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Proposta de classificação da função velofaríngea na avaliação perceptivo-auditiva da fala

Resumos

TEMA: a avaliação perceptivo-auditiva da função velofaríngea apresenta limitações em função de sua subjetividade. OBJETIVO: propor um método de classificação baseado nos escores atribuídos à hipernasalidade, emissão de ar nasal e distúrbios articulatórios compensatórios. CONCLUSÃO: o uso do método traz inúmeras vantagens em termos de documentação clínica e de pesquisa e para acompanhamento de resultados terapêutico-cirúrgicos.

Insuficiência Velofaríngea; Hipernasalidade; Emissão Nasal; Transtornos da Articulação Craniofacial


BACKGROUND: the perceptual assessment of velopharyngeal function during speech presents some limitations due to its subjectivity. AIM: to propose a method for velopharyngeal function rating based on hypernasality, nasal air emission and compensatory articulation deficits scores. CONCLUSION: the proposed method shows several advantages in terms of clinical and research documentation and for an adequate follow-up of therapeutic and surgical outcomes.

Velopharyngeal Insufficiency; Hypernasality; Nasal Emission; Craniofacial Articulation Disorders


ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

Proposta de classificação da função velofaríngea na avaliação perceptivo-auditiva da fala* * Trabalho Realizado no Laboratório de Fisiologia do HRAC-USP, Bauru, SP.

Inge Elly Kiemle TrindadeI,1 1 ( ingetrin@usp.br) ; Katia Flores GenaroII; Renata Paciello YamashitaIII; Haline Coracine MiguelIV; Ana Paula FukushiroIV

IBiomédica. Professora Titular em Fisiologia do Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP)

IIFonoaudióloga. Professora Associada do Departamento de Fonoaudiologia da FOB-USP

IIIFonoaudióloga do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP). Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana (DCH) pelo HRAC-USP

IVFonoaudióloga do HRAC-USP. Mestre em DCH pelo HRAC-USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Inge Elly Kiemle Trindade R. Sílvio Marchione 3-20 - Vila Universitária Bauru - SP - CEP: 17012-900.

RESUMO

TEMA: a avaliação perceptivo-auditiva da função velofaríngea apresenta limitações em função de sua subjetividade.

OBJETIVO: propor um método de classificação baseado nos escores atribuídos à hipernasalidade, emissão de ar nasal e distúrbios articulatórios compensatórios.

CONCLUSÃO: o uso do método traz inúmeras vantagens em termos de documentação clínica e de pesquisa e para acompanhamento de resultados terapêutico-cirúrgicos.

Palavras-Chave: Insuficiência Velofaríngea; Hipernasalidade; Emissão Nasal; Transtornos da Articulação Craniofacial.

Introdução

A função velofaríngea normal é assegurada pelo movimento sincronizado das estruturas do mecanismo velofaríngeo - palato mole, paredes laterais e parede posterior da faringe, que desempenham papel fundamental na produção da fala na medida em que são responsáveis pela distribuição do fluxo aéreo expiratório e das vibrações acústicas para a cavidade oral, na produção dos sons orais, e, para a cavidade nasal, na produção dos sons nasais (Camargo et al., 2001; Kummer, 2001). A inadequação do mecanismo velofaríngeo pode afetar a fala de diferentes formas. O termo disfunção velofaríngea (DVF) é empregado, para definir qualquer alteração do mecanismo velofaríngeo resultante da falta de tecido em nível do palato mole para se alcançar o fechamento velofaríngeo adequado (insuficiência velofaríngea), ou da falta de competência neuromuscular no movimento das estruturas velofaríngeas (incompetência velofaríngea), ou ainda, conseqüência de maus hábitos articulatórios aprendidos na infância que não refletem alterações físicas ou neuromusculares (Johns et al., 2003). Os sintomas de fala mais comuns decorrentes da DVF são a hipernasalidade, a emissão de ar nasal (audível ou não) e os distúrbios articulatórios compensatórios (Trindade e Trindade Junior, 1996; Zuiani et al., 1998; Kummer, 2001; Yamashita et al., 2002; Johns et al., 2003).

A hipernasalidade é uma das manifestações clínicas mais marcantes da DVF e pode ser descrita como um desvio na qualidade vocal que resulta do acoplamento da nasofaringe com a orofaringe. Corresponde a um excesso de ressonância nasal acompanhando sons normalmente não nasalizados. No aspecto fisiológico, a hipernasalidade é o resultado de um fechamento velofaríngeo inadequado que leva à ressonância nasal dos sons que normalmente têm ressonância oral (Kummer, 2001; Peterson-Falzone et al., 2001).

A emissão de ar nasal é também característica da DVF. Corresponde à emissão inapropriada do fluxo aéreo pelo nariz durante a produção de consoantes de pressão. A emissão de ar nasal é perceptível durante a produção de consoantes de pressão plosivas, fricativas e africadas e pode variar desde emissões não audíveis até formas mais graves de emissão audível designadas como turbulência nasal (Kummer, 2001; Johns et al., 2003).

A ausência do fechamento velofaríngeo leva ainda ao aparecimento de articulações compensatórias, que podem ser consideradas como estratégias para compensar a incapacidade de impor pressão na cavidade oral. Segundo Trindade e Trindade Junior (1996), em termos aerodinâmicos, a falha no desempenho articulatório das estruturas da velofaringe tem como efeito principal a geração de uma pressão intra-oral em níveis insuficientes para a produção de consoantes plosivas, fricativas e africadas, com emissão nasal do ar expiratório. Assim, indivíduos com DVF freqüentemente substituem os sons articulados oralmente por sons articulados em pontos aquém do local da deficiência, na tentativa, por vezes inconsciente, de aproximar o resultado acústico o mais possível daquilo que consideram como um som normal. As articulações compensatórias, secundárias a DVF, mais freqüentes são: golpe de glote, fricativa faríngea, plosiva faríngea, fricativa velar, plosiva dorso-médio-palatal e fricativa nasal posterior (Kummer, 2001; Peterson-Falzone et al., 2001).

A avaliação perceptivo-auditiva é o principal indicador da significância clínica destes sintomas de fala e como tal, é parte essencial no diagnóstico da DVF, juntamente com o exame físico específico e o levantamento da história clínica do paciente (Trindade e Trindade Junior, 1996; Kummer et al., 2003). Com base no julgamento perceptivo da ressonância e da presença ou ausência de emissão de ar nasal e de articulações compensatórias durante a fala, é possível categorizar a função velofaríngea. Entretanto, apesar de sua reconhecida importância, a avaliação perceptiva apresenta certas limitações decorrentes de sua subjetividade. Assim, propomos no presente estudo um protocolo estruturado de julgamento clínico da função velofaríngea, baseado em escores.

Partindo do protocolo de avaliação perceptivo-auditiva da fala utilizada no Laboratório de Fisiologia do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC), elaborado segundo protocolo de Dalston (1983) e adaptado para a língua Portuguesa (Trindade e Trindade Junior, 1996), a função velofaríngea é graduada de acordo com os seguintes aspectos da fala: hipernasalidade, emissão de ar nasal e articulações compensatórias.

A ressonância é avaliada durante uma amostra de fala espontânea e também durante a repetição de vocábulos e frases. Em termos de hipernasalidade, a ressonância é classificada utilizando uma escala de seis pontos, onde 1 = ausência de hipernasalidade (ressonância oronasal equilibrada), 2 = hipernasalidade leve, 3 = hipernasalidade leve para moderada, 4 = hipernasalidade moderada, 5 = hipernasalidade moderada para grave e 6 = hipernasalidade grave. São considerados clinicamente significativos os escores iguais ou superiores a dois. A emissão de ar nasal é classificada de acordo com a quantidade de escape aéreo nasal, detectada no teste do espelho, durante o sopro, a emissão prolongada dos fonemas /i/,/u/, /f/, /s/ e /ò/ e de vocábulos e frases com fonemas plosivos e fricativos, considerando-se uma escala de seis pontos, onde 1 = ausência de emissão nasal, 2 = emissão nasal leve, 3 = emissão nasal leve para moderado, 4 = emissão nasal moderada, 5 = emissão nasal moderada para grave e 6 = emissão nasal grave. São considerados clinicamente significativos escores iguais ou superiores a três. As articulações compensatórias são classificadas em uma escala de 2 pontos, onde: 1 = ausente e 2 = presente.

Dependendo da combinação de escores observados para hipernasalidade, emissão nasal e articulações compensatórias, a função velofaríngea é, então, classificada numa escala de três pontos, onde 1 = função velofaríngea adequada, 2 = função velofaríngea marginal e 3 = função velofaríngea inadequada, conforme mostrado na Tabela 1. De acordo com o critério proposto, um indivíduo cuja fala é classificada como 1/1/1, significando que não existe hipernasalidade, emissão nasal e articulação compensatória é diagnosticado como tendo função velofaríngea adequada, que corresponde ao escore 1. Usando o mesmo raciocínio, um indivíduo com escores 6/6/2, significando hipernasalidade grave, emissão nasal grave e presença de articulação compensatória é diagnosticado como tendo função velofaríngea inadequada, que corresponde ao escore 3.

A título de ilustração apresentamos na Tabela 2 três situações observadas comumente na clínica de atendimento a portadores de fissura e que mostram a importância deste método de classificação da função velofaríngea particularmente, no acompanhamento dos resultados de intervenções cirúrgicas. O primeiro exemplo é o de um paciente portador de fissura de palato submucosa com indicação para palatoplastia primária. Na avaliação perceptivo-auditiva pré-cirúrgica, a hipernasalidade foi classificada como leve (2), a emissão de ar nasal, como leve (2) e ausência de articulações compensatórias (1). Com base no padrão 2/2/1 a função velofaríngea foi classificada como 2 (marginal). O paciente foi submetido à palatoplastia e na avaliação pós-cirúrgica (cinco meses) constatou-se a eliminação da hipernasalidade (1) assim como da emissão de ar nasal (1). Observou-se, portanto, após a cirurgia, o padrão 1/1/1, que corresponde a uma função velofaríngea adequada (1). A análise dos escores atribuídos ao caso, antes e após a cirurgia, evidenciam, claramente, a efetividade da palatoplastia neste paciente, inicialmente portador de função velofaríngea marginal. O segundo exemplo refere-se a um paciente portador de fissura de lábio e palato, já operada, com DVF e indicação para faringoplastia. Na avaliação perceptivo-auditiva pré-cirúrgica, o paciente apresentava hipernasalidade moderada (4), emissão de ar nasal moderada (4) e presença de articulações compensatórias (2). Com base no padrão 4/4/2 foi classificado como tendo função velofaríngea inadequada (3) no pré-cirúrgico. O paciente foi submetido, então, à cirurgia de retalho faríngeo de pedículo superior. Na avaliação pós-cirúrgica (um ano e seis meses) realizada, verificou-se ressonância oronasal equilibrada (1), ausência de emissão de ar nasal (1) e ausência de distúrbio articulatório compensatório (1). Com a cirurgia o paciente passou a apresentar o padrão 1/1/1, e, portanto, função velofaríngea adequada (1). Os dados evidenciam claramente a resolução da inadequação velofaríngea produzida pelo retalho faríngeo (de 3 para 1). Podemos citar, finalmente, o caso de um paciente portador de fissura de lábio e palato, já operada, com deficiência maxilar e indicação para cirurgia ortognática. Na avaliação perceptivo-auditiva pré-cirúrgica, o paciente apresentava ressonância oronasal equilibrada (1); ausência de emissão de ar nasal (1) e ausência de articulações compensatórias (1). Com base no padrão 1/1/1 a função velofaríngea pré-cirúrgica foi classificada como 1 (adequada). O paciente foi, então, submetido à cirurgia ortognática envolvendo avanço de maxila em dois segmentos com enxerto, turbinectomia bilateral e septoplastia. Na avaliação pós-cirúrgica (cinco meses) verificou-se: hipernasalidade leve para moderada (3); emissão de ar nasal moderado (4) e ausência de articulações compensatórias (1). Em função do padrão 3/4/1, a função velofaríngea no pós-cirúrgico foi classificada como 3 (inadequada). A análise dos escores mostra claramente a deterioração da função velofaríngea determinada pela cirurgia ortognática com avanço de maxila, de um para três.

Conclusão

A classificação da função velofaríngea em escores como proposto no presente estudo tem sido utilizada de rotina na prática clínica do Laboratório de Fisiologia do HRAC - Universidade de São Paulo (USP), incorporada na avaliação de fala de cada paciente. Face à natureza usualmente descritiva das avaliações perceptivas, o uso de um protocolo mais estruturado mostrou ser uma ferramente útil no diagnóstico da disfunção velofaríngea e na documentação dos achados, particularmente no acompanhamento de resultados cirúrgicos e terapêuticos. Um estudo em andamento em nosso Laboratório pretende mostrar que o protocolo proposto também favorece a concordância intra e inter-avaliadores. A experiência dos autores até o momento mostrou que o protocolo é uma importante adição à clínica de atendimento a pacientes com fissura palatina.

Recebido em 28.10.2003.

Revisado em 1.03.2004; 14.06.2004; 2.12.2004; 7.02.2005; 10.06.2005.

Aceito para Publicação em 24.06.2005.

Artigo de Atualização

Artigo Submetido a Avaliação por Pares

Conflito de Interesse: não

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  • Endereço para correspondência:
    Inge Elly Kiemle Trindade
    R. Sílvio Marchione 3-20 - Vila Universitária
    Bauru - SP - CEP: 17012-900.
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    Trabalho Realizado no Laboratório de Fisiologia do HRAC-USP, Bauru, SP.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      24 Jun 2005
    • Revisado
      10 Jun 2005
    • Recebido
      28 Out 2003
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