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Entre o poema e a imagem: o campo de concentração e o percurso pela memória e linguagem em Paul Celan e Didi-Huberman

Between the poem and the image: the concentration camp and the route through memory and language in Paul Celan and Didi-Huberman

Resumo

Neste artigo, proponho a aproximação do poema “Engführung” (1958), do poeta Paul Celan, com o ensaio Cascas (2011 [2017]), do historiador de arte francês Georges Didi-Huberman, tomando como ponto de partida a ideia de percurso que atravessa ambas as obras. Para tanto, baseio-me nas leituras que Joachim Seng faz do poema de Celan (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.; 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.), nas quais lê “Engführung” como um trajeto do eu-poético pelo campo de concentração (Auschwitz) que é, ao mesmo tempo, campo da memória e linguagem. Em Cascas, Didi-Huberman relata o percurso da sua visita a Auschwitz, enfocando o papel do olhar na realização do trabalho da memória. Nesse sentido, ao posicionar lado a lado o poema e o ensaio, estes parecem apontar para modos de olhar e dizer Auschwitz que colocam para o leitor as tensões inerentes a este movimento, não se omitem desta tarefa ética e refletem criticamente a postura individual e coletiva diante da lacuna do testemunho e do que resta do campo de concentração.

Palavras-chaves:
Paul Celan; Georges Didi-Huberman; Poesia; Memória; Linguagem

Abstract

I propose in this article a reading of the poem “Engführung” (1958), by the poet Paul Celan, with the essay Cascas (2011 [2017]), by the French art historian Georges Didi-Huberman, taking as a starting point the idea of path that crosses both works. To do this, I rely on Joachim Seng's readings of Celan's poem (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.; 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.), in which he sees “Engführung” as a route of the lyrical subject through the concentration camp (Auschwitz) which is, at the same time, a field of memory and language. In Cascas, Didi-Huberman recounts the route of a visit to Auschwitz, focusing on the role of the eye in the realization of the work of memory. In this sense, when placing the poem and the essay side by side, they seem to point out ways of looking and saying Auschwitz that offer to the reader the tensions inherent in this movement, ways that do not neglect this ethical task and reflect critically the individual and collective stance before the testimony gap and what still remains of the concentration camp.

Keywords:
Paul Celan; Georges Didi-Huberman; Poetry; Memory; Language

Zusammenfassung

In diesem Artikel nehme ich mir eine Annäherung zwischen dem Gedicht “Engführung” (1958) des Dichters Paul Celan mit dem Aufsatz Cascas (2011 [2017]) des französischen Kunsthistorikers Georges Didi-Huberman vor, wobei die Idee des Weges, die beide Werke durchdringt, als Ausgangspunkt dient. Dazu basiere ich mich auf Joachim Sengs Lesungen von Celans Gedicht (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.; 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.), in denen er “Engführung” als einen Weg des poetischen Ichs durch das Konzentrationslager (Auschwitz) liest, der gleichzeitig Feld der Erinnerung und der Sprache ist. In Cascas erzählt uns Didi-Huberman über einen Besuch in Auschwitz, wobei er sich auf die Rolle des Auges bei der Ausführung der Erinnerungsarbeit konzentriert. In diesem Sinne scheinen sie, wenn wir das Gedicht und den Aufsatz gegenüberstellen, auf Sicht- und Sprechweise von Auschwitz hinzuweisen, die dem Leser die dieser Bewegung innewohnenden Spannungen vermitteln, welche diese ethische Aufgabe nicht vernachlässigen, und die individuelle und kollektive Haltung gegenüber dem Problem der Zeugnislücke und dem, was vom Konzentrationslager noch übrig bleibt, kritisch erwägt.

Stichwörter:
Paul Celan; Georges Didi-Huberman; Gedicht; Gedächtnis; Sprache

eu queria apenas calar mas calando minto eu queria apenas andar mas andando pisoteio Jerzy Ficowski

1 Introdução

Para Adorno, o risco ao qual a indústria cultural nos submete seria o da ordem do embotamento dos sentidos e da linguagem, pois a infraestrutura da ordem econômica e política regente, transfigurada em ideologia ao nível estrutural (e aqui pensando a cultura como parte desse nível) da sociedade, produziria formas pré-moldadas às quais os discursos da memória, da política e das artes, entre outros, seriam alocados. O que anularia, assim, os potenciais não-conciliatórios desses discursos em favor de uma conciliação afirmadora do discurso ideológico da ideologia dominante. É nesse sentido que podemos entender a frase “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro” (ADORNO 2002ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. Trad.: Augustin Wernet e Jorge Matos Britto de Almeida. São Paulo: Paz e Terra, 2002, 45-61.: 61), há alguns anos revisitada por Jeanne Marie Gagnebin, que dela diz:

Ora, no contexto do ensaio sobre “Crítica à cultura e à sociedade”, que é concluído por tal frase, tal sentença ressalta muito mais a urgência de um pensamento não harmonizante, mas impiedosamente crítico - isto é, a necessidade da cultura enquanto instância negativa e utópica, contra sua degradação a máquina de entretenimento e de esquecimento (esquecimento, sobretudo, do passado nazista nessa Alemanha em reconstrução). (GAGNEBIN 2009GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz”. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009, 69-81.: 72)

Contextualizando a frase adorniana, Gagnebin chama a atenção não para uma proibição que ela colocaria, como muitas vezes a sentença foi interpretada, mas para um dever ético da cultura após Auschwitz: não esquecer dos mortos. Tal trabalho ético exigiria da cultura uma confrontação com a Shoah que não fosse nem da ordem do fetiche, transformando-a em mais um produto cultural a ser consumido, nem da ordem da comoção, tornando-a um “lugar de expurgo” no qual, após as lágrimas pelas vítimas, a questão se daria por resolvida. O dever da cultura então seria evitar ser “um engodo, um compromisso covarde, ‘um documento de barbárie’, como disse Walter Benjamin” (GAGNEBIN 2009GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz”. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009, 69-81.: 72).

O poeta de língua alemã Paul Celan, nascido em 1920 na cidade de Tchernovtsi, não estava pouco atento às discussões de Adorno2 2 Celan e Adorno acompanharam com atenção o trabalho um do outro, inclusive trocando correspondência por anos. Mais sobre esta relação, ver a parte “Excurs: Das Gedicht nach Auschwitz - Celans Auseneindersetzung mit Adorno” em: SENG, J. Das zyklische Gedicht „ENGFÜHRUNG“. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: Universitätsverlag Winter, 1998, 257-283. , e nem às diferentes e transfiguradas maneiras discursivas pelas quais o antissemitismo se fazia ainda presente na cultura. Em 1958 o poeta, que era de origem judaica e sobrevivente da Shoah, finaliza o poema “Engführung” [Estreito], o qual, segundo a leitura do crítico Joachim Seng (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.; 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.), tematiza um percurso por um campo de concentração3 3 Se levarmos em conta o documentário Nuit et Brouillard (Noite e Neblina), de 1955, o qual Celan traduziu a narração para a versão alemã Nacht und Nebel pouco antes de terminar “Engführung”, podemos associar o campo de concentração com o complexo Auschwitz-Birkenau (SENG 1992). que é, ao mesmo tempo, um percurso pela memória e pela linguagem. O poema, que contém 180 versos e é o mais longo publicado por Celan, é também o último do livro Sprachgitter [Grade da fala], de 1959. Perspectivar o poema celaniano a partir da leitura de Seng permite lembrar outro percurso pelo campo-memória dos mortos e do que deles e da máquina de morte nazista restou: o livro-ensaio Cascas, originalmente publicado em 2011 e no Brasil em 2017, do historiador de arte francês Georges Didi-Huberman, nascido em 1953 e também descendente de judeus. Em prosa ensaística, Didi-Huberman discorre sobre uma certa ética de olhar para o campo de concentração, sobretudo parao que dele restou e dele se fez. Seu ponto de partida é uma visita que faz a Auschwitz, na qual tira algumas fotografias do campo de concentração. As fotografias, em geral, são pouco convencionais ou “turísticas” e registram lugares e detalhes menos visualizados (entre elas há, por exemplo, a fotografia de um pássaro entre arames farpados, uma rosa artificial no paredão de execuções, a floresta de bétulas em volta do campo, etc). Com exceção da primeira, no início de cada parte do livro o autor apresenta algumas dessas fotografias e, a partir delas, elabora suas reflexões. O relato de Didi-Huberman é movido pela experiência pessoal (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 90), mas o autor é cuidadoso em não centralizá-lo em torno do seu próprio eu. O título “Cascas”, que antecipa o enfoque do texto, advém de três cascas de bétulas retiradas das árvores do campo de concentração, que são apresentadas já na primeira parte, e apontam o interesse do autor em trabalhar com o poder testemunhal dos resíduos e dos objetos esquecidos pela historiografia tradicional.

Neste artigo gostaria de traçar possíveis aproximações entre o poema de Celan4 4 A versão utilizada do poema é a que está nos poemas completos comentados e editados por Barbara Wiedemann (2017). A tradução é de Guilherme Gontijo Flores (2017). Não pretendo aqui analisar criticamente a tradução de Gontijo, apesar disso comento brevemente, ao longo do texto, algumas outras soluções tradutórias possíveis para trechos específicos do poema de Celan, com vista a aproximar a tradução do poema às leituras críticas propostas por Jochiam Seng. A tradução de Flores pode ser encontrada em: MACIEL, Sérgio. 3 traduções para um poema de Paul Celan. Blog Escamandro, 2017. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2017/04/07/3-traducoes-para-1-poema-de-paul-celan/ (21/08/2020). e o ensaio de Didi-Huberman, tendo em vista como ambos tratam o problema da presença da Shoah na linguagem, trabalhando a partir de uma ética que não a fetichiza ou concilia o seu caráter radicalmente não conciliatório, e que, ao mesmo tempo, não recai nos perigos de torná-la um acontecimento da ordem do inefável. Mesmo que de gerações diferentes, sendo o historiador francês mais novo, ambos textos parecem compartilhar uma noção de percurso como forma de reconhecimento, trabalho de memória e reflexão metalinguística e imaginativa por parte do sujeito-observador poético e histórico que atravessa o campo. Tal fator torna o poema e o ensaio aproximáveis, como formas de linguagem diferentes que, quando visadas a partir de ângulos que privilegiem cruzamentos possíveis, têm o potencial de produzir diálogos profundos e prolíferos.

2 “Isto é inimaginável”5 5 “Mas, se devo continuar a escrever, ajustar o foco, fotografar, montar minhas imagens, e pensar isso tudo, é precisamente para tornar uma frase desse tipo incompleta. Cumpriria dizer: “Isso é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN 2017: 30).

Lembra Joachim Seng como em “Engführung” temos um poema que alcançou “um outro estágio da reflexão poética e um outro modo da linguagem”6 6 “Para ele [Celan] tratou-se de documentar que, com os poemas do livro “Sprachgitter” em geral, e com “Engführung” em particular, um outro estágio da reflexão poética e um outro modo da linguagem foram alcançados, com respostas mais apressadas, ofegantes e com menor intervalo , de modo que as vozes interrompem umas às outras.”. No original alemão: „Es ging ihm [Celan] dabei vor allem darum, zu dokumentieren, dass es mit den Gedichten des ‘Sprachgitter‘-Buches im Allgemeinen und mit der 'ENGFÜHRUNG' im Besonderen ein anderes Stadium der poetischen Reflexion und eine andere lyrisch Sprechweise erreicht hatte, in der die Antworten hastiger, atemloser und in kürzerem Abstand, so dass die Stimmen einander ins Wort fallen.” Todas as traduções dos trechos de Seng são minhas (quando não aparecem em nota, estão no corpo do texto). Demais traduções sem indicação de tradutor também são de minha autoria. (1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.: 259) na poética de Celan. Comumente, afirma Seng, o poema é contraposto ao “Todesfuge” (1945), tanto por serem ambos extensos, entre os mais longos da obra de Celan, quanto por certa estrutura musical que compartilham, pela qual Celan, em “Todesfuge”, foi muito criticado, e que em “Engführung” aparece de forma fragmentada. Além disso, ambos poemas, como outros da obra de Celan, levam centralmente em seus discursos a memória dos mortos da Shoah. Levando tais fatores em conta, Seng aproxima “Engführung” às imagens do documentário de 1955 Nuit et Brouillard (lançado no Brasil como “Noite e Neblina”), o qual Celan traduziu para o alemão pouco antes compor o poema. Lembra o crítico (1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.) como já na primeira parte7 7 “Engführung” é, ao mesmo tempo, o último ciclo do livro Sprachgitter (1959), composto por seis ciclos. O poema está divido em nove partes, separadas por asteriscos. A não ser na primeira parte, os dois últimos versos de cada parte são repetidos no começo da parte seguinte, formando um entrelaçamento de vozes. Lembra Seng (1992; 1998) que, na teoria música, Engführung (stretto ou estreito) refere-se a uma técnica de composição em que há uma conexão contrapontística entre duas ou mais vozes de tema melódico igual, sendo frequentemente utilizada no final de uma fuga. do poema temos o que, no documentário, corresponderia às cenas iniciais, nas quais, em planos abertos, vemos imagens exteriores do complexo de Auschwitz-Birkenau.

* * VERBRACHT ins Enviados ao Gelände terreno mit der untrüglichen Spur: com o inequívoco rastro: Gras, auseinandergeschrieben. Die Steine, weiß, capim, escrito à parte. As pedras, brancas, mit den Schatten der Halme: com as sombras dos talos: Lies nicht mehr - schau! Leia não - olhe! Schau nicht mehr - geh! Olhe não - vá! Geh, deine Stunde Vá, tua hora hat keine Schwestern, du bist - não tem irmãs, você está - bist zuhause. Ein Rad, langsam, está em casa. Uma roda, lenta, rollt aus sich selber, die Speichen gira em si mesma, os raios klettern, sobem, klettern auf schwärzlichem Feld, die Nacht sobem em campo breu, a noite braucht keine Sterne, nirgends não pede estrela, nenhures fragt es nach dir. perguntam por você.

Assinala Seng que a primeira palavra do poema, Verbracht (Enviados), era o jargão oficinal nazista para deportação e marcava aqueles que chegavam ao campo de concentração. Através dessa palavra, o poema parece posicionar tanto o eu-poético como o leitor diante do campo. Importante ressaltar que o poema começa no meio da página, o que, na leitura de Seng, indica o silêncio visível anterior a ele, e que também pode ser entendido como próprio campo da página, através da qual o caminho da memória será percorrido. Como no documentário de Resnais (1955NUIT et Brouillard. Direção de Alain Resnais. Neuilly sur Seine: Argos Films, 1955. 1 DVD (32 min).), que intercala entre imagens coloridas e em preto e branco para representar o presente e o passado, o Verbracht refere-se tanto ao eu-poético que percorre o campo de concentração após a Shoah, quanto àqueles que o percorreram em suas mortes, agora presentes na memória e também nos restos do próprio campo. O percurso encenado no poema de Celan tem como objetivo realizar o trabalho ético de individualizar a memória dos mortos, soterrados no campo, de “escrever a grama à parte” (Gras, auseinandergeschrieben”). Por isso, de cada grama (Gras) que lá cresceu é preciso olhar o talo (Halm), nesta paisagem de “nove” milhões de mortos”8 8 “Nove milhões de mortos assombram esta paisagem.” escreveu Jean Cayrol (1955, 32 min), roteirista de Nuit et Brouillard (Noite e Neblina). Segundo matéria publicada pelo jornal El País em Setembro de 2017, historiadores como Raul Hilberg (1926-2007), Saul Friedländer (1932-) e Timothy Snyder (1969-), além de instituições como Yad Vashem de Jerusalém e o Museu do Holocausto de Washington, contabilizam cerca de seis milhões de mortos na Shoah. Ver: ALTARES, Guillermo. Por que falamos de seis milhões de mortos no Holocausto?. El País, Madrid, 16 de set. de 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/13/internacional/1505304165_877872.html (06/11/2020). (1955NUIT et Brouillard. Direção de Alain Resnais. Neuilly sur Seine: Argos Films, 1955. 1 DVD (32 min).). Nesse ponto a voz no imperativo coloca um dever para esse eu-poético que atravessa o campo: “Lies nicht mehr - schau!/ Schau nicht mehr - geh!” (“Não leia não - veja!/ Não veja não - vá”). O dever de ver, mas não somente, também o de ir, o dever de praticar uma observação ativa, de ir com o olhar ou de levar o olhar na caminhada. Afinal, o que se lê em Auschwitz? Relata Didi-Huberman:

Cheguei ao complexo de Auschwitz-Birkenau num domingo de manhã, bem cedo, num horário em que a entrada ainda é livre - adjetivo estranho pensando bem, mas que dá sentido a nossa vida de cada instante, adjetivo do qual deveríamos saber desconfiar quando o lemos em letras explícitas demais, por exemplo no ferro batido do famoso pórtico Arbeit macht frei [...]. (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 16)

E ainda, um pouco mais adiante:

Aqui e aqui, outras tabuletas: [...]. Tabuletas para administrar o tráfico humano, como tantas há, incontornáveis, onipresentes. Leio ainda a palavra Vorsicht (“Atenção!”) atravessada por um raio vermelho e seguida pelas palavras Hochspannung - Lebensgefahr, isto é, “Alta tensão” e “Perigo de vida” (quer-se, naturalmente, indicar com isso perigo de morte). Hoje, porém, Vorsicht parece-me soar bem diversamente: antes como um convite a dirigir a vista (Sicht) para um “diante” (vor) do espaço, para um “antes” (vor) do tempo, até mesmo para uma causa do que vemos (como na expressão vor Hunger sterben, “morrer de fome”) - causa ou “coisa originária” (Ursache) cuja eficácia para a “coisa” dos campos não terminamos de investigar. (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 16-17)

A leitura do que apareceria de forma mais imediata para o observador que adentra o campo: as placas, as tabuletas, as indicações e orientações, são partes da linguagem falsa da máquina de morte. “O trabalho liberta” ou “Perigo de morte” - transparece certo grau de ironia desta linguagem quando uma placa alerta para o risco de morte por choque na cerca elétrica de um campo de concentração, lugar que tem por objetivo final o extermínio dos seus prisioneiros - fazem, aqui, parte da mesma venenosa linguagem nazista, como caracteriza Victor Klemperer9 9 “Mas a língua não se contenta em poetizar e pensar por mim. Também conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua cultura tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passando um tempo, o efeito do veneno se faz notar.” (2009: 55) (2009KLEMPERER. Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich. Trad.: Miriam Bettina Paulina Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.), que “altera o sentido das palavras e a frequência de seu uso” (KLEMPERER 2009KLEMPERER. Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich. Trad.: Miriam Bettina Paulina Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.: 56). Diante dessa linguagem falsa, é preciso ir além, isto é, ler (e ver) para além do imediatamente escrito, para além da ordem dessa linguagem: “Olhei, julgando que olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito” (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 09), afirma Didi-Huberman nas primeiras linhas de seu ensaio ao observar atentamente cascas de bétulas de Auschwitz. A tarefa está em digerir a vista (Sicht) para um “diante” (vor) do espaço e um “antes” (vor) do tempo, ou se invertermos: para um antes, a memória, e um diante, o próprio campo. Olhar o próprio campo a partir de uma vista dirigida, isto é, ativa, ir adiante com o olhar, não ler mais o imediato, o que está dado, mas o que está para além do imediato. Nesse ponto, precisamente, parece que tanto o poema quanto o relato do historiador francês colocam uma tarefa semelhante, um imperativo que passa do olhar domesticado, aquele mediado pelo discurso ideológico que produz o esquecimento de Auschwitz, para o olhar ativo, para o olhar e o caminhar, o olhar no percurso, com o percurso. Para usar uma imagem cara à poética de Celan, tratar-se-ia aqui de remover o véu do olhar.

Mas somente o olhar, quando não acompanhado do movimento ativo, pode ser ele mesmo também falso. Seria preciso, para além dele, refazer o caminho, insistir no atravessar, ir com o ser na linguagem. Lembra Celan em outro texto:

No meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva - a língua. Sim, apesar de tudo, ela, a língua, permaneceu a salvo. Mas depois teve de atravessar o seu próprio vazio de respostas, o terrível emudecimento, as mil trevas de um discurso letal. Ela fez a travessia e não gastou uma palavra com o que aconteceu, mas atravessou esses acontecimentos. Fez a travessia e pôde reemergir “enriquecida” com tudo isso. Nesses anos e nos seguintes tentei escrever poemas nesta língua: para falar, para me orientar, para saber onde me encontrava e onde isso iria me levar, para fazer o meu projeto de realidade.

Foi, como podem ver, acontecimento, movimento, estar sempre a caminho, foi a tentativa de encontrar um rumo. [...]. (CELAN 1996CELAN, Paul. Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen (1958). In: CELAN, Paul. Arte Poética - O Meridiano e outros textos. Organização e tradução: João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, 31-33.: 33-34)10 10 „Erreichbar, nah und unverloren blieb inmitten der Verluste dies eine: die Sprache. Sie, die Sprache, blieb unverloren, já, troz allem. Aber sie mußte nun hindurchgehen durch ihre eigenen Antwortlosigkeiten, hindurchgehen durch furchtbares Verstummen, hindurchgehen durch die tausend Finsternisse todbringender Rede. Sie ging hindurch und gab keine Worte her für das, was geschah; aber sie ging durch dieses Geschehen. Ging hindurch und durfte wieder zutage treten, ‚angereichert‘ von all dem. In dieser Sprache habe ich, in jenen Jahren und in den Jahren nachher, Gedichte zu schreiben versucht: um zu sprechen, um mich zu orientieren, um zu erkunden, wo ich mich befand und wohin es mit mir wollte, um mir Wirklichkeit zu entwerfen. Es war, Sie sehen es, Ereignis, Bewegung, Unterwegsein, es war der Versuch, Richtung zu gewinnen. […]” ( 2014 : 23-24)

A insistência em uma linguagem [Sprache] que pudesse atravessar o “terrível emudecimento” e “as mil trevas de um discurso fatal”, a insistência em uma linguagem [Sprache] que falasse a verdade e não estivesse submetida pela alienação ecoa a insistência de Didi-Huberman pelo trabalho de imaginação, de imaginar o inimaginável, o trabalho de não se resignar diante da aporia do inefável:

Olhei, era inimaginável e simples ao mesmo tempo. Descortinando, ao longe, a rampa da triagem - com um grupo rarefeito de turistas na aleia frontal -, senti claramente o inimaginável da realidade passada (a tragédia das triagens) como o inimaginável do ponto de vista passado (a verificação, diante da mesma janela, do funcionamento correto das coisas por parte dos SS de plantão). O inimaginável, no caso das vítimas, foi a impossibilidade de forjar uma imagem clara dos minutos que se seguiriam, que iriam consumar - consumir - seu destino. Ou então, a recusa, no caso do SS de plantão, a imaginar a humanidade dos homens, mulheres e crianças que ele observava do alto e à distância. Mas hoje, para mim, nesta página, para qualquer um diante de um livro de história ou no território de Auschwitz, é a necessidade de não se resignar a esse impasse da imaginação, esse impasse que foi precisamente uma das grandes forças estratégicas - via mentiras e brutalidades - do sistema de extermínio nazista. (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 30-31)

O longo trecho do relato de Didi-Huberman aponta para uma postura ética diante Auschwitz (e de toda a Shoah) que recusa o emudecimento do inefável e reforça a importância de imaginar, de “não se resignar a esse impasse da imaginação”, impasse que seria “uma das grandes forças estratégias sob o sistema de extermínio nazista” (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 30-31). É válido lembrar aqui que os nazistas não apenas tentaram esconder os campos de concentração e o que neles acontecia, como também, ao perceberem que a guerra estava perdida, esforçaram-se em apagar a existência dos campos, dinamitando crematórios (como em Auschwitz), transferindo (e executando) prisioneiros e queimando uma série de documentos que comprovaram o que acontecia nos campos. Logo, para Didi-Huberman, se deixar levar pelo silêncio do inefável (e não do respeito) seria corroborar este objetivo. Nesse sentido, lembra bastante Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad.: Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008.: 41) quando, sobre a Shoah, se pergunta: “Mas por que indizível? Por que atribuir ao extermínio o prestígio da mística?”

3 Veio uma palavra

Nirgends Nenhures fragt es nach dir - perguntam por você - Der Ort, wo sie lagen, er hat O lugar onde jaziam tem einen Namen - er hat um nome - tem keinen. Sie lagen nicht dort. Etwas nenhum. Não jaziam ali. Algo lag zwischen ihnen. Sie jazia entre eles. Não sahn nicht hindurch. viam através. Sahn nicht, nein, Não viam, não, redeten von falavam de Worten. Keines palavras. Nenhum erwachte, der despertou, o Schlaf sono kam über sie. veio sobre todos. * *

Na segunda parte do poema, no terceiro e quarto verso, onde temos: “Der Ort, wo sie lagen, er hat/ einen Namen - er hat/ keinen.” (“O lugar onde jaziam tem/ um nome - tem/ nenhum”), o pronome “sie” (eles) produz certa equivocidade em relação ao seu referente. Para Seng (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.), com o pronome estaria Celan se referindo tanto aos seus pais, que morreram Cariera de Piatra (o lugar onde jaziam tem um nome), como também, ao mesmo tempo, a todos os campos onde os milhões de mortos da Shoah morreram (O lugar onde jaziam tem um nome - tem nenhum). Seng (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.: 75), que interpreta a referência biográfica, vê “uma conexão causal entre uma deficiência de linguagem e o desastre vivido pelas pessoas”11 11 „Hier wird ein ursächlicher Zusammenhang zwischen einem Sprachdefizit und dem Unheil von Menschen hergestellt.“ , que “falavam de palavras” (“redeten von Worten”) que não as “acordaram” (“keines erwachte”), quando a desgraça funesta caiu sobre elas (“Schlaf/ kam über sie”). Na quinta parte, o poema prossegue:

Deckte es O cobriu - zu - wer? quem? Kam, kam. Veio, veio. Kam ein Wort, kam, Veio uma palavra, veio, kam durch die Nacht, veio pela noite. wollt leuchten, wollt leuchten. queria luzir, queria luzir. Asche. Cinzas. Asche, Asche. Cinzas, cinzas. Nacht. Noite. Nacht-und-Nacht. - Zum Noite-e-noite. - Vá Aug geh, zum feuchten. no olho, no úmido. * *

Neste ponto, a palavra que vem pela noite e tenta luzir é, ela mesma, a própria cinza. O verso indica uma voz poética que “desconfia do belo e gostaria de ser verdade” (Seng 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.: 275)12 12 “No desenvolvimento sintático da quinta parte do rascunho até a versão final já pode ser lido como o poeta apresenta uma voz poética que desconfia do belo e gostaria de ser verdade”. No original alemão: „So wird bereits an der syntaktischen Entwicklung der füften Partie von den Entwürfen zur Endfassung ablesbar, wie sich der Dichter ein lyrisches Sprechen vorstellt, das dem ‚Schönen‘ mißtraut und wahr sein möchte.“ A palavra que quis luzir aparece, enquanto “cinza”, tanto como o contrário da linguagem da ordem do belo, isto é, o escuro ao contrário do claro, quanto como sendo, tal aponta Seng, a própria cinza dos mortos, passando por um processo de desmetaforização da imagem. Este processo acentua o peso da palavra e do próprio poema, que estabelece a continuidade da escuridão. Mas também esta escuridão, poderíamos dizer, não é tateada às cegas, pois as cinzas da noite vão “no olho, no úmido” (“Zum/ Aug geh, zum feuchten”), um olho que pela umidade pode ser entendido como um olho vivo, um olho que vê, um olho que sente a cinza, que é o próprio resto dos mortos. Diante dos restos de Auschwitz, diz Didi-Huberman:

Logo, nunca poderemos dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Para saber desconfiar do que vemos, devemos saber mais, ver, apesar de tudo. Apesar da destruição, da supressão de todas as coisas. Convém saber olhar como um arqueólogo. E é através de um olhar desse tipo - e de uma interrogação desse tipo - que vemos que as coisas começam as nos olhar a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados. (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 61)

A desconfiança que está por trás de um certo processo da memória, segundo o autor, tem o olhar como ponto central de operação. Estaria, em uma certa postura do olhar, a possibilidade do trabalho de memória a partir da investigação do que restou ou foi esquecido, o que foi deixado para trás por discursos historiográficos somente preocupados em recontar, linearmente, a cronologia dos eventos e as circunstâncias históricas principais, ou o que foi considerado irrelevante justamente pelo seu caráter de pouca visibilidade.13 13 Lembra Agamben, logo no começo de seu livro, que se por um lado “o problemas das circunstâncias históricas (materiais técnicas, burocráticas, jurídicas...) nas quais ocorreu o extermínio dos judeus foi suficientemente esclarecido” e “o quadro geral já se pode considerar estabelecido”, por outro “bem diferente é a situação relativa ao significado ético e político do extermínio, ou mesmo à simples compreensão humana do que aconteceu, a saber, em última análise, à sua atualidade.” (2008: 19). Lembra Agamben, logo no começo de seu livro, que se por um lado “o problemas das circunstâncias históricas (materiais técnicas, burocráticas, jurídicas...) nas quais ocorreu o extermínio dos judeus foi suficientemente esclarecido” e “o quadro geral já se pode considerar estabelecido”, por outro “bem diferente é a situação relativa ao significado ético e político do extermínio, ou mesmo à simples compreensão humana do que aconteceu, a saber, em última análise, à sua atualidade.” (2008: 19). É para esse lugar, menos óbvio, ao qual o observador aproxima-se como que tateando com o olhar, que Didi-Huberman pretende observar com olhar de um arqueólogo, que desconfia do que vê e pretende ver mais do que normalmente se vê, do que foi ensinado, pela tradição, a ver. O olhar arqueológico exigiria do sujeito a observação viva, tornar o olhar um lugar onde se possa interrogar as coisas “a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados” (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 61). Sendo assim, diz respeito a um olhar que não veja somente as cinzas, mas também possa enxergar para o que as cinzas apontam e qual história a partir delas pode ser narrada. Para isso, seria preciso um olhar não domesticado, mas aberto e consciente o suficiente para sentir a cinza da memória, e a partir disso vislumbrar, ainda que de relance, a palavra que acompanha esta cinza. Ademais, tal como a transição entre imagens coloridas e imagens em preto e branco no documentário de Resnais (1955NUIT et Brouillard. Direção de Alain Resnais. Neuilly sur Seine: Argos Films, 1955. 1 DVD (32 min).) opera como índice temporal, em seu estudo Seng (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.) afirma que a articulação temporal no poema de Celan em versos no passado e outros no presente diz respeito ao próprio caminho da memória que o eu-poético atravessa. Versos no pretérito diriam respeito aos acontecimentos anteriores, já os versos no presente diriam respeito ao momento e lugar atual do eu-poético enquanto realiza o trabalho de memória. Nesse sentido, a correspondência entre passado e presente do trabalho de memória aparece formalmente no poema, mostrando como tais temporalidades não estão em relação estanque ou independentes entre si, cronologicamente separadas, mas compartilham e constroem narrativas possíveis, em constantes atravessamentos e afluências. Caberia àquele que realiza o percurso pelo campo-memória elaborar tais relações temporais dinâmicas a partir da leitura e do olhar atentos às coisas soterradas em seus espaços.

Zum Vá Aug geh, no olho, azum feuchten - no úmido - Orkane. ciclones. Orkane, von je, ciclones, desde sempre, Partikelgestöber, das andre, borrasca de partículas, o outro, du você weißts ja, wir bem sabe, nós lasens im Buche, war o lemos no livro, era Meinung. opinião. War, war Era, era Meinung. Wie opinião. Como faßten wir uns nos tocamos - an - an mit como com diesen estas Händen? mãos? Es stand auch geschrieben, daß. Também está escrito que. Wo? Wir Onde? Nós taten ein Schweigen darüber, fizemos silêncio sobre isso, giftgestillt, groß, veneno-estático, imenso, ein um grünes verde Schweigen, ein Kelchblatt, es silêncio, um sépalo, nele hing ein Gedanke an Pflanzliches dran - pende um pensamento de vegetal - grün, ja verde, sim hing, ja pende, sim unter hämischem sob um perverso Himmel. céu. An, ja, De, sim, Pflanzliches. vegetal.

Afirma Seligmann-Silva (2008SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos das catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 65-82, 2008. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005 (20/08/2020).
https://doi.org/10.1590/S0103-5665200800...
: 73) que a importância de narrar o trauma, isto é, passar o inenarrável para a ordem do simbólico (e como ele mesmo mostra, também a partir do trabalho do imaginário) seria a de resistir ao “discurso dos algozes que também visa estender um tabu sobre o discurso que recorde as atrocidades cometidas.”. Já vimos que também Agamben e o próprio Didi-Huberman insistem no dever de narrar e imaginar Auschwitz, pois não fazê-lo, além de ser precisamente a vontade do algoz que deseja silenciar o discurso da memória, é também correr o risco de sacralizar o extermínio. Assim, se o silêncio precede o trabalho da memória, na medida em que é preciso silenciar os discursos majoritários para que o testemunho das vítimas seja ouvido, assim como, tal vimos, o silêncio é o que antecipa o próprio poema de Celan, aponta a sexta parte do poema para a existência também de um outro silêncio, negativo e venenoso: “taten ein Schweigen darüber/ giftgestillt, groß,/ ein/ grünes/ Schweigen [...]”, (“fizemos silêncio sobre isso/ veneno-estático, imenso/ um/ verde/ silêncio [...]”). Segundo Seng (1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.), aqui não se trataria do silêncio da pedra, mas o silêncio venenoso do emudecimento, isto é, não é o silêncio da “pausa”, que permite o espaço para a fala, movimento importante para todo o Sprachgitter, mas o silêncio que oculta as vítimas da Shoah. Na interpretação de Seng, o silenciado é o que estava escrito, “Es stand auch geschrieben, daß.” (“Também está escrito que”), o que, de acordo com a estrofe anterior, referenciaria às “opiniões”, que são testemunhas da possibilidade do amor humano dentro de um mundo atomizado e vazio.14 14 Não cabe aqui detalhar a análise de Seng do trecho, o qual, com base no espólio do autor, o crítico associa a passagens de Demócrito e Dante. Para isso, ver os trabalhos de 1992 e 1998. Porém, seria possível, entendendo o contexto do poema como o de um eu que se lança no caminho da memória e como que “delineia” os mortos, ver na referência às opiniões, dentro de “ciclones” e “borrascas de partículas” (isto é, fenômenos que indicam confusão e embaçam a visão), os discursos que dificultam a visualização da realidade do campo. Assim, tanto o vento do passado como o vento da violência se misturam, embaçam a visão, e não estão separados da ordem do discurso. Vale aqui relembrar do imperativo da primeira parte do poema, “Lies nicht mehr - schau!/ Schau nicht mehr - geh!”, que permite pensar que o que está escrito e sobre o que se fez silêncio é a própria ordem discursiva mentirosa que construiu e permitiu Auschwitz. Seria então preciso desconfiar desta linguagem falsa que, em todas as esferas discursivas, procurou naturalizar o extermínio, para ver o que está por trás dela e que foi, por muitos, silenciado. Para aquele que se lança no caminho da memória, atento do ponto de vista arqueológico, tratar-se-ia de “comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido” (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 41):

A verdade não é dita com palavras (toda palavra pode mentir, toda palavra pode significar tudo e seu contrário, mas com frases). Minha fotografia da “estrada do campo” ainda não passa de uma palavra incipiente, pede para ser situada numa frase. Aqui, a frase não é outra senão meu relato por inteiro, relato feito de palavras e imagens inconsúteis. Mas uma mesma palavra só ganha sentido se utilizada em contextos que convêm saber variar, experimentar: contextos diferentes, frases, montagens diferentes. Por exemplo, a montagem que consistisse, após percorrer solitariamente essa estrada, em escrutar os rostos daqueles e daquelas que por ela passaram num dia de maio ou de junho de 1944: aqueles rostos que o oficial nazista fotografou sem fitá-los, mas que hoje nos encaram de páginas aterradoras - chãs e hediondas, simples e vertiginosas ao mesmo tempo - do Álbum de Auschwitz. (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 41)

A passagem de Didi-Huberman parece apontar para o problema de como a verdade não está pronta, embutida em signos (palavras), mas há de ser construída com movimento, com a sobreposição, com a imaginação, a memória, a montagem, o contexto, a frase e o discurso. Nesse sentido, a verdade tem o caráter de experimentação que se dá através do percurso. Lançar-se no caminho da memória (sobreposto ao da linguagem) é fazer esse percurso de reconstrução em direção a uma verdade que está “em escrutar os rostos daqueles e daquelas que por ela passaram num dia de maio ou de junho de 1944” (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 41). Tal percurso exigiria outro silêncio, não venenoso, mas respeitoso, o silêncio que permite ouvir o ressoar da dor que ainda ecoa pelo campo. Nessa passagem entre silêncios situa-se centralmente o Kelchblatt (sépalo) que, ao mesmo tempo em que protege o silêncio venenoso (e ecoa novamente aqui a imagem do véu sobre os olhos), abre também a possibilidade de um valor positivo (SENG 1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.: 92), pois a Blatt é um elemento que carrega em si a vida e também representaria a vida e a morte na vida natural: “É o símbolo do constante porvir da vida, no qual o ‘pensamento de vegetal’ pende”15 15 „Es ist Sinnbild des immer wieder neu keimenden Lebens, an dem der ‚Gedanke an Pflanzliches‘ hängt.“ .

O vegetal, no qual o pensamento (Gedanke, e aqui vale lembrar o quanto a palavra ecoa Gedächtnis, isto é, memória) pende, aparece como lugar ao qual a memória está ligada, como que de forma imanente. O vegetal também faz parte dos próprios “restos” de Auschwitz, quando pensamos na grama que cresceu sobre o campo nos anos após a libertação, como mostra o documentário de Resnais (1955NUIT et Brouillard. Direção de Alain Resnais. Neuilly sur Seine: Argos Films, 1955. 1 DVD (32 min).). Olhar para esse vegetal é ver o que cresce naturalmente sobre o campo, sobre a própria memória, e, ao mesmo tempo, leva dentro de si a resistência ao esquecimento. Por isso, nos versos seguintes o eu-poético do poema quase que “tateia” o vegetal: “grün, ja/ hing, ja/ unter hämischem/ Himmel.// An, ja,/ Pflanzliches.” (“verde, sim/ pende, sim /sob um perverso /céu.// De, sim,/ vegetal”), em uma certa “análise” dos elementos da planta (as características deste vegetal são reforçadas por um afirmativo “sim”, como em um procedimento de análise e descrição de um objeto), como se procurasse estreitar (e aqui a referência direta ao título do poema, Engführung) o olhar diante do vegetal, olhá-lo a fundo para nele discernir o silêncio ambíguo e a memória, localizar suas propriedades e a história que carrega, o que nele é venenoso e o que precisa ser tocado, o que nele existe, resiste e ainda pode ser ouvido e visto, e que está além da visão imediata. O vegetal, que representaria, nesse sentido, a ação do tempo sobre o campo, é transformado em local de memória, mas não somente: como símbolo da própria linguagem que nele pende, é também ele tanto o silêncio encobridor e o discurso vazio (reden), quanto o que resiste, permanece vivo, debaixo do silêncio venenoso, e por essa potência que carrega, possibilita a emergência do discurso da memória (sprechen)16 16 Em suas reflexões, Celan diferencia o verbo reden do verbo sprechen. Ambos, genericamente, significam “falar”, mas enquanto, em geral na poética-pensamento do autor, reden indica o falar por falar, o falar falso, sprechen indica o não falar por falar, o falar verdadeiro e da memória. Ver, por exemplo, o texto Der Meridian (2014). .

Vá com a arte até ao seu fundo mais estreito. E se liberte.17 17 “Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.” (CELAN 2014: 47). Frase do texto “Der Meridian”, também aproveitada por Seng no título do seu trabalho de 1992.

A imagem do vegetal, por sua vez associada à primeira parte do poeta, consequentemente associa-se também à última:

* * (- - taggrau, der ( - - gris-dia, Grundwasserspuren - dos rastros de aquíferos - Verbracht Enviados ao ins Gelände terreno mit com der untrüglichen o inequívoco Spur: rastro: Gras. Capim. Gras, Capim, auseinandergeschrieben.) escrito à parte.)

Retorna-se circularmente aos primeiros versos do poema, que não são simplesmente repetidos, mas reescritos em outra forma. Seng atenta que a circularidade do poema dá prova “de percurso pelo campo do texto, que, ao mesmo tempo, é um caminhar pelo acontecimento recente” 18 18 “A última parte do poema aponta para essa linguagem enriquecida, que corresponde apenas em palavras a parte inicial e, com isso, fornece evidência de que no percurso pelo campo do texto, que, ao mesmo tempo, é um caminhar pelo acontecimento recente, nenhuma palavra foi gasta.”. No original alemão: „Auf diese angereicherte Sprache deutet auch die Schlußpartie des Gedichts hin, die nur den Worten nach mit der Engangspartie übereinstimmt und somit den Nachweis erbringt, daß auf dem Weg durch das Textgelände, der zu Gleich ein Gang durch das jüngst Geschehene ist, kein Wort hergegeben worden ist.“. Traduzi “hergeben” pelo verbo “gastar” para, com isso, referir-me à tradução de João Barrento da passagem: “Ela [a língua] fez a travessia e não gastou uma palavra com o que aconteceu” (p. 33, grifo nosso), presente em “Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen” (1958) (CELAN 1996). (SENG 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.: 281). O capim, como elemento vegetal, tal uma Kelchblatt que envenena e dá vida, carrega a ambiguidade de ser o que cresce sobre o campo, abandona e encobre a memória, mas quando “escrito à parte” é, ao mesmo tempo, o elemento que permite enxergar os mortos. Escrever à parte o capim (ou se quisermos a “grama”, outra tradução possível para Gras) é, dentro do campo encoberto pelo vegetal abundante, ir em direção a cada talo, a cada caule de vegetal e vê-lo diante das pedras: „Die Steine, weiß/ mit den Schatten der Halme“ (“As pedras, brancas/ com as sombras dos talos”), que simbolizam os mortos na tradição judaica. Tratar-se-ia de olhar

individualmente entre os milhões de mortos, estreitar o olhar diante de uma estatística que, apesar de apresentar-nos o absurdo de um extermínio tão grande, reduz o significado das vidas a uma categoria numérica e transforma os mortos em abstração, impedindo assim a imaginação. Para isso, o observador precisaria compreender que há muito o que ainda se ver no que resta de Auschwitz.

Mas é justamente o contrário que pouco a pouco descobrimos. A destruição dos seres não significa que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui, decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui neste pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Lago, água adormecida que exige de nosso olhar um sobressalto perpétuo. As rosas depositadas pelos peregrinos na superfície da água ainda flutuam, e começam a murchar. As rãs saltam de todos os lados quando me aproximo da beira d’água. Embaixo estão as cinzas. Aqui, temos de compreender que caminhamos no maior cemitério do mundo, um cemitério cujos “monumentos” não passam de restos dos aparelhos concebidos precisamente para o assassinato de cada um separadamente e de todos juntos. (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 62)

O olhar do eu-poético para os talos que crescem entre o capim parece fazer precisamente o sobressalto ao qual, para Didi-Huberman, os restos de Auschwitz exigiriam, como quando ao olhar um pequeno lago que, na verdade, é onde repousam as cinzas de milhares de mortos “- - taggrau,/ der/ Grundwasserspuren -” (“- - gris-dia,/ dos rastros de aquíferos -”). O inconformismo diante do olhar é da ordem da memória e manifesta-se, para Celan e Didi-Huberman, a partir de outra maneira, não domesticada, massificada e conciliatória, de lembrar dos mortos e aprofundar o significado de Auschwitz para a história, a política, a cultura, para uma própria ética do agir humano em todos os níveis, se assim quisermos. Mas retornar a Auschwitz, além de uma exigência à imaginação, é para o poeta encarar a questão ética de fazer isso com uma linguagem que não tem palavras para o que aconteceu, porém não pode se calar, na medida em que o que aconteceu também não está dissociado dela. O que o poema de Celan parece fazer é tentar levar essa questão até o lugar mais estreito, deixá-la atravessar todos os níveis de um eu, que também é um eu-na-linguagem. Nas palavras de Seng (1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.: 281), e aqui fazendo referência ao discurso de Bremen (1958 [1996]CELAN, Paul. Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen (1958). In: CELAN, Paul. Arte Poética - O Meridiano e outros textos. Organização e tradução: João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, 31-33.): “essa língua vai com o poeta ao seu ‘Estreito’, atravessa esse acontecimento e aparece - como ‘as conversas, gris-dia,/ dos rastros de aquíferos.’ - novamente ‘enriquecida’19 19 “Enriquecida”, que no discurso de 1956 traduz “angereichert”, termo que em si contém o substantivo Reich e faz referência direta ao Terceiro Reich alemão. Com isso, Celan reafirma semioticamente a necessidade de “concentrar” a linguagem com o horror do algoz para atravessar esse horror e a linguagem que, alienada, dá a ele sustentação. com tudo isso”20 20 „Diese Sprache geht mit dem Dichter in seiner ,Engführung’ durch dieses Geschehen hindurch und trat schließlich - wie die ,Gespräch, taggrau/ der Grundwasserspuren’ - wieder zutage, ‘angereichert’ von all dem.“ . Levando a língua ao estreito, concentrando-a com tudo o que aconteceu, com a memória, com o olhar, com os mortos coletivos e individuais, surge uma linguagem que, quebrada e cinza, incorpora o próprio silêncio e a memória como elementos de si. (SENG 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.).

5 Conclusão

Neste artigo, procurei mostrar pontos de contato possíveis entre o ensaio de Didi-Huberman e o poema de Celan que dizem respeito a uma posição ética diante da memória da Shoah que não se resigna a limitá-la às circunstâncias gerais do acontecimento histórico, mas que se engajada em compreendê-la com base em um trabalho mais amplo de linguagem, olhar e memória. Para isso, selecionei trechos do ensaio de Didi-Huberman e algumas partes do poema de Celan, e com auxílio das interpretações de Joachim Seng (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.; 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.), articulei algumas questões em comum entre os textos, como o próprio percurso pelo campo, o olhar para o que dele restou e também a desconfiança em relação à linguagem. Ainda que com 53 anos de diferença, o poema de um sobrevivente da Shoah e ensaio de um historiador de uma geração posterior, quando colocados em diálogo, suscitam reflexões que dizem respeito tanto à importância dos estudos da memória e do testemunho, como também sobre as potencialidades de pensar Auschwitz a partir das linguagens artísticas. No caso, em especial a fotografia e a poesia, mas também outras, como as artes plásticas e a música.

Em trecho central de sua reflexão, pergunta-se Didi-Huberman o que fazer quando, na passagem de Auschwitz de campo de concentração para museu destinado a preservar a memória dos mortos, o campo de concentração foi esquecido em seu próprio lugar, tornando-se “um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz” (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 25). Na esteira deste questionamento, nos restos de Auschwitz como lugar de cultura é possível encontrar os vestígios que permitem imaginá-lo como lugar de barbárie. Tal processo imaginativo se dá ao colocar a imaginação em língua, tentando realizar a passagem do não-simbolizável (e que sempre resiste à simbolização) à ordem do simbólico e, com isso, superar o imperativo do indizível. Neste ponto encontram-se o ensaio de Didi-Huberman e o poema de Celan. O historiador francês, a partir do relato em primeira pessoa, instiga o interlocutor a perscrutar o campo (os letreiros, objetos, infraestruturas, paisagens) com olhar arqueológico (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 61), para nele enxergar para além do que se vê na superficialidade, mobilizando, com isso, uma série de associações possíveis no trabalho de memória. Já o poema de Celan, que como concluímos a partir da leitura de Seng, encena um percurso pelo campo de concentração, incorpora Auschwitz como lugar de barbárie em uma língua que compreende tanto não ser absoluta, como também a lacuna inerente da sua própria materialidade e a falta a partir da qual se constitui. Esta língua absorve em si o que há de silêncios e cinzas para, deste processo, fazer-se língua poética, língua obscura que é comparada com o “balbuciar desarticulado ou o estertor de um moribundo” por Primo Lévi (AGAMBEN 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad.: Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008.: 46).

Deste modo, aproximar o poema de Celan e o ensaio (que bem pode ser visto como poético) de Didi-Huberman é, através da arte e da linguagem, ressaltar formas com as que se falam as lacunas de Auschwitz, sem, com isso, resignar-se ao emudecimento. Olhar para esta lacuna e colocá-la em linguagem, tentar simbolizá-la sem esquecer o que há nela de não simbolizável, sem negar o silêncio, é também uma ética diante da postura negacionista que procura apagar os locais e as marcas das atrocidades para delas dizer: não foi verdade. De fato, como lembra Seligmann-Silva (2008SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos das catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 65-82, 2008. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005 (20/08/2020).
https://doi.org/10.1590/S0103-5665200800...
: 78), “seria utópico pensar que a arte e a literatura poderiam, por exemplo, servir de dispositivo testemunhal para populações como as sobreviventes de genocídios ou de ditaduras violentas”, mas isto também não é uma negação do papel da linguagem artística, pois podemos aprender muito com “os hieróglifos de memória que os artistas nos tem apresentado”. Talvez seja esse precisamente um dos sentidos possíveis para outra imagem cara a Celan: a poesia como uma garrafa jogada ao mar (CELAN 2017CELAN, Paul. Engführung. In: CELAN, Paul. Die Gedichte - Kommentierte Gesamtausgabe in einem Band. Edição e comentários: Barbara Wiedemann. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2017, 113-118.: 2421 21 „Das Gedicht kann, da es ja eine Erscheinungsform der Sprache und damit seinem Wesen nach dialogisch ist, eine Flaschenpost sein, aufgegeben in dem - gewiß nicht immer hoffnungsstarken - Glauben, sein könnte irgendwo und irgendwann an Land gespült werden, an Herzland vielleicht. Gedichte sind auch in dieser Weise unterwegs: sie halten auf etwas zu.”. Na tradução de João Barrento: “O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo.” (1996: 34). ), cujo rumo é desconhecido e não sabemos quais águas e ventos irá atravessar, qual receptor irá encontrar e, muito menos, quais potências pode despertar no contato com aquele que a encontra.

Referências bibliográficas

  • ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. Trad.: Augustin Wernet e Jorge Matos Britto de Almeida. São Paulo: Paz e Terra, 2002, 45-61.
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  • CELAN, Paul. Engführung. In: CELAN, Paul. Die Gedichte - Kommentierte Gesamtausgabe in einem Band. Edição e comentários: Barbara Wiedemann. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2017, 113-118.
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  • KLEMPERER. Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich. Trad.: Miriam Bettina Paulina Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
  • NUIT et Brouillard. Direção de Alain Resnais. Neuilly sur Seine: Argos Films, 1955. 1 DVD (32 min).
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos das catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 65-82, 2008. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005 (20/08/2020).
    » https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005
  • SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.
  • SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.
  • 2
    Celan e Adorno acompanharam com atenção o trabalho um do outro, inclusive trocando correspondência por anos. Mais sobre esta relação, ver a parte “Excurs: Das Gedicht nach Auschwitz - Celans Auseneindersetzung mit Adorno” em: SENG, J. Das zyklische Gedicht „ENGFÜHRUNG“. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: Universitätsverlag Winter, 1998, 257-283.
  • 3
    Se levarmos em conta o documentário Nuit et Brouillard (Noite e Neblina), de 1955, o qual Celan traduziu a narração para a versão alemã Nacht und Nebel pouco antes de terminar “Engführung”, podemos associar o campo de concentração com o complexo Auschwitz-Birkenau (SENG 1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.).
  • 4
    A versão utilizada do poema é a que está nos poemas completos comentados e editados por Barbara Wiedemann (2017). A tradução é de Guilherme Gontijo Flores (2017). Não pretendo aqui analisar criticamente a tradução de Gontijo, apesar disso comento brevemente, ao longo do texto, algumas outras soluções tradutórias possíveis para trechos específicos do poema de Celan, com vista a aproximar a tradução do poema às leituras críticas propostas por Jochiam Seng. A tradução de Flores pode ser encontrada em: MACIEL, Sérgio. 3 traduções para um poema de Paul Celan. Blog Escamandro, 2017. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2017/04/07/3-traducoes-para-1-poema-de-paul-celan/ (21/08/2020).
  • 5
    “Mas, se devo continuar a escrever, ajustar o foco, fotografar, montar minhas imagens, e pensar isso tudo, é precisamente para tornar uma frase desse tipo incompleta. Cumpriria dizer: “Isso é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad.: André Telles. São Paulo: Editora 34, 2017.: 30).
  • 6
    “Para ele [Celan] tratou-se de documentar que, com os poemas do livro “Sprachgitter” em geral, e com “Engführung” em particular, um outro estágio da reflexão poética e um outro modo da linguagem foram alcançados, com respostas mais apressadas, ofegantes e com menor intervalo , de modo que as vozes interrompem umas às outras.”. No original alemão: „Es ging ihm [Celan] dabei vor allem darum, zu dokumentieren, dass es mit den Gedichten des ‘Sprachgitter‘-Buches im Allgemeinen und mit der 'ENGFÜHRUNG' im Besonderen ein anderes Stadium der poetischen Reflexion und eine andere lyrisch Sprechweise erreicht hatte, in der die Antworten hastiger, atemloser und in kürzerem Abstand, so dass die Stimmen einander ins Wort fallen.” Todas as traduções dos trechos de Seng são minhas (quando não aparecem em nota, estão no corpo do texto). Demais traduções sem indicação de tradutor também são de minha autoria.
  • 7
    Engführung” é, ao mesmo tempo, o último ciclo do livro Sprachgitter (1959), composto por seis ciclos. O poema está divido em nove partes, separadas por asteriscos. A não ser na primeira parte, os dois últimos versos de cada parte são repetidos no começo da parte seguinte, formando um entrelaçamento de vozes. Lembra Seng (1992SENG, Joachim. „... geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.“ - Paul Celans Gedicht „Engführung“ und seine Beziehung zu dem Film „Nacht und Nebel“ von Alain Resnais. Abschlußarbeit zur Erlangung des Magister Artium (Fachbereich: Neuere Philologien) - Institut für Deutsche Sprache und Literatur II, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, 1992.; 1998SENG, Joachim. Das zyklische Gedicht “ENGFÜHRUNG”. In: SENG, Joachim. Auf den Kreis-Wegen der Dichtung - Zyklische Komposition bei Paul Celan am Beispiel der Gedichtbände bis „Sprachgitter“. Heidelberg: UniversitätsverlagWinter, 1998, 257-283.) que, na teoria música, Engführung (stretto ou estreito) refere-se a uma técnica de composição em que há uma conexão contrapontística entre duas ou mais vozes de tema melódico igual, sendo frequentemente utilizada no final de uma fuga.
  • 8
    “Nove milhões de mortos assombram esta paisagem.” escreveu Jean Cayrol (1955NUIT et Brouillard. Direção de Alain Resnais. Neuilly sur Seine: Argos Films, 1955. 1 DVD (32 min)., 32 min), roteirista de Nuit et Brouillard (Noite e Neblina). Segundo matéria publicada pelo jornal El País em Setembro de 2017, historiadores como Raul Hilberg (1926-2007), Saul Friedländer (1932-) e Timothy Snyder (1969-), além de instituições como Yad Vashem de Jerusalém e o Museu do Holocausto de Washington, contabilizam cerca de seis milhões de mortos na Shoah. Ver: ALTARES, Guillermo. Por que falamos de seis milhões de mortos no Holocausto?. El País, Madrid, 16 de set. de 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/13/internacional/1505304165_877872.html (06/11/2020).
  • 9
    “Mas a língua não se contenta em poetizar e pensar por mim. Também conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua cultura tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passando um tempo, o efeito do veneno se faz notar.” (2009KLEMPERER. Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich. Trad.: Miriam Bettina Paulina Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.: 55)
  • 10
    „Erreichbar, nah und unverloren blieb inmitten der Verluste dies eine: die Sprache. Sie, die Sprache, blieb unverloren, já, troz allem. Aber sie mußte nun hindurchgehen durch ihre eigenen Antwortlosigkeiten, hindurchgehen durch furchtbares Verstummen, hindurchgehen durch die tausend Finsternisse todbringender Rede. Sie ging hindurch und gab keine Worte her für das, was geschah; aber sie ging durch dieses Geschehen. Ging hindurch und durfte wieder zutage treten, ‚angereichert‘ von all dem. In dieser Sprache habe ich, in jenen Jahren und in den Jahren nachher, Gedichte zu schreiben versucht: um zu sprechen, um mich zu orientieren, um zu erkunden, wo ich mich befand und wohin es mit mir wollte, um mir Wirklichkeit zu entwerfen. Es war, Sie sehen es, Ereignis, Bewegung, Unterwegsein, es war der Versuch, Richtung zu gewinnen. […]” ( 2014 CELAN, Paul. Ansprach anlässlich der Entgegennahme des Literaturpreises der Freien Hansestadt Bremen. In: CELAN, Paul. Prosa I - Zu Lebenszeiten Publizierte Prosa und Reden - Historische-Kritische Ausgabe - 15. Band - 1 Teil - Text. Preparação: Axel Gellhaus. Edição: Andreas Lohr, Heino Schmull e Rolf Bücher. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2014, 23-25. : 23-24)
  • 11
    „Hier wird ein ursächlicher Zusammenhang zwischen einem Sprachdefizit und dem Unheil von Menschen hergestellt.“
  • 12
    “No desenvolvimento sintático da quinta parte do rascunho até a versão final já pode ser lido como o poeta apresenta uma voz poética que desconfia do belo e gostaria de ser verdade”. No original alemão: „So wird bereits an der syntaktischen Entwicklung der füften Partie von den Entwürfen zur Endfassung ablesbar, wie sich der Dichter ein lyrisches Sprechen vorstellt, das dem ‚Schönen‘ mißtraut und wahr sein möchte.“
  • 13
    Lembra Agamben, logo no começo de seu livro, que se por um lado “o problemas das circunstâncias históricas (materiais técnicas, burocráticas, jurídicas...) nas quais ocorreu o extermínio dos judeus foi suficientemente esclarecido” e “o quadro geral já se pode considerar estabelecido”, por outro “bem diferente é a situação relativa ao significado ético e político do extermínio, ou mesmo à simples compreensão humana do que aconteceu, a saber, em última análise, à sua atualidade.” (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad.: Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008.: 19). Lembra Agamben, logo no começo de seu livro, que se por um lado “o problemas das circunstâncias históricas (materiais técnicas, burocráticas, jurídicas...) nas quais ocorreu o extermínio dos judeus foi suficientemente esclarecido” e “o quadro geral já se pode considerar estabelecido”, por outro “bem diferente é a situação relativa ao significado ético e político do extermínio, ou mesmo à simples compreensão humana do que aconteceu, a saber, em última análise, à sua atualidade.” (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad.: Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008.: 19).
  • 14
    Não cabe aqui detalhar a análise de Seng do trecho, o qual, com base no espólio do autor, o crítico associa a passagens de Demócrito e Dante. Para isso, ver os trabalhos de 1992 e 1998.
  • 15
    „Es ist Sinnbild des immer wieder neu keimenden Lebens, an dem der ‚Gedanke an Pflanzliches‘ hängt.“
  • 16
    Em suas reflexões, Celan diferencia o verbo reden do verbo sprechen. Ambos, genericamente, significam “falar”, mas enquanto, em geral na poética-pensamento do autor, reden indica o falar por falar, o falar falso, sprechen indica o não falar por falar, o falar verdadeiro e da memória. Ver, por exemplo, o texto Der Meridian (2014CELAN, Paul. Der Meridian. In: CELAN, Paul. Prosa I - Zu Lebenszeiten Publizierte Prosa und Reden - Historische-Kritische Ausgabe - 15. Band - 1 Teil - Text. Preparação: Axel Gellhaus. Edição: Andreas Lohr, Heino Schmull e Rolf Bücher. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2014, 33-51.).
  • 17
    “Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.” (CELAN 2014CELAN, Paul. Ansprach anlässlich der Entgegennahme des Literaturpreises der Freien Hansestadt Bremen. In: CELAN, Paul. Prosa I - Zu Lebenszeiten Publizierte Prosa und Reden - Historische-Kritische Ausgabe - 15. Band - 1 Teil - Text. Preparação: Axel Gellhaus. Edição: Andreas Lohr, Heino Schmull e Rolf Bücher. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2014, 23-25.: 47). Frase do texto “Der Meridian”, também aproveitada por Seng no título do seu trabalho de 1992.
  • 18
    “A última parte do poema aponta para essa linguagem enriquecida, que corresponde apenas em palavras a parte inicial e, com isso, fornece evidência de que no percurso pelo campo do texto, que, ao mesmo tempo, é um caminhar pelo acontecimento recente, nenhuma palavra foi gasta.”. No original alemão: „Auf diese angereicherte Sprache deutet auch die Schlußpartie des Gedichts hin, die nur den Worten nach mit der Engangspartie übereinstimmt und somit den Nachweis erbringt, daß auf dem Weg durch das Textgelände, der zu Gleich ein Gang durch das jüngst Geschehene ist, kein Wort hergegeben worden ist.“. Traduzi “hergeben” pelo verbo “gastar” para, com isso, referir-me à tradução de João Barrento da passagem: “Ela [a língua] fez a travessia e não gastou uma palavra com o que aconteceu” (p. 33, grifo nosso), presente em “Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen” (1958) (CELAN 1996CELAN, Paul. Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen (1958). In: CELAN, Paul. Arte Poética - O Meridiano e outros textos. Organização e tradução: João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, 31-33.).
  • 19
    “Enriquecida”, que no discurso de 1956 traduz “angereichert”, termo que em si contém o substantivo Reich e faz referência direta ao Terceiro Reich alemão. Com isso, Celan reafirma semioticamente a necessidade de “concentrar” a linguagem com o horror do algoz para atravessar esse horror e a linguagem que, alienada, dá a ele sustentação.
  • 20
    „Diese Sprache geht mit dem Dichter in seiner ,Engführung’ durch dieses Geschehen hindurch und trat schließlich - wie die ,Gespräch, taggrau/ der Grundwasserspuren’ - wieder zutage, ‘angereichert’ von all dem.“
  • 21
    „Das Gedicht kann, da es ja eine Erscheinungsform der Sprache und damit seinem Wesen nach dialogisch ist, eine Flaschenpost sein, aufgegeben in dem - gewiß nicht immer hoffnungsstarken - Glauben, sein könnte irgendwo und irgendwann an Land gespült werden, an Herzland vielleicht. Gedichte sind auch in dieser Weise unterwegs: sie halten auf etwas zu.”. Na tradução de João Barrento: “O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo.” (1996CELAN, Paul. Alocução na entrega do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen (1958). In: CELAN, Paul. Arte Poética - O Meridiano e outros textos. Organização e tradução: João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, 31-33.: 34).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2020
  • Aceito
    22 Fev 2021
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