa função, a concepção de educação formal inclinada ao pós-estruturalismo traz novos elementos nessa discussão, sobretudo, situando a escola num patamar mais difuso e irrestrito em relação ao controle social. Mattos et. al. (2013Mattos, A. R.; Péres, B. C.; Almada, C. V. R.; Castro, L. R. (2013). O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho, 369-377. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a24.pdf.
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) salientam que a escola não assume mais o lugar central da educação. Nem mesmo a família detém esse papel. As mídias e as novas tecnologias vêm, a cada dia, conquistando terreno no que tange à educação e à formação do sujeito, complexificando as relações entre adultos e crianças, bem como transformando o papel da escola na formação dos estudantes.

Na perspectiva predominantemente pós-estruturalista, a relação entre autonomia e educação ganha outros contornos e, com isso, o próprio conceito de tutela. Não se trata mais de defender a autonomia na busca da conscientização necessária ao descolamento do sujeito em relação ao Estado e ao sistema social vigente, rumo à leitura crítica da realidade e, consequentemente, alavancar a emancipação. O exercício da autonomia implica, a partir desse olhar, uma postura imanente. Significa considerar a transformação social por parte do sujeito que se insere no contexto da realidade social e, nela, propor práticas de resistência. Essas se situam no âmbito do engajamento micropolítico, que se desenvolve no cotidiano das relações. No próximo tópico abordaremos as implicações, no contexto da educação escolar, das diferentes tendências a partir das quais se concebe autonomia, tutela e o próprio conceito de educação.

IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR

O conceito de autonomia foi historicamente apropriado não apenas para esboçar o ideal de sujeito como objeto da educação e, com isso, nortear as práticas pedagógico-curriculares no processo de escolarização, mas também em sua trajetória na condução das políticas educacionais, a partir da década de 1980, como movimento de descentralização da administração escolar (Martins, 2002Martins, A. M. (2002). Autonomia e educação: a trajetória de um conceito.Cadernos de Pesquisa, (115), 207-232. Recuperado de:https://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000100009
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).

Petroni e Souza (2010Petroni, A. P.; Souza, V. L. T. (2010). As relações na escola e a construção da autonomia: um estudo da perspectiva da Psicologia. Psicologia & Sociedade, 22(2), 355-364. Recuperado de:http://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n2/16.pdf.
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) adentraram no contexto da escola pública para estudar a visão de autonomia por parte do professor, utilizando como referência a Psicologia Histórico-Cultural, a Educação Libertadora e os pressupostos do Materialismo Histórico Dialético. As autoras assumem a concepção de educação para emancipação e exercício do pensamento crítico, considerando a liberdade associada ao compromisso e à responsabilidade social. A educação, aqui, é traçada como possibilidade para a libertação, sendo o professor responsável direto pela emancipação do sujeito. No entanto, alertam sobre as dificuldades dos educadores em exercer sua autonomia frente a realidade histórica e cultural da educação pública no Brasil, basicamente por dois motivos que se conectam: a prática da autonomia não fazer parte do rol das atividades e responsabilidades atribuídas ao professor; e o fato de o educador não reconhecer nem se apropriar das possibilidades do exercício da autonomia no espaço escolar.

Roschild e Ferreira (2012Roschild, J. M.; Ferreira, S. D. (2012). Educação e Autonomia. Revista Thema, 9(2), 79-93. Recuperado de:http://revistathema.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/146.
http://revistathema.ifsul.edu.br/index.p...
) afirmam que o território escolar, especialmente a sala de aula, está submetido a um sistema educacional empenhado em cumprir regras e alcançar metas, o que coloca o professor como figura protagonista no processo de ensino e aprendizagem. Esse cenário descrito, que envolve a educação tradicional e definida por Paulo Freire como modelo bancário de educação, tende a promover uma relação professor-aluno autoritária, na qual o professor se restringe a ensinar e, ao aluno, cabe a tarefa de aprender. Com isso, torna-se um desafio aos educadores fomentar no estudante a responsabilidade das escolhas e a postura crítica frente a “[...] ideologia que adestra e treina o comportamento a serviço dos interesses do mercado” (Roschild & Ferreira, 2012Silva, R. B. (2015). Autonomia e educação: reflexões e tensões nos caminhos para a formação humana. Conjectura: Filos. Educ ., 20(1), 38-50. Recuperado de:http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/2929/pdf_349
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, p. 12).

Oliveira (2013Oliveira, G. N. B. de. (2013). O Sentido Político das Relações entre Educação e Autonomia e suas diferentes implicações. Educação: Teoria e Prática. 23(42), 05-17. Recuperado de: https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/educacao/article/view/4661/5085.
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), também de base crítico-marxista, aborda o aspecto político da apropriação do conceito de autonomia e suas implicações na prática educativa. Com isso, faz uma análise crítica acerca da concepção de autonomia atrelada ao discurso educacional corrente na sociedade atual. Para a autora, a visão tradicional de autonomia: subjetivista, individualista e abstrata, ao ser apropriada e ressignificada pelo discurso educacional vigente, produz distorções em relação à autonomia do sujeito e à edificação de um ideal da formação humana, em prol do ideário neoliberal e, consequentemente, em detrimento do exercício da liberdade humana. A autora conclui que a autonomia possui expressão ambivalente no atual cenário educacional. De um lado, é objeto de desejo das propostas educativas que se dizem reformistas; de outro, é desvalorizada, seja na distorção de seu real significado por parte do discurso neoliberal, seja pelo questionamento pós-moderno em relação à possibilidade de sua efetivação (Oliveira, 2013Silva, R. B. (2015). Autonomia e educação: reflexões e tensões nos caminhos para a formação humana. Conjectura: Filos. Educ ., 20(1), 38-50. Recuperado de:http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/2929/pdf_349
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).

Para Silva (2015Silva, R. B. (2015). Autonomia e educação: reflexões e tensões nos caminhos para a formação humana. Conjectura: Filos. Educ ., 20(1), 38-50. Recuperado de:http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/2929/pdf_349
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php...
), a autonomia deve ser entendida não como uma abstração, seja na forma de algum tipo de pressuposto ou ponto de partida, seja escamoteada por modelos teóricos. A autonomia deve ser compreendida de forma atrelada à interação social, ou seja, no encontro com o outro. No âmbito da educação, significa a ausência de protagonismos ou de sujeitos privilegiados. A escola se torna, nessa perspectiva, território a ser apropriado por todos e, com isso, ambiente educacional propício para “[...] colocar em questão, nas práticas presentes em seu cotidiano, as dicotomias que fundamentam ações de opressão e violência entre os seres humanos (como por exemplo, as relações entre sujeito/objeto, singular e plural, objetivo e subjetivo)” (Silva, 2015Silva, R. B. (2015). Autonomia e educação: reflexões e tensões nos caminhos para a formação humana. Conjectura: Filos. Educ ., 20(1), 38-50. Recuperado de:http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/2929/pdf_349
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php...
, p. 49).

Mattos et al. (2013Mattos, A. R.; Péres, B. C.; Almada, C. V. R.; Castro, L. R. (2013). O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho, 369-377. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a24.pdf.
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), ao abordarem o cuidado na relação entre educadores e estudantes com base na perspectiva pós-estruturalista, defendem que o objetivo primordial da educação é formar cidadãos, estimulando a consciência de seus direitos e deveres na sociedade. Os autores alertam criticamente para a tendência, construída historicamente, à desmaterialização das experiências no processo educacional, em que o objetivo final da formação básica se afasta das vivências práticas na busca pelas competências universais, próprias para preparar o cidadão às normas sociais e ao mercado de trabalho. A dimensão do cuidado se vincula à proposta de se afastar do plano da tutela nas práticas educativas, contribuindo para uma formação comprometida com o presente na relação que envolve afeto e alteridade.

Para os autores, portanto, o cuidado traz à tona a interdependência entre todos os envolvidos, e não apenas por parte de quem recebe. A relação de dependência que envolve o cuidado se liga à responsabilidade, e coloca em xeque a determinação do indivíduo racional e soberano. A interação educador-aluno, na perspectiva do cuidado, se torna uma via horizontal, com circulação nos dois sentidos, já que a atuação docente também requer zelo. Respeito e reconhecimento são atitudes que se esperam. A responsabilidade, dessa forma, também é compartilhada nos processos de ensino, suscitando participação ativa dos alunos na sala de aula, no planejamento e nas decisões da escola (Mattos et al., 2013Mattos, A. R.; Péres, B. C.; Almada, C. V. R.; Castro, L. R. (2013). O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho, 369-377. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a24.pdf.
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).

De fato, para além do discurso da formação cultural e cidadã, a incidência histórica do caráter político-econômico da educação e da escolarização formal tem deixado marcas determinantes na dinâmica social e no comportamento humano, menos por tomar o sujeito como fim último da educação, e mais pela condução social a partir de racionalidades que são externas ao próprio sujeito. Sob esse prisma, a educação se torna um instrumento de regulação e controle social, incidindo na conduta dos sujeitos e das populações. Na contemporaneidade, a sociedade do capital orienta essa condução para objetivos produtivos, concentrando o escopo da formação para o mercado de trabalho. Com isso, as práticas de autonomia e tutela na educação vão sendo pautadas com base no contexto e nas demandas da sociedade neoliberal. Como afirma Silva (1994Silva, T. T. da. (1994). Adeus às Metanarrativas Educacionais. In: T.T. da Silva (Ed.) O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes.), a educação é apenas um dos dispositivos no difuso mecanismo de regulação e controle social. Contudo, a ela cabe a função primordial, no sentido ético e político, de contribuir para a produção de novas formas de pensar a sociedade e, com isso, para a transformação da própria educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi visto, a concepção de autonomia e tutela que envolve a construção de políticas e práticas educacionais se vincula à formação histórica e filosóficas dessas categorias, e está associada também à própria formação do sujeito histórico. A construção desses dois conceitos se expressa através de diversas correntes de pensamento, que se fundamentam na ciência e na filosofia para propor formas de compreender e analisar a educação no âmbito da sociedade. No cerne da construção histórica do binômio autonomia e tutela na educação, encontra-se a perspectiva kantiana de emancipação do sujeito como orientação teórico-política, em que a autonomia consiste no caminho do esclarecimento para a formação da cidadania.

Em resposta à concepção Moderna de educação, pode-se destacar duas linhas de pensamento, presentes nos artigos corpus desse trabalho. De um lado, a visão marxista, que objetiva a formação para a transformação social com foco no combate à desigualdade. Aqui, a análise da realidade social e política no que tange aos conceitos de autonomia perpassa pelo problema da moralidade, em que determinados valores são tomados como pressupostos para a formação do educando. O pensamento tutelar, nessa orientação, inibe a capacidade crítica do sujeito, restringindo o movimento da conscientização e, portanto, o exercício da liberdade.

Por outro lado, a perspectiva pós-estruturalista possibilita a análise crítica de como a sociedade atual busca a expressão da liberdade na forma do consumo e, consequentemente, na ampliação da dimensão individual. Na educação, sua proposta inclui o plano do cuidado, na relação educador-aluno, na esfera micropolítica, não se restringindo a uma visão apenas macro e, tampouco, dicotômica da realidade. Aqui, a apropriação dos territórios educacionais se amplia, e o protagonismo no processo de ensino e aprendizagem se dissolve. Enfim, a tendência à desmaterialização da vivência prática ganha terreno e a experiência da interação social se volta para a dimensão do cuidado.

O presente artigo buscou revisar, de forma integrativa, a incidência e o desenvolvimento do conceito de autonomia e tutela no cenário educacional, considerando os aspectos da construção histórico-filosófica e as implicações sociais e educacionais. Por outro lado, a análise das implicações no campo da educação escolar se deu com foco nas consequências em relação à própria concepção de educação e de autonomia do sujeito no território escolar. Assim sendo, tornam-se relevantes novos estudos com ênfase nos efeitos, no campo do gerenciamento das práticas pedagógicas e da administração escolar, em relação às diferentes formas de se conceber a autonomia e a tutela na educação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    09 Jan 2022
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