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DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

Docencia en la educación a distancia: procesos de subjetivación

RESUMO

O presente estudo foi produzido para conhecer como os professores universitários vivenciaram a transição da educação superior presencial para a docência no ensino à distância, focalizando a subjetividade docente nas variações decorrentes da nova situação de trabalho. Metodologicamente trata-se de uma pesquisa qualitativa conduzida pela realização de entrevistas semiestruturadas e que adotou como estratégia o estudo de caso visando a caracterização detalhada das mudanças produzidas nos modos de trabalhar. A discussão dos resultados revelou a enorme distância existente entre o ensino presencial e a EAD (Educação à Distância) o que evidenciou a adoção de estratégias de inserção de manutenção nas novas condições laborais. Foram evidenciados os processos de subjetivação dos docentes assim como os procedimentos de controle que passam a incidir sobre o trabalho docente na nova modalidade. Como conclusão provisória destacou-se o desaparecimento da relação presencial e a precarização do trabalho docente.

Palavras-chave:
subjetividade; trabalho docente; mídia

RESUMEN

El presente estudio se produjo para conocer cómo los profesores universitarios vivenciaron a la transición de la educación universitaria presencial a la docencia en la enseñanza a distancia, focalizando la subjetividad docente en las variaciones resultantes de la nueva situación de trabajo. Metodológicamente se trata de una investigación cualitativa conducida por la realización de entrevistas semiestructuradas y que adoptó como estrategia el estudio de caso visando la caracterización detallada de los cambios producidas en los modos de trabajar. La discusión de los resultados apuntó la gran distancia existente entre la enseñanza presencial y la EAD (Educación a Distancia) lo que evidenció la adopción de estrategias de inserción de manutención en las nuevas condiciones laborales. Se evidenciaron los procesos de subjetivación de los docentes bien como los procedimientos de control que pasan a incidir sobre la labor docente en la nueva modalidad. Como conclusión provisoria se destacó el desaparecimiento de la relación presencial y la precarización de la labor docente.

Palabras clave:
subjetividad; labor docente; media

ABSTRACT

The present study was produced to investigate how university professors experienced the transition from on-site higher education to teaching in distance education, focusing on teaching subjectivity in the variations resulting from the new work situation. Methodologically, it is a qualitative research conducted by semi-structured interviews and which adopted the case study as a strategy, aiming at the detailed characterization of the changes produced in the ways of working. The discussion of the results revealed the huge gap between classroom teaching and distance education which evidenced the adoption of maintenance insertion strategies in the new working conditions. The professors’ subjectivation processes were evidenced, as well as the control procedures that start to focus on the teaching work in the new modality. As a provisional conclusion, the disappearance of the face-to-face relationship and the precariousness of teaching work were highlighted.

Keywords:
subjectivity; teaching work; media

INTRODUÇÃO

A educação à distância como prática regular e instituída da atividade educacional é objeto de um questionamento recorrente quanto a sua efetividade, bem como quanto aos impactos provocados pela sua adoção no meio educacional brasileiro. Essa modalidade de ensino é usualmente apresentada como uma consequência previsível das aquisições tecnológicas e comunicacionais ocorridas a partir da segunda metade do século XX e que provocaram a informatização das sociedades em escala mundial. O advento da Educação à Distância (EAD) realizado por aparato tecnológico e computacional trouxe consigo um conjunto de mudanças tão significativas em relação à educação presencial que se tornou difícil compreendê-la como uma decorrência do ensino presencial (Veloso & Mill, 2019Veloso, B.; Mill, D. (2019). Produções científicas sobre a educação a distância e o trabalho docente nessa modalidade: um estudo bibliométrico. Trabalho & Educação, 28(1), 219-237.). Mais apropriado seria reconhecer a EAD como uma prática educacional disruptiva e desestabilizadora dos modos de se ensinar e aprender anteriormente adotados.

Primeiramente a EAD confronta a educação presencial pela adoção de um procedimento educativo não presencial. A educação escolarizada, como se sabe, organiza-se pela existência do aqui e agora compartilhados pelos agentes do processo educacional. A isso se chama sala de aula. Por efeito das transformações que resultaram na informatização das sociedades o processo educativo pode se deslocar do contexto presencial, dispondo as atividades executadas em locais distantes assim como em momentos diferentes. Esse novo contexto, que pode ser descrito como não presencial, somente se tornou possível pela universalização do uso do computador conectado em rede, naquilo que se convencionou chamar de internet.

Para podermos situar historicamente o conjunto de transformações vividas pelas sociedades com o ingresso na informatização e no ensino à distância, faremos uso de uma terminologia proposta por Michel Foucault (1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: Nascimento da prisão (R. Ramalhete, Trad.). Petrópolis: Vozes.) que é a sociedade disciplinar, descrita por ele pela presença de um conjunto de instituições referidas a espaços físicos fechados, com funções definidas e voltadas para a execução de um processo de formação da mão de obra ou para a punição daqueles que não se adéquam a esse processo. A sociedade disciplinar tem como objetivo dotar os humanos de utilidade na sua inserção nos processos produtivos. Entende-se que a educação escolarizada e presencial é uma decorrência da existência das sociedades disciplinares, vigentes desde o início do capitalismo. Já a transição para a EAD pode ser localizada historicamente no período em que se inicia o declínio gradativo do disciplinar dando margem a que outro regime de poderes possa ser gradativamente implantado. Esse novo regime pode ser compreendido pela descrição proposta por Gilles Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.), que coloca em destaque o conjunto de efeitos políticos das aquisições tecnológicas e comunicacionais decorrentes do advento das sociedades de controle. Dentre essas mudanças situa-se o denominado não presencial, que auxilia a compreensão da emergência histórica do ensino à distância e que pode ser identificado também em uma série de outras instituições sociais.

A abordagem dessa problemática no âmbito da psicologia social coloca em evidência o fato de que tanto a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade de controle quanto aquela, mais específica, da educação presencial para a educação à distância são acompanhadas de transformações no plano da subjetividade. Em função do momento histórico, o sujeito faz-se outro, inscreve-se num processo de mudança, para que possa manter-se empregado. Evidentemente a condição de estudante nesse novo modelo poderia ser também objeto de investigação, uma vez que a EAD altera drasticamente as práticas a serem executadas pelos estudantes, o que implica uma mudança subjetiva.

Partindo de uma concepção de que o humano se faz, cotidianamente, por meio de suas ações, inclusive aquelas que compõem a atividade laboral, a presente pesquisa teve por objetivo compreender como se constitui objetiva e subjetivamente esse novo profissional, professor em uma nova configuração espaço-temporal. Tal profissional está sujeitado a ela, ainda que se tornando outro, fazendo-se sujeito de uma nova forma como estratégia para inscrever-se em uma prática profissional emergente.

Para o prosseguimento da investigação, nos termos acima descritos, faz-se necessária uma aproximação conceitual que caracteriza o sujeito por suas ações, de modo a poder compreender esse sujeito constituindo-se a partir de suas práticas no trabalho. Para tanto utilizaremos a expressão sujeito trabalhador. Quem é o sujeito trabalhador, docente da EAD? Como ele se constitui? Que componentes subjetivos (afetos, desejos, convicções, valorações morais, impressões e outros) ele anuncia? Como o trabalho, nas novas condições do não presencial, se efetua nessa constituição do sujeito? Localizamos na obra de Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., 2001Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.) os subsídios necessários para a problematização destas novas condições de vida e de trabalho.

Para Deleuze (2001Deleuze, G. (2001). Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume(L. B. L. Orlandi, Trad.). São Paulo: Editora 34.), é a partir dos encontros cotidianamente realizados, que os sujeitos se constituem, com a matéria prima oferecida pelo meio social e de modo diferenciado a cada período histórico. Essa dinâmica, marcada pela complexidade, pode ser caracterizada como um processo de subjetivação que se faz a partir dos dados da experiência. A sucessão de experiências vividas torna-se então o campo de constituição dos sujeitos que, por sua vez, acedem a elas pelos dados extraídos a cada momento. Ou ainda, pode-se dizer: “E, olhando bem, isso é tão-só uma outra maneira de dizer: o sujeito se constitui no dado” (Deleuze, 2001Deleuze, G. (2001). Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume(L. B. L. Orlandi, Trad.). São Paulo: Editora 34., p. 118).

Com base em uma concepção de subjetividade que é processual, não existe a possibilidade de identificar o sujeito como uma essência que permanece. Ao contrário, esse sujeito está se fazendo e se desfazendo em função dos encontros que vive ou, ainda, dos dados das experiências que vivencia. Como observa Mansano (2018Mansano, S. R. V. (2018). Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade.Revista de Psicologia da Unesp, 8(2), 110-117.), a constituição do sujeito é um processo complexo sobre o qual inexistem as possibilidades de previsão e controle, ainda que sejam feitos incessantes esforços nesta direção, inclusive no campo da própria psicologia. A autora constata:

Nesse sentido, é impossível manter qualquer tipo de controle ou planejamento sobre o que vai emergir, enquanto modo de vida, a partir do contato do sujeito com os dados. Para Deleuze, a composição de si envolve um processo vivo e, portanto, provisório, uma vez que o sujeito está vulnerável à ação de novas forças e dos acontecimentos. (Mansano, 2018Mansano, S. R. V. (2018). Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade.Revista de Psicologia da Unesp, 8(2), 110-117., p. 116).

Tendo em vista a condição provisória que se faz presente na constituição do sujeito, Deleuze (2001Deleuze, G. (2001). Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume(L. B. L. Orlandi, Trad.). São Paulo: Editora 34.) vai considerar que a ideia de que possa existir um sujeito formado é uma ilusão. O que de fato existe é um fazer-se permanentemente sujeito, ou seja, exercer na prática essa condição de produzir-se. Nas suas palavras: “Se o sujeito se constitui no dado, somente há, com efeito, sujeito prático” (Deleuze, 2001Deleuze, G. (2001). Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume(L. B. L. Orlandi, Trad.). São Paulo: Editora 34., p. 98).

Com base nas considerações de Deleuze (2001Deleuze, G. (2001). Empirismo e subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume(L. B. L. Orlandi, Trad.). São Paulo: Editora 34.), podemos considerar que o vir a ser sujeito é algo que se pratica, requerendo um posicionamento ativo daquele que vivencia o processo. Se for das práticas executadas por nós que se extrai a condição de sujeito, cabe considerar a importância daquelas práticas que executamos regularmente ao longo da vida no âmbito das chamadas relações de trabalho. O sujeito prático é também o sujeito trabalhador, mergulhado nas condições específicas de execução do seu trabalho e constituindo-se de modo singular a partir daí. No caso da docência na EAD, essas condições coincidem com a contemporaneidade capitalista, que pode ser caracterizada pela existência de sociedades de controle.

Para Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.), uma sociedade de controle é também uma sociedade de comunicação, um modo de organização social que utiliza intensamente o aparato tecnológico comunicacional para aprofundar a exploração do trabalho. Nesse tipo de sociedade, em que a disciplina já está interiorizada, desenvolvem-se novos modos de sujeição decorrentes de novas práticas no exercício do poder. Assim, o sujeito, que antes era o trabalhador obediente, agora passa a ser o funcionário participante, flexível e permanentemente conectado ao contexto empresarial por meio do aparato tecnológico e comunicacional, tal como consideram Azambuja e Guareschi (2007Azambuja, M. A. D.; Guareschi, N. M. D. F. (2007). Virus devir. Revista do Departamento de Psicologia. UFF, 19(2), 439-453. doi: 10.1590/S0104-80232007000200013
https://doi.org/10.1590/S0104-8023200700...
):

Essa nova composição do social tem como característica principal o confinamento dos sujeitos em meio aberto, ou seja, o controle, que anteriormente se verificava na circulação do indivíduo por espaços fechados da família para a escola, da escola para o trabalho, etc., passa a ocorrer no aprisionamento pelos modos de comunicação. (p. 442).

Segundo Hardt e Negri (2001Hardt, M.; Negri, A. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record.), nesse momento o trabalhador é solicitado a criar um modo de gestão de si. O indivíduo precisa se autopromover e, literalmente, gerir a sua carreira e mesmo sua própria vida. Não há mais necessidades de encarregados para realizar a fiscalização das tarefas no ambiente de trabalho, o que atesta a existência de um regime de monitoramento muito eficiente. Nessa sociedade “de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente” (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., p. 216).

Agora, o trabalhador transformado pelo ordenamento social comparece ao trabalho com um leque de habilidades intelectuais tais como criatividade e capacidade de resolver problemas, assim como com sua sensibilidade. Todo o conjunto de suas relações sociais, inclusive as vividas fora do contexto do trabalho são afetadas nesse processo. Mas, e para aqueles que trabalham como educadores? Qual o cenário que se desenha?

O processo de ensino na contemporaneidade já não está restrito aos muros escolares e às salas de aulas presenciais, que operavam por uma modalidade de confinamento. O tempo e espaço educacional agora são incorporados na existência do sujeito por meio da Educação a Distância (EAD). Para Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., p. 216), “estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea”.

Conforme fica evidente na afirmação de Deleuze, a educação, já transformada, não se dá mais em um meio fechado pelos muros escolares. Ela agora se faz presente no cotidiano do sujeito, onde quer que ele esteja. Isso prefigura o desaparecimento da instituição escolar. Vejamos:

Pode-se prever que a educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional - um outro meio fechado -, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo universitário. Tentam nos fazer acreditar na reforma da escola, quando se trata de uma liquidação. (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., p. 216).

Com a expansão da EAD, existe a possibilidade de formação continuada a qualquer momento do dia, como dito, com flexibilidade de horário e disponibilidade variada de cursos. E isso, segundo Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.), imprime mudanças no cotidiano dos estudantes da EAD. Para Lemos (2009Lemos, F. C. S. (2009). Educação a distância na sociedade de controle. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 9(3), 664-678.), com o advento da educação a distância, ingressamos em um contexto social caracterizado como sociedade de controle, em que a separação entre vida doméstica, ambiente de trabalho e de estudos perde a nitidez, ao mesmo tempo em que emergem novas práticas de controle em meio aberto. Nas suas palavras:

Os limites dos muros institucionais se rompem e temos novas modalidades de relações sem a mediação direta dos estabelecimentos de trabalho e educacionais. A educação a distância, portanto, poderia ser caracterizada como um modo de educação que se enquadra nos ditames de uma sociedade de controle em meio aberto. (Lemos, 2009Lemos, F. C. S. (2009). Educação a distância na sociedade de controle. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 9(3), 664-678., p. 674).

Será mesmo o fim dos muros escolares? O espaço de sala de aula como sendo o local do processo de aprendizagem e de atuação do docente foi substituído pela plataforma de ensino. As funções do processo educacional, antes reunidas num espaço-tempo comum estão agora dispersas. Nas palavras de Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., p. 221): “Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame”.

Desse modo, trata-se de uma profunda transformação que descaracteriza completamente a educação presencial, alterando procedimentos de todos os agentes envolvidos, redefinindo funções e, principalmente, fazendo desaparecer o espaço presencial da sala de aula. A profissão do docente apresenta uma redução em sua complexidade de trabalho e uma consequente diminuição de espaços para experimentação na prática profissional, fato que gera, como será demonstrado nos resultados, uma série de impactos que levam à precarização do trabalho desse profissional (Veloso & Mill, 2018Veloso, B.; Mill, D. (2018). Precarização do trabalho docente na Educação a Distância: elementos para pensar a valorização da docência virtual. Educação em Foco, 23(1), 131-132.). Antes de apresentar os resultados desta pesquisa, cabem algumas considerações sobre o percurso metodológico de coleta dos dados.

METODOLOGIA

Metodologicamente falando, trata-se de uma pesquisa qualitativa dirigida para os processos de subjetivação de professores que atuam na EAD, de modo a compreender as transformações vividas por eles em sua relação com o trabalho. A adoção desse posicionamento metodológico pode ser compreendida na afirmação de Minayo e Sanches (1993Minayo, M. C. D. S.; Sanches, O. (1993). Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade?. Cadernos de saúde pública, 9(3), 237-248., p. 243): “É no campo da subjetividade e do simbolismo que se afirma a abordagem qualitativa”.

Após a realização dos procedimentos éticos requisitados para pesquisas com seres humanos, foi realizada a entrevista semiestruturada com o objetivo de elucidar suas condições de vida e trabalho em cada um dos dois modelos educacionais (distância e presencial) explicitando componentes subjetivos relacionados à condição laboral.

Foram abordados três eixos para nortear as entrevistas: 1. As funções e atribuições na EAD em comparação a sua atuação no ensino presencial; 2. O cotidiano do trabalho; 3. As formas de controle presentes nesse novo modelo educacional. O critério de escolha dos participantes foi a experiência acumulada de pelo menos um ano em ensino presencial e um ano em EAD, sendo que essa atuação poderia ou não ser concomitante.

Os dados foram analisados a partir dos eixos elencados para as entrevistas, tendo como norteadores os conceitos de subjetividade, trabalho e controle, os quais foram apresentados e aprofundados no referencial teórico anteriormente exposto. As análises versaram sobre as alterações do trabalho docente na passagem do sistema de ensino presencial para a EAD, a nova organização do trabalho e relações estabelecidas entre a atividade docente e a tecnologia midiática.

RESULTADOS

Apresentam-se, agora, as transformações ocorridas no trabalho docente pelo ingresso na EAD. Os sujeitos participantes da pesquisa afirmam que, muito diferente do ensino presencial, a EAD apresenta para o trabalho docente uma série de novos problemas. As mudanças para o docente na EAD se iniciam com a inclusão da figura do tutor no processo de ensino e aprendizagem. A tutoria tem a função de apoio ao processo de aprendizagem e ao desenvolvimento dos estudantes. O profissional tutor é o responsável por atender aos discentes no que diz respeito a suas dúvidas e às apropriações dos conteúdos da disciplina. E como os docentes entrevistados lidam com esse agente educacional? A presença dos tutores é relatada pelos participantes quando contam sobre suas funções e então explicam a participação dos tutores no seu cotidiano. Iniciaremos pelos fragmentos que trazem a relação do trabalho docente com a figura do tutor a distância. Vejamos que para Emília, a tutoria é uma figura que dá suporte para a atuação do docente nessa nova condição de trabalho, tal fica evidente no relato abaixo:

Quem mais pode me dar auxílio. Eu preciso, eu não vivo sem os tutores, eu não consigo. Nesse modelo, é uma das figuras mais importantes… A mais importante para mim é um tutor. Porque se não for o tutor eu não sei o que acontece. Não sei o que está se passando, não sei o que está acontecendo. (Emília, participante, 2018).

Na EAD, o professor não ocupa mais a centralidade do processo de aprendizagem. A tutoria se apresenta como uma extensão do trabalho docente, que preenche a ausência de relação do estudante com o professor. Na ausência da expressão dos discentes, a entrevistada lida com os dados que são comunicados pelos tutores. Dados e relatos são consolidados pelos tutores e transmitidos aos docentes. Na realização do trabalho, o professor acaba se transformando, eventualmente se adequando à forma dada pelo não presencial. As alterações ocorridas na organização do trabalho do modelo de ensino presencial para o modelo a distância resultaram em outro modo de trabalhar dos docentes. Pelo relato dos docentes, podemos considerar que “essas constatações revelam a manifestação aparente de profunda transformação histórica do sistema educacional, movimento esse determinado pelas modificações no modo de produção.” (Sá, 2013Sá, N. P. (2013). O aprofundamento das relações capitalistas no interior da escola. Cadernos de Pesquisa, (57), 20-29., p. 22).

No modelo EAD, de acordo com os depoimentos dos entrevistados, o trabalho do professor foi fragmentado e precário, apresentando-se disperso em uma rede. As funções educacionais são realizadas em locais e tempos distintos da docência. O processo de aprendizagem não é mais centralizado na figura do docente somente. Mudanças são observadas na organização da rotina para a preparação de aulas. Quando comparado ao ensino presencial, a velocidade que se imprime ao trabalho na EAD é maior e essa mudança gera impacto na rotina dos docentes. É o que se pode constatar no relato da Emília:

Você elenca o que acha mais importante e realmente cumpre-se, por exemplo, toda a ementa. A ementa do presencial é igual à ementa do EAD. Então você vai cumprir a ementa, sem problema nenhum. Mas eu acho que você acaba dando uma velocidade muito grande, né. Para tudo. Eu queria abordar em muito mais tempo, eu gostaria, mas nós não temos esse tempo. (Emília, participante, 2018).

O trabalho do professor está sendo controlado pela lógica capitalista, transformando a ação docente em produto que poderá ser comercializado como método de ensino e de material didático (Hypolito & Grishcke, 2013Hypolito, Á. M.; Grishcke, P. E. (2013). Trabalho imaterial e trabalho docente. Educação, 38(3), 507-522. doi: 10.5902/198464448998
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). Vejamos no relato de Paulo uma explanação sobre a limitação de tempo no seu trabalho em EAD:

Na EAD você dá lá em uma hora e vinte o que eu daria em três aulas no presencial. Então, você tem que ter um poder de administração do tempo muito grande, a aula não pode sobrar e a aula não pode faltar. Então o desafio é bem maior, muito maior, não tem nem comparação. (Paulo, participante, 2019).

O conteúdo na EAD é formatado para o padrão da aula. O docente não tem a possibilidade, dentro da limitação do tempo, de estender sua explicação sobre determinado assunto que deseje aprofundar. Como no relato acima, o tempo de apresentação do conteúdo é reduzido a um terço do tempo disponível no ensino presencial. Podemos questionar: qual é a velocidade da aprendizagem do estudante? Será que o que foi dito uma vez, de uma única forma no vídeo, pode ser considerado como conteúdo adquirido? E os procedimentos de repetição não cumprem um papel no processo de aprendizagem? No entanto, as aulas na EAD têm um padrão e conteúdos pré-determinados e, conforme os relatos, esses procedimentos devem ser seguidos.

Um dos impactos da EAD na atuação do docente foi a transformação do papel de ensinar em uma rotina produtivista que, além das aulas, cobra do professor a produção de material a ser utilizado com os estudantes na plataforma de ensino. Isso foi relatado por Paulo:

Por outro lado, o papel do professor, ele transcendeu um pouco o papel de ensinar, de passar o conteúdo. Hoje, nós temos uma carga de questões, por exemplo, que beira a desumanidade. É muito alta, é muito alta. Isso demanda sábado, isso demanda domingo e algumas madrugadas, né. O tempo é sempre muito curto. Então, esse papel me incomoda um pouco. Eu gostaria de ter esse tempo para preparar os meus conteúdos, de buscar novos conteúdos, de buscar novas informações que é um tempo que hoje eu já não tenho mais. E vira uma produção em massa, é um fordismo, um taylorismo e produz, produz. (Paulo, participante, 2019).

O estúdio de gravação aparece no relato dos docentes como gerador de novos componentes subjetivos, a serem considerados para análise. A relação que, no ensino presencial, ocorre com os estudantes, na EAD simplesmente inexiste. No seu lugar, há apenas o estúdio de gravação. Segundo Maia e Mattar (2007Maia, C.; Mattar, J. (2007). ABC da EaD: A educação a distância hoje. São Paulo: Pearson Prentice Hall.), nessa situação o docente na EAD não pode:

Controlar a direção da câmera e o que ela escolhe para dar zoom da mesma maneira como controlo o que atrai minha atenção quando a classe está na minha frente. Eu não posso me mover durante a aula, como ocorre na sala, chegando mais perto dos alunos, às vezes me afastando e encontrando assim a melhor perspectiva para a aula. E tampouco posso estabelecer contato pelo olhar. (p. 11).

A EAD submeteu o trabalho docente a uma evidente perda de autonomia e isso possibilitou a produção de conteúdos e a gravação de aulas. Conforme relatado por Moore e Kearsley (2008Moore, M.; Kearsley, G. (2008). Educação à distância: Uma visão integrada. São Paulo: Cengage Learning., p. 326), “os serviços educacionais são oferecidos em um mercado de massa com efeito concomitante sobre a qualidade do que é provido, pois a meta principal consiste em maximizar o produto final e o volume”. O trabalho docente pode então ser mensurado e quantificado, ou seja, controlado na lógica produtivista da EAD. Dessa forma, a atuação do docente fica reduzida ao que pode ser quantificado do seu trabalho. Vejamos, no complemento de Paulo, que este processo se apresenta como irreversível:

Eu só queria acrescentar que eu acho que não vai haver mudança nenhuma. Isso aqui não é mais uma tendência, já é uma realidade. O EAD é a modalidade de ensino que mais cresce no mundo, isso não tô falando agora nem no nível de Brasil, né. E quem não se adaptar... Eu falo que tem dois tipos de empresas ou profissionais: os que mudam e os que morrem. Ou nós mudamos como nós já mudamos... O professor do EAD ele é um camaleão: ele se adapta a qualquer coisa ou ele morre, ou ele tá fora. (Paulo, participante, 2019).

Nesta passagem é possível identificar todo um leque de modificações na prática laboral da docência. Essas podem ser consideradas indicadores da existência de relações de poder, nos termos da definição proposta por Foucault (1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In: P. Rabinow; H. Dreyfus(Eds.),Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica(V. P. Carrero, Trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária) para esse conceito. O autor considera:

De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age diretamente e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. (Foucault, 1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In: P. Rabinow; H. Dreyfus(Eds.),Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica(V. P. Carrero, Trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 243).

São diversos os poderes que estão intervindo para que o agir do professor se transforme. O modo de trabalhar do professor foi modificado pela EAD e para se adequar a ela. O relato acima transcrito acena com a possibilidade do desemprego, uma vez que a quantidade de professores desempregados representa uma ameaça aos docentes empregados. Na EAD, conforme os depoimentos até agora apresentados, além de o docente poder ser substituído por outro professor, há a possibilidade de reproduzir uma aula já gravada para outro curso ou para outro semestre. E essa reprodução não gerará custo para a instituição de ensino, nem salário para o docente o que torna esse profissional mais vulnerável (Penteado & Costa, 2021Penteado, R. Z.; Costa B. C. G. (2021). Trabalho docente com videoaulas em EAD: dificuldades de professores e desafios para a formação e a profissão docente. Educação em Revista, (37), 1-12. doi: 10.1590/0102-4698236284
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).

Esse poder é uma característica da sociedade de controle. Ao mesmo tempo em que o docente se sente pressionado, ele não é coagido por uma figura de autoridade que configurava a sociedade disciplinar. Com a disciplina internalizada, o trabalhador apresenta o que Hardt e Negri (2001Hardt, M.; Negri, A. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record.) denominam de gestão de si, o que nos mostra que o professor já se apresenta sob efeito de procedimentos impessoais, de mercado, que caracterizam uma sociedade de controle. “Assim, aos trabalhadores é atribuída a tarefa de adequarem-se ao perfil exigido pelas empresas e, por isso, o que poderia soar como opressivo estranhamente soa como exercício de autonomia” (Magno, Barbosa, & Martins, 2012Magno, A.; Barbosa, S.; Martins Jr, A. (2012). Da disciplina ao controle: Novos processos de subjetivação no mundo do trabalho. Política & Sociedade, 11(22), 75-92., p. 89). Podemos compreender as mudanças na organização do trabalho docente na EAD. Sua função foi modificada e dividida com novos agentes, que se fazem presentes no cotidiano do trabalho. Passaremos a seguir à compreensão das relações sociais construídas nesse modelo de ensino. Quando foram indagados sobre o relacionamento deles com os discentes, as repostas são enfáticas, conforme os fragmentos abaixo:

Eu… eu acho que é um contato distante. Eu acho que quem faz esse papel no EAD é o tutor. A gente pouco interage com o aluno. E se interage durante a aula, se ele perguntar alguma coisa, se ele tiver alguma oportunidade de interagir e ainda assim pelos tutores, né. Os questionamentos são selecionados pelos tutores. Então acho que quem faz essa interação com aluno quase que totalmente é o tutor. O nosso contato com o aluno é pouco. (Emília, participante, 2018).

A docente lida com os estudantes por meio da mediação dos tutores. Não há a possibilidade de conhecer os questionamentos e dúvidas dos discentes. Trata-se de uma relação mediada pela figura do tutor e completamente transformada em função disso. O participante Paulo relata que gostaria de ter relacionamento com seus estudantes, porém a dinâmica da EAD impossibilita esse relacionamento devido ao número de estudantes. Vejamos a seguir:

Nós não temos relação com aluno. Sim, eu gostaria de ter, mas nós não temos. Principalmente por causa da quantidade de alunos. Tem curso aí com uma dezena de milhares de alunos. Então, imagina a metade desses alunos querendo entrar em contato. (Paulo, participante, 2019).

Diferentemente de uma sala de aula presencial em que, pelo espaço físico, a quantidade de estudantes presentes encontra uma limitação numérica, na EAD a quantidade de discentes não tem limitador físico. Na EAD a ausência de estrutura física possibilita um aumento indefinido da quantidade de estudantes, que estão disseminados na plataforma de ensino, e isso também favorece as condições de precarização da atuação docente. E uma docência precarizada, nesse caso, resulta na ausência de acompanhamento dos estudantes que agora precisam ser capazes de estudar sozinhos. Vejamos:

Porque nós temos a cultura e quem vai fazer EAD, ele vai fazer porque é mais fácil, porque é mais tranquilo. E não. O EAD ele carece de muita disciplina. Eu chego a duvidar que eu tenha capacidade para fazer um curso EAD... Para entrar ali, acessar e estudar sozinho, né. Disciplinas extremamente complexas e o cara tem que aprender sozinho praticamente, porque ele não tem aquela interação com o professor. O que ele tem é aquele momento da aula e da aula atividade e mandar uma dúvida para o tutor. Então, ele não tem essa pronta resposta. Aí o que eu enxergo num percentual substancial desses alunos é a falta dessa disciplina, né. Eles estão acostumados com tudo com de mão beijada lá no presencial e com professor ali na cara, facilitando na prova, fazendo revisão e isso ele não tem no EAD. (Paulo, participante, 2019).

Nos relatos comparece a afirmação de que o discente não se apresenta preparado para o modelo EAD. Podemos entender que os estudantes, devido à transição da sociedade disciplinar para sociedade de controle, apresentam ainda resquícios do período disciplinar. A Universidade ainda é vista como uma instituição disciplinar na qual os discentes estudam sob o acompanhamento de uma figura de autoridade. Trata-se de uma herança do período disciplinar que se faz presente no ensino à distância.

No ensino presencial, o docente deverá lidar com situações que podem ser inusitadas. Do encontro e do relacionamento podem emergir situações não previstas pelos docentes. E essas situações exigem “soluções inéditas e que não dependem de um saber técnico. Assim, a maneira como cada professor irá agir diante dos afetos, das dificuldades e das situações imprevisíveis que emergem na relação com os alunos não podem ser simplesmente prescritas” (Mansano, 2009Mansano, S. R. V. (2009). Novas aventuras em sala de aula: Uma análise sobre a educação na sociedade de controle. Athenea digital, (17), 207-215., p. 213).

Na EAD, a relação com o docente é intermediada pelo estúdio de gravação de aula, sem a presença e sem o contato com o estudante. Diante desse cenário, os componentes subjetivos serão outros no trabalho dos professores. Tal como no relato de Emília:

Eu acho que, na EAD, também mudam as relações. Eu acho assim... Pelo não contato, os relacionamentos mudam. Isso me chama atenção. De você, por ter um volume muito grande, uma diversidade muito grande, então às vezes é... Eu acho que falta, assim, o ser professor, sabe? Parece que eu não me sinto professora às vezes. (Emília, participante, 2018).

A temática do estúdio comparece como parte incontornável da organização do trabalho do professor no ensino à distância. Já no campo dos relacionamentos, indagamos que relação é essa que se estabelece com a mediação do estúdio. Que tipo de relação aí se constitui? A mediação estabelecida pelas câmeras de gravação do estúdio aparece nos fragmentos que se seguem:

No estúdio, você tá se preocupando com o conteúdo. Você tem que tomar cuidado com a sua linguagem, você não pode fazer nenhum tipo de brincadeira, você tem que se preocupar com o retorno, seu posicionamento na frente da câmera, você tem que se preocupar com o tom de voz por causa do microfone. Até a roupa que você vai dar aula, uma camisa com listra você tem que se atentar senão as listras batem e fica ruim para o aluno enxergar, você tem que tomar cuidado com os regionalismos. Tem termos que, se eu for falar para outros estados, eles não sabem nem o que é. (Paulo, participante, 2019).

Os participantes mostram com seus relatos que na EAD as aulas são impessoais e os docentes não podem expressar suas particularidades. O padrão para a gravação limita a expressão do sujeito docente e deve ser seguido para a execução do trabalho. O docente, nesse cenário, relaciona-se com o estúdio e essa relação produz uma série de efeitos sobre sua atividade laboral. É possível, inclusive, identificar uma descaracterização da atividade tal como assinalado no estudo de Penteado e Costa (2021Penteado, R. Z.; Costa B. C. G. (2021). Trabalho docente com videoaulas em EAD: dificuldades de professores e desafios para a formação e a profissão docente. Educação em Revista, (37), 1-12. doi: 10.1590/0102-4698236284
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). Os autores consideram:

O desempenho e a desinibição do professor vêm sendo mais valorizados do que o domínio do conhecimento: e a linguagem audiovisual se torna um recurso didático importante. A estrutura da vídeoaula (ao integrar cenário, iluminação, captação por câmeras, enquadramentos, vinhetas, trilhas, dentre outros elementos) nitidamente contém semelhanças com a produção televisiva. (p. 7).

A transformação na atividade realizada, por sua vez, gera efeitos nos processos de subjetivação dos

docentes, tal como pode ser identificado na passagem que se segue: “os professores de EaD submetem seu próprio corpo, sua imagem e sujeitam a si e a sua prática a lógicas que interferem na construção da identidade docente e no fazer pedagógico - descaracterizando a docência” (Penteado & Costa, 2021Penteado, R. Z.; Costa B. C. G. (2021). Trabalho docente com videoaulas em EAD: dificuldades de professores e desafios para a formação e a profissão docente. Educação em Revista, (37), 1-12. doi: 10.1590/0102-4698236284
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, p. 14).

Novos componentes subjetivos são inseridos no contexto educacional EAD. Antes mesmo dessa nova configuração de ensino, Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.) já previa uma transformação radical nessa instituição. Em suas palavras: “Pode-se prever que a educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional - um outro meio fechado -, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente (Deleuze, 1992, p. 216). Para os docentes entrevistados, um desses novos componentes pode ser encontrado nos efeitos do uso da aula gravada, que possibilita uma avaliação unilateral, conforme o depoimento de Emília apresentado na sequência. Qualquer sujeito com acesso ao conteúdo da aula pode assistir e julgar sua atuação enquanto docente. Na ausência da relação com o outro, o docente não recebe a avaliação de seu trabalho e se sente julgado. Diz Emília:

Em todos, em todos os sentidos, julgado. Porque você é a vitrine da Universidade, então você é julgado, assim, pela Universidade, pelos alunos, pelo corpo pedagógico, sabe... Todo mundo tá te vendo. Essa exposição que você tem, e a cobrança mesmo de você ser perfeito em todas as aulas, que não acontece. (Emília, participante, 2018).

Com a aula gravada, os docentes podem ser avaliados o tempo todo. Isso gera uma ansiedade maior para executar uma performance que se distribui pela estética, pela roupa e pela competência teórica. A gravação das aulas se reverte em um grau de cobrança mais alto e em controle. A videoaula tem o potencial de provocar diferentes tipos de sofrimento psíquico decorrentes desse modo de organizar o trabalho. Assim, “Recaem na pessoa do professor: percepções, representações, vivências e sentimentos negativos que contribuem para desconfortos, frustrações, desmotivações e sobrecargas e esgotamentos físicos e psíquicos e outras formas de sofrimentos.” (Penteado & Costa, 2021Penteado, R. Z.; Costa B. C. G. (2021). Trabalho docente com videoaulas em EAD: dificuldades de professores e desafios para a formação e a profissão docente. Educação em Revista, (37), 1-12. doi: 10.1590/0102-4698236284
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, p. 14).

Além disso, não é necessário um agente pedagógico, presencialmente, monitorando o desempenho educacional do docente. Nesse momento, como é característica da sociedade de controle, o docente apresenta uma postura disciplinada internalizada. O controle de seu trabalho ocorre pela possibilidade de algum sujeito assistir à aula e avaliar sua atuação. A participante continua o relato explanando sobre as novas determinações que incidem sobre seu cotidiano de trabalho:

Tem roupa, tem maquiagem, tem tudo. Cabelo, maquiagem, se a roupa não está combinando, se a roupa… Sabe, é… Eu estava com uma blusa... Sei lá, você não pode vir nada... Imagina... Listra? Nem pensar. No dia que você dá aula, você não pode vir com florido, você não pode determinadas cores, blazer branco (Emília, participante, 2018).

A preocupação com o padrão estético para o processo de gravação é evidente. Os docentes precisam se adequar às novas demandas exigidas pelas tecnologias. Não há, na EAD, a possibilidade de o sujeito expressar-se, durante a aula, com seu estilo verbal próprio, tampouco com vestimentas ao seu gosto pessoal. A participante Emília complementa o relato sobre a relação do estúdio e a aparência, conforme fragmento abaixo:

O pessoal até tira sarro quando vão para aula, porque tão com a cara toda pintada. Tem uns colegas que falam: Ah, hoje você vai dar aula. Eu sempre falo: ‘Para que você acha que eu vou usar essa massa corrida, para quê? Só para dar aula mesmo’. Então, você pode ver que os rapazes estão de paletó, as meninas, também, com algumas coisas. Mas, a cara das mulheres tá sempre... Quando vai pra aula... Pintadona. Então essa é uma experiência boa. Assim, você se sente meio artista quando você vai para aula. (Emília, participante, 2018).

O impacto da introdução do processo serializado de gravação de aulas reverbera sobre o conjunto da produção de material educacional. É necessário considerar que a passagem para o EAD introduziu uma proximidade inédita entre a educação e as práticas vigentes nos meios de comunicação. Por efeito desse processo, é possível considerar que:

As teleaulas podem apontar para novas e criativas formas de comunicação entre professor e alunos, mas, também, restringir processos de formação à instrução e de conhecimento à informação. Isso acontece na transposição da aula expositiva tradicional para os meios de comunicação, quando o professor é tido como animador ou apresentador de conteúdos e os alunos como telespectadores. (Penteado & Costa, 2021Penteado, R. Z.; Costa B. C. G. (2021). Trabalho docente com videoaulas em EAD: dificuldades de professores e desafios para a formação e a profissão docente. Educação em Revista, (37), 1-12. doi: 10.1590/0102-4698236284
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, p. 6).

A interação passa a ser com as normas e técnicas do processo de gravação. Com a ausência de contato com os discentes, os professores não se preocupam mais com a indisciplina dos estudantes ou se estão atentos à suas explicações. Na EAD, pela mediação tecnológica, estas problemáticas foram suprimidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Que modalidade educacional é essa? Não se trata apenas de uma Educação à Distância, mas sim de um processo transfigurado pelo estúdio, pela mediação da tutoria e pelo efeito das redes sociais. O professor não pode expressar-se livremente com os discentes, nem mesmo utilizar-se de expressões regionais durante a aula. A aula gravada permite o controle do trabalho dos docentes. No ensino presencial, o professor hoje lida com a ameaça dos estudantes de gravar e divulgar a aula nas redes sociais. Na EAD, todas as aulas são gravadas e disponibilizadas a todos os que têm acesso à plataforma de ensino e os estudantes também podem divulgar suas críticas nas redes sociais. Diferente do ensino presencial com a limitação do espaço físico da sala de aula, a aula da EAD é transmitida a uma quantidade indeterminada de discentes.

Na sala de aula presencial, o docente tem o relacionamento direto, sem mediadores eletrônicos com os estudantes. O docente da EAD tem a relação com o estúdio de gravação. A EAD produz e reproduz como componente de subjetivação o isolamento do docente. Com ela encontramos, com frequência, docentes trabalhando voltados para si mesmos. Cabe assinalar também que com a emergência do contexto pandêmico causado pela SAR-COV-2 e instalado desde 2020, as atividades educacionais ligadas ao ensino na modalidade remota foram intensificadas. Com elas, os efeitos e transformações identificados nesta pesquisa deixaram de ser uma tendência para se afirmar como rotina no cotidiano de profissionais da educação e de estudantes. Os efeitos dessa intensificação ainda estão sendo investigados, o que abre um campo vasto para novas pesquisas na temática da EAD.

Como conclusão provisória, assinalamos que a condição laboral do professor foi tão transformada na passagem do ensino presencial para o ensino à distância, que docentes no regime de Educação à Distância por vezes não se reconhecem como professores. A coexistência de uma educação presencial e outra não presencial, consideradas como equivalentes do ponto de vista do reconhecimento social pode ser colocada em questão, dada a distância que os dois modelos guardam entre si. Por fim, ressaltamos a importância de se dar prosseguimento à investigação sobre como se constitui a subjetividade em cada um dos dois modelos educacionais. Nessa direção uma etapa estratégica seria a realização de uma pesquisa com estudantes que tenham cursado o ensino superior nos dois modelos para que mais implicações desta mudança disruptiva do cenário educacional sejam conhecidas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2019
  • Aceito
    20 Jul 2021
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